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Marcas: Tolerância e riscos

TJ/SP afasta cessação de uso de marca “Ponteio” em Recife, reconhecendo tolerância histórica, ausência de concorrência e prova insuficiente de confusão.

15/8/2025

1 - Introdução

Se no ambiente das relações sociais o ato de tolerar pode ser visto como sublime, altivo, um empenho de altruísmo dentro de uma realidade cosmopolita e plural1; no ambiente mercantil-jurídico o mesmo verbo poderá cristalizar uma situação contrária ao tolerante2.

Contemplando causas de pedir sobre concorrência desleal e violação à titularidade de direito de marcas, no ocaso de maio de 2025, o TJ/SP julgou um litígio entre pessoas jurídicas que exercem a mercancia de churrascarias, uma no Pernambuco e outra em São Paulo3. O cerne da questão era bem delimitado: o titular paulista das marcas (nominativas e mistas) PONTEIO e PONTEIO CHURRASCARIA intentou pretensão de cessação de uso - bem como de compensação - contra sujeito de direito diverso, que faria uso da mesma expressão PONTEIO para o mesmo ramo de atuação, porém em Recife.

Por unanimidade, o órgão colegiado do TJ/SP manteve o entendimento da sentença que julgou improcedentes os pedidos do autor/titular das marcas, sob o fundamento de que o réu/não-titular estava na utência dos sinais distintivos há mais de um quarto de século. O presente artigo, então, tangencia as três questões-cernes dirimidas no acórdão: (a) o debate sobre concorrência efetiva, (b) a tolerância no convívio de marcas idênticas, e (c) a prova da confusão pela clientela.

2 - A causa de pedir sobre concorrência desleal4

A causa de pedir sobre concorrência desleal teve sua incidência corretamente afastada, pois o requisito territorial/geográfico não se fez presente5. Enquanto o autor/apelante explora suas atividades, exclusivamente, no Estado de São Paulo; o réu/apelado exerce sua função social da empresa, apenas, no Estado de Pernambuco. Tendo-se em vista que o ambiente de restaurantes tem sua incidência limitada aos clientes e fregueses que comparecem em sua sede, ou fazem consumo via entrega em domicílio, a distância de milhares de quilômetros6 inviabiliza qualquer hipótese sobre desvio de clientela.

Ou seja, nem mesmo haveria a potencialidade da atuação legítima de um sujeito representar risco ao fluxo da clientela do segundo, inexistindo concorrência e, assim, sendo irrelevante a discussão sobre deslealdade. Esta é uma temática que tem sido dirimida, de igual modo, pelo STJ7.

3 - A causa de pedir sobre violação de marcas

Ao contrário do que ocorre na proteção contra atos de concorrência desleal, não é imperativo que o titular de marca exerça sua atuação no mesmo município que o do suposto contrafator. Tendo em vista que o título proprietário gera a eficácia real no território nacional (art. 129 do CPI/1996), basta que o ato tido como ilícito ocorra no Brasil.

No caso, há a superposição geográfica dos títulos com o território em que o réu atua, mas ainda assim compreendeu-se não haver pretensão ao titular. O argumento acolhido pela Câmara foi no sentido de que o lapso temporal da coexistência era tão grande, que a coerção tardia do titular importaria na violação da boa-fé objetiva, pela figura parcelar da suppressio8.

Uma das réguas para mensurar a cronologia da pretensão é dada pelo CPI/1996, já que o art. 225 impõe o limite de cinco anos quanto aos pleitos reparatórios. Este tipo legal, entretanto, não cuida - especificamente - sobre o pleito de cessação da utência, razão pela qual há entendimento do STJ sobre ilícitos continuados9, e a manutenção da pretensão do titular.

No entanto, não foi a mera passagem dos vinte e cinco anos que fizeram o colegiado afastar a pretensão autoral, mas sim a cumulação entre a inércia, o tempo e a consolidação da situação jurídica subjetiva do não-titular. Ou seja, diferentemente do caso da prescrição em que o termo atua ex re; para ser favorecido pela surrectio, outros elementos devem se fazer presentes10. Um de tais elementos é a tolerância da alegada vítima, além da boa-fé objetiva do sujeito tido como ofensor.

4 - A prova sobre a confusão consumerista

Na petição inicial a autora/titular de marcas colacionou como prova do dano sofrido uma avaliação de um consumidor da ré/não-titular em um sítio virtual denominado “Reclame Aqui”. Com o descritivo título “Salada Estragada, carne crua e suco fraco”, a autora fora destinatária de uma crítica dura de uma experiência proporcionada pela ré11.

Ainda que tal prova reforce a situação descrita pela proprietária das marcas, o colegiado compreendeu que o documento seria insuficiente para superar as questões do distanciamento físico, da ausência de concorrência e da suppressio pela longa convivência entre as partes.

5 - Conclusão

Das três questões dirimidas pelo julgado, a menos polêmica é a do cerne concorrencial. Além dos elementos (pluralidade subjetiva, contexto patrimonial e disputa) e fatores (qualidade e preço), é preciso que todos os requisitos da competição se façam presentes (sincronia, identidade objetiva/afinidade e território). Não há o encaixe geográfico das atuações das partes, de modo que inexiste concorrência.

