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Efeitos subjetivos da coisa julgada da sentença arbitral estrangeira

Uma vez homologada em território nacional, surge a tarefa de definir o escopo subjetivo da coisa julgada da sentença arbitral estrangeira.

5/8/2025

Um dos temas mais tormentosos atrelados ao procedimento de homologação de sentença arbitral estrangeira é a compreensão dos efeitos da coisa julgada - produzida no exterior - que passa a deitar consequências jurídicas no Brasil após o escrutínio do STJ, cumprindo essa sua específica missão constitucional. 

O problema que se coloca, em um contexto de economia globalizada, com cadeias produtivas integradas e empresas multinacionais, é o seguinte: em que medida, a partir da homologação da sentença estrangeira no Brasil, é possível estender os efeitos da coisa julgada arbitral à filial de empresa multinacional que não participou da arbitragem? 

A situação é problemática por haver uma tensão entre dois princípios processuais fundamentais que devem ser adequadamente equalizados: de um lado, a eficiência procedimental e a circulabilidade da sentença arbitral estrangeira (um dos pilares do sistema da Convenção de Nova York) e, de outro, a autonomia privada e a relatividade do processo, que limitam os efeitos da coisa julgada arbitral exclusivamente às partes do processo. 

Primeiramente, cumpre destacar que a estrutura econômica contemporânea é marcada pela presença de empresas multinacionais, que atuam em diversos países, ora exercendo o mesmo objeto social, ora cumprindo etapas distintas do seu processo produtivo. Nesse contexto, longe de ser incomum que, em contratos internacionais, uma determinada obrigação seja assumida pela empresa controladora, sediada em um país, mas seja executada por outra empresa do mesmo grupo, com sede social em outro país. Dessa forma, surge o problema prático, qual seja, em que medida uma sentença arbitral condenatória em face da empresa controladora pode produzir efeitos sobre empresa controlada que não tenha participado do procedimento arbitral, mas tenha contribuído para a execução do contrato?

Por um lado, o desiderato da Convenção de Nova York é permitir a circulação das sentenças arbitrais ao redor do mundo. Sendo o tratado internacional de direito privado mais bem sucedido, tendo mais de 170 signatários, a interpretação mais ampliativa sugere a possibilidade de não apenas permitir o reconhecimento, em diversas ordens jurídicas, de efeitos declaratórios e constitutivos da sentença arbitral, mas também de efeitos condenatórios de ordem patrimonial. Ou seja, permitindo a persecução típica da responsabilidade patrimonial, por processo de execução, nos países em que a sentença arbitral é reconhecida e homologada. 

Em termos de eficiência procedimental, e de maximização do efeito útil da arbitragem, uma posição mais tolerante quanto à possibilidade de extensão dos efeitos da sentença arbitral às controladas do mesmo grupo econômico parece ser a indicada. Contudo, não parece ter sido essa a posição adotada, legitimamente, pelo Direito brasileiro. 

Um dos princípios basilares do direito societário, reconhecido na generalidade dos ordenamentos jurídicos, é o da autonomia da personalidade jurídica. Ou seja, assim como a esfera patrimonial da sociedade não se confunde com a dos seus sócios, a esfera patrimonial da controladora não se confunde com a de suas controladas. Inclusive, a autonomia patrimonial e a respectiva limitação de responsabilidade são dois dos pilares da arquitetura jurídica, consagrados universalmente, que permitiram o desenvolvimento da economia de mercado. 

Essa premissa, fundamental na ordem jurídica pátria, recomenda fixar a distinção entre o patrimônio da controladora e o patrimônio da empresa controlada. Não parece ser admissível proceder com a extensão dos efeitos condenatórios patrimoniais da sentença arbitral às demais sociedades integrantes do mesmo grupo econômico, mas que não foram partes da arbitragem, pouco importando se participaram da execução do contrato ou não. Afinal, a arbitragem está sempre alicerçada nos princípios do consensualismo e da autonomia da vontade.

Não se admite no Direito Civil e Empresarial brasileiro que se proceda à desconsideração da personalidade jurídica de modo leviano. O art. 50 do CC é explícito ao impor como requisito para a desconsideração a existência de abuso de personalidade jurídica, marcado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Sem esses requisitos, não é possível, em sede de execução de sentença arbitral estrangeira homologada no Brasil, impor responsabilidade patrimonial à sociedade do grupo econômico que não integrou o polo passivo do procedimento arbitral. 

