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Muito barulho por nada: Por que abandonar a categoria “litígio estrutural”?

Desde que a Suprema Corte decidiu pela inconstitucionalidade da segregação (Brown vs Board of Education); muita tinta foi gasta para saber se as estruturas enraizadas na sociedade (raça, gênero e classe) e no próprio Estado (a burocracia) entravariam o processo de mudança social iniciado pelo judiciário.

15/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Muito Barulho por Nada (1598) expõe, como toda boa comédia, os limites do racionalismo. Shakespeare satiriza ninguém menos que o amor. A trama gira em torno de duas mulheres bem resolvidas. Beatriz jura que não se apaixona. Não que seja casta, mas para ela: “todos os filhos de Adão são meus irmãos; e considero pecado casar-me com parentes”. Já Hera acredita no amor de Cláudio, que desconfia de sua reputação. No final, ambas se casam. Hera, com o mesmo Cláudio. Beatriz escolhe Benedito. O cálculo deliberado para desacreditar o amor ou para enaltecê-lo era só barulho, muito barulho por nada.              

No nosso cenário, o barulho é o alvoroço dos juristas em torno do litígio estrutural. Desde que a Suprema Corte decidiu pela inconstitucionalidade da segregação (Brown vs Board of Education); muita tinta foi gasta para saber se as estruturas enraizadas na sociedade (raça, gênero e classe) e no próprio Estado (a burocracia) entravariam o processo de mudança social iniciado pelo judiciário.

A discussão não é totalmente vã. Após o caso Brown (1954), a Corte foi provocada diversas vezes contra ações dos estados contrárias à dessegregação. Em Arkansas (Cooper vs Aaron), o governo argumentou que a violência gerada na construção de escolas unitárias justificaria a suspensão do projeto por dois anos.  A Suprema Corte discordou da justificativa, por violar o dever de implementar a decisão com “velocidade deliberada”.

Em 1963, nove anos depois de Brown (Goss vs Conselho de Educação de Knoxville), a medida impugnada era o plano de dessegregação que permitia aos alunos a transferência de escolas duais para unitárias. A disposição foi contestada, sob o argumento de que delegar o poder de mudança aos diretamente envolvidos perpetuaria a segregação. A Suprema Corte concordou.

Na Virgínia (Griffin vs Prince Edward Country, 1964), o plano de evitar a implementação incluía o fechamento de escolas públicas e o financiamento de escolas privadas unitárias de brancos, com crédito facilitado e subsídio. Diante da evidente burla à decisão em Brown, o Tribunal reconheceu a inconstitucionalidade da medida.

As intercorrências do caso Brown geraram nos juristas o desejo de criar uma nova categoria: o litígio estrutural. A capacidade de monitorar o processo de mudança, com a imposição de medidas executivas ao recalcitrantes, foi decisiva. Rostow defendeu que a Suprema Corte teria se convertido no grande órgão educacional, em que seus juízes são inevitavelmente professores num seminário nacional vital.

Curiosamente, o mesmo caso Brown foi utilizado para defender a visão clássica do judiciário, que se limita a verificar irregularidades.  Nessa frente, o foco está nas dificuldades da implementação em detrimento do protagonismo judicial. Afinal, o judiciário é o menos perigoso dos poderes, por não ostentar nem a bolsa nem a espada (Hamilton).

Defensores mais modernos da visão clássica acrescentariam: (I) a dependência do litígio anula a capacidade política do povo (McCann, 1986); (II) a capacidade de os tribunais inferiores de descumprir ordens judiciais é totalmente incompatível com o modelo burocrático ideal (Cristopher Stone, 1974); (III) a capacidade ilimitada de sabotagem dos administradores (Colin Diver, 1979); (IV) a ineficiência dos atributos tradicionais de adjudicação (Kirp e Babcock, 1981)¹.

Não tardou para que a discussão sobre o processo de mudança social gerado por Brown perdesse força. A energia foi deslocada para o desgastado tema da separação dos poderes. O ornamento acrescentado foi o princípio da razão suficiente, uma velharia do século XVII. Segundo o princípio, tudo que acontece no mundo teria uma razão suficiente, o que remonta a criação, em que Deus teria escolhido o melhor dos mundos possíveis.  Aplicando esse conceito aos leading cases estruturais, sempre que procuram o judiciário é porque os outros poderes não foram capazes e resolver. Se o juiz foi contemplado na distribuição, deve agir para modificar o mundo.

Sunstein² considera que na sociedade atual, secularizada, deveríamos seguir o caminho inverso, a razão insuficiente, que impõe a contenção, salvo se conhecidas todas as variáveis. A solução converge para o liberalismo americano: deferência total legislativo, que delibera sempre a partir de opiniões diversas.  

