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Declínio das garantias fundamentais no constitucionalismo liberal

O estudo sobre constitucionalismo iliberal revela o fenômeno preocupante de erosão sistemática das garantias fundamentais através de mecanismos que subvertem a proteção constitucional.

4/6/2025

O constitucionalismo iliberal representa paradigma jurídico-político que preserva a aparência formal de estruturas constitucionais democráticas enquanto subverte sistematicamente os valores substantivos do constitucionalismo liberal. Esta forma híbrida de governança caracteriza-se pela manutenção de eleições competitivas e instituições democráticas básicas, simultaneamente minando a separação de poderes, o Estado de Direito e a proteção efetiva dos direitos fundamentais. A literatura acadêmica contemporânea tem identificado este fenômeno como uma das principais ameaças à democracia constitucional no século XXI, representando uma erosão democrática mais sutil e perigosa que golpes militares tradicionais. 

A distinção fundamental entre constitucionalismo liberal e iliberal reside na concepção sobre a relação entre poder estatal e direitos individuais. Enquanto o constitucionalismo liberal concebe os direitos fundamentais como limitações substanciais ao poder governamental, o constitucionalismo iliberal trata esses direitos como concessões revogáveis do Estado, subordinadas a considerações de maioria ou segurança nacional. Esta diferença conceitual manifesta-se concretamente através de reformas constitucionais que formalmente preservam catálogos de direitos enquanto criam exceções amplas que permitem sua suspensão ou limitação arbitrária. O resultado é um sistema que mantém a legitimidade democrática formal enquanto concentra poder executivo e restringe pluralismo político. 

O processo de transição do constitucionalismo liberal para o iliberal não ocorre através de rupturas dramáticas, mas mediante reformas incrementais que gradualmente alteram o equilíbrio constitucional. Estas reformas tipicamente incluem alterações nas regras eleitorais que favorecem partidos governistas, captura de instituições judiciais através de reformas do sistema de nomeações, controle sobre mídia através de concentração de propriedade ou regulamentação restritiva, e modificações no sistema de checks and balances que fortalecem o executivo às custas do legislativo e judiciário. A sutileza desses mecanismos dificulta a identificação precoce do declínio democrático, permitindo que líderes iliberais consolidem poder antes que oposições ou instituições internacionais possam responder efetivamente. 

A instrumentalização de crises constitucionais representa outro elemento central do constitucionalismo iliberal. Eventos como pandemias, ataques terroristas ou crises econômicas são utilizados para justificar medidas emergenciais que expandem poderes executivos e restringem direitos fundamentais de forma desproporcional e prolongada. 

A erosão das garantias fundamentais no constitucionalismo iliberal opera através de múltiplos mecanismos jurídicos que, individualmente, podem parecer constitucionalmente aceitáveis, mas coletivamente produzem uma transformação radical do sistema de proteção de direitos.  

O primeiro destes mecanismos é a reinterpretação restritiva de direitos constitucionais através de mudanças hermenêuticas que privilegiam interesses coletivos sobre proteções individuais. Este processo frequentemente envolve tribunais constitucionais capturados que produzem jurisprudência que esvazia o conteúdo substantivo de direitos fundamentais mantendo sua existência formal. 

A legislação ordinária restritiva constitui outro mecanismo fundamental, operando através da aprovação de leis que, embora não alterem explicitamente o texto constitucional, criam limitações práticas severas ao exercício de direitos fundamentais. Estas leis frequentemente utilizam conceitos vagos como "segurança nacional", "ordem pública" ou "moralidade" para justificar restrições amplas que, na prática, anulam a efetividade das garantias constitucionais. A vagueza terminológica permite aplicação seletiva contra oponentes políticos enquanto aparenta conformidade com padrões constitucionais formais. 

O constitucionalismo iliberal sistematicamente neutraliza as salvaguardas institucionais destinadas a proteger direitos fundamentais através de estratégias de captura que preservam a aparência de independência institucional enquanto subordinam essas instituições ao controle executivo.  

O sistema judiciário representa alvo primário desta estratégia, sendo neutralizado através de reformas que alteram processos de nomeação, critérios de promoção, estruturas disciplinares e aposentadoria compulsória de magistrados independentes. O resultado é um judiciário formalmente independente que, na prática, valida sistematicamente ações executivas que restringem direitos fundamentais. 

A captura de instituições de controle constitucional estende-se também a órgãos como defensorias públicas, procuradorias-gerais, tribunais de contas e comissões de direitos humanos. Estas instituições são enfraquecidas através de cortes orçamentários, mudanças em suas competências legais, interferência em processos de seleção de dirigentes e campanhas de deslegitimação pública. A neutralização dessas salvaguardas institucionais cria ambiente onde violações de direitos fundamentais podem ocorrer sem controle efetivo, mesmo quando formalmente protegidas por textos constitucionais. 

