Olhares Interseccionais

Que a esperança possa exalar seu aroma!

Que a esperança possa exalar seu aroma!

3/1/2022

Quanto cansaço desnecessário tem nos acompanhado, muita insônia, e uma constante sudorese que colocou um esparadrapo em nossos lábios. O pânico invadiu nossas vidas. A exaustão mental se tornou um cobertor diário. Tudo isso para ser alguém criado por pincel alheio. Absorvidos por um sistema-mundo despersonalizante, prevalece o indivíduo-massa. Sou instantaneamente substituível, ainda que a sedução exercida pelos jogos de prazeres midiáticos sugira que é possível ser diferente, e feliz, essa ideia absurda — ser feliz — que atormenta a existência.

E se as palavras estão indispostas para refletir sobre a felicidade, pergunta-se ao Cosmos se ainda é concebível, nesse momento global, saborear a esperança. Variará a resposta de um canto a outro do mundo. Há, porém, uma métrica sensorial que é a base desse questionamento: a desigualdade. Está presente no norte ao sul global, com matizes diferenciados. Desigualdade racial, de gênero, sexual, social, econômica, e tantas outras que continuam silenciadas, não deixarão de nos desigualar. Isso é fato. A esperança é uma flor possível de existir nesse jardim desencantado?

 Do lado de cá, é tão profunda essa coisa de ser excluída/o, de ser violentada/o sexualmente por mãos de senhores/as de novos engenhos, de morrer gratuitamente quando se tem a pele negra, de chorar na solidão no meio de tanta gente em que o amor é uma propriedade privada, de se esquecer no poço da depressão, de ter que buscar forças existenciais para suportar o banzo de viver distante de suas raízes ancestrais.

Tudo isso é muito forte e desesperador num país feito por negros e indígenas, mas capitalizado por brancos. Para além das discussões até certo limite frutíferas sobre essencialismos identitários, múltiplas identidades são negociadas a todo momento com um mundo social pintado de branco, que normatiza o existir, dizendo quem pode ou não reivindicar suas diferenças socioculturais.

Três episódios que se repetem por aí.

Em um condomínio de alto padrão, no jantar natalino programado para a confraternização de colaboradores, em sua maioria negros e pardos, ficou nítida a impossibilidade de que essa cena — o desfrutar de um confortável momento de lazer pela gente humilde — se torne frequente, já que estamos em um país que nega diariamente opressões sistêmicas como o racismo e o sexismo. Ali era apenas um episódio, de aparência filantrópica, movido por uma certa piedade que ronda o mês de dezembro. Houve quem entoou uma voz alta, falando para aquela plateia de negros/as que naquele local não havia distinção social, de cor, religião e todas essas outras mentiras que aprendemos dizer desde cedo.  "Venhamos e convenhamos!", como dizem alguns mais antigos, o termo colaborador/a tenta suavizar as infinitas violações cotidianas por que passam essas pessoas: transportes públicos lotados, ausência de afeto, escassez alimentar e baixíssima autoestima. 

Admitida para trabalhar como babá por apenas um mês, ela, negra retinta, 47 anos, avó de um menino de 04 anos, no primeiro dia de trabalho, ao abrir a porta para retornar para seu gueto, mostrou "espontaneamente" a bolsa para sua patroa, também negra, só que menos carregada na tinta. E disse: estou acostumada com isso é melhor mostrar logo a bolsa.

Apenas um dia na função de pedreiro, e o rapazote pardo não conseguiu achar o banheiro da área de serviço, que era logo ali no canto direito, perto da porta por onde ele entrou. Na verdade, mesmo com a mochila colocada no chão do banheiro, não acreditou que ali fosse um "banheiro de serviço", disse que o espaço era muito chique para isso e que estava com medo de ter entrado no lugar errado. O chique que ele quis dizer era apenas uma pequena pia feita com restos de um granito bege bahia.

Será que é possível mesmo ter esperança com tanta desgraça humana que nos rodeia?

Estamos num período do ano em que se abrem as expectativas para novos capítulos de vida, dizendo-se que logo ali adiante o ano será novo. Inclusive este texto está sendo produzido em um ano velho para ser publicado em um novo ano. Não se espante, portanto, se um pouco de poeira existencial, típica de um cansaço de fim de ano, invadir suas narinas ao ler esses fragmentos de ideias.  Também deve-se dizer que não falaremos por aqui sobre a interminável pandemia e das muitas covas que foram abertas para receber vidas abreviadas por um vírus letal. Pelo lado de cá, já se disse, essa coisa de desigualdade é forte, e os infortúnios sociais se imbricam com a chegada de uma potente variante do influenza e com mais um afogamento das comunidades periféricas por chuvas torrenciais. Como disse um certo motorista de uber, está tudo no Apocalipse, basta lê-lo.

