Ações executivas de grande impacto estão mais uma vez remodelando o cenário jurídico e econômico - de tarifas a drásticos controles migratórios e restrições financeiras. Embora tais medidas possam ser analisadas sob as lentes da ideologia política ou da estratégia global, uma questão jurídica mais profunda - e talvez mais urgente - permeia tudo isso: o Poder Executivo ultrapassou os limites dos poderes constitucionalmente delegados?
Este artigo explora os fundamentos jurídicos e os limites da autoridade presidencial em tempos de emergência nacional, com foco em tarifas, sanções e coerção econômica. Mapeamos os marcos constitucionais e legais que viabilizam ações emergenciais e apontamos onde o comportamento atual do Executivo pode estar se afastando da legalidade.
1. Os poderes constitucionais do Congresso
A Constituição dos Estados Unidos confere ao Congresso, dentre outros, os poderes para legislar sobre comércio exterior (Art. I, §8, cl. 3), tributos e tarifas (Art. I, §8, cl. 1), imigração e naturalização (Art. I, §8, cl. 4), declaração de guerra e sanções internacionais (Art. I, §8, cl. 11).
A Constituição também atribui ao presidente o papel de conduzir a política externa e atuar como comandante-em-chefe (Art. II), permitindo ao Executivo agir com maior celeridade em contextos emergenciais. É com base nessa dinâmica que o Congresso pode delegar certos poderes ao presidente, desde que forneça diretrizes claras. Sem essas diretrizes, a delegação é inconstitucional.
2. Emergências estatutárias: A estrutura legal do poder presidencial
Por trás da maioria das recentes ações executivas está uma série de leis aprovadas pelo Congresso ao longo do último século que concedem ao presidente amplos poderes, desde que se declare estado de emergência nacional. Atualmente, mais de 40 emergências nacionais estão em vigor nos EUA, acionando tais leis. Duas delas são centrais:
A lei de emergências nacionais (NEA - National Emergencies Act): aprovada em 1976, a NEA foi originalmente concebida para conter a expansão do poder acumulado pelo Executivo durante a Guerra do Vietnã e o escândalo de Watergate. Antes de sua promulgação, presidentes haviam declarado mais de 470 “emergências”, muitas das quais permaneciam indefinidamente em aberto e sem revisão. De todo modo, a NEA introduziu restrições procedimentais importantes:
- Declaração presidencial obrigatória: nenhum poder é ativado sem que o presidente declare formalmente uma “emergência nacional”;
- Obrigação de relatório: o presidente deve especificar quais poderes estatutários estão sendo invocados;
- Renovação anual: cada emergência expira automaticamente após um ano, salvo se o presidente explicitamente a renovar;
- Revogação pelo Congresso: o Congresso pode encerrar qualquer emergência por meio de resolução conjunta (embora o presidente possa vetá-la, exigindo então maioria de dois terços para sobrepor o veto).
A lei de poderes econômicos em emergência internacional (IEEPA - International Emergency Economic Powers Act): promulgada em 1977, a IEEPA concede ao presidente poderes abrangentes para regular o comércio internacional, desde que uma emergência nacional seja declarada nos termos da NEA e que a ameaça seja (a) “incomum e extraordinária” e (b) originