Acontece em alguns processos arbitrais que um dos árbitros apresente um voto divergente dos demais membros do tribunal arbitral, em menor ou em maior extensão e profundidade. Talvez algum leitor já possa ter sido parte em um procedimento em que essa situação ocorreu, como advogado de uma das partes ou mesmo como uma delas. Poder-se-ia argumentar que no Judiciário os votos divergentes seriam aceitáveis, tendo em vista heterogeneidade dos julgadores nos tribunais, consideradas as suas concepções sobre o caso sob julgamento. Mas isso seria não tão bem entendido em tribunais arbitrais, formados tão somente por três árbitros. Isto porque, em tese escolhidos pelo seu saber jurídico especializado quanto à matéria a ser decidida, seria de se esperar que houvesse unanimidade nas decisões prolatadas.
Por mais que essa expectativa tenha certo fundamento, mesmo considerados os três árbitros como dominadores plenos do problema jurídico por eles enfrentado em um processo arbitral – e que pode se desdobrar em algumas vertentes no seu curso – essa verdade não é absoluta, porque no direito elas não existem, sempre considerados os fatores envolvidos, sujeitos a interpretações diversas pelos membros do tribunal arbitral.
Se tomarmos a física, uma verdade absoluta que nela apuramos é a da velocidade da luz, de 300 mil quilômetros por segundo. Na matemática, a partir de que dois mais dois sempre somam quatro, infinitas outras verdades absolutas se apresentam, do que resultam segurança e certeza na sua aplicação, proporcionando viagens ao espaço sideral sem erros na navegação.
Mas quando o operador navega no direito, o que mais se pode alcançar é um mínimo de possibilidade de erro desde a construção da norma, até chegar aos seus destinatários, que devem pautar as suas condutas nos limites de segurança e de certeza que possam ser alcançados de forma ótima, em termos de incentivos positivos e negativos por aquela construídos, em relação às suas condutas.
Lembre-se que em uma das acepções do direito, ele se assenta em três pilares fundamentais, fato, valor e norma, objeto do pensamento de importantes juristas, tal como Miguel Reale aqui no Brasil, para quem o direito se expressa por meio de uma integração normativa de fatos, de acordo com os valores aplicáveis[1].
Essa visão tridimensional é encontrada em outros ordenamentos jurídicos, como o alemão, o italiano e o francês, que não nos propomos a desenvolver neste artigo, como também não o faremos no tocante a outras concepções anteriores no direito comparado, a saber, as correntes do jusnaturalismo, da exegese, do direito livre e do juspositivismo[2].
1. Os fatos
Comecemos pelos fatos, o que são eles? Existem os fatos da natureza, como as tempestades, que têm assolado terrivelmente todo o planeta e que aqui no Brasil despontaram nos últimos tempos como fenômenos climáticos verdadeiramente arrasadores, das quais resultam efeitos jurídicos, como no plano de reparações de natureza civil. Esses efeitos são de reconhecimento objetivo quanto à sua caracterização, causas e extensão dos danos, sobre os quais, em se tratando de uma ação judicial na qual o autor busca uma indenização, o nível eventual de incerteza se coloca em um plano muito reduzido.
Aqui nos interessam apenas os fatos de natureza social, os fatos jurídicos, nascidos nas relações sociais, que o direito busca regular. Esses aludidos fatos jurídicos são o gênero dentro do qual se classificam em sequência lógica os atos jurídicos, os negócios jurídicos e os contratos.
Tomemos o contrato de compra e venda como fato jurídico, por meio do qual, nos termos do art. 481 do Código Civil, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa e o outro a pagar-lhe certo preço em dinheiro. Configurados concomitantemente os três elementos, domínio, coisa e preço, aos quais se agrega o acordo entre as partes, estamos diante da celebração de um contrato dessa natureza, surgindo as obrigações correspondentes, estabelecendo-se um nível adequado de segurança e certeza na sua concretização, não se apresentando ao julgador qualquer dúvida hamletiana a seu respeito.
E, como visto acima, o mencionado contrato é regido por uma norma objetiva, emanada do Poder Legislativo, como instrumento de ordenação obrigatória das relações sociais, cujo descumprimento gera a aplicação de uma sanção. Voltando à compra e venda a norma que a rege é autossuficiente, cabendo aos julgadores em eventual ação judicial exercer o comando nela presente, obrigando a parte inadimplente, conforme o caso, a pagar o preço ou a transferir o domínio da coisa.
