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A recuperação extrajudicial e a insuficiência da reforma promovida pela lei 14.112/20

A lei 14.112/20 promoveu alterações à disciplina da recuperação extrajudicial que contribuirão para a maior utilização do mecanismo, mas não superou entraves que limitam a sua efetividade.

26/4/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Entre o início da vigência da lei 2.204/08 e o final da vigência do Decreto-lei 7.661/45, em 2005, os acordos extrajudiciais coletivos entre devedor e seus credores não possuíam previsão legal. Mais do que isso: eram encarados como presunção de insolvência e causa para a decretação da falência, sob o pretexto de coibir fraudes e o favorecimento de um grupo específico de credores em prejuízo dos demais.

A partir da lei 11.101/05 e da criação do instituto da recuperação extrajudicial, o devedor empresário passou a ter à disposição um regime com menor intervenção do Poder Judiciário para a superação do estado de crise econômico-financeira, em que a negociação com os credores acontece antes da instauração da “fase judicial” do processo. Pretendeu-se oferecer uma alternativa mais célere, mais flexível e menos custosa em comparação à recuperação judicial, sem o risco da convolação em falência, caso o desfecho não seja bem-sucedido.

Ao contrário do que os supostos benefícios da recuperação extrajudicial poderiam levar a crer, a referida modalidade pouco foi utilizada, principalmente quando comparada à recuperação judicial¹, fato que era constantemente atribuído à disciplina legal do instituto.

Com a reforma à lei 11.101/05, promovida pela lei 14.112/20, a recuperação extrajudicial foi objeto de reformas pontuais, mas positivas. Entre as principais alterações ao instituto, podem ser citadas (i) a possibilidade de inclusão de créditos trabalhistas no procedimento (art. 163, §1º); (ii) a redução do quórum necessário para a homologação do plano de recuperação extrajudicial, de 3/5 para a maioria simples dos créditos, de cada espécie, abrangidos pelo plano (art. 163, caput), e (iii) a possibilidade de apresentação do pedido de homologação do plano de recuperação extrajudicial com a aderência de apenas 1/3 dos créditos, de cada espécie, abrangidos pelo plano, mediante o compromisso de obter as adesões restantes no prazo de 90 (noventa) dias, facultada a conversão do procedimento em recuperação judicial a pedido do devedor (art. 163, §7º).

As modificações listadas acima contribuirão para a maior utilização da recuperação extrajudicial, porque flexibilizam o instituto e permitem ao devedor requerer e obter a homologação do plano com um menor número de adesões.  Sem contar que, com a tendência de os Tribunais passarem a exigir certidões negativas de débitos tributários (CND’s) para a concessão da recuperação judicial ², empresas com passivos tributários mais significativos poderão vir a optar pela recuperação extrajudicial, em que não são exigidas CND’s para a homologação do plano.

Apesar dos reconhecidos avanços na disciplina da recuperação extrajudicial, não se pode afirmar que houve uma reforma profunda no instituto. Pelo contrário, perdeu-se uma chance de implementar alterações que eliminariam as principais limitações do mecanismo: a ausência de proteção ao adquirente de ativos do devedor e a inexistência de incentivos à concessão de dinheiro novo. Tais limitações, na prática, restringem a utilização da recuperação extrajudicial aos devedores que conseguiriam pagar seus credores mediante o seu fluxo de caixa natural, ou por outra forma que não dependa da venda de ativos ou da contratação de financiamentos.

O curioso é que, pela lei 14.112/20, os dois pontos foram reforçados para o instituto da recuperação judicial. A proteção ao adquirente de bens do devedor em recuperação judicial foi melhorada pela atual redação do art. 60, parágrafo único, e pelo art. 66, §3º, ambos da lei 11.101/05. Agora há menção expressa de que, além das dívidas tributárias, as obrigações do devedor de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção e trabalhista não são transmitidas ao adquirente. Quanto aos incentivos à concessão de dinheiro novo ao devedor, criou-se uma seção específica (Seção IV-A) na lei 11.101/05 para disciplinar a matéria e foi melhorada a classificação do financiador em caso de convolação da recuperação judicial em falência.

É compreensível que se alegue que o processo de recuperação extrajudicial deve ser célere, e que discussões envolvendo a alienação de ativos e a concessão de dinheiro novo ao devedor poderiam atrasar sua tramitação. Também é compreensível que se alegue que o processo de recuperação extrajudicial não necessariamente envolve todos os credores das espécies abrangidas pelo plano apresentado pelo devedor e tenha publicidade reduzida frente à recuperação judicial, havendo maior risco de fraude ou de prejuízos a credores excluídos do procedimento.