Assim, surge a questão prática relevante: qual é o critério dogmático adequado para analisar a extensão dos efeitos da sentença arbitral estrangeira homologada às demais sociedades integrantes do mesmo grupo? 

Preliminarmente, importa averiguar se a sociedade foi ou não parte do procedimento arbitral. Em sendo parte do procedimento, não há dúvidas que se pode aplicar, integralmente, todos os efeitos da sentença arbitral estrangeira após o processo de homologação. A situação não gera maiores problemas. 

Incumbe ao requerente de um procedimento arbitral definir, prima facie, a composição do polo passivo do procedimento arbitral. Ou seja, mediante o exercício do seu direito de ação, o requerente, ao indicar determinadas sociedades de um grupo econômico como partes da arbitragem e deixar de fora outras, adota posição estratégica relevante: define, prima facie, contra quem poderá, posteriormente, exercer a persecução patrimonial em caso de êxito no procedimento arbitral. Assim, a definição do polo passivo da arbitragem implica também assunção de risco, qual seja, de não haver patrimônio a ser executado quando da prolação da sentença arbitral. 

É relevante que reste claro que o momento processual, adequado e pertinente, para a discussão da legitimidade da empresa relacionada com a contratante da convenção de arbitragem, para participar do procedimento arbitral como parte, é o da celebração da ata de missão, como documento organizador da arbitragem, cabendo aos árbitros decidir sobre tal legitimidade, definindo se terceiros devem ser partes da arbitragem ou não. Essa questão não pode, via de regra, ser debatida de modo superveniente.

Em atenção à peculiaridade de haver eventuais partes não signatárias, cuja participação pode ser relevante no procedimento arbitral, a doutrina e a casuística arbitral desenvolvem há mais de 50 anos diversos grupos de casos que permitem a denominada “extensão da cláusula compromissória” (ou, melhor dizendo, integração de partes não signatárias ao procedimento arbitral). Assim, caso o requerente vislumbre a necessidade de proceder com a persecução patrimonial contra outras sociedades do grupo econômico, é seu ônus processual procurar as integrar, desde o primeiro momento possível, ao procedimento arbitral. 

Na sequência, partindo da premissa de que a sociedade contra quem se quer estender os efeitos da sentença arbitral não foi parte da arbitragem, a lógica é invertida: a regra geral é a não produção de efeitos derivados da coisa julgada arbitral contra aqueles que não fizeram parte do processo. A sentença arbitral, via de regra, é ato jurídico que sujeita somente as partes do procedimento. Pouco importa se a parte contra quem se quer impor o efeito da sentença arbitral é ou não parte da convenção de arbitragem não integrante da arbitragem em si ou se é sociedade que, faticamente, participou da execução do contrato. O ponto a ser privilegiado é o do espelhamento entre a estrutura processual e os efeitos da sentença arbitral. A decisão arbitral não pode, em regra, atingir terceiros estranhos à lide, devendo guardar correlação apenas com os sujeitos da relação processual, sob pena de violar os princípios do contraditório e da ampla defesa, bem como do devido processo legal.

Contudo, aponte-se que é possível, sob certas circunstâncias, estender outros efeitos da sentença arbitral às demais sociedades de um grupo econômico. Por exemplo, é possível reconhecer: (i) efeitos declaratórios (e.g. que determinada cláusula não foi cumprida); (ii) efeitos condenatórios não patrimoniais (e.g. cumprimento de obrigação de fazer, por exemplo, destruir dados sensíveis derivados da execução do contrato) e (iii) efeitos mandamentais (e.g. entrega de documento em posse de outra sociedade do grupo). Inclusive, pode-se, em sede de tutela cautelar, pleitear a abstenção de determinadas condutas em deferência à sentença arbitral estrangeira homologada (e.g. impedir que as demais empresas continuem utilizado marca cujo licenciamento foi desconstituído pela sentença arbitral estrangeira).

A teoria dos efeitos reflexos da coisa julgada é conhecida e aplicável no direito brasileiro. O fato é que a sentença não pode nem beneficiar nem prejudicar terceiros estranhos à lide, os quais não podem sofrer constrições patrimoniais decorrentes do cumprimento de sentença. Porém, é possível derivar dos efeitos da sentença arbitral estrangeira homologada no Brasil certos efeitos reflexos, alheios à responsabilidade patrimonial, cujos requisitos devem obedecer, estritamente, ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica em sede de execução. 

Esses efeitos, ditos indiretos ou anexos, podem atingir terceiros, independentemente da participação no procedimento arbitral. Por exemplo, pense-se em efeito restitutório decorrente da resolução contratual: se, em razão de um contrato, uma das partes entrega determinado objeto ao outro contratante e esse o repassa a outra sociedade do mesmo Grupo, caso o contrato seja resolvido, diante do efeito restitutório decorrente do efeito ex tunc da resolução, será possível proceder com a execução da obrigação de dar coisa certa, atualmente em posse de terceiro, mesmo que esse terceiro, integrante do mesmo grupo econômico, não tenha integrado a relação processual. 

A situação, contudo, pode ser mais tormentosa quando o objeto foi transmitido para terceiro de boa-fé. Nesse caso, são mais restritas as hipóteses de desconstituição do ato jurídico retransmissivo, a qual deve ser lastreada, possivelmente, no instituto da fraude contra credores ou eventual restituição de coisa alienada a non domino.

Nesse ponto, percebe-se que a fronteira dos efeitos da sentença arbitral estrangeira homologada perante terceiros não partícipes do procedimento arbitral são idênticos aos efeitos da coisa julgada produzida por sentença prolatada e transitada em julgado emanada do Poder Judiciário. No mesmo sentido, a extensão dos efeitos perante terceiros dependerá também da constituição de incidentes típicos da execução (e.g. reconhecimento de fraude contra credores, fraude à execução, desconsideração da personalidade jurídica, dentre outros), na mesma medida em que esses são admitidos no processo de cumprimento dos demais títulos executivos judiciais. 

E, assim sendo, também os efeitos de eventual tutela cautelar pleiteada ao longo da execução da sentença arbitral estrangeira homologada poderão atingir terceiros na mesma medida em que se admite essa modalidade de tutela na generalidade dos processos de execução. 

Conclui-se, portanto que: (i) as sociedades integrantes do mesmo grupo econômico, que não integraram a arbitragem, deverão ser consideradas terceiros; (ii) a sentença arbitral estrangeira homologada, ao adquirir no âmbito doméstico a qualidade de título executivo judicial, poderá produzir efeitos reflexos perante terceiros, na mesma medida em que a generalidade das sentenças judiciais também produzem; (iii) é possível, mediante institutos próprios do processo de execução, na medida em que reconhecidos na ordem jurídica que executa a sentença arbitral - como desconsideração da personalidade jurídica ou reconhecimento de fraude contra credores - atingir o patrimônio de terceiros, no limite em que tais institutos são reconhecidos e aplicados na generalidade dos processos de execução; (iv) não é admita a extensão automática dos efeitos da sentença perante terceiros, mesmo que esses sejam parte da cláusula compromissória, integrem o mesmo grupo econômico ou tenham participado da execução do contrato - na medida em que o Requerente não cumpriu o seu ônus processual de os integrar ao procedimento arbitral, na medida em que autorizado e reconhecido; e (v) a responsabilidade patrimonial, reconhecida pela sentença arbitral estrangeira homologada, é adstrita às partes do processo arbitral, podendo esse preceito ser mitigado precisamente nas hipóteses autorizadas pelo ordenamento jurídico na generalidade dos processos de execução. Não é factível esperar, por um atalho processual, proceder com a desconsideração da personalidade jurídica em face de outra sociedade do grupo, caso não estejam presentes os requisitos do art. 50 do CC em processo de execução de sentença arbitral estrangeira homologada, o qual não pode pode ser utilizado como mero sucedâneo ou tentativa de revisar a composição do polo passivo - que se estabiliza, na maioria dos regulamentos de instituições arbitrais, na ata de missão

Com base em tais premissas, é possível compatibilizar a eficiência da arbitragem com a autonomia privada e a relatividade do processo arbitral. 

José Antonio Fichtner
José Antonio Fichtner se destaca como advogado, escritor, mediador, árbitro e professor, sendo reconhecido e listado nas principais instituições jurídicas arbitrais brasileiras.

Rodrigo Salton
Mestrando em Direito Civil (UERJ). Bacharel em Direito pela UFRGS. Especialização em Direito Civil e Processo Civil na FMP. LLM em Advocacia Corporativa na FMP. Advogado. Sócio de Fichtner Advogados.

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