A CDA - Certidão de Dívida Ativa constitui o título executivo que embasa a execução fiscal, gozando de presunção de certeza e liquidez, conforme preceitua o art. 204 do CTN e o art. 3º da lei de execuções fiscais (lei 6.830/1980).
Entretanto, a validade e a regularidade formal desse título são frequentemente questionadas em sede de embargos à execução, suscitando debates relevantes sobre a possibilidade de sua correção ou substituição no curso do processo judicial.
A complexidade da matéria e a necessidade de uniformização de entendimentos levaram o STJ a afetar o Tema 1.350, que será analisado sob a sistemática dos recursos repetitivos, com a seleção dos RE (REsp’s) 2.194.708, 2.194.706 e 2.194.734.
Referidos recursos, em particular, abordam questões cruciais que impactam diretamente a higidez da CDA e a defesa do contribuinte, discutindo a nulidade do título executivo com base em situações específicas que merecem profunda análise.
Entre as situações que motivaram a seleção dos referidos recursos especiais para o Tema 1.350, destacam-se três pontos que frequentemente geram controvérsia no âmbito das execuções fiscais e que encontramos frequentemente nos municípios.
O primeiro, é a ausência de legislação específica para a cobrança do tributo devido, como no caso do IPTU - Imposto Predial e Territorial Urbano, que levanta questionamentos sobre a própria legalidade da exação e a conformidade do lançamento com o princípio da estrita legalidade tributária.
Em segundo lugar, a ausência do número do processo administrativo fiscal na CDA é outro ponto de discórdia e por fim, a contradição entre a fundamentação legal constante da CDA e o imposto efetivamente cobrado, exemplificada pela cobrança de ISS - Imposto Sobre Serviços com base em dispositivos legais que não correspondem à natureza do tributo ou à sua base de cálculo.
A análise desses pontos pelo STJ no Tema 1.350 é de suma importância para a pacificação da jurisprudência e para a definição dos limites da emendabilidade da CDA, garantindo a efetividade da cobrança do crédito tributário sem descurar das garantias fundamentais do contribuinte.
Princípio da Emendabilidade da CDA e a jurisprudência
A despeito das discussões acerca dos vícios formais e materiais da Certidão de Dívida Ativa, a legislação pátria e a jurisprudência majoritária têm se inclinado no sentido de que não há óbice ou prejuízo para a defesa do executado na substituição ou emenda da CDA, especialmente quando o objetivo é incluir, complementar ou modificar o fundamento legal do crédito tributário.
Tal premissa encontra amparo na própria lei de execuções fiscais (lei 6.830/1980) e no CTN (lei 5.172/1966), que preveem a possibilidade de ajustes na certidão de dívida ativa no curso do processo executivo. O art. 2º, § 8º, da LEF, por exemplo, estabelece que "até a decisão de primeira instância, a Certidão de Dívida Ativa poderá ser emendada ou substituída, assegurada ao executado a devolução do prazo para embargos". Essa previsão legal demonstra a intenção do legislador de privilegiar a instrumentalidade das formas e a efetividade da cobrança do crédito público, permitindo que meros vícios formais sejam sanados sem que isso implique a extinção prematura da execução fiscal.
A súmula 392 do STJ também diz: A Fazenda Pública pode substituir a CDA até a prolação da sentença de embargos, quando se tratar de correção de erro material ou formal, vedada a modificação do sujeito passivo da execução.
