A judicialização em massa das relações de consumo no Brasil gerou um fenômeno paradoxal: se, por um lado, democratizou o acesso à Justiça, por outro, abriu espaço para distorções severas, muitas delas intencionalmente arquitetadas. No contexto do contencioso bancário, essa dinâmica tornou-se especialmente sensível. A repetição mecanizada de demandas, a apresentação de documentos suspeitos e a atuação por procurações viciadas tornaram-se práticas observadas com frequência. Mais do que simples infrações processuais ou desvios éticos, muitas dessas condutas revelam contornos criminais que não podem ser ignorados.
O Direito Penal, nesse contexto, emerge como ferramenta indispensável para a proteção da ordem jurídica e para a repressão a práticas que degradam o sistema de Justiça. A litigância abusiva, quando ultrapassa os limites da má-fé processual e passa a se sustentar em fraudes documentais, falsidade ideológica ou mesmo na fabricação deliberada de litígios, deixa de ser apenas um problema de ética ou de estratégia processual. Passa a configurar crime.
Assim, a judicialização em larga escala pode, por vezes, permitir que práticas abusivas se ocultem no volume excessivo de demandas. Nesse cenário, o papel técnico de quem atua no contencioso massivo torna-se crucial: é responsabilidade desses profissionais detectar padrões processuais anômalos, apurar inconsistências e identificar indícios de condutas que, além de violarem princípios processuais, possam configurar infrações penais, tudo isso com o devido rigor analítico, responsabilidade ética e precisão jurídica.
Nesse ponto, destaca-se a importância dos instrumentos jurídicos utilizados para o enfrentamento técnico dessas práticas, com especial ênfase na manifestação como peça estratégica. Longe de um modelo padronizado, trata-se de uma construção jurídica robusta, orientada por critérios objetivos e por uma leitura minuciosa dos autos, voltada à identificação de elementos concretos que indiquem fraudes processuais. Quando a gravidade dos fatos assim exige, a manifestação é acompanhada de pedidos de expedição de ofícios aos órgãos competentes, como o Ministério Público, a OAB - Ordem dos Advogados do Brasil e núcleos de monitoramento de demandas repetitivas como o Numopede.
Tais ofícios cumprem uma função essencialmente técnica e institucional. Não se trata de promover uma perseguição ou estabelecer uma guerra contra a advocacia, posição que inclusive, se rechaça veementemente. Ao contrário: é justamente por respeito à advocacia, à sua função constitucional e ao seu papel essencial à Justiça que o enfrentamento às práticas criminosas travestidas de exercício profissional precisa ser feito com responsabilidade, conhecimento jurídico e, sobretudo, distinção clara entre o litígio legítimo e a conduta dolosa.
O combate à litigância abusiva, portanto, não pode se limitar à esfera cível ou à responsabilidade ética. Quando as condutas assumem feição criminosa, a omissão compromete a própria integridade do sistema de Justiça. O Direito Penal deve ser acionado com cautela, sim, mas também com firmeza, especialmente por aqueles que, dentro do próprio contencioso massivo, atuam para preservar a higidez do processo e a credibilidade das instituições.
Mais do que um dever técnico, identificar e reagir a práticas criminosas é uma escolha por uma advocacia comprometida com sua função social. Combater a litigância abusiva sob o viés penal é, em essência, um ato de defesa da própria advocacia. É reafirmar que a atuação profissional legítima não pode ser confundida com práticas ardilosas que enfraquecem o Judiciário e comprometem a confiança social na Justiça. E é exatamente por acreditar na força transformadora de uma advocacia ética que esse enfrentamento se torna não apenas legítimo, mas necessário.