Introdução
O processo eleitoral brasileiro, alicerçado no sistema proporcional de representação, busca assegurar que a vontade popular se traduza de forma legítima na composição dos parlamentos. Nesse contexto, o TSE, visando coibir práticas fraudulentas e garantir a efetividade das normas relativas à cota de gênero, editou a súmula 73, segundo a qual, reconhecida a fraude em candidaturas fictícias, os votos atribuídos ao partido ou coligação devem ser anulados, com consequente retotalização do pleito.
A intenção subjacente à súmula é nobre: preservar a integridade do processo democrático e desencorajar partidos de lançarem candidaturas meramente formais, destinadas a preencher exigências legais sem efetiva disputa. Contudo, a aplicação prática da norma tem revelado distorções significativas, com efeitos colaterais que extrapolam o combate à fraude. Em diversos casos, candidatos regularmente eleitos, sem qualquer participação ou vínculo com o ilícito, têm perdido seus mandatos em decorrência da retotalização dos votos. Tal fenômeno afeta não apenas parlamentares de outros partidos, alheios à fraude, mas também os próprios eleitores, cujos votos são desconsiderados, configurando uma forma de “pena coletiva” no âmbito eleitoral.
Casos recentes ilustram com clareza essas consequências. Nas eleições de 2022 para a ALESP - Assembleia Legislativa de São Paulo, a cassação dos votos de partidos acusados de fraude (PTB1 e PROS2) levou, na retotalização, à perda do mandato do deputado estadual Simão Pedro (PT), que não possuía qualquer ligação com as legendas sancionadas. Situação semelhante ocorreu nas eleições municipais de 2024, na cidade de Monte Mor/SP3, onde a anulação de apenas 487 votos do partido Solidariedade resultará na perda da cadeira de uma vereadora eleita - mulher, com 556 votos válidos por outro partido - para dar lugar a um homem. Nesse último caso, o paradoxo se agrava pelo fato de que um dos partidos beneficiados pela retotalização estava coligado majoritariamente com o partido fraudador, além da desistência dos próprios envolvidos em recorrer da decisão, evidenciando a fragilidade do modelo atual.
Essa realidade revela um efeito perverso da súmula 73, que aqui denominamos de “fraude da fraude”: na tentativa de coibir práticas fraudulentas, o sistema eleitoral acaba por gerar novas injustiças, desrespeitando a soberania popular e distorcendo a representatividade democrática. A problemática que se coloca é se a punição deve atingir exclusivamente o partido fraudador e seus candidatos, ou se é admissível que inocentes - candidatos e eleitores - sejam igualmente prejudicados.
O presente artigo tem por objetivo analisar criticamente a aplicação da súmula 73 do TSE à luz do princípio democrático e da soberania popular, destacando seus impactos no processo eleitoral brasileiro. Busca-se, ainda, apresentar uma proposta de modulação de efeitos: a cassação do DRAP - Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários e dos candidatos vinculados ao partido fraudador, mas com preservação dos votos para efeito de cálculo da proporcionalidade. Tal medida permitiria punir efetivamente a fraude sem desconsiderar a vontade legítima do eleitorado, conciliando o combate à corrupção eleitoral com a preservação da democracia representativa.
1. A súmula 73 do TSE: Gênese e interpretação
A democracia, enquanto forma de governo, constitui-se no poder emanado do povo, que exerce sua soberania tanto de maneira direta quanto indireta. No modelo brasileiro, estabelecido pela Constituição Federal de 1988, o sufrágio universal e o voto direto, secreto e periódico são as principais formas de manifestação dessa soberania (art. 14, CF/88).
O processo eleitoral, nesse contexto, revela-se como instrumento essencial de legitimação do poder político. A legitimidade democrática decorre não apenas da realização periódica das eleições, mas, sobretudo, da regularidade e da transparência do processo eleitoral, sem as quais o voto perde sua eficácia como expressão da vontade popular.
As eleições proporcionais, adotadas no Brasil para a escolha de vereadores e deputados, têm como fundamento o princípio da representação proporcional, cujo objetivo é assegurar que diferentes correntes ideológicas estejam representadas nos parlamentos. Essa lógica busca equilibrar a diversidade política e impedir a formação de maiorias artificiais.
Entretanto, a própria complexidade do sistema proporcional abre espaço para fraudes eleitorais. A chamada fraude à cota de gênero, por exemplo, ocorre quando partidos ou coligações inscrevem candidaturas fictícias ou sem viabilidade real apenas para atender ao mínimo legal de 30% (art. 10, §3º, da lei 9.504/1997). Esse tipo de conduta, segundo o TSE, atenta diretamente contra a normalidade e a legitimidade das eleições, ensejando a cassação do DRAP - Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários.
