As regras de direito processual civil escolhidas pelo povo brasileiro
O projeto de um novo CPC, apresentado em 2010 pela Comissão de Juristas presidida pelo ministro Luiz Fux, nasceu sob a promessa de tornar o processo civil brasileiro mais próximo dos ideais da Constituição de 1988. Isso significa que o Código Buzaid, promulgado durante a ditadura militar, já não nos servia mais. Era um código excessivamente voltado à forma e não ao direito material, criando barreiras para o cidadão acessar a justiça.
A nova Constituição universalizou a garantia da inafastabilidade da jurisdição e a transformou num pilar democrático do processo civil.
O próprio texto de apresentação do anteprojeto do atual CPC revela que os pilares da reforma buscaram resgatar a confiança do povo no Poder Judiciário, ouvir a sociedade e a comunidade jurídica para a criação das novas regras processuais e tornar o processo mais célere.
Foram mais de 260 audiências públicas em todas as regiões do país, com participação de magistrados, advogados, acadêmicos e sociedade civil organizada, além de centenas de proposições formalmente incorporadas ao texto.
É possível notar com clareza, na prestigiosa exposição de motivos assinada por nomes como Teresa Arruda Alvim Wambier, Humberto Theodoro Junior e José Roberto dos Santos Bedaque, o tom de superação da herança burocrática do CPC/1973 e a nítida ideia de garantir o devido processo legal, tudo conforme “as aspirações das ruas”.
Contudo, passados apenas dez anos da entrada em vigor do CPC/15, o que vemos é que a promessa, sacramentada em uma lei ordinária, está sendo gradativamente superada por uma jurisprudência imposta pelos tribunais - e não por escolha do povo brasileiro.
Um dos símbolos marcantes dessa involução reside na decisão monocrática do desembargador relator na direção do processo nos tribunais, regulada no art. 932 do Novo CPC.
Com fundamento em jurisprudência formada a partir da vontade exclusiva de ministros do STJ e desembargadores dos Tribunais Estaduais e Federais, o Poder Judiciário vem desrespeitando a escolha expressa feita pelo povo brasileiro, por meio de seus representantes eleitos, de preservar a colegialidade como regra e limitar o julgamento singular a situações excepcionais nos recursos e ações originárias dos tribunais.
As decisões monocráticas, que o legislador restringiu de maneira claramente taxativa, voltaram a ser proferidas com fundamento em conceitos indeterminados, como a chamada “jurisprudência dominante”, não elencada no art. 932 do CPC de 2015.
Trata-se de movimento silencioso, mas de inegável caráter autoritário, que corrói garantias processuais fundamentais e compromete a essência democrática do processo civil.
O discreto retorno do art. 557 do CPC/1973
O ponto central desta análise é mostrar como a jurisprudência atual, ao admitir decisões monocráticas com base em “jurisprudência dominante”, acaba por restaurar, por decisão exclusiva da magistratura brasileira, um regime que a lei revogou expressamente em 2015, por meio de representantes eleitos pelo povo, o único detentor do poder na nossa República.
Argumentam, as decisões monocráticas, que a usurpação de competência dos órgãos colegiados fica superada com a reapreciação do recurso pelo órgão colegiado mediante agravo interno. Entretanto, a realidade mostra que em um Judiciário sobrecarregado devido ao reduzido efetivo para dar conta da demanda brasileira, a tendência dos órgãos colegiados é acompanhar o voto do relator. Além disso, não se pode ignorar o efeito inibidor do art. 1.021, § 4º do CPC/15, que prevê a possibilidade de aplicação de multa de até 5% do valor da causa quando o agravo interno for considerado manifestamente inadmissível ou improcedente em votação unânime.
Essa regra, embora tenha sido pensada para coibir recursos protelatórios, na prática intimida o jurisdicionado de recorrer, sobretudo aquele que não dispõe de recursos financeiros para suportar eventual penalidade.
No CPC/1973, especialmente após a reforma da lei 9.756/1998, o art. 557 autorizava o relator a negar seguimento ao recurso que considerasse “manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou jurisprudência dominante do STF, do STJ ou do próprio tribunal”.
O art. dava ao poder judiciário, na pessoa do relator do processo no tribunal, a autoridade de dizer que o pedido, de uma das partes, era manifestamente improcedente, barrando a apreciação colegiada sob o argumento de que a matéria já estaria pacificada, apesar de não ser objeto de súmula do próprio tribunal ou de tribunal superior.
O CPC/15, contudo, promoveu uma (r)evolução a favor das partes processuais - que não se pode dizer inconsciente, diante da altíssima participação da sociedade na elaboração do anteprojeto do novo código. O art. 932, IV, eliminou a permissão de decisão monocrática fundada em “jurisprudência dominante” e restringiu o julgamento monocrático a hipóteses taxativas, elencando-as em alíneas expressas, aumentando as possibilidades para decisão monocrática de acordo com jurisprudência sedimentada, agora não só em súmulas, mas também em acórdãos de recursos repetitivos, de IRDR e IAC - a nossa commom law brasileira, bastante interessante para grandes instituições e partes processuais que possuem força jurídica substancial para manejar os rumos dos entendimentos jurisprudenciais.
A inexistência de espaço para decisões monocráticas não amparadas pelo art. 932 do Novo CPC
A propósito da impossibilidade da repristinação jurisprudencial, temos em vigor uma lei complementar que regula expressamente a utilização das alíneas nos textos de leis como dispositivo que discrimina o conteúdo legal previsto na norma enunciada no caput do art. (LC 95/98, art. 11, III). A propósito, também, a mesma lei prevê que as disposições normativas devem ser redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, articular a linguagem de modo a ensejar perfeita compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma, bem como evitar o emprego de expressão ou palavra que confira duplo sentido ao texto. E assim foi devidamente redigido o art. objeto da presente análise, como se vê:
“O art. 932 do Novo CPC é firme ao determinar que “Incumbe ao relator”, dentre outras responsabilidades:
IV - negar provimento a recurso que for contrário a:
a) súmula do STF, do STJ ou do próprio tribunal;
b) acórdão proferido pelo STFou pelo STJ em julgamento de recursos repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
V - depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a decisão recorrida for contrária a:
a) súmula do STF, do STJ ou do próprio tribunal;
b) acórdão proferido pelo STF ou pelo STJ em julgamento de recursos repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;”
Do ponto de vista de qualquer estudante de direito, do iniciante ao veterano, as disposições normativas do art. 932 do CPC foram redigidas com clareza e precisão, evidenciando com clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretendeu, sem que tenha sido empregada qualquer expressão ou palavra com duplo sentido que pudesse autorizar a decisão monocrática baseada em “jurisprudência dominante”, ou pacificada, ou qualquer opção que não seja uma das previstas nos incisos e alíneas do mencionado dispositivo.
O que quero dizer, com o presente ensaio, é que a mensagem do legislador de 2015 foi clara no art. 932, que substituiu o antigo 557, e a colegialidade é a regra para os processos nos tribunais, não havendo espaço para decisão monocrática por analogia, em detrimento do direito da parte processual.
A intenção do projeto, transformado em lei após ampla participação da sociedade em audiências públicas realizadas nas cinco regiões do país, foi de garantir celeridade processual, sim, mas em absoluta harmonia com as garantias constitucionais, dentre as quais a colegialidade,
Entretanto, o que estamos testemunhando na prática é uma volta ao passado. Iniciando-se no STJ e sendo adotado pelos demais tribunais pátrios, o modelo de julgamento monocrático fundamentado em “jurisprudência dominante” têm sido utilizado sob a justificativa de autorização implícita do art. 932, incisos IV e V do CPC.
Em termos práticos e sinceros, essa prática equivale a reabrir a porta fechada pelo povo brasileiro, através do legislador de 2015, restaurando a permissão superada do art. 557 do CPC/1973.
Trata-se de verdadeira contramarcha democrática e que prejudica principalmente o cidadão comum, a parte processual que luta contra a nova commom law brasileira, sem o aparato do qual dispõem as grandes corporações e os grandes litigantes na condução da jurisprudência brasileira.
A corda que sempre se rompe do lado mais fraco
Não se pode negar que há um prejuízo à parte processual com a dinâmica autônoma que se instalou nos tribunais para decisões monocráticas terminativas baseadas em jurisprudência dominante. O direito ao julgamento colegiado, supostamente garantido pelo agravo interno, revoga o que o anteprojeto do Novo CPC pretendeu eliminando recursos desnecessários e remete a apreciação do recurso a um colegiado já contaminado por uma tendência de acompanhar o relator, já que sempre é mais fácil manter o status quo, em detrimento de uma análise profunda e crítica pelos gabinetes congestionados com ações judiciais garantidas pela Constituição Federal.
Se é verdade que o Judiciário precisa de eficiência para dar conta da demanda gigantesca de um país de 210 milhões de habitantes, também é verdade que não pode fazê-lo à custa dos direitos. A Constituição de 1988 foi desenhada para proteger o cidadão contra arbitrariedades, e não para ser flexibilizada em nome da estatística. A solução, portanto, deveria ser expandir a capacidade de produção do Judiciário, e não superar garantias arduamente conquistadas.
A colegialidade não é um luxo prescindível, mas verdadeira escolha do povo através de trabalho árduo da comissão de juristas, nomeada pelo Senado Federal para estudar e elaborar o anteprojeto do Novo CPC.
Cada decisão monocrática, que resgata a autorização do superado CPC/1973 é mais que uma sentença, é um verdadeiro desrespeito à comissão de juristas que construiu o anteprojeto de maneira profunda e democrática, à autoridade do Congresso Nacional, que o aprovou após análise cuidadosa e, sobretudo, ao povo brasileiro, verdadeiro titular do poder constituinte.
“O que todos devemos querer é que a prestação jurisdicional venha ser melhor do que é. Se para torná-la melhor é preciso acelerá-la, muito bem: não, contudo, a qualquer preço”. (José Carlos Barbosa Moreira, citado na exposição de motivos do anteprojeto do Novo CPC).
_______
COMISSÃO DE JURISTAS RESPONSÁVEL PELA ELABORAÇÃO DO ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2010. 268 p. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496296/000895477.pdf