Migalhas de Peso

Aparência de autonomia ou típica relação de consumo nos contratos de fração?

Análise crítica da multipropriedade sob o CDC, abordando abusos contratuais, vícios, dano moral e soluções jurídicas para conter a judicialização e proteger o consumidor.

2/5/2025

Introdução

A multipropriedade, enquanto instrumento jurídico de fracionamento do tempo de uso de um bem imóvel, apresenta-se aos olhos do adquirente como um modelo de autonomia contratual, flexibilidade patrimonial e liberdade negocial. Contudo, por trás dessa roupagem de modernidade, não raro esconde-se uma estrutura contratual rigidamente padronizada, conduzida por incorporadoras com superioridade técnica, econômica e informacional.

Esse desequilíbrio estrutural coloca em xeque a verdadeira natureza jurídica da relação estabelecida: trata-se, de fato, de um contrato paritário entre partes em igual condição ou de uma relação de consumo travestida de autonomia privada? A resposta tem implicações relevantes, sobretudo no que tange à aplicabilidade do CDC e à incidência de seus princípios protetivos em favor do multiproprietário.

A análise exige ir além das aparências formais do contrato para investigar sua realidade substancial, considerando os critérios de vulnerabilidade, finalidade do bem, e a função social do direito do consumidor. Afinal, quando o multiproprietário adquire sua fração ideal com a finalidade de lazer, descanso ou uso pessoal — e não como investimento ou exploração econômica — parece inevitável a caracterização da relação como típica relação de consumo.

Cláusulas abusivas e práticas enganosas: A face oculta dos contratos fracionados

Nos contratos de multipropriedade, é comum que o brilho da promessa publicitária — uso facilitado de imóvel em local nobre, estrutura de resort, baixa manutenção — ofusque as cláusulas que impõem encargos desproporcionais, limitam excessivamente os direitos do multiproprietário e blindam a incorporadora de suas responsabilidades.

Entre os dispositivos mais recorrentes estão: (i) penalidades severas para inadimplemento, ainda que mínimo; (ii) impossibilidade de revenda sem intermediação da incorporadora; (iii) renúncia prévia ao direito de arrependimento; (iv) cláusulas que vinculam o multiproprietário à administradora do empreendimento por prazo indeterminado e sem previsão de substituição prática.

Tais cláusulas, mesmo revestidas de formal legalidade, podem ser consideradas abusivas à luz do art. 51 do CDC, especialmente quando confrontadas com a posição de hipossuficiência técnica e informacional do adquirente. Isso se agrava diante da prática de vendas realizadas sob pressão psicológica — conhecida como “hard selling” — em eventos promocionais, com oferta limitada no tempo, promessas de retorno financeiro ou uso irrestrito, que depois não se concretizam.

O que se verifica, portanto, é a repetição de padrões contratuais que mascaram a verdadeira extensão das obrigações impostas ao consumidor, tornando o contrato um instrumento de imposição unilateral de condições. A jurisprudência já reconhece, em diversos casos, a nulidade de cláusulas desse tipo por violarem a boa-fé objetiva, o equilíbrio contratual e o direito à informação adequada e clara sobre o produto.

Em última análise, a proteção conferida pelo CDC não se resume à forma do contrato, mas alcança seu conteúdo substancial. Ainda que o contrato de multipropriedade seja regido pelo direito civil e registrado em cartório, isso não afasta o controle de abusividade quando o negócio tiver nítida feição consumerista — o que, na prática, é a regra e não a exceção.

Rescisão por vício na multipropriedade: Proteção real ou ilusão contratual?

Ao adquirir uma fração de tempo em um empreendimento multipropriedade, o consumidor muitas vezes é seduzido por promessas de luxo acessível, flexibilidade de uso e valorização do imóvel. No entanto, a realidade nem sempre corresponde ao cenário pintado nos materiais promocionais. Problemas estruturais no imóvel, indisponibilidade para uso na alta temporada, taxas condominiais não previstas e descumprimento das regras de rodízio são apenas alguns dos vícios mais recorrentes.