É muito difícil ter esperança se nossos desejos estão quase mortos. Houve uma atrofia da libido em estado natural. A sensação é de que o campo psíquico está completamente maquinizado. Precisamos sempre de “muito, muitíssimo” para desejar a própria vida. Bastante pornografia, álcool, músculos, marca, dinheiro, botox, silicone, sucesso profissional etc.  O ânimo está sensorialmente robotizado. Saturados e suturados de ilusões sobre o bem viver. Mais do que a fadiga corporal, emocional e espiritual, nos tornamos corações intolerantes com lábios secos e rachados diante da ausência de um afeto espontâneo, não monetizado. Até o antigo hábito de agradecer se tornou uma expressão automática e esvaziada de um tom sensível que marque a fartura da alegria que é ser contemplado/a por uma mão que lhe foi estendida.  Ausentes de si, passamos a dizer "gratidão e perdão" para tudo, como se fôssemos robôs místicos.

Por esses dias, apareceu em nossa caixa de reflexões a expressão "pessimista ativo", do intelectual Muniz Sodré.  Ao se autodenominar dessa forma, Sodré diz que, nesse histórico contexto de desigualdades que fundam o Brasil e ainda se mostram presentes, é importante olhar o real de frente. Mais do que uma crítica verborrágica a tudo e todos, devemos nos permitir o uso transitivo da palavra, que esta seja utilizada para transformar o viver social e pautar ações que considerem a existência do outro. É sim um caminho possível, inclusive para se retomar um ambiente coletivo em que a alegria seja uma manifestação espontânea do ser.

Ailton Krenak fala que não podemos nos render a essa ideia de fim de mundo, programada para nos colocar cada vez mais distante de si mesmo e adotarmos uma postura de total desleixo com nossa própria existência, a qual deveria ser sentida e pensada de forma integrada à natureza, respeitando o potencial materno que a perspectiva indígena atribui à terra.

Uma esperança de cândido otimismo é difícil de ter nesses tempos de massacre existencial, em que logo cedo pela manhã um certo sabor amargo visita a ponta da língua, avisando-nos que a vida moderna se tornou uma permanente luta contra a angústia e apatia existenciais. Queria muito que a esperança tivesse o cheiro da tangerina, essa fruta que impulsionou Ferreira Gullar a fazer um belo poema (O cheiro da Tangerina) e versificá-la como aquela que solta "na sala (no século) seu cheiro, seu grito, sua notícia matinal." Infelizmente, não é assim. A esperança — se é que ainda existe — se tornou uma rara planta a ser encontrada na mata artificial que envolve a contemporaneidade.  

Precisaríamos retornar a uma vida mais simples, a um café da manhã mais tranquilo, em que o diálogo não fosse interrompido por múltiplas mensagens de WhatsApp a ponto de esfriar o preto café que está na xícara. É uma tarefa difícil, muito difícil para quem se acostumou a ser complexo com todas a coisas e burocratizar a vida com regras sem sentido. Teríamos que intensificar a dimensão do microcosmos em nossa existência, da vida menor que construímos a partir de laços de amizade. É preciso experenciar a dimensão do “ser amigo/a” (da terra, do mar, das etnias, da sexualidade, do/a outro/a) para exalarmos esperança.  

No último conto de seu emocionante livro Olhos d'água, Conceição Evaristo, ao prosear sobre Ayoluwa, a alegria do nosso povo, escolhe as seguintes palavras para finalizá-lo: "E quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um olho chora, o outro espia o tempo procurando a solução." É isso, que seja assim mesmo.  Que nas nossas miúdas e raras conversas espontâneas que acontecem na agitação do cotidiano, a gente encontre disposição para ter esperança e se transformar, conforme a linda expressão usada por Mãe Stella de Oxóssi, em "caçadores/as de alegria".

Que os caminhos estejam abertos. E se não estiverem, que possamos usar a sabedoria ancestral para abri-los.  Quem sabe assim, nesse vasto mundo de desigualdades, o cheiro da esperança se torne mais forte e nos dê a oportunidade de senti-lo em todos os poros de nossa pele!

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Aléssia Tuxá Indígena do Povo Tuxá. Defensora Pública do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica da DPE/BA. Mestra em Direito Público pela UFBA; Graduada em Direito pela UEFS.

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Fábio Francisco Esteves é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB), doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), especializando em Direito Constitucional pela ABDConst, MBA em PNL e liderança de alto performance, juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), atualmente exercendo o cargo de juiz instrutor do Gabinete do Ministro Edson Fachin, no STF, professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Distrito Federal, ex-vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), co-fundador do Encontro Nacional de Juízes e Juízas Negros - ENAJUN e do Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação - FONAJURD, co-criador do Projeto Falando Direito para educação em cidadania, Presidente da Comissão Multidisciplinar de Inclusão do TJDFT, membro da Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados para revisão da legislação antirracista, membro da Comissão para Promoção da Igualdade Racional no Processo Eleitoral, do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, foi Presidente da Associação dos Magistrados do Distrito Federal (AMAGIS-DF), nos biênios de 2016/2018 e 2018/2020.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

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Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.