As emergências constitucionais representam momentos particularmente vulneráveis para proteção de direitos fundamentais, sendo sistematicamente exploradas pelo constitucionalismo iliberal para normalizar restrições extraordinárias.  

A constitucionalização de medidas emergenciais representa evolução particularmente perigosa, onde restrições originalmente temporárias são incorporadas permanentemente ao ordenamento jurídico através de emendas constitucionais ou interpretações jurisprudenciais que expandem permanentemente poderes executivos. Esta estratégia permite que governos iliberais aleguem conformidade constitucional para medidas que anteriormente seriam consideradas extraordinárias e temporárias, criando patamar de normalidade constitucional que aceita níveis de restrição a direitos fundamentais anteriormente inaceitáveis. 

A análise empírica do declínio global da liberdade política revela padrão consistente de erosão democrática, que afeta tanto democracias consolidadas quanto emergentes. Dados de organizações internacionais de monitoramento indicam que 113 países experimentaram declínio líquido em liberdades políticas e direitos civis durante o período de doze anos consecutivos, enquanto apenas 62 países registraram melhorias. Esta tendência global sugere que o constitucionalismo iliberal não representa fenômeno isolado, mas um padrão sistemático de transformação política que desafia o consenso democrático liberal do pós-Guerra Fria. 

O caso dos Estados Unidos exemplifica como mesmo democracias consolidadas podem experimentar erosão constitucional significativa. O país tem se retirado de seu papel tradicional como defensor e exemplo de democracia, experimentando polarização política extrema, questionamento de resultados eleitorais e tentativas de manipulação de processos democráticos que anteriormente eram considerados invioláveis. Este declínio em uma das democracias mais antigas e influentes do mundo demonstra que nenhum sistema constitucional está imune aos desafios do constitucionalismo iliberal. 

A era digital introduziu novos mecanismos de erosão de direitos fundamentais que não eram previstos pelos sistemas constitucionais tradicionais. A vigilância digital massiva, o controle de informação através de plataformas de mídia social e a manipulação de processos democráticos através de desinformação representam desafios inéditos para a proteção constitucional de direitos como privacidade, liberdade de expressão e integridade eleitoral. Governos iliberais sistematicamente exploram essas tecnologias para monitorar dissidentes, suprimir informação crítica e manipular opinião pública de formas que escapam aos controles constitucionais tradicionais. 

A regulamentação de conteúdo digital representa uma área particularmente problemática onde governos podem justificar censura através de argumentos sobre combate à desinformação ou proteção de menores. Estas justificativas aparentemente legítimas podem mascarar esforços sistemáticos para restringir liberdade de expressão e controlar narrativas políticas. A dificuldade de distinguir entre regulamentação legítima e censura autoritária no ambiente digital cria oportunidades para erosão gradual de direitos fundamentais que podem não ser imediatamente detectadas por salvaguardas constitucionais tradicionais. 

O declínio das garantias fundamentais no constitucionalismo iliberal produz impactos profundos e duradouros na proteção constitucional dos direitos humanos, alterando fundamentalmente a relação entre Estado e cidadãos. A vulnerabilidade social sistemática emerge como consequência direta da erosão de proteções constitucionais, criando categorias de cidadãos que ficam expostos a abusos estatais sem recursos efetivos. Esta vulnerabilidade não se limita a minorias tradicionais, mas pode afetar qualquer grupo que se oponha ao governo ou seja percebido como ameaça aos interesses dominantes. 

A deterioração da liberdade de expressão representa indicador particularmente crítico do declínio constitucional, pois afeta não apenas indivíduos diretamente censurados, mas cria ambiente generalizado de autocensura que compromete o debate democrático. Quando cidadãos passam a evitar expressar opiniões críticas por medo de retaliação, o próprio fundamento da democracia deliberativa é minado, mesmo quando não há censura formal. Este fenômeno demonstra como a erosão de direitos fundamentais pode operar através de mecanismos psicológicos e sociais que complementam restrições legais formais. 

O constitucionalismo iliberal produz uma fragmentação do sistema de proteção de direitos que deixa diferentes grupos de cidadãos sujeitos a níveis variáveis de proteção constitucional. Esta fragmentação opera através da aplicação seletiva de leis, interpretação diferenciada de direitos constitucionais para diferentes grupos e criação de exceções que permitem tratamento discriminatório mascarado como política pública legítima. O resultado é um sistema constitucional formalmente igualitário que, na prática, oferece proteções diferenciadas baseadas em critérios políticos, étnicos, religiosos ou socioeconômicos. 

