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Pandemia e miopia constitucional

O momento exige racionalidade política, econômica e jurídica.

8/4/2020

O Governo Federal acaba de apresentar o maior programa de proteção ao emprego já visto no país, mas há quem aponte suposta inconstitucionalidade no mecanismo de negociação individual.

O argumento é simples: nos termos do artigo 7º, VI, da Constituição apenas por negociação coletiva seria admissível a redução salarial, ainda que com redução proporcional da jornada.

Com todo o respeito aos que apenas enxergam a letra do texto constitucional, sua interpretação exige lentes especiais, especialmente neste excepcional momento.

Mais do que proteger a economia, as MPs 927 e 936 viabilizam o isolamento social, indispensável para evitar o colapso do sistema de saúde. Sem elas a pressão econômica para o fim do isolamento seria insustentável.

As políticas públicas, dentre as quais se inclui a disciplina do mercado de trabalho em momento de calamidade, devem ter como prioridade a preservação da saúde – e, portanto, da vida – sem descurar dos empregos e da produção.

A lógica interpretativa dessas normas não é e não pode ser a usual. Em tempos excepcionais, a interpretação é a de exceção.

A interpretação demasiadamente restritiva do artigo 7º da CF implicaria, por certo, a violação de outros preceitos, de igual ou superior relevância, como o artigo 196, ao dispor que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

A hermenêutica oferece várias ferramentas para manter vivos e vívidos os dispositivos da Constituição: o "princípio da concordância prática", o "preenchimento de lacunas ocultas", o princípio da "proporcionalidade" e o abrandamento da irrenunciabilidade de direitos fundamentais.

Portanto, a despeito da letra do artigo 7º da CF, não parece adequado reservar exclusivamente à negociação coletiva a redução de salários e outros ajustes em caráter de emergência para enfrentar a grave e inevitável crise econômica.

É claro que a negociação coletiva deve ser priorizada. Não é realista, entretanto, considerá-la a única solução para a sobrevivência das empresas e dos empregos. Micro, pequenas e médias empresas são invisíveis aos sindicatos, sendo raros os acordos coletivos.

Até mesmo nos setores com maior tradição negocial há dificuldades para formalizar acordos e convenções, em razão, por exemplo, da óbvia impossibilidade de convocar assembleias. A MP 936 reduziu a burocracia para a negociação e admitiu a consulta aos trabalhadores por meios telemáticos, mas ainda assim haverá dificuldades.

Também não se pode fechar os olhos às consequências da falta de liberdade sindical: muitos sindicatos estavam aproveitando a dificuldade para condicionar a negociação coletiva a controversas contribuições. Afinal, ainda detêm o monopólio de representação, mesmo quando contra a vontade dos representados.

A MP 936 traz em seu artigo 12 inteligente mecanismo para exigir a negociação coletiva nas situações em que os trabalhadores podem sofrer maior impacto na renda, permitindo o acordo individual apenas nas demais hipóteses ou quando se tratar de trabalhador hipersuficiente (elevado salário e diploma de curso superior).

Tudo agora se agrava diante de decisões aparentemente contraditórias no Supremo Tribunal Federal. De um lado, o min. Marco Aurélio de Mello, ao rejeitar o pedido liminar na ADI 6343, contextualizou a MP 927 e concluiu que "descabe, no que ficou prevista a preponderância do acordo individual escrito, (...) assentar, no campo da generalidade, a pecha de inconstitucionalidade". De outro, ao examinar mecanismo análogo da MP 936, concluiu o min. Ricardo Lewandowski na ADI 6363 que a possibilidade de acordo individual "parece ir de encontro" a certos dispositivos da Constituição.

O pronunciamento do pleno do STF quanto aos temas é urgente. Na impossibilidade ou dificuldade de negociação de alternativas, as demissões são a saída fácil para muitas empresas, ou talvez a única.

Por fim, vale lembrar as normas no sentido de que "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum" e de que o preenchimento de lacunas deve ser feito com a atenção para que "nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público". Devido a sua importância, essas normas são usualmente classificadas como materialmente constitucionais.

O momento exige racionalidade política, econômica e jurídica.

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*Antonio Galvão Peres é sócio de Robortella e Peres Advogados. Doutor e mestre em Direito do Trabalho (USP) - Professor Adjunto de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado (2006 a 2014) – Presidente da Comissão de Direito do Trabalho do Instituto dos Advogados de São Paulo (2010 a 2012) - Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo - Membro do Conselho Superior de Relações de Trabalho da FIESP (CORT).

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