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China vs. Brasil: Autoritarismo ou democracia?

Análise comparativa das Constituições de China (1982/2018) e Brasil (1988), contrastando o regime de partido único chinês com a democracia brasileira.

23/7/2025

1. Introdução

A ascensão da China como potência global e o contínuo fortalecimento de seu sistema político suscitam questões fundamentais sobre a coexistência de modelos de organização estatal diversos no cenário internacional. Enquanto o pensamento político ocidental consolidou a democracia liberal, a China apresenta um exemplo “aparência” de sucesso econômico sob um regime de partido único (He, 2024). Este artigo propõe-se, portanto, a desvelar, por meio da análise de seus textos constitucionais, as divergências conceituais e estruturais entre os regimes da China e do Brasil, com este último servindo como caso representativo de Estado Democrático de Direito.

A hipótese central é que as divergências constitucionais não são meramente formais; elas refletem visões de mundo diametralmente opostas sobre o papel do indivíduo, do Estado e do poder. Para além do contraste entre socialismo e capitalismo, a distinção mais profunda reside na concepção de liberdade e de direitos, os quais, na China, ligam-se intrinsecamente aos interesses do coletivo e do partido, ao passo que, no Brasil, são inalienáveis e inerentes à dignidade da pessoa humana (Alviar García & Frankenberg, 2019).

2. A estrutura constitucional do autoritarismo chinês

A Constituição da República Popular da China (1982, revista em 2018) é a manifestação jurídica de um regime que, desde sua fundação em 1949, baseia-se na hegemonia do PCC - Partido Comunista da China. Frankenberg (2020) aponta que o constitucionalismo autoritário, diferente do liberal, não visa a limitar o poder, mas sim a legitimá-lo e concentrá-lo.

2.1. O princípio da ditadura e a liderança indissolúvel do partido

O art. 1º da Constituição chinesa é o cerne da natureza do regime: “A República Popular da China é um estado socialista sob a ditadura democrática popular liderada pela classe trabalhadora e baseada na aliança de trabalhadores e camponeses” (Constituição da República Popular da China, 2018). Essa terminologia, de origem marxista-leninista, opõe-se diretamente à democracia representativa. Adicionalmente, afirma-se: “a liderança do Partido Comunista da China é a característica definidora do socialismo com características chinesas” (Constituição da República Popular da China, 2018).

Assim, este artigo institucionaliza o PCC como a força hegemônica, sem concorrência política. He (2024) e o Partido Comunista da China (2023) reforçam que essa liderança é a "característica mais essencial", permeando todas as áreas do país, incluindo o sistema constitucional e judicial. Tal premissa contrasta diretamente com o pluralismo político e a alternância de poder, fundamentos da Constituição brasileira (Brasil, 1988, art. 1º).

2.2. A subordinação das liberdades individuais ao Estado

Enquanto a Constituição brasileira protege a liberdade de expressão como direito fundamental (Brasil, 1988, art. 5º, inciso IV), a chinesa, embora mencione liberdades como as de expressão, imprensa e manifestação (art. 35), restringe-as significativamente no art. 51: "Quando os cidadãos [...] exercem as suas liberdades e direitos, não devem infringir os interesses do Estado, da sociedade e do coletivo, nem os direitos e liberdades legítimos de outros cidadãos" (Constituição da República Popular da China, 2018).

Esta cláusula permite ao Estado chinês justificar a censura, a vigilância e a repressão de qualquer dissidência em nome da estabilidade (Zhang, 2015; China Perspectives, 2025). Tal abordagem difere drasticamente da proteção de minorias e da ampla liberdade individual, pilares dos direitos constitucionais brasileiros.