Sob a ótica do Estado Democrático de Direito, a fraude eleitoral possui dupla dimensão: de um lado, afronta a isonomia entre candidatos e partidos; de outro, viola o direito fundamental dos eleitores à escolha livre e autêntica de seus representantes.
Assim, o referencial teórico que embasa este estudo parte da premissa de que a legitimidade democrática não decorre apenas do número de votos recebidos, mas também da integridade do processo eleitoral. A análise crítica que se seguirá buscará justamente confrontar essa premissa com as consequências jurídicas da cassação do DRAP por fraude, especialmente nas eleições proporcionais.
2. A cassação do DRAP e a problemática dos votos de legenda
O DRAP - Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários constitui requisito essencial para a participação de partidos políticos e federações no processo eleitoral. Trata-se de um registro formal em que a agremiação comprova a observância das condições legais e estatutárias para lançar candidatos, incluindo a realização válida da convenção partidária, o cumprimento da cota de gênero e a regularidade estatutária perante a Justiça Eleitoral.
A jurisprudência do TSE é firme no sentido de que a improcedência ou cassação do DRAP acarreta a nulidade de todos os pedidos de registro dele decorrentes, inviabilizando a participação do partido no pleito. Em outras palavras, sem DRAP válido, inexiste candidatura legítima, seja individual ou coletiva. Nesse contexto, os votos atribuídos aos candidatos vinculados a esse DRAP são considerados nulos.
Surge, porém, a controvérsia quanto ao destino dos votos de legenda. Diferentemente do voto nominal, que se destina a um candidato específico, o voto de legenda representa apoio direto ao partido ou federação, constituindo mecanismo de fortalecimento das siglas no sistema proporcional. Assim, a questão que se coloca é: se o DRAP é cassado, o que ocorre com os votos atribuídos diretamente à legenda?
A resposta não é simples. Em tese, poder-se-ia sustentar que os votos de legenda possuem natureza autônoma, já que não dependem da regularidade de candidaturas específicas, mas apenas da existência da agremiação. Sob esse prisma, sua anulação violaria o princípio da soberania popular, previsto no art. 14 da Constituição Federal, ao inutilizar manifestação legítima do eleitorado.
Todavia, a jurisprudência dominante do TSE entende que a cassação do DRAP contamina todos os votos, inclusive os de legenda, justamente porque, com a declaração de nulidade do demonstrativo, o partido ou federação deixa de existir como competidor legítimo no pleito. Nesse raciocínio, não haveria como aproveitar votos dirigidos a uma entidade cuja participação foi juridicamente invalidada.
Esse posicionamento, entretanto, gera efeitos práticos delicados, sobretudo no contexto das federações partidárias. Imagine-se, por exemplo, a hipótese em que o DRAP da federação seja cassado por vícios na convenção de um dos partidos que a compõem. O resultado é a exclusão de toda a federação do pleito, ainda que os demais partidos tenham cumprido regularmente suas obrigações. Nessa situação, os votos de legenda, que poderiam ter expressão significativa no cálculo do quociente eleitoral, acabam sendo anulados, em prejuízo da vontade de milhares de eleitores.
Trata-se, portanto, de matéria que desafia reflexão mais aprofundada: até que ponto é legítimo estender os efeitos da cassação do DRAP aos votos de legenda, sem que isso configure afronta ao princípio democrático? A questão revela uma tensão entre dois valores constitucionais relevantes: de um lado, a legalidade e a regularidade do processo eleitoral; de outro, a efetividade da soberania popular expressa nas urnas.
3. Estudos de caso: aplicação da Súmula 73 e efeitos sistêmicos da retotalização
3.1. A retotalização na ALESP (Eleições 2022): Entre a repressão à fraude e a “cassação reflexa” de terceiros
Em 12 de novembro de 2024, o TRE/SP realizou nova totalização dos votos para deputado estadual nas eleições de 2022, após o trânsito em julgado de AIJEs - Ações de Investigação Judicial Eleitoral que reconheceram fraude à cota de gênero nas candidaturas do antigo PTB e do PROS. Como consequência, foram cassados os respectivos DRAPs, anulados os votos das agremiações e recalculados os quocientes eleitoral e partidário. A medida alterou a composição de eleitos e suplentes: Camila Godoi (PSB) assumiu como deputada, enquanto Simão Pedro (PT) passou à condição de suplente4.
