O instituto da fidelidade partidária, de inegável relevância jurídica e política, resulta de uma interpretação sistemática e teleológica da CF. Em um contexto marcado pelas recorrentes reconfigurações partidárias no cenário político nacional, a temática revela especial atualidade, sendo constantemente trazida ao centro do debate público — sobretudo diante da proximidade das eleições gerais previstas para o próximo ano.
Inicialmente, a lei maior não dispunha, de forma expressa, sobre a perda de mandato em razão da desfiliação partidária, especialmente no que se refere aos cargos eletivos obtidos pelo sistema proporcional. Em face da omissão normativa acerca da desfiliação partidária, o TSE, no exercício de sua função reguladora, e respaldado pelo disposto no art. 23, XVIII, do Código Eleitoral, bem como pelas diretrizes emanadas das decisões proferidas pelo STF nos mandados de segurança 26.602, 26.603 e 26.604, publicou a resolução 22.610/07. Tal resolução passou a estabelecer critérios objetivos para a configuração da justa causa para a desfiliação partidária, delineando, consequentemente, os parâmetros para a perda do mandato por infidelidade partidária, nos seguintes termos:
Art. 1º O partido político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a decretação da perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa.
§ 1º Considera-se justa causa:
I – incorporação ou fusão do partido;
II – criação de novo partido;
III – mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário;
IV – grave discriminação pessoal.
A normatização encontrou fundamento precípuo na jurisprudência consolidada pela Suprema Corte por ocasião do julgamento dos mencionados mandados de segurança, nos quais restou assentado que, no contexto do sistema proporcional, o mandato eletivo não se configura como prerrogativa pessoal do candidato, mas como expressão da vontade política do eleitorado canalizada por intermédio do partido político ou coligação. Trata-se, portanto, de uma representação de natureza eminentemente coletiva, cuja titularidade é atribuída à agremiação partidária, conforme se depreende do seguinte excerto:
“(...) A NATUREZA PARTIDÁRIA DO MANDATO REPRESENTATIVO TRADUZ EMANAÇÃO DA NORMA CONSTITUCIONAL QUE PREVÊ O "SISTEMA PROPORCIONAL". - O mandato representativo não constitui projeção de um direito pessoal titularizado pelo parlamentar eleito, mas representa, ao contrário, expressão que deriva da indispensável vinculação do candidato ao partido político, cuja titularidade sobre as vagas conquistadas no processo eleitoral resulta de "fundamento constitucional autônomo", identificável tanto no art. 14, § 3º, inciso V (que define a filiação partidária como condição de elegibilidade) quanto no art. 45, "caput" (que consagra o "sistema proporcional"), da Constituição da República. - O sistema eleitoral proporcional: um modelo mais adequado ao exercício democrático do poder, especialmente porque assegura, às minorias, o direito de representação e viabiliza, às correntes políticas, o exercício do direito de oposição parlamentar. Doutrina. (...) A INFIDELIDADE PARTIDÁRIA COMO GESTO DE DESRESPEITO AO POSTULADO DEMOCRÁTICO. - A exigência de fidelidade partidária traduz e reflete valor constitucional impregnado de elevada significação político- -jurídica, cuja observância, pelos detentores de mandato legislativo, representa expressão de respeito tanto aos cidadãos que os elegeram (vínculo popular) quanto aos partidos políticos que lhes propiciaram a candidatura (vínculo partidário). (...)”
(MS 26603, relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 04-10-2007, DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-02 PP-00318)
A regulamentação da matéria pelo TSE ensejou intensos debates nos meios jurídico e político, especialmente quanto à suposta extrapolação dos limites da competência regulamentar daquela Corte, em possível incursão em esfera normativa reservada ao legislador ordinário. Tal controvérsia foi submetida ao crivo do STF por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.999, amplamente conhecida e debatida, cuja improcedência consolidou o entendimento da Corte pela constitucionalidade da normatização por meio de resolução, nos seguintes termos:
“(...) 3. O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento dos Mandados de Segurança 26.602, 26.603 e 26.604 reconheceu a existência do dever constitucional de observância do princípio da fidelidade partidária. Ressalva do entendimento então manifestado pelo ministro-relator. 4. Não faria sentido a Corte reconhecer a existência de um direito constitucional sem prever um instrumento para assegurá-lo. 5. As resoluções impugnadas surgem em contexto excepcional e transitório, tão-somente como mecanismos para salvaguardar a observância da fidelidade partidária enquanto o Poder Legislativo, órgão legitimado para resolver as tensões típicas da matéria, não se pronunciar. 6. São constitucionais as Resoluções 22.610/2007 e 22.733/2008 do Tribunal Superior Eleitoral. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida, mas julgada improcedente.”
(ADI 3999, Relator(a): JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 12-11-2008, DJe-071 DIVULG 16-04-2009 PUBLIC 17-04-2009 EMENT VOL-02356-01 PP-00099 RTJ VOL-00208-03 PP-01024)
Com o passar do tempo, a matéria passou a ser objeto de tratamento legislativo específico, culminando na promulgação da lei 13.165/15 — conhecida como minirreforma eleitoral — que consolidou alguns dos entendimentos anteriormente fixados ao expressar que:
Art. 22-A. Perderá o mandato o detentor de cargo eletivo que se desfiliar, sem justa causa, do partido pelo qual foi eleito.
Parágrafo único. Consideram-se justa causa para a desfiliação partidária somente as seguintes hipóteses:
I - mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário;
II - grave discriminação política pessoal; e
III - mudança de partido efetuada durante o período de trinta dias que antecede o prazo de filiação exigido em lei para concorrer à eleição, majoritária ou proporcional, ao término do mandato vigente.
Assim, o referido dispositivo legislativo passou a disciplinar, de forma expressa, as hipóteses nas quais o detentor de mandato eletivo proporcional pode se desfiliar de sua agremiação partidária sem que isso implique a configuração de infidelidade partidária — matéria que, até então, era regulada por meio de resolução do TSE.
No que se refere à transição normativa, Esmeraldo (2016, p. 607) assevera com precisão que:
"O novo art. 22-A incluído na Lei dos Partidos Políticos destina-se a regulamentar as hipóteses de justa causa para a troca de partido pelo mandatário de cargo proporcional sem caracterização da infidelidade partidária, matéria que anteriormente era tratada apenas em Resolução do TSE. Em seus termos, consideram-se justas causas para a desfiliação, somente as seguintes hipóteses: a) Mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário; b) Grave discriminação política pessoal; c) Mudança de partido efetuada durante o período de trinta dias que antecede o prazo de filiação exigido em lei (15 de agosto) para concorrer à eleição majoritária ou proporcional, ao término do mandato vigente. Cabe mencionar, preliminarmente que, a partir da decisão do STF, nos autos da ADI nº 5081/DF, em 27/05/2015, ficou assentado que a possibilidade de perda do mandato eletivo em razão da desfiliação partidária sem justa causa não se aplica aos mandatários eleitos pelo sistema majoritário, sendo restrita àqueles eleitos pelo sistema proporcional (Deputados e Vereadores). Assim, os detentores de mandato eleitos pelo sistema majoritário podem, imotivadamente e a qualquer momento, mudar de partido sem ser afastado do exercício do mandato eletivo."
Cumpre salientar que o ordenamento jurídico brasileiro estabelece distinções relevantes no tratamento conferido à relação de vínculo partidário e à estabilidade do mandato eletivo, em consonância com o sistema de representação adotado para a eleição do agente político. Enquanto no sistema proporcional (deputados e vereadores) a fidelidade partidária assume papel central na preservação da legitimidade da representação, no sistema majoritário (presidente da República, governadores, senadores e prefeitos) prevalece a personalização do mandato, o que relativiza os efeitos jurídicos da desfiliação partidária em relação à manutenção do cargo.
Nas palavras de Mendes e Branco (2014, p. 708), “a Constituição brasileira definiu que as eleições dos deputados federais, dos deputados estaduais e dos vereadores efetivar-se-ão pelo critério proporcional (arts. 27, § 1º, e 45)”. Acerca do tema, De Castro (2014, p. 18), contribui:
"O eleito pelo sistema proporcional representa uma “parte” do eleitorado, enquanto o eleito pelo sistema majoritário, mesmo que sufragado por uma “parte”, passa a representar o todo, já que a essência do sistema democrático é a submissão de todos à vontade da maioria. Imaginar um sistema de governo em que o governante, uma vez eleito, agisse em prol somente de seus eleitores, dos integrantes do seu partido, em detrimento dos demais cidadãos, seria negar o próprio sistema democrático, validando uma “ditadura” da maioria ocasional, um sistema odioso de preferências e discriminações. Ou seja, o candidato eleito em eleições majoritárias, seja ao cargo de prefeito, governador ou presidente, ainda que lançado candidato por um partido ou por coligação de alguns partidos, uma vez eleito e empossado, não representa mais aquele grupo político, mas a sociedade como um todo."
Posteriormente, a EC 111, de 2021, veio a constitucionalizar expressamente a fidelidade partidária, encerrando as discussões quanto à base normativa da perda de mandato por desfiliação partidária injustificada no sistema proporcional. Inclusive, a anuência do partido passou a ser hipótese constitucional de manutenção do mandato em caso de rompimento do vínculo partidário. Dispõe a norma que:
Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:
§ 6º Os Deputados Federais, os Deputados Estaduais, os Deputados Distritais e os Vereadores que se desligarem do partido pelo qual tenham sido eleitos perderão o mandato, salvo nos casos de anuência do partido ou de outras hipóteses de justa causa estabelecidas em lei, não computada, em qualquer caso, a migração de partido para fins de distribuição de recursos do fundo partidário ou de outros fundos públicos e de acesso gratuito ao rádio e à televisão. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 111, de 2021)
Diante do exposto, evidencia-se que o vínculo partidário e a estabilidade mandatária, na ordem constitucional vigente, foram significativamente reforçados com a promulgação da EC 111/21. Ao constitucionalizar a perda do mandato em caso de desfiliação injustificada, o texto normativo reafirma o papel estruturante dos partidos políticos no modelo proporcional, consolidando uma concepção institucional do mandato eletivo, mais aderente à lógica programática e à vontade coletiva legitimamente expressa nas urnas.
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1 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 5 abr. 2025.
2 BRASIL. Lei nº 13.165, de 29 de setembro de 2015. Altera as Leis nos 9.504, de 30 de setembro de 1997, 9.096, de 19 de setembro de 1995, e 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), e a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 152, n. 188, p. 1-3, 30 set. 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13165.htm. Acesso em: 16 abr. 2025.
3 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº 22.610, de 25 de outubro de 2007. Dispõe sobre a fidelidade partidária. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 30 out. 2007. Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2007/resolucao-no-22-610-de-25-de-outubro-de-2007. Acesso em: 15 abr. 2025.
4 DE CASTRO, Luiz Paulo Viveiros. Fidelidade partidária. Fiel a quê? Revista Justiça Eleitoral em Debate, v. 4, n. 3, p. 17-19, 2014.
5 ESMERALDO, Elmana Viana Lucena. Processo eleitoral: sistematização das ações eleitorais. 3. ed. Leme: J. H. Mizuno, 2016.
6 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.