Ademais, a Constituição chinesa proíbe explicitamente a "sabotagem do sistema socialista por qualquer organização ou indivíduo" (art. 1º), criminalizando a oposição política, algo inconstitucional no Brasil, onde a livre organização partidária e a oposição são asseguradas (Brasil, 1988, Art. 17). O Judiciário na China, embora formalmente independente, na prática se subordina à liderança do partido, limitando sua independência em comparação com democracias (Schwartz, 2019; Harvard Law School, s.d.).

3. A democracia liberal na Constituição brasileira

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, promulgada após um período de ditadura militar, busca consagrar os princípios da democracia liberal. Seu art. 1º estabelece o Brasil como um Estado Democrático de Direito, pautado pelo pluralismo político, pela soberania popular e pela dignidade da pessoa humana.

A separação dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), a soberania popular exercida pelo voto direto e secreto (art. 14) e a garantia de direitos e garantias fundamentais inalienáveis (Título II) formam a base de um sistema oposto ao chinês. No Brasil, o poder emana do povo, exercido por meio de representantes eleitos; o Estado existe para servir ao cidadão e proteger seus direitos. A livre iniciativa e a propriedade privada, pilares do sistema econômico brasileiro, igualmente contrastam com a predominância da propriedade pública no modelo chinês.

4. Discussão: A emergência de autoritarismos velados

A análise comparativa serve não apenas para identificar diferenças institucionais, mas também para alertar sobre a possibilidade de regressão autoritária, mesmo em democracias consolidadas. A China, em sua estrutura constitucional, legitima práticas que, em contexto democrático, seriam vistas como ameaças. No cenário contemporâneo, a erosão de instituições democráticas, o enfraquecimento da imprensa livre, a desvalorização do pluralismo e a polarização política são sinais de um "autoritarismo velado". Pesquisas indicam, por exemplo, que o engajamento chinês com países da América Latina, incluindo o Brasil, pode, por vezes, dar "cobertura" a líderes com tendências autoritárias para subverter a democracia internamente (Air University, 2023).

O culto à personalidade de líderes, a retórica nacionalista exacerbada e a tentativa de criminalizar a oposição, sob pretexto de "sabotagem", são práticas que, embora inconstitucionais no Brasil, podem ganhar força em discursos que deslegitimam a democracia. A experiência chinesa demonstra a facilidade com que direitos individuais podem ser sacrificados em nome da ordem, estabilidade e progresso econômico (SCIRP, s.d.; Brill, s.d.). A relação entre o Partido Comunista Chinês e o Exército de Libertação Popular, este último sendo o braço armado do Partido, e não de um Estado politicamente neutro, também contrasta fundamentalmente com a subordinação dos militares ao poder civil em democracias (Columbia University, s.d.; Oxford University Press, 2020).

5. Considerações

A comparação das constituições da China e do Brasil revela mais do que diferentes sistemas políticos; ela expõe dois paradigmas de civilização. O modelo chinês prioriza a estabilidade e a unidade sob a liderança incontestável de um partido e a ideologia de "ditadura democrática popular". Por outro lado, o modelo brasileiro, ainda que com imperfeições, busca a constante reafirmação da liberdade, da pluralidade e da dignidade humana como princípios inegociáveis.

É crucial que a sociedade brasileira continue a examinar criticamente a estrutura de poder da China para não apenas compreender sua ascensão, mas também para valorizar e defender os princípios democráticos que, mesmo imperfeitos, fundamentam um regime que se esforça para respeitar os direitos e as liberdades de seus cidadãos. A luta contra a regressão autoritária, em qualquer sociedade, inicia-se com a proteção dos valores constitucionais que a distinguem da ditadura.

__________________________

Air University. (2023). China–Latin America Alignment and Democratic Backsliding: Gaining Traction for a Chinese-Led World Order. Disponível em: https://www.airuniversity.af.edu/JIPA/Display/Article/3540688/chinalatin-america-alignment-and-democratic-backsliding-gaining-traction-for-a/. Acesso em: 23 jul. 2025.