No entanto a respeito do mesmo contrato, normas subjetivas podem condicioná-lo, como são os casos dos artigos 408, 413 e 421 do mesmo Código Civil, conforme veremos em seguida.
Os arts. 408 e 413 se colocam no plano da cláusula penal, como um preço estabelecido à parte inadimplente em um contrato, a qual deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.
Veja-se que estão presentes elementos essenciais da possibilidade de redução da cláusula penal pelo julgador, de natureza evidentemente subjetiva. Isto porque não existe parâmetro objetivo fixado em lei sobre como aplicar a equidade dentro de determinada circunstância jurídica, o mesmo se dizendo sobre o que poderia ser considerado como manifestação excessiva quanto ao montante da cláusula penal, dentro de determinadas circunstâncias de determinado negócio, em concreto. Daí que caberá aos julgadores interferirem na relação contratual, com fundamento em um julgamento de valor (o terceiro tripé da teoria tridimensional do direito, o ponto de chegada) que poderá se expressar de maneira diversa para cada um deles. Daí o surgimento de divergências no nosso exemplo de uma arbitragem.
Outro exemplo de norma subjetiva, que acarreta um julgamento subjetivo de valor, está no conceito da função social do contrato, sobre a qual poderia se dizer como no famoso samba, “função social, ninguém sabe, ninguém viu”. Ela subiu o morro do direito e nunca mais foi encontrada, se subiu, ninguém sabe, ninguém viu, pois hoje o seu nome mudou e estranhos caminhos pisou. Neste sentido, na medida em que a aferição do objeto da decisão segundo o valor é parte integrante da expressão do direito, de acordo com a medida de cada operador do direito, cabe fundamentalmente ao julgador diminuir o seu espectro subjetivo, de forma a minimizar a atuação interpretativa, aumentando a segurança e a certeza do direito. Não é o que aconteceu claramente com a obrigatoriedade do atendimento da função social pelos contratos, não havendo em todo o universo dos juristas um sequer que seja capaz de traçar o seu conceito em poucas linhas segundo uma expressão limitada e não hermética. E o que é pior, o projeto de reforma do Código Civil aumentou o imenso perigo de confusão a respeito da função social, ao propor no novo paragrafo segundo do art. 421 que a cláusula contratual violadora da função sócia do contrato é nula de pleno direito. Isso abre as portas para o pleito em tal sentido pela parte que entender que tal função não tenha sido atendida, ou mesmo pelo julgador, ex officio. Ou seja, esse dispositivo certamente passará, como a Conceição, por outros estranhos e perigosos caminhos.
Evidentemente essas circunstâncias elevam de maneira significativa a possibilidade de dissidência dos árbitros no processo arbitral, sem que jamais se possa dizer que uma orientação está certa e a outra errada e vice-versa. Esse não encontro do pensamento dos julgadores, como temos visto, decorre da maneira pela qual cada um deles aplicará os fundamentos da teoria tridimensional do direito, fato, norma e valor.
É oportuno observar, segundo outra visão por nós esposada em outro lugar[3], que ao apreciar uma situação jurídica em um caso concreto, devem ser tomados no processo exegético os critérios do (i) sentido literal da norma; (ii) seu contexto significativo; (iii) a intenção reguladora, os fins e as ideias do legislador histórico; (iv) os critérios teleológicos objetivos da norma; (v) o preceito da interpretação conforme a Constituição; (vi) a inter-relação dos critérios de interpretação; e (vii) a analogia. Todos esses critérios devem ser analisados à luz da natureza das coisas (o que é outra visão da consideração do valor).
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1 Cf. “A Teoria Tridimensional do Direito”, 5ª ed., Ed. Saraiva, São Paulo, 1994.
2 Veja-se brevemente a esse respeito de Douglas Rocha Lemos “A Teoria Tridimensional do Direito. Miguel Reale”, Jusbrasil, 2016.
3 Cf. “Conflitos arbitrais: um ensaio sobre soluções pela via da exegese sistemática”, in “Estudos em homenagem ao Professor Hermes Marcelo Huck”, José Augusto Fontoura Costa, Juliana Krueger Pela e Rodolfo da Costa Manso Real Amador (coordenadores), Ed. JusPodium/Malheiros Editores, São Paulo, 2025, pp. 911-946.