A normalização de exceções constitucionais representa outro aspecto crítico desta fragmentação. Quando restrições a direitos fundamentais se tornam rotineiras através de justificativas como segurança nacional ou ordem pública, o próprio conceito de direitos como limitações ao poder estatal é gradualmente erodido. Esta normalização opera através da repetição de precedentes restritivos que, cumulativamente, alteram as expectativas sociais sobre o nível apropriado de proteção constitucional. 

Além dos impactos jurídicos formais, o constitucionalismo iliberal produz uma erosão da cultura constitucional que sustenta a proteção efetiva de direitos fundamentais. Esta cultura constitucional inclui expectativas sociais sobre o comportamento de autoridades públicas, normas informais que complementam regras formais e o consenso social sobre a importância da proteção de direitos mesmo quando politicamente inconveniente.  

A deterioração da cultura constitucional facilita futuras erosões de direitos, pois reduz a resistência social a medidas restritivas e normaliza níveis de intervenção estatal que anteriormente provocariam protesto público. Este processo é particularmente perigoso porque opera de forma gradual e pode ser irreversível, criando uma normalidade constitucional que aceita níveis substancialmente reduzidos de proteção a direitos fundamentais. A experiência demonstra que, uma vez perdida, a cultura constitucional robusta é extremamente difícil de reconstruir, mesmo com mudanças de governo ou reformas institucionais. 

A análise do declínio das garantias fundamentais no constitucionalismo iliberal revela o fenômeno complexo e multifacetado que representa uma das principais ameaças à democracia constitucional contemporânea. A pesquisa demonstra que este declínio não ocorre através de rupturas dramáticas, mas mediante processos graduais de erosão que preservam aparências formais de constitucionalismo democrático enquanto esvaziando sua substância protetiva. Os mecanismos identificados - incluindo reinterpretação restritiva de direitos, captura institucional, instrumentalização de emergência e erosão da cultura constitucional - operam sinergicamente para produzir transformações profundas na proteção de direitos fundamentais. 

A evidência empírica de declínio global da liberdade durante doze anos consecutivos indica que este não é um fenômeno isolado, mas uma tendência sistemática que afeta democracias em todos os continentes. A capacidade do constitucionalismo iliberal de operar através de mecanismos aparentemente legais torna-o particularmente insidioso, dificultando respostas adequadas por parte de instituições nacionais e internacionais comprometidas com procedimentos democráticos formais. 

As implicações para o direito público são profundas, exigindo uma reavaliação fundamental das teorias tradicionais sobre separação de poderes, direitos fundamentais, e proteção constitucional.  

A pesquisa sugere que salvaguardas constitucionais tradicionais podem ser insuficientes para enfrentar estratégias de erosão que operam dentro dos parâmetros formais do sistema legal. Isto indica a necessidade de desenvolvimento de novos mecanismos de proteção que sejam capazes de identificar e responder a ameaças constitucionais antes que produzam danos irreversíveis ao sistema democrático. 

A proteção efetiva das garantias fundamentais no século XXI requer não apenas instituições jurídicas robustas, mas também uma cultura constitucional vigorosa que valorize direitos fundamentais como limitações substantivas ao poder estatal. A experiência contemporânea demonstra que, sem esta cultura de apoio, mesmo constituições formalmente robustas podem ser gradualmente esvaziadas de significado. O desafio para constitucionalistas, juristas e cidadãos comprometidos com a democracia é desenvolver estratégias que possam preservar tanto as estruturas formais quanto a substância do constitucionalismo democrático diante das ameaças emergentes do constitucionalismo iliberal. 

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Krekó, P., & Szabó, Z. (2021). Regulação de Soft Law Doméstica durante o Confinamento da COVID-19 na Hungria: Uma Nova Abordagem Regulatória para um Desafio Global Único. 

Balogh, Z. et al. (2021). Estado de Emergência na Pandemia de COVID-19: Experiências de Pacientes Húngaros. 

Kovács, A. et al. (2024). Adaptação de Soluções de Saúde Digital durante a Pandemia de COVID-19 na Hungria: Uma Revisão Exploratória. 

Hervey, T. (2023). A União Europeia da Saúde e a Proteção da Saúde Pública na União Europeia: A UE está Preparada para Futuras Ameaças Sanitárias Transfronteiriças.

Lukács, D. et al. (2023). Uso de Hemoderivados durante os Primeiros Meses da Pandemia de COVID-19: Relato de um Centro Específico.

Paulo Cosmo de Oliveira Júnior
Bacharel em Direito e Advogado, com especialização em Direito Público.

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