Temos assistido, impotentes, à amplificação do discurso, criado pelas autoridades judiciais, de que o Brasil estaria vivendo uma “epidemia de judicialização” que precisa ser contida.
Essa percepção parte de um ponto de vista específico de quem não consultou aquele que é o “dono” do Brasil: o povo brasileiro.
Deriva, a ideia, de que o aumento do número de litígios decorre de um excesso de demandas infundadas por parte da população. Não há outra conclusão possível - se há “excesso” é porque entende-se que são infundadas. Se não são infundadas, não há excesso. É a lógica.
Mas uma rápida análise dos dados disponíveis revela uma realidade bem distinta.
Inicialmente, é preciso dizer que o Brasil possui menos da metade do número de juízes per capita em comparação aos países europeus, por exemplo, ainda que enfrente volume processual três vezes superior.
Ocorre que, para além dos fatores processuais e estruturais, deve-se considerar o contexto histórico e sociológico que diferencia profundamente o Brasil desses países, por exemplo. Enquanto que na Europa, ainda que existam desigualdades de renda, estas são significativamente menores, fruto de enraizados sistemas tributários progressivos, políticas públicas de proteção social abrangentes e trajetórias históricas que, até onde se sabe, não incluíram a condição colonial de exploração econômica e cultural por 300 anos.
O Brasil, por outro lado, estruturou-se como sociedade colonial por três séculos, sob um regime político-administrativo que naturalizou privilégios aristocráticos e desigualdade extrema. Diferentemente da Europa, onde a escravidão medieval já havia sido extinta há séculos, o Brasil foi palco do maior sistema escravocrata do mundo ocidental moderno, resultado direto de um projeto de exploração extremamente violenta que estruturou sua economia, sociedade e cultura, sobre a exploração bárbara de seres humanos.
Nesse sistema, desde o início e durante séculos, direitos eram exclusivos de poucos, numa lógica de exclusão que reverbera até hoje em práticas estatais, empresariais e mesmo judiciais.
Assim, o que se costuma denominar de “jeitinho brasileiro” não deriva de suposta falha moral que brota do solo brasileiro, mas de um padrão histórico de organização social, hierárquica, de concentração de renda e de privilégios, que moldou a relação dos cidadãos com o Estado e o Direito, que nos moldou.
Isso reflete direta e indiretamente no número de processos judiciais que julgam ser uma “epidemia”. E o aumento expressivo de processos - com 35 milhões de novas ações registradas apenas em 2023, representando um crescimento de 9,4% em relação ao ano anterior (CNJ, Justiça em Números 2024) - não configura patologia social, mas sim manifestação viva da nossa democracia, conquistada após longos 500 anos de opressão.
Na verdade, os números não mostram uma "epidemia processual", mas sim a consequência natural do projeto constitucional de 1988, que plantou, em solo outrora árido de direitos, as sementes da dignidade humana, da igualdade material e da inafastabilidade da jurisdição.
Após séculos de restrição de direitos, com as últimas duas décadas de violenta opressão, a sociedade brasileira, por meio de um processo constituinte amplamente democrático, construiu coletivamente uma Constituição Federal que garantiu direitos civis, políticos, sociais, culturais e econômicos, impondo ao Estado o dever de promover a sua efetivação. A nossa constituição não apenas garante direitos, como prevê que eles serão ampliados.
E, se o número de ações judiciais aumenta, não é por litigiosidade patológica, mas sim pela confiança do povo no Poder Judiciário, apesar das fortes campanhas perpetradas, também por detentores do poder econômico, contra as instituições.
Não judicializamos mais. Judicializamos menos do que o necessário. A quantidade de cidadãos que não busca seus direitos por falta de condições financeiras para pagar os custos de um processo, por desconhecimento de seus direitos ou por descrença na vitória na ação judicial, essa não foi calculada pelas estatísticas.
Avaliando os dados dos relatórios do CNJ, pode-se verificar que os maiores litigantes brasileiros não são o povo em si, mas o próprio Estado e grandes empresas e grupos econômicos.