Diante desse panorama, impõe-se a discussão sobre a possibilidade de rescisão contratual com fundamento nos vícios do produto ou do serviço — previsão expressa no art. 18 do CDC. O multiproprietário, como destinatário final, não adquire apenas uma parte do imóvel, mas também um pacote de serviços correlatos: administração, manutenção, disponibilidade, segurança e conforto. A falha em qualquer desses aspectos pode configurar vício do produto ou da prestação do serviço, apto a ensejar a resolução do contrato.

A jurisprudência tem reconhecido que a frustração do uso regular e contínuo da fração ideal pode configurar vício substancial, ensejando a devolução dos valores pagos, inclusive com correção monetária e indenização por danos morais. Isso se aplica, por exemplo, quando o consumidor se depara com a impossibilidade reiterada de utilização da unidade na época contratada, ou ainda quando o padrão prometido é flagrantemente inferior ao entregue.

Apesar disso, muitos contratos de multipropriedade tentam restringir o direito à rescisão por meio de cláusulas de fidelização, multas desproporcionais e alegações de que a aquisição se deu como investimento — o que afastaria a incidência do CDC. Tais argumentos, porém, não resistem a uma análise concreta da finalidade do contrato e da vulnerabilidade do adquirente, especialmente quando a publicidade deixa claro o viés de consumo.

A proteção consumerista, nesse cenário, não pode ser meramente simbólica. A ilusão de um bem sofisticado e acessível, quando desfeita pela experiência do vício, deve abrir espaço para o exercício pleno dos direitos previstos no CDC, inclusive a rescisão contratual sem prejuízo de eventuais perdas e danos.

Ônus da prova e dano moral: O peso da vulnerabilidade na multipropriedade

A multipropriedade, apesar de seu verniz de sofisticação e inovação jurídica, frequentemente submete o consumidor a situações em que a desproporção entre promessa e realidade só se revela quando o vício já causou prejuízo efetivo. Nesse contexto, o princípio da inversão do ônus da prova — previsto no art. 6º, VIII, do CDC — assume papel central na efetividade da tutela jurisdicional do multiproprietário.

A lógica consumerista parte da premissa de que, diante da hipossuficiência técnica, informacional ou econômica do consumidor, cabe ao fornecedor demonstrar a regularidade de sua conduta. Isso se mostra especialmente necessário em ações judiciais envolvendo promessas de padrão hoteleiro não cumpridas, indisponibilidade de uso, cobranças indevidas ou falhas de transparência contratual. Em tais hipóteses, exigir do consumidor a prova negativa — de que não foi possível utilizar o imóvel, ou que a estrutura estava aquém do divulgado — seria inverter perversamente a lógica da proteção consumerista.

Em paralelo, a jurisprudência pátria tem reconhecido que o abalo decorrente da frustração do contrato de multipropriedade pode ultrapassar os limites do mero dissabor, caracterizando dano moral indenizável. Isso é particularmente verdadeiro quando a falha atinge valores afetivos e expectativas legítimas de lazer, descanso familiar ou realização de um sonho de consumo. Há precedentes que tratam da perda de viagens planejadas, da recusa de acesso à unidade por erro da administração e da cobrança de taxas sem contraprestação — todos reconhecendo o dever de indenizar.

Portanto, a vulnerabilidade do multiproprietário não se restringe ao momento da contratação, mas se projeta no processo judicial. A correta aplicação da inversão do ônus da prova, aliada ao reconhecimento do dano moral quando configurado, constitui não apenas uma garantia legal, mas um imperativo ético de equilíbrio nas relações contratuais que envolvem consumo e patrimônio.

Soluções contratuais para mitigar os riscos de judicialização

A crescente judicialização das relações oriundas da multipropriedade evidencia a necessidade urgente de um redesenho contratual mais transparente, equilibrado e preventivo. Incorporadoras e administradoras que desejam preservar a credibilidade do modelo — e evitar a corrosão de sua imagem perante o Judiciário — devem adotar práticas negociais que antecipem conflitos, em vez de apenas reagir a eles.