Alviar García, H., & Frankenberg, G. (Eds.). (2019). Authoritarian Constitutionalism: Comparative Analysis and Critique. Edward Elgar Publishing. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/asian-journal-of-comparative-law/article/authoritarian-constitutionalism-comparative-analysis-and-critique-edited-by-helena-alviar-garcia-and-gunter-frankenberg-edward-elgar-publishing-2019-xii-386-pp-hardcover-9000-ebook-2231-doi-httpsdoiorg1043379781788117852/E9FD9AEAA3D4C9C4AE50813A81D29D39. Acesso em: 23 jul. 2025.

Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 23 jul. 2025.

Brill. (s.d.). Human Rights in the Constitutional Law of China in Transition. Disponível em: https://brill.com/downloadpdf/book/edcoll/9789004308770/B9789004308770-s013.pdf. Acesso em: 23 jul. 2025.

China Perspectives. (2025). Debating Constitutionalism in China: Dreaming of a liberal turn? OpenEdition Journals. Disponível em: https://journals.openedition.org/chinaperspectives/6325. Acesso em: 23 jul. 2025.

Columbia University. (s.d.). Civil-Military Relations in China: An Obstacle to Constitutionalism? Academic Commons. Disponível em: https://academiccommons.columbia.edu/doi/10.7916/ex71-ck25. Acesso em: 23 jul. 2025.

Constituição da República Popular da China. (2018). Disponível em: https://www.constituteproject.org/constitution/China_2018.pdf?lang=pt. Acesso em: 23 jul. 2025.

Frankenberg, G. (2020). Authoritarianism. Constitutional Perspectives. Edward Elgar Publishing. Disponível em: https://doi.org/10.4337/9781800372726. Acesso em: 23 jul. 2025.

Harvard Law School. (s.d.). Authoritarian Constitutionalism. Disponível em: https://hls.harvard.edu/bibliography/authoritarian-constitutionalism/. Acesso em: 23 jul. 2025.

He, X. (2024). The party's leadership as a living constitution in China. CityUHK Scholars. Disponível em: https://scholars.cityu.edu.hk/en/publications/the-partys-leadership-as-a-living-constitution-in-china(4bf1892f-4cc1-4900-8e2c-101cd7b7d0ad).html. Acesso em: 23 jul. 2025.

Oxford University Press. (2020). China: Party–Army Relations Past and Present. Oxford Research Encyclopedia of Politics. Disponível em: https://oxfordre.com/politics/display/10.1093/acrefore/9780190228637.001.0001/acrefore-9780190228637-e-1805?p=emailA6CNpd8YRdaSE&d=/10.1093/acrefore/9780190228637.001.0001/acrefore-9780190228637-e-1805. Acesso em: 23 jul. 2025.

Partido Comunista da China. (2023). Party Constitution. Disponível em: https://www.idcpc.org.cn/english2023/tjzl/cpcjj/PartyConstitution/. Acesso em: 23 jul. 2025.

SCIRP. (s.d.). The Theoretical System of Human Rights with Chinese Characteristics. Scientific Research Publishing. Disponível em: https://www.scirp.org/journal/paperinformation?paperid=86419. Acesso em: 23 jul. 2025.

Schwartz, H. (2019). The More Authoritarian, the More Judicial Independence? The Paradox of Court Reforms in China and Russia. Journal of Comparative Law, v. 14, n. 1. Universidade da Pennsylvania. Disponível em: https://scholarship.law.upenn.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1712&context=jcl. Acesso em: 23 jul. 2025.

Zhang, Q. (2015). Two Constitutions. Yale Law School. Disponível em: https://law.yale.edu/sites/default/files/documents/faculty/papers/two_constitutions.pdf. Acesso em: 23 jul. 2025.

Guilherme Fonseca Faro
Advogado, escritor e empreendedor. Membro dos Advogados de Direita e fundador do Movimento Nordeste Conservador. Especializado em Direito Público. Advogado do PL22 de São José da Coroa Grande - PE

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