O auge do racionalismo foi a conclusão que o litígio estrutural requer procedimento próprio³. O processo de falência resolve problema estrutural por excelência: saber se a quebra decorre do agente ou de falha no mercado. Logo, copiemos seu método, suas fases, para criar o processo estrutural. Eis o remédio jurídico para resolver os cupins de raízes do Brasil: copiar o processo de falência, ontologicamente estrutural, e colar em todos os litígios estruturais. Tudo ficará bem no final. Faltou combinar com os russos.

Para escapar do racionalismo, o primeiro desafio é falsear a tese de Lindblom4, segundo o qual a política pública não promove qualquer mudança social. Para o autor, a avaliação de políticas é necessariamente um processo político incremental – caracterizado pela fragmentação, conflito e conhecimento imperfeito. Nesse cenário, os problemas podem ser considerados não resolvidos, desde que os atores públicos continuem a expressar insatisfação, ou resolvido, quando desaparece da agenda, eliminado por outro problema mais urgente.

Desse modo, a primeira tarefa de quem analisa o litígio estrutural é falsear a tese de que as políticas são destituídas de efetividade social, servindo apenas como bandeira do interesse político. Se o incrementalismo estiver certo; a constatação de que as mudanças sociais são mais efetivas quando oriundas do legislativo ou do judiciário não faz qualquer sentido.

O passo seguinte é examinar as causas igualmente relevantes, evitando o denominado viés de escolha. O caso Brown (1954) limitou-se ao ensino fundamental e intermediário. A extensão só ocorreria após a lei dos Direitos Civis (1964), que proibiu o financiamento público a instituições que mantinham o sistema dual. Antes da lei dos Direitos Civis, e após o caso Brown (1954 e 1964), apenas 1,2% dos estudantes negros passaram a estudar com brancos. A conclusão imediata seria concluir que o legislativo seria o melhor propulsor de política pública.

Todavia, não se pode desconsiderar o efeito secundário da decisão em Brown. Além dos efeitos que são próprios da autoridade judicial; o efeito secundário invoca os poderes judiciais de persuasão, legitimidade e capacidade de dar relevância. No dia seguinte ao julgamento do caso Brown, em 18 de maio de 1954, James Reston escreveu ao New York Times que a Corte havia rejeitado: “história, filosofia e costume ao basear sua decisão na primazia do bem-estar geral”.

Trata-se do maior julgamento do século XX, só perdendo em importância, em toda história americana, para Marbury vs Madison. Desse modo, não se pode cravar por empiria pura a independência causal entre a decisão no caso Brown (1954) e a lei dos Direitos Civis (1964).

Uma alternativa seria decompor analiticamente o direito educacional em suas várias posições de fruição empírica, como defende a Análise Jurídica da Política Econômica (AJPE)5. Conjugar o número de escolas unitárias no intervalo pós-Brown e antes da lei dos Direitos Civis (1964) com o percentual de negros matriculados em escolas unitárias isolaria a causalidade. Outras variáveis poderiam ser:  o percentual de escolas duais remanescentes; a divisão forçada por mapeamentos, o percentual de professores negros em escolas com predominância de brancos.    

Após mensurar o índice de fruição empírica do direito, o passo seguinte seria confrontá-lo com o percentual de validade jurídica (PVJ). No caso Brown, um bom parâmetro de efetividade seria o percentual de segregação nas escolas de países pacíficos com a miscigenação. Em caso de discrepância entre os índices de fruição e o de validade jurídica, caberia ao avaliador elaborar proposta de reforma.

Não se trata de escolher um método particular de pesquisa empírica. Seria trágico se não fosse cômico. O trágico para o jurista é a pesquisa empírica. O cômico, o barulho causado pelo litígio estrutural: muito barulho por nada.

___________

1. ROSEMBURG, Gerald N. The Hollow Hope: can courts bring about social change? Chicago: Chicago University Press, 1991.

2. SUNSTEIN, Cass R.; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions. Michigan Law Review, v. 101, 4, pp. 885-951, 2003. 

3. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro Revista de Processo, vol. 303, p. 45-81, 05/2020.

4. HAYES, Michael T. The Limits of Policy Change. Georgetown: Georgetown University Press, 2001.

5. CASTRO, Marcus Faro de. Análise Jurídica da Política Econômica, in CASTRO, M. F e FERREIRA, H. L (orgs.) Análise Jurídica Da Política Econômica: A Efetividade dos Direitos Na Economia Global. Curitiba: CRV, 2018.

João Paulo Rodrigues de Castro
Analista Judiciário do STJ.

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