O episódio teve novos desdobramentos em 2025. Em 3 de julho, por maioria (5×1), o TRE/SP rejeitou ação de querela nullitatis ajuizada por Simão Pedro com o objetivo de suspender os efeitos da retotalização, consolidando, assim, a posse de Camila Godoi.5
O caso é paradigmático porque concretiza, em escala estadual, todos os comandos da súmula 73 do TSE: (a) cassação do DRAP; (b) cassação dos diplomas dos candidatos a ele vinculados, independentemente de participação, ciência ou anuência; e (c) nulidade dos votos do partido fraudador, com consequente retotalização. A conjugação desses efeitos - especialmente a relação entre os itens (a) e (c) - desencadeia o fenômeno que aqui denominamos “cassação reflexa de terceiros”: mandatários de partidos incólumes à fraude perdem seus mandatos unicamente em razão da alteração aritmética no sistema proporcional, sem qualquer conduta ilícita de sua parte.
O debate público que se seguiu à decisão reforça a percepção social de “injustiça distributiva”6, na medida em que uma fraude localizada (no DRAP de dois partidos que sequer elegeram deputados) irradia efeitos estruturais sobre a representação de legendas distintas e sobre a vontade de seus eleitores, sem atribuição de culpa aos atingidos.
3.2. Monte Mor (Eleições 2024): Impactos municipais e a prática da “fraude da fraude”
No âmbito municipal, a mesma dinâmica se reproduz. Em maio de 2025, o TRE/SP - por unanimidade - confirmou decisão da 358ª Zona Eleitoral que reconheceu fraude à cota de gênero no partido Solidariedade (Monte Mor)7. Foram declaradas inelegíveis uma candidata e a presidente municipal da legenda pelo prazo de oito anos, além de cassado o DRAP, anulados os votos do partido e determinada a retotalização das cadeiras na Câmara de Vereadores. Embora nenhum candidato do Solidariedade tenha sido eleito, a exclusão de seus votos obrigou novo cálculo dos quocientes, com impacto direto na distribuição de vagas entre partidos diversos.
Segundo os elementos processuais reunidos pelo autor deste trabalho, que atua na causa local, a retotalização deverá retirar o mandato de uma vereadora eleita por outro partido - que obteve votação superior - em razão da anulação de apenas 487 votos destinados ao Solidariedade. Em contrapartida, uma agremiação não sancionada (e que teria integrado coligação majoritária com o partido fraudador) seria beneficiada com a obtenção de uma cadeira. Trata-se do que vem sendo denunciado pelos patronos da defesa como “fraude da fraude”: uma primeira fraude (à cota de gênero) seguida de um efeito corretivo que, paradoxalmente, premia politicamente o grupo associado ao partido irregular ou pune terceiros estranhos ao ilícito.
Do ponto de vista normativo, o caso de Monte Mor explicita a tensão central discutida neste artigo: embora a súmula 73 persiga a legítima finalidade de proteger a paridade de gênero e a lisura do pleito, o modelo sancionatório-aritmético que ela cristaliza - cassação do DRAP, nulidade de votos e retotalização - produz externalidades democráticas severas quando alcança mandatos de pessoas que não participaram da fraude. O resultado não constitui mera “correção” técnica, mas uma redistribuição de poder entre partidos, frequentemente com assimetrias politicamente sensíveis, como a retirada da cadeira de uma mulher eleita por legenda diversa. Tal quadro evidencia a necessidade de calibragem institucional.
3.3. Lições extraídas
Situações semelhantes às descritas possivelmente ocorrem em diversas regiões do país, afetando candidatas e candidatos que, em razão da retotalização de votos, perdem seus mandatos em decorrência de fraudes praticadas por outras legendas.
Esse cenário levou o STF, na ação cautelar antecedente 60/AP (TPA 60 AP), de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, a deferir tutela de urgência para suspender a anulação de votos e o recálculo dos quocientes eleitoral e partidário determinados pelo TSE. O fundamento central foi a possibilidade de que a retotalização afetasse direitos de terceiros diplomados regularmente, sem qualquer vínculo com a fraude reconhecida.
Diante desse panorama, é possível extrair ao menos três lições:
- A suficiência probatória típica da súmula 73 - caracterizada por votação zerada ou inexpressiva, ausência de movimentação financeira e inexistência de atos de campanha - tem sido reconhecida pelos TREs e pelo TSE, permitindo respostas céleres contra candidaturas fictícias.