A primeira medida essencial é a clareza na redação contratual, com linguagem acessível, sem jargões excessivos e com explicitação didática dos direitos e deveres de ambas as partes. A oferta deve corresponder com precisão ao que será efetivamente entregue. Promessas vagas ou ilustrativas devem ser evitadas, sob pena de serem consideradas publicidade enganosa.

Outro ponto crítico é a regulação das taxas e encargos, muitas vezes apontados como fator surpresa após a assinatura do contrato. Recomenda-se a previsão de teto para reajustes, critérios objetivos de cálculo e possibilidade de impugnação administrativa pelo multiproprietário, evitando disputas judiciais posteriores.

A flexibilização dos mecanismos de rescisão contratual, com cláusulas que contemplem a desistência por justa causa, devolução proporcional de valores e prazos razoáveis, também tem se mostrado medida eficaz para reduzir litígios. Da mesma forma, a previsão expressa de métodos alternativos de resolução de conflitos — como mediação e arbitragem — pode constituir uma via célere e menos onerosa para ambas as partes.

Por fim, recomenda-se a inclusão de quadro-resumo contratual, nos moldes da legislação consumerista, destacando em tópicos objetivos: a fração adquirida, período de uso, encargos previstos, política de cancelamento, regras de uso e critérios de substituição de administradora. Esse modelo valoriza a boa-fé objetiva, a transparência e a função social do contrato.

Em síntese, mitigar o risco de judicialização não é apenas uma questão de técnica contratual, mas de responsabilidade institucional. Incorporadoras e operadores da multipropriedade devem encarar o consumidor não como obstáculo à rentabilidade, mas como parte central da sustentabilidade jurídica e reputacional do empreendimento.

Conclusão

A análise da multipropriedade sob a ótica do CDC revela uma tensão latente entre a aparência de liberdade contratual e a realidade de vulnerabilidade do adquirente. Embora o modelo prometa acesso democrático ao mercado imobiliário turístico, sua execução prática frequentemente desvela relações assimétricas, cláusulas leoninas e falhas estruturais que desafiam a lógica do equilíbrio contratual.

Longe de representar um entrave ao desenvolvimento do setor, a aplicação do CDC atua como instrumento de qualificação da multipropriedade, ao exigir transparência, boa-fé e respeito aos limites da autonomia privada. Ao reconhecer a natureza consumerista da maioria das relações firmadas, o Judiciário tem oferecido ao multiproprietário o mínimo de segurança necessária para evitar que o sonho do imóvel compartilhado se transforme em um passivo jurídico permanente.

Mais do que apontar problemas, este artigo propõe caminhos. A revisão dos contratos, o aprimoramento da comunicação pré-contratual e a adoção de mecanismos extrajudiciais de resolução de conflitos são medidas concretas que podem preservar a credibilidade do instituto e reduzir o contencioso.

No fim das contas, a pergunta que dá título a este trabalho permanece em aberto: estamos diante de um instrumento legítimo de inclusão patrimonial ou diante de um risco crescente de banalização de direitos? A resposta, talvez, dependa menos da estrutura normativa e mais da postura dos atores que operam esse mercado — incorporadoras, administradoras, juristas e julgadores.

O CDC, ao invés de obstáculo, é bússola. Cabe a nós decidir se o seguiremos.

_________

BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.

MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.

RIZZARDO, Arnaldo. Multipropriedade e o Direito Imobiliário Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: contratos. Vol. 3. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2022.

NUNES, Dierle; ROCHA, Daniel Amorim Assumpção. Ônus da prova no novo CPC e sua interface com o CDC. Revista Brasileira de Direito Processual, v. 101, 2021.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990.

Lei  13.777/2018 – Dispõe sobre o regime jurídico da multipropriedade.

Gabriel de Sousa Pires
Advogado, ex-Conselheiro Seccional e atual membro da Comissão de Seleção da OAB-DF. Especialista em Direito Contratual, Imobiliário e Empresarial. Sócio da J Pires Advocacia & Consultoria

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