Para as grandes litigantes privadas, como empresas de telecomunicação, a judicialização massiva nem mesmo representa uma ameaça, já fazendo parte do custo, sem risco econômico que inviabilize seus lucros. Afinal, como todo brasileiro sabe, as indenizações fixadas pelo Judiciário são irrisórias, numa tentativa de conter a “indústria de indenização” já há algumas décadas, mas perpetuando um modelo predatório de negócios em que violar direitos e sofrer ações judiciais faz parte do jogo e da conta.
Portanto, diferentemente do que equivocadamente vem sendo anunciado, não é a população brasileira a responsável pela sobrecarga do Judiciário, mas sim a violação sistemática de seus direitos por grandes instituições - as maiores litigantes. De grandes empresas privadas à Administração Pública em todas as esferas, a força colossal acaba atropelando os cidadãos que estão pelo caminho. E estes têm o direito de buscar a tutela de seus direitos, por previsão ainda constante na Constituição Federal.
Esse triste episódio de disseminação da narrativa da "epidemia de judicialização" legitima políticas de racionalização da Justiça que invariavelmente restringem o acesso à jurisdição - mas não para todos os brasileiros.
Quem tem condições financeiras de pagar por bons advogados, recursos infinitos, sustentações orais, voos às capitais para atendimento presencial nos gabinetes e o último dos embargos de declaração (dos embargos de declaração do agravo interno do recurso especial no agravo de instrumento...), esses praticamente não precisam se preocupar com a política de contenção que vem sendo preparada pelo Poder Judiciário.
E, não por acaso, não são esses privilegiados que predominam entre os que processam os grandes litigantes.
É a população hipossuficiente, o cidadão mais vulnerável, o desempregado, o que recebe de um a 7 salários mínimos. Esses sentirão, ao longo dos próximos anos e talvez do próximo século, os reflexos dessa postura refratária e antidemocrática de quem deveria os proteger.
Em outros termos, a limitação do acesso à Justiça apenas aprofundará ainda mais as desigualdades sociais no Brasil.
Some-se a isso o fenômeno preocupante da transformação do Brasil em uma Common Law à brasileira, marcada por teses de repercussão geral, súmulas vinculantes e decisões paradigmáticas cada vez mais favoráveis aos interesses estatais neoliberais e econômicos privados.
Enquanto as súmulas vinculantes do STF, no passado, protegiam o cidadão contra o arbítrio estatal, hoje consolidam teses restritivas, minando direitos e garantias fundamentais sob o manto da segurança jurídica, do interesse público e da discricionariedade administrativa.
Sem dúvida, é preciso um pouco de memória para entender que não há uma "epidemia de judicialização" no Brasil.
É preciso lembrar de tudo que passamos e por que adotamos diversas teorias de direito, como a do risco administrativo e a da responsabilidade do fornecedor pela má prestação do serviço, por exemplo - estas duas do final da década de 80, diuturnamente mitigadas por sentenças e acórdãos.
É preciso compreender e assumir a responsabilidade do Poder Judiciário pela manutenção e inclusive pela ampliação da justiça social e distributiva.
Nem tudo é advocacia predatória. É inevitável o aumento do número de processos em um país que possui uma Constituição democrática e garantista como a nossa, especialmente em tempos de cybercultura, em que as decisões judiciais e explicações sobre direitos estão acessíveis a cada cidadão, literalmente na palma da mão.
Nos basta um Legislativo que, reiteradamente, legisla movido por interesses de poder político, e não pela defesa dos direitos do povo.
A nostalgia, da época em que restringir direitos fundamentais em nome da “eficiência do Judiciário” seria considerado inadmissível, é inevitável. Culpa, talvez, da internet - ou mérito dela, por ter dado voz, vez e consciência aos que antes sequer sabiam de seus direitos e hoje podem buscar o Poder Judiciário que os rejeita.