No entanto, parece equivocado privilegiar a celeridade do mecanismo à sua eficiência e utilidade, forçando devedores que dependam da venda de ativos e da concessão de dinheiro novo – mesmo aqueles ainda na iminência ou em estágio inicial de crise e que poderiam contar com o apoio de seus credores – a pedir recuperação judicial, processo mais custoso, mais demorado e mais arriscado. Sem contar que, na recuperação judicial, também há credores não sujeitos e que são excluídos do processo (ex.: titulares de créditos garantidos por alienação fiduciária), pelo que não se pode utilizar o fato de existirem credores fora da recuperação extrajudicial para sustentar o não cabimento da venda de ativos ou concessão de dinheiro novo neste procedimento.

Cabia ao legislador conciliar a celeridade da recuperação extrajudicial com medidas que ampliassem as possibilidades de o devedor efetivamente se reestruturar por meio desse instituto, que se enquadra entre os “pre-insolvency proceedings”, atualmente uma tendência global. Veja-se, por exemplo, as recomendações da United Nations Comission of International Trade Law (UNCITRAL)³, do Banco Mundial4 e da União Europeia5, as recentes alterações legislativas em Singapura6, Reino Unido7 e Alemanha8.

Em conclusão, pode-se dizer que, apesar de ter havido reformas pontuais e positivas na disciplina da recuperação extrajudicial, a lei 14.112/20 não superou entraves que limitam a efetividade do mecanismo, os quais deverão receber a atenção do legislador com vistas a fomentar, de fato, a utilização da recuperação extrajudicial como meio de superação da crise. Afinal, como já afirmou o Exmo. Juiz Paulo Furtado de Oliveira Filho, em decisão proferida no processo de recuperação extrajudicial da Restoque: “quando as partes querem uma solução consensual e empenham-se na busca do acordo, a recuperação extrajudicial é o melhor meio de superação da crise9.

____________

1. O Serasa Experian, que aparentemente realizava o controle sobre o número de pedidos de homologação de planos de recuperação extrajudicial no passado, não mais disponibiliza tais informações em sua plataforma. Sheila Cerezetti, em artigo publicado em 2015, faz menção à plataforma do Serasa Experian, afirmando que, entre 2005 e novembro de 2014, foram requeridas 5009 recuperações judiciais e apenas 69 homologações de planos de recuperação extrajudicial. CEREZETTI, Sheila C. Neder. Breves notas sobre a recuperação extrajudicial de empresas no Brasil. In: VASCONCELOS, Miguel Pestana de. (Coord.). Falência, Insolvência e Recuperação de Empresas: I.º Congresso de Direito Comercial das Faculdades de Direito da Universidade do Porto, de S. Paulo e de Macau. Porto/PT: Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2015, nota de rodapé 6.

2. Veja-se acórdão proferido, em 08 abr. 2021, pela 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro no Agravo de Instrumento de 0046087-14.2020.8.19.0000, de relatoria do Exmo. Desembargador Eduardo Gusmão Alves de Brito Neto.

3UNCITRAL. Legislative Guide on Insolvency Law: Part Two. Nova Iorque/EUA: United Nations Publication, 2005, p. 236-243. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2021.

4. THE WORLD BANK. Principles and Guidelines for Effective Insolvency and Creditor Rights Systems. Washington/EUA: The World Bank Group: 2015, p. 19. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2021.

5OFFICIAL JOURNAL OF THE EUROPEAN UNION. Directive (EU) 2019/1023 of the European Parliament and of the Council. 20 jun. 2019. Disponível aqui. Acesso em 22 abr. 2021.

6MCCORMACK, Gerard; WAN, Wai Yee. Transplanting Chapter 11 of the US Bankruptcy Code into Singapore’s restructuring and insolvency laws: opportunities and challenges. Journal of Corporate Law Studies. 2018.

7. GOV.UK. Guidance Restructuring plan. 05. Jun. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2021.

8. MADAUS, Stephan. A Giant Leap for German Restructuring Law? The New Draft Law for Preventive Restructuring Procedures in Germany. Oxford Business Law Blog. 26 out. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 23 abr. 2021.

9. Processo de 1046426-49.2020.8.26.0100, em trâmite na 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central Cível da Comarca de São Paulo/SP. Decisão de fls. 6.591-6.593, proferida em 05 jun. 2020 e publicada em 11 jun. 2020.

Ernani Pinheiro Soares
Líder da Área de Recuperação de Empresas do Braga Lincoln Advogados. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

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