Destaca-se nesse sentido que o STJ permite o redirecionamento da execução fiscal para o novo proprietário, após o ajuizamento, no caso de cobrança do IPTU ou ITR, como se vê:
“PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. ITR. CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DO IMÓVEL RURAL. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DO POSSUIDOR DIRETO (PROMITENTE COMPRADOR) E DO PROPRIETÁRIO/POSSUIDOR INDIRETO (PROMITENTE VENDEDOR). DÉBITOS TRIBUTÁRIOS VENCIDOS. TAXA SELIC. APLICAÇÃO. LEI 9.065/1995. 1. A incidência tributária do imposto sobre a propriedade territorial rural - ITR (de competência da União), sob o ângulo do aspecto material da regra matriz, é a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel por natureza, como definido na lei civil, localizado fora da zona urbana do Município (arts. 29, do CTN, e 1º, da lei 9.393/1996). (...) 4. Os impostos incidentes sobre o patrimônio (ITR - Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural e IPTU - Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana) decorrem de relação jurídica tributária instaurada com a ocorrência de fato imponível encartado, exclusivamente, na titularidade de direito real, razão pela qual consubstanciam obrigações propter rem, impondo-se sua assunção a todos aqueles que sucederem ao titular do imóvel. 5. Consequentemente, a obrigação tributária, quanto ao IPTU e ao ITR, acompanha o imóvel em todas as suas mutações subjetivas, ainda que se refira a fatos imponíveis anteriores à alteração da titularidade do imóvel, exegese que encontra reforço na hipótese de responsabilidade tributária por sucessão prevista nos artigos 130 e 131, I, do CTN, verbis: "Art. 130 Os créditos tributários relativos a impostos cujo fato gerador seja a propriedade, o domínio útil ou a posse de bens imóveis, e bem assim os relativos a taxas pela prestação de serviços referentes a tais bens, ou a contribuições de melhoria, subrogam-se na pessoa dos respectivos adquirentes, salvo quando conste do título a prova de sua quitação. Parágrafo único. No caso de arrematação em hasta pública, a sub-rogação ocorre sobre o respectivo preço. Art. 131. São pessoalmente responsáveis: I - o adquirente ou remitente, pelos tributos relativos aos bens adquiridos ou remidos; (Vide decreto lei 28, de 1966) (...)" (...) 13. Recurso especial desprovido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008. Proposição de verbete sumular. (REsp 1073846/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/11/2009, DJe 18/12/2009) (sem negrito no original)
No mesmo sentido é a jurisprudência do TJ/SP, abaixo ementada:
“EXECUÇÃO FISCAL IPTU e Taxas Exercício de 2012 Município de Sorocaba Extinção ante o reconhecimento, de ofício, da ilegitimidade passiva “ad causam” Ajuizamento em 21/08/2017 - Pedido de redirecionamento da execução fiscal para o novo proprietário Sentença de ofício, julgando extinto o processo, ante a ilegitimidade de parte, ante a impossibilidade de substituição da CDA para modificar o sujeito passivo, à luz do enunciado de súmula 392 do E. STJ - Reforma - Obrigação 'propter rem' - Transferência do bem imóvel devidamente comprovada e averbada, nos termos do art. 1.245 do CC, após o ajuizamento da ação, não altera a legitimidade passiva da execução (art. 109 do CPC), mas pode autorizar o ingresso do adquirente, a teor do seu § 1º - Incidência dos comandos normativos previstos nos artigos 130, caput, e 131, inciso I, ambos do CTN - Responsabilidade por sucessão configurada, afastando a aplicação do enunciado de súmula 392 do E. STJ ao caso em concreto - Precedente do E. STJ - Decisão reformada - Recurso provido. (Apelação 1031706-31.2017.8.26.0602 - 15ª câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo) (sem negrito no original).
É fundamental, contudo, distinguir a possibilidade de emenda da CDA da vedação imposta pelo Tema 166 do STJ, que veda a modificação do sujeito passivo da execução.
Enquanto a alteração do polo passivo da demanda representa uma mudança substancial na própria relação jurídica processual, que poderia configurar uma nova execução e, consequentemente, um cerceamento de defesa, a substituição ou emenda da CDA para retificar o fundamento legal do crédito tributário, sem alteração do fato gerador ou prejuízo à defesa do contribuinte na fase administrativa, configura-se como um mero ajuste formal.
A jurisprudência, a exemplo do TJ/SC, tem admitido amplamente a substituição da certidão de dívida ativa para retificar o fundamento legal do crédito tributário, desde que não haja alteração do fato gerador do tributo ou prejuízo à defesa do contribuinte na fase administrativa. Referido entendimento busca conciliar a necessidade de regularidade formal do título executivo com o princípio da economia processual e a primazia do mérito, evitando que a execução fiscal seja extinta por falhas sanáveis.
Nesse sentido, o julgamento do IRDR - Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas 5012330-66.2021.8.24.0000, relator designado des. Hélio do Valle Pereira, em 27/10/2021, no âmbito do TJ/SC, que resultou na fixação do Tema 24, consolidou a seguinte tese vinculante:
“Deve-se procurar a correção da certidão de dívida ativa, não se extinguindo execução fiscal sem prévia concessão de prazo ao exequente para se manifestar quanto à perspectiva de adequação do título. Entre as possibilidades de ajuste estão a inclusão, a retificação ou a complementação dos fundamentos jurídicos atrelados ao fato gerador, desde que ele não seja alterado e não haja real prejuízo à defesa precedente à fase jurisdicional”.
O acórdão do referido IRDR foi assim ementado, reforçando a compreensão da Corte Catarinense sobre a matéria:
IRDR – EXECUÇÃO FISCAL – CDA – CORREÇÃO – FUNDAMENTOS JURÍDICOS – POSSIBILIDADE.
