O art. 32 da lei 4.357/1964 veda a distribuição de bonificações aos acionistas e a atribuição de participação nos lucros a sócios ou quotistas na hipótese de a pessoa jurídica possuir débitos tributários e previdenciários ainda não garantidos junto à União.
A inobservância dessa vedação resulta na aplicação da multa de 50% sobre os valores distribuídos ou pagos, tanto à pessoa jurídica quanto ao beneficiário, limitada a 50% do montante do débito não garantido.
Não obstante a taxatividade do dispositivo, o Fisco tem ido além, aplicando a multa mesmo nos casos de distribuição de dividendos, prática indevida que será objeto da presente análise.
Os critérios materiais possíveis
Da interpretação da alínea “a” do art. 32 da lei 4.357/1964, extrai-se que o critério material da multa consiste em distribuir aos acionistas quaisquer bonificações por pessoa jurídica que possua débito tributário não garantido perante a União e suas autarquias.
Materialidade distinta está prevista no enunciado da alínea “b”, da qual se delineia o critério material pelo ato de dar ou atribuir participação de lucros por pessoa jurídica que possua débito não garantido perante a União e suas autarquias.
Há, então, ao menos três pressupostos para a aplicação da multa, sem os quais não é possível subsumir o fato à norma: (i) a distribuição de bonificações ou a atribuição de participação nos lucros; (ii) a existência, à época do ato, de débitos tributários; e (iii) a inexistência, à época do ato, de garantia dos débitos.
A delimitação conceitual de bonificações, lucros e dividendos
Na hermenêutica jurídica, parte-se do princípio de que nenhum termo empregado é vazio de conteúdo. Essa premissa assume especial relevância na extração de norma sancionatória, em que a interpretação deve ser menos gravosa ao contribuinte.
Nesse sentido, a precisão terminológica entre distribuição de “bonificações” e “dividendos” e atribuição de participação nos “lucros” delimita o âmbito de aplicação da multa em questão, sendo vedada analogia ou interpretação que amplie o seu alcance.
Do ponto de vista societário, as bonificações podem ser compreendidas como a distribuição gratuita de novas ações aos acionistas, em decorrência de aumento de capital por incorporação de reservas.1
Em outros termos, por envolver a entrega de ações, e não de dinheiro, a bonificação não se confunde nem com os lucros, enquanto resultado econômico, nem com os dividendos, parcela formalmente deliberada para distribuição.
Por sua vez, a atribuição de participação nos lucros tem natureza contraprestacional, vinculada ao esforço para o resultado, enquanto a distribuição de dividendos possui natureza estritamente societária, refletindo a condição jurídica do titular de ações.
Fosse irrelevante tal distinção, o termo “dividendos”, que constava originalmente do projeto de lei que deu origem à lei 4.357/1964, na alínea “a” do art. 32, não teria sido vetado pelo então Presidente da República.
Por meio da mensagem de veto 244/1964, restou nítida a distinção entre os institutos, com a exclusão do termo “dividendos” para resguardar os acionistas, sobretudo os minoritários, de sanções por atos de gestão alheios às suas responsabilidades.
“A ingerência do Fisco em assuntos da economia interna das empresas deve ficar restrita a casos excepcionais, evitando-se [...] perturbação da vida normal das empresas, que são os núcleos propulsores do desenvolvimento da economia nacional”.
“A exclusão dos dividendos torna-se mais aconselhável, ainda, no caso de acionistas minoritários, que ficavam prejudicados por erros de uma administração que, em geral, não teriam forças para substituir”.
Intepretação contrária equivaleria a reintroduzir, pelas vias não democráticas, um dispositivo propositalmente excluído do ordenamento há mais de meio século, em afronta aos princípios da segurança jurídica e da legalidade estrita.
Esse raciocínio conduziu o CARF à consolidação do entendimento de que a aplicação da multa prevista no art. 32 da lei 4.357/1964 não alcança os casos em que há distribuição de dividendos aos acionistas.
A título de exemplo, no acórdão 1401-004.930, proferido pela 1ª Seção, 4ª Câmara, 1ª turma ordinária, consignou-se que: “a legislação [...] não veda a distribuição de dividendos, mesmo nos casos em que a empresa possui débitos não garantidos com a União”.
Aliás, a própria Coordenação-Geral de Tributação manifestou esse entendimento na solução de consulta 30/18, ao afirmar que “a vedação [...] não alcança a distribuição de dividendos, em razão do veto presidencial oposto à sua redação original.”