- A solução aritmética atualmente adotada - anulação dos votos do partido fraudador e recálculo dos quocientes - extrapola os limites da responsabilidade individual, podendo resultar em cassação reflexa de terceiros, como nos casos da ALESP e, em tese, de Monte Mor.
- O debate constitucional sobre a matéria já alcançou as Cortes Superiores, como revelam as discussões no STF acerca das retotalizações em São Paulo8 e no Amapá. Esse movimento evidencia a necessidade de modulação de efeitos capaz de compatibilizar o combate à fraude com a preservação da representação legítima dos eleitores de partidos inocentes.
4. Proposta de modulação da súmula 73 do TSE
A aplicação da súmula 73 do TSE tem suscitado intensos debates acerca dos limites da responsabilização nos casos de fraude à cota de gênero e dos reflexos da cassação dos registros de candidatura. Como demonstrado nos capítulos anteriores, a jurisprudência consolidada estabelece que, configurada a fraude, impõe-se a cassação do DRAP - Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários e, por consequência, dos registros de todos os candidatos a ele vinculados, independentemente de prova de participação individual no ilícito.
Ainda que tal orientação busque assegurar a efetividade das normas de igualdade de gênero e coibir práticas de manipulação do processo eleitoral, observa-se que, em múltiplos cenários, a medida tem gerado efeitos colaterais de grande impacto, atingindo candidatos eleitos e partidos alheios à fraude. Surge, assim, a necessidade de discutir uma modulação jurisprudencial que concilie dois objetivos constitucionais: de um lado, a repressão firme às práticas fraudulentas; de outro, a preservação da vontade popular manifestada nas urnas.
A proposta de modulação parte da premissa de que a fraude à cota de gênero compromete a higidez do processo eleitoral e deve acarretar a cassação do DRAP e a perda dos mandatos obtidos pelo partido fraudador. Todavia, entende-se que a solução mais consentânea com a Constituição e com a legislação eleitoral seria a seguinte: cassado o DRAP da agremiação, extinguem-se os mandatos de seus eleitos, mas preservam-se os votos recebidos pela legenda, em conformidade com o art. 175, § 4º, do Código Eleitoral.
Nessa perspectiva, a consequência prática se aproximaria da desconstituição de diploma decorrente de inelegibilidade superveniente: ainda que o candidato perca o mandato, os votos por ele obtidos permanecem válidos para a legenda. Essa solução apresenta três vantagens: (a) pune-se a agremiação infratora, que perde todos os seus mandatos; (b) aproveitam-se os votos válidos legitimamente depositados; e (c) evita-se que partidos estranhos à fraude sejam indevidamente beneficiados ou prejudicados por redistribuições aritméticas.
Em termos operacionais, não haveria “retotalização” geral dos votos, mas apenas redistribuição das cadeiras, aplicável exclusivamente nos casos em que o partido fraudador tivesse obtido representação parlamentar. Trata-se, portanto, de interpretação sistemática e analógica do art. 175, § 4º, do Código Eleitoral, que já consagra a proteção ao voto dado de boa-fé e ao partido regularmente registrado.
Tal proposta encontra respaldo também no § 2º do art. 34, combinado com o § 2º do art. 20, ambos da resolução TSE 23.677/21, que determina a consideração, para fins de cálculo dos quocientes, dos votos atribuídos a candidatos que, no dia da eleição, encontravam-se em situação regular, ainda que posteriormente tenham tido o registro indeferido, cancelado ou o diploma desconstituído em sede de RCED - Recurso Contra Expedição de Diploma.
Situação análoga ocorre, ademais, quando um partido participa de federação: mesmo sem candidatos registrados isoladamente, seus votos são computados, reforçando a centralidade da legenda na lógica representativa. Do mesmo modo, o § 2º do art. 59 da lei 9.504/1997 prevê que, ainda que o eleitor insira incorretamente o número do candidato, o voto é validado se o identificador do partido estiver correto. Tais hipóteses revelam que a lógica do sistema eleitoral brasileiro privilegia a preservação do voto válido e a proteção da intenção do eleitor.
Dessa forma, a proposta de modulação aqui delineada se ancora em três pilares fundamentais:
- Respeito à soberania popular - os votos atribuídos ao partido refletem a confiança do eleitorado na legenda e não devem ser anulados integralmente em razão da conduta fraudulenta de alguns dirigentes ou candidatos.
- Responsabilização proporcional - a cassação dos mandatos obtidos pelo partido fraudador cumpre a função sancionatória, sem, contudo, acarretar prejuízo à totalidade do eleitorado que depositou confiança legítima na sigla.
- Proteção à integridade do sistema eleitoral - ao preservar os votos para a legenda, evita-se que a fraude de poucos produza distorções ainda maiores na representação política, beneficiando, de forma indireta, partidos adversários sem respaldo proporcional do eleitorado.
Em síntese, a modulação proposta busca corrigir a rigidez excessiva da aplicação literal da súmula 73, oferecendo um caminho para equilibrar repressão à fraude e preservação da legitimidade do voto. Embora demande amadurecimento jurisprudencial, a medida apresenta-se como alternativa viável para harmonizar princípios constitucionais em tensão, notadamente a moralidade eleitoral, a isonomia de gênero e a soberania popular.
Conclusão
A análise da súmula 73 do TSE revela um ponto de tensão entre a necessária repressão às fraudes eleitorais e a preservação da própria legitimidade democrática. Ao determinar a nulidade dos votos obtidos por partidos que incorreram em fraude à cota de gênero, a súmula ultrapassa a responsabilização direta da legenda infratora e irradia efeitos sobre a totalidade dos votos vinculados ao DRAP, atingindo candidatos e eleitores que não participaram, tampouco anuíram, com a prática ilícita.
Esse efeito expansivo, embora fundado na legítima intenção de garantir a efetividade da igualdade de gênero e coibir distorções no processo eleitoral, acaba por sacrificar votos de cidadãos de boa-fé e afastar do pleito candidatos legitimamente escolhidos. O resultado, paradoxalmente, é a criação de uma nova assimetria: ao mesmo tempo em que se pune a fraude, compromete-se a soberania popular e fragiliza-se a representatividade parlamentar.
Não se discute a imprescindibilidade da punição à fraude - cuja gravidade demanda resposta firme da Justiça Eleitoral -, mas sim a necessidade de modular seus efeitos de forma proporcional. A responsabilização deve recair prioritariamente sobre o partido fraudador e seus candidatos, sem desconsiderar injustamente a manifestação soberana das urnas em relação a demais concorrentes.
Assim, a construção de uma solução equilibrada mostra-se indispensável para compatibilizar valores constitucionais em aparente tensão: de um lado, a moralidade e a igualdade de gênero no processo eleitoral; de outro, a soberania popular e a preservação da vontade do eleitor. A proposta de modulação aqui delineada, ao mesmo tempo em que assegura a repressão eficaz às fraudes, também protege a integridade do sistema representativo, reforçando que, em uma democracia, o voto válido deve constituir sempre o núcleo essencial da legitimidade política.
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Referências
BRASIL. Código Eleitoral – Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4737compilado.htm. Acesso em: 01 set. 2025.
BRASIL. Lei das Eleições – Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm. Acesso em: 01 set. 2025.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 01 set. 2025.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Súmula nº 73. Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/codigo-eleitoral/sumulas/sumulas-do-tse/sumula-tse-n-73. Acesso em: 01 set. 2025.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Resolução nº 23.677, de 16 de dezembro de 2021. Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2021/resolucao-no-23-677-de-16-de-dezembro-de-2021. Acesso em: 01 set. 2025.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Cautelar Antecedente n° 60 AP (Amapá). Relator: Alexandre de Moraes. Julgamento em: 07 nov. 2024. Publicação no DJe: 08 nov. 2024.
1 AIJE n° 0608597-98.2022.6.26.0000
2 AIJE n° 0608598-90.2022.6.26.0000
3 AIJE n° 0601050-36.2024.6.26.0358
4 https://www.tre-sp.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Novembro/nova-totalizacao-altera-lista-de-deputados-estaduais-eleitos-e-de-suplentes-da-eleicao-de-2022
5 https://www.tre-sp.jus.br/comunicacao/noticias/2025/Julho/tre-sp-rejeita-acao-que-suspendia-nova-totalizacao-dos-deputados-estaduais-eleitos-em-2022-1
6 https://www.brasildefato.com.br/2025/07/16/me-senti-cassado-diz-deputado-simao-pedro-sobre-perda-de-mandato-na-alesp/
7 https://www.tre-sp.jus.br/comunicacao/noticias/2025/Maio/solidariedade-tem-votos-para-vereador-anulados-em-monte-mor-por-fraude-a-cota-de-genero
8 https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/pt-questiona-interpretacao-de-regra-eleitoral-que-alterou-composicao-da-alesp/