A Fazenda Pública tem status peculiar. Não é mais uma pessoa jurídica. A feição é única: não é a projeção de uma pessoa formal, mas de todas as pessoas naturais amalgamadas. Esse grau de abstração sociológica dá-lhe uma dimensão tão profunda que veda seja vista como um ente jurídico que dispute interesses individualizados.
O interesse público é a soma impessoal das expectativas de todos os componentes do grupo social. Não se trata de mera adição algébrica das aspirações escoteiras, pois, sob este ângulo, haveria colisão e recíproca compensação. Reconhecer que a Administração protege valores de destacada importância e tem naturais dificuldades operacionais não ofende a Constituição. É aceitável que haja regras na legislação ordinária que, distinguindo em parte o rito procedimental, garantam mecanismos que reequilibrem a disputa.
A lei de execução fiscal e o CTN permitem ajustes na certidão de dívida ativa no curso do processo. Ir contra essa perspectiva, pregando extinção de plano da causa, combate a instrumentalidade, a boa política judiciária e a lei. O juiz não deve se portar como um inimigo da parte, um praticante de jurisprudência defensiva à procura de defeitos formais no afã de encerrar precipitadamente os processos, solucionando-os estatisticamente e praticando uma espécie de arte pela arte, um culto a conceitos de processo civil à maneira novecentista.
Tese firmada em IRDR: Deve-se procurar a correção da certidão de dívida ativa, não se extinguindo execução fiscal sem prévia concessão de prazo ao exequente para se manifestar quanto à perspectiva de adequação do título. Entre as possibilidades de ajuste estão a inclusão, a retificação ou a complementação dos fundamentos jurídicos atrelados ao fato gerador, desde que ele não seja alterado e não haja real prejuízo à defesa precedente à fase jurisdicional.
IRDR conhecido e solucionado por maioria de votos nesses termos (IRDR n. 5012330-66.2021.8.24.0000, Rel. des. Hélio do Valle Pereira, j. 27/10/2021).
Distinção crucial e a perspectiva do prejuízo à defesa
Ainda que se compreenda pela existência de mácula na certidão de dívida ativa, seja pela menção a dispositivo legal genérico do CTM ou em virtude da falta de referência à legislação concernente, é cabível a emenda do título executivo apenas para que seja incluído ou retificado o fundamento jurídico do débito tributário já apontado.
Não se vislumbra, no caso de correção do fundamento legal, mais do que a correção de um vício formal, sem que haja necessidade de revisão do lançamento fiscal e, crucialmente, sem que se configure qualquer prejuízo à defesa do contribuinte.
A essência do débito, o fato gerador que o originou e o sujeito passivo da obrigação permanecem inalterados; o que se busca é apenas a adequação da forma do título à sua substância, conferindo-lhe a clareza e a precisão exigidas pela lei para o exercício pleno do contraditório e da ampla defesa.
A possibilidade de emenda da CDA, nesses termos, não representa uma burla aos direitos do executado, mas sim uma medida de saneamento processual que visa a garantir a efetividade da execução fiscal, sem desconsiderar as garantias constitucionais.
O cerne da questão reside na verificação da ocorrência de prejuízo real à defesa do contribuinte e se a correção do fundamento legal não altera o fato gerador do tributo, nem a sua natureza, nem o valor devido, e se o contribuinte teve a oportunidade de se defender administrativamente ou em juízo com base nos elementos essenciais do débito, a emenda da CDA deve ser admitida.
Nesse passo, a extinção da execução fiscal por um vício formal sanável, que não compromete a essência da dívida ou a capacidade de defesa do executado, seria um excesso de formalismo que contraria os princípios da instrumentalidade das formas, da economia processual e da primazia do julgamento do mérito, pilares do moderno processo civil e tributário, de modo que a jurisprudência tem se mostrado sensível a essa perspectiva, buscando um equilíbrio entre a rigidez formal do título executivo e a necessidade de efetividade da cobrança do crédito público, sempre com a salvaguarda dos direitos fundamentais do contribuinte.
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BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios.
BRASIL. Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980. Dispõe sobre a cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública, e dá outras providências.
SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas n. 5012330-66.2021.8.24.0000, Relator designado: Des. Hélio do Valle Pereira, Grupo de Câmaras de Direito Público, Julgado em: 27/10/2021.
SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento Nº 5059756-06.2023.8.24.0000/SC.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Ofício n. 1900/2025-NUGEPNAC: COMUNICA AFETAÇÃO DO TEMA 1350 E DETERMINA SOBRESTAMENTO - Processos paradigma(s): REsp 2194734/SC, REsp 2194708/SC e REsp 2194706/SC.