Como se vê, não subsiste a postura do Fisco de desconsiderar a materialidade da multa, ignorando os pressupostos fáticos para sua incidência, em claro desvio de interpretação do enunciado do art. 32 da lei 4.357/1964.
A relevância do momento da constituição do débito
Ainda, para a subsunção da conduta ao art. 32 da lei 4.357/1964 é imprescindível que o débito esteja formalmente constituído no momento da distribuição, condição sine qua non para a incidência da penalidade.
Tal exigência decorre do próprio conceito de crédito tributário, que somente se constitui com o lançamento, instante a partir do qual há a formalização da obrigação tributária, quer pelo fisco (lançamento), quer pelo contribuinte (autolançamento).
Isso significa que não se sustenta a aplicação da multa com base em passivo tributário constituído após a distribuição questionada, dada a inexistência, à época, de um dos pressupostos legais para a sua incidência.
O CARF tem reiterado que, enquanto não houver a constituição do débito tributário, não se pode falar em débito, tampouco em débito líquido e exigível, o que não deve impedir a pessoa jurídica de dar ou atribuir participação nos lucros.
Esse entendimento é respaldado por diversos acórdãos, como o de 9202-009.363, proferido pela 2ª turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, por meio do qual consignou-se a necessidade de existência jurídica do débito:
“A vedação à distribuição dos lucros e/ou bonificações não se aplica aos casos em que o crédito tributário não esteja formalmente constituído [...]. Inexistindo declaração do contribuinte, cabe à fiscalização realizar o lançamento de ofício”.
E nem se pode alegar que o mero registro contábil de valores seja suficiente para ensejar a vedação à distribuição, uma vez que a constituição do débito ocorre somente mediante lançamento pelo Fisco ou autolançamento pelo contribuinte.
Tanto por isso, a 2ª turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, por meio do acórdão 9202-009.293, manifestou o entendimento de que eventual divergência entre a ECF e a DCTF apresentada não constitui débito tributário:
“A vedação à distribuição dos lucros e/ou bonificações não se aplica aos casos de mero registro contábil do débito, pois nesta circunstância não há que se falar em crédito tributário devidamente constituído”.
Vê-se, pois, a partir desses julgados, a reafirmação de que o momento da constituição formal do débito tributário é elemento determinante para a aplicação da penalidade prevista no art. 32 “b” da lei 4.357/1964.
Afinal, a aplicação da multa com base em passivo tributário formalizado apenas posteriormente à atribuição de lucros não se sustenta juridicamente, diante da inexistência, à época da realização do ato, de um dos pressupostos legais para a sua incidência.
O estágio da cobrança do débito: inexistência de garantia
E mais, não basta a mera existência jurídica de débito tributário; exige-se também a ausência de sua garantia, o que pressupõe um estágio mais avançado nos processos administrativo e judicial de cobrança.
Afinal, a prestação de garantia somente se torna possível com o status de exigibilidade do débito, momento em que se configura a irregularidade fiscal do contribuinte, conforme já sinalizou o STJ ao julgar o REsp 1.115.136/SC.
Embora a existência desse terceiro pressuposto ainda suscite divergências no âmbito do CARF, não são poucos os julgados que reconhecem sua relevância e, ao fazê-lo, reforçam de forma expressiva o raciocínio ora delineado.
A título de exemplo, o acórdão 1201-005.199, proferido pela 1ª Seção, 2ª Câmara, 1ª turma ordinária: “Considera-se débito não garantido aquele que tem como objeto crédito tributário líquido, certo e exigível, que decorra de regular inscrição em dívida ativa e seja objeto de execução fiscal onde o contribuinte tenha sido regularmente citado”.
Para os julgadores, não há ilegalidade na distribuição de lucros antes desse estágio avançado de cobrança, seja pelo caráter provisório dos débitos, seja para preservar o livre exercício da atividade econômica.
Por isso, ao promover o lançamento da multa, mais do que simplesmente constatar a existência do débito tributário, cabe ao Fisco comprovar o seu status de exigibilidade e o estágio da cobrança que viabilize a prestação de garantia.
Considerações finais
A correta identificação dos critérios materiais da multa prevista no art. 32 da lei 4.357/1964 é indispensável à aferição da legalidade do lançamento, pois delimita o alcance da norma sancionatória.
A inobservância de qualquer dos três pressupostos exigidos compromete a subsunção do fato à norma, tornando, por consequência, ilegítima a imposição da penalidade, que deve, então, ser cancelada.
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1 FORTUNA, Eduardo. Mercado Financeiro - Produtos e Serviços. 15ª ed. Rio de Janeiro: QualityMark, 2002, pp. 445-6.