A lettera di patronage, popularmente conhecida no meio empresarial brasileiro como carta de conforto, é compreendida como uma declaração de intenções, em geral de natureza predominantemente moral, emitida por uma empresa controladora com o propósito de assegurar, de forma prévia à celebração de um negócio jurídico, que sua controlada ou coligada cumprirá as obrigações contratuais assumidas. Para Masaracchia (2023), “a função própria da lettera di patronage é assegurar aos credores garantias quanto ao bom êxito das operações de financiamento”.
Nas relações empresariais modernas, as cartas de conforto exercem função relevante, especialmente enquanto instrumentos de apoio institucional que, conforme sua redação e o contexto de emissão, podem refletir distintos níveis de comprometimento jurídico. Acerca do aumento do uso e das repercussões do manejo das cartas, Sion (2019, p. 13) pondera que:
"De início, registra-se que as cartas de conforto vêm sendo, ultimamente, utilizadas com maior frequência, acompanhando a tendência do mercado em optar por garantias pessoais, em detrimento das garantias reais. Isto porque, muito embora as garantias reais possam aparentar mais confiáveis para o credor, esta modalidade de garantia pode não ser tão célere quanto as garantias pessoais, mostrando-se, assim, inócuas para utilização no contexto dos negócios."
As cartas de conforto, embora não submetidas a um modelo normativo estrito, costumam apresentar uma estrutura recorrente, voltada a conferir segurança e clareza quanto à manifestação de vontade do subscritor. Em sua composição, é usual que se iniciem com uma introdução destinada à identificação das partes envolvidas, à descrição da relação jurídica subjacente - como vínculo societário ou contratual - e à explicitação do propósito do documento. Na parte expositiva, incluem-se declarações de ciência quanto à operação, manifestações de apoio institucional, compromissos de acompanhamento ou de fornecimento de informações, e, em determinadas hipóteses, declarações que assumem contornos obrigacionais mais definidos. O encerramento é formalizado com a assinatura de representante legitimado da empresa emitente.
Ressalte-se que a redação cuidadosa de seu conteúdo, sobretudo no que se refere ao grau de comprometimento assumido pelo emitente, é determinante para a delimitação dos efeitos jurídicos decorrentes do instrumento. Isto porque, embora não se equipare juridicamente à fiança, sendo classificada como uma garantia pessoal atípica, a carta de conforto tem sido objeto de contínua divergência quanto à sua força vinculante e à natureza de sua responsabilidade - se contratual ou extracontratual.
Essa controvérsia se intensifica diante da existência de distintas classificações (soft, medium e hard comfort letters), que variam conforme o grau de comprometimento assumido pelo emitente, revelando a complexidade do tema e a necessidade de análise criteriosa de seu conteúdo à luz dos princípios da boa-fé objetiva e da confiança legítima. As cartas de conforto soft englobam aquelas que não geram obrigações ou efeitos jurídicos concretos para as partes envolvidas. Por sua vez, as cartas de conforto medium caracterizam-se pelo compromisso do emissor em envidar esforços para apoiar ou estimular o devedor a quitar a dívida. Por fim, nas cartas de conforto hard, o signatário assume um compromisso vinculante, comprometendo-se diretamente com o pagamento da obrigação do devedor.
Em maio do corrente ano, ao julgar o recurso especial 1.924.706/MG, a 3ªturma do STJ deparou-se com controvérsia acerca do caráter vinculante das cartas de conforto.
No caso concreto - ilustrativo da dinâmica triangular que antecede a emissão da lettera di patronage - uma empresa, na qualidade de controladora, expediu cartas de conforto com o intuito de incentivar que uma instituição bancária realizasse vultosos aportes em uma empresa por ela controlada, de USD 58.050.000,00 (cinquenta e oito milhões e cinquenta mil dólares americanos). O recurso não foi conhecido em razão dos impedimentos previstos nas Súmulas 5 e 7 do STJ, não havendo, até o presente momento, trânsito em julgado da decisão.
Vejamos o aresto em comento:
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. CARTAS DE CONFORTO. OBRIGAÇÃO DE PAGAMENTO. RECURSO NÃO CONHECIDO.
I. Caso em exame
1. Recurso especial interposto contra acórdão da 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que reconheceu o caráter vinculante de cartas de conforto emitidas pelo Banco Rural S.A. em favor do Banco de Fomento Internacional S.A., determinando o pagamento de USD 58.050.000,00, acrescido de juros e correção monetária, devido ao inadimplemento contratual do Rural International Bank.
2. As decisões anteriores. O TJ/MG afastou a preliminar de inovação recursal e, no mérito, deu provimento ao recurso, reformando a sentença de primeiro grau e reconhecendo o direito do BFI ao recebimento do valor mencionado, com inversão do ônus sucumbencial.
II. Questão em discussão
3. A questão em discussão consiste em saber se as cartas de conforto emitidas pelo Banco Rural S.A. possuem caráter vinculante e obrigacional, configurando-se como "hard comfort letters", e se a interpretação do acórdão recorrido violou dispositivos legais ao presumir solidariedade entre empresas distintas de um mesmo grupo econômico.