Quanto à noção da tolerância estendida no tempo, o julgado é feliz ao reconhecer que a tutela nacional da marca registrada coincide com um dever de vigilância correlato. Não pode o proprietário se descurar daquilo que ocorre em qualquer outra região do país, até pelo fato de que a função social pode ser exercida, concomitantemente, por um outro agente econômico. Tal é uma das características dos bens de produção imateriais: a ausência de uma escassez natural e a fragilidade com que o exclusivista se encontra pela composse de terceiros.

Por fim, questão mais polêmica é pertinente à valoração de um ato confusório. Quantas incidências do ato de tomar “gato por lebre” são necessárias para que o dano injusto seja percebido? No caso concreto, o caso-isolado foi tido como insuficiente perante os demais argumentos jurídicos que prevaleceram no sentido da continuidade do convívio das partes. No entanto, as noções de força probatória12 - em matéria de confusão e associação de signos distintivos - merecem mais estudos por parte dos amantes do direito adjetivo e material dos bens intelectuais.

_______

Por isso, a democracia da possibilidade e da busca, a democracia crítica, deve mobilizar-se contra quem recusa o diálogo, nega a tolerância, busca somente o poder, crê ter sempre razão. A mansidão - como atitude do espírito aberto ao discurso comum, que não pretende impor-se, mas sim convencer e estar disposto a ser convencido - é com certeza a virtude cardeal da democracia crítica. Mas somente o filho de Deus pôde ser manso como o cordeiro mudo. Na política, a mansidão, para não parecer imbecilidade, deve ser uma virtude recíproca. Se assim não for, a certa altura, "antes do fim", é preciso quebrar o silêncio e agir para não tolerar mais” ZAGREBELSKY, Gustavo. A crucificação e a democracia. São Paulo: Editora Saraiva, 2011, p. 152.

ASCARELLI, Tullio. Teoria della concorrenza e dei Beni immateriali. 3ª Edição, Milão: Editore Dott A. Giuffré, 1960, p. 406.

3 TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Des. Carlos Alberto de Salles, AC 1080725-47.2023.8.26.0100, J. 28.05.2025.

BENTLEY, Lionel and SHERMAN Brad. Intellectual Property Law. 3ª Edição, New York: Oxford University Press, 2009, p. 778.

5 BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de Concorrência Desleal. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024, p. 62 e seguintes.

Voto do Relator: “deve também ser considerado o fator espacial, ou seja, a distância entre os estabelecimentos, com a autora atuando em São Paulo e a requerida atuando em Recife. A distância entre os estabelecimentos torna muito difícil a possibilidade de confusão entre clientela".

7 STJ, 4ª Turma, Min Raul Araújo, AREsp 1.303.548/RN, DJ 06.03.2024.

Voto do Relator: "Restou incontroverso que a requerida utiliza o mesmo nome da autora por mais de duas décadas, sem quaisquer objeções ao longo desse período. A pretensão de abstenção de uso da marca, após 25 anos de coexistência pacífica, frusta (sic) legítimas expectativas e contraria a boa fé objetiva, permitindo-se a aplicação do instituto jurídico da suppressio".

Mutatis mutandi: "RELAÇÃO DE TRATO CONTINUADO. PRETENSÃO INIBITÓRIA. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. DANO RENOVADO E CONTINUADO. AGRAVO INTERNO PROVIDO. 1. A utilização indevida de conjunto-imagem (trade dress), com embalagens semelhantes para produtos que exploram a mesma atividade econômica, configura ilícito continuado, que se renova periodicamente. 2. A prescrição, tanto para a tutela reparatória quanto para a inibitória, afeta apenas o período antecedente ao marco temporal prescricional, mas não as ocorrências registradas em período mais recente e, portanto, não alcançado pelo lapso prescricional. 3. A prescrição não tem o condão de tornar lícita uma atuação, que se repete no trato continuado, a qual a lei repudia" STJ, 4ª Turma, Min. Raul Araújo, AgInt no AREsp 2.107.167/SP, DJ 26.05.2023.

10 BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Direito Civil da Propriedade Intelectual. 4ª Edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 223 e seguintes.

11 Voto do Relator: "A possível confusão feita por uma cliente, indicada pela autora às ps. 70/71, deve ser entendida como uma situação muito excepcional que não seria capaz de representar um efetivo cenário mais amplo de confusão de marcas ou de risco aos consumidores. Foi um caso isolado que não justificaria uma medida mais drástica, como a abstenção de uso de marca pela requerida. Considerando-se a dimensão continental de um país como o Brasil e a distância entre os estabelecimentos, descarta-se a configuração de relevante grau de confusão entre os consumidores, bem como a hipótese de qualquer prejuízo ao titular da marca".

12 Isso implica que, em toda e qualquer circunstância em que é necessário estabelecer se um enunciado é de fato verdadeiro ou falso, deve-se, de qualquer modo, fundar nas provas, e não em um juízo de verossimilhança: somente as provas podem demonstrar se aquilo que parece verossímil é também verdadeiro, ou se é falso, bem como se aquilo que parece inverossímil é-também falso, ou se é verdadeiro” TARUFFO, Michele. Uma simples verdade. O Juiz e a Construção dos Fatos. Tradução: Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 112.

Pedro Marcos Nunes Barbosa
Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Cursou seu Estágio Pós-Doutoral junto ao Departamento de Direito Civil da USP. Doutor em Direito Comercial pela USP, Mestre em Direito Civil pela UERJ e Especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio.

Bernardo Guitton Brauer
Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Doutorando e Mestre em Direito pela USP. LLM pela Queen Mary University. Bacharel em Direito pela UFRJ.

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