4. Outra questão em discussão é a admissibilidade do recurso especial, considerando a necessidade de reexame de cláusulas contratuais e provas, vedado pelas Súmulas 5 e 7 do STJ.
III. Razões de decidir
5. O recurso especial não foi conhecido em razão dos óbices das Súmulas 5 e 7 do STJ, que vedam o reexame de cláusulas contratuais e provas.
IV. Dispositivo e tese
6. Recurso não conhecido. Tese de julgamento: "1. As cartas de conforto podem ter caráter vinculante e obrigacional, configurando-se como 'hard comfort letters', quando ultrapassam a mera recomendação e impõem ao emitente o cumprimento integral da dívida. 2. O reexame de cláusulas contratuais e provas é vedado em recurso especial, conforme as Súmulas 5 e 7 do STJ".
Dispositivos relevantes citados: CC/2002, art. 113; CC/2002, art. 439; CPC, art. 85, § 11. Jurisprudência relevante citada: STJ, Súmula 5; STJ, Súmula 7.
(REsp n. 1.924.706/MG, relatora Ministra Daniela Teixeira, Terceira Turma, julgado em 5/5/2025, DJEN de 8/5/2025.)
Destaca-se na tese de julgamento firmada o reconhecimento expresso de que as cartas de conforto podem assumir natureza vinculante e obrigacional. Conforme consignado no primeiro tópico da tese, tais documentos configuram-se como hard comfort letters quando extrapolam o mero teor recomendatório, impondo ao emitente um verdadeiro compromisso de adimplir integralmente a obrigação assumida pelo devedor principal. Esse entendimento da Corte Superior consolida a possibilidade de responsabilização direta do subscritor, a depender do conteúdo e da intenção manifestada na carta, conferindo segurança jurídica à atuação das partes nas relações empresariais em que tais instrumentos são utilizados.
Nos mesmos moldes do caso anteriormente descrito, por geralmente serem manejadas com o objetivo de conferir maior segurança e credibilidade às transações financeiras, as cartas de conforto inserem-se em uma relação jurídica complexa, na qual diferentes sujeitos assumem papéis distintos. Sobre essa estrutura triangular que se forma nesses contextos, Mageste, Grezzana e Silveira (2023, p. 194) esclarecem que:
“Nota-se, em primeiro lugar, a coexistência de três centros de interesses relevantes: (i) o potencial devedor, interessado na obtenção de crédito, mas carente de credibilidade necessária para tanto; (ii) o potencial credor e destinatário da carta, interessado no incremento de segurança e previsibilidade em torno da operação de crédito; e (iii) o subscritor da carta, terceiro interessado em verter sua credibilidade e capacidade financeira em prol da celebração do contrato. A “estrutura triangular” das cartas de conforto aproxima-as das garantias autônomas. No caso ora em exame, porém, o interesse que motiva o terceiro a confortar o credor costuma derivar de uma relação societária. Na generalidade dos casos, subscrevem cartas de conforto sociedades controladoras, coligadas ou pertencentes ao mesmo grupo econômico da sociedade devedora.”
Portanto, conclui-se que a adequada classificação das cartas de conforto, segundo os critérios jurisprudenciais disponíveis, constitui etapa fundamental para a correta definição de seus efeitos jurídicos no caso concreto. A diferenciação entre manifestações meramente declaratórias e aquelas dotadas de conteúdo obrigacional não apenas influencia a interpretação do alcance do documento, como também impacta diretamente na atribuição de responsabilidade ao signatário. Nesse contexto, impõe-se aos operadores do direito, sobretudo no âmbito contratual e empresarial, o dever de proceder a uma análise minuciosa de sua estrutura, redação e finalidade, tanto no momento de sua elaboração quanto por ocasião de seu recebimento.
Tal cautela revela-se indispensável à prevenção de litígios e à mitigação de riscos jurídicos, especialmente diante da ausência de disciplina normativa específica sobre o tema e da crescente tendência de reconhecimento judicial dos efeitos vinculantes de determinadas cartas, a depender de seu conteúdo e contexto. O exame técnico e contextualizado das cartas de conforto assume papel estratégico na condução de relações negociais complexas de grande vulto financeiro, sendo instrumento de segurança jurídica e de equilíbrio entre autonomia privada e responsabilidade patrimonial.
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BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 1 jun. 2025
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.924.706/MG, rel. Min. Daniela Teixeira, Terceira Turma, julgado em 5 maio 2025, DJe 8 maio 2025.
MASARACCHIA, Silvia. FABI risponde – Garanzie atipiche – Lettera di patronage. [S. l.]: Federazione Autonoma Bancari Italiani, 2023. Vídeo (3 min 47 s). Publicado por FABI Federazione autonoma bancari italiani. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xmqJqdUu7Lg. Acesso em: 23 maio 2025
SION, Alexandre Oheb. As cartas de conforto. 2019. Disponível em: https://www.academia.edu/38149495/As_Cartas_de_Conforto_pdf. Acesso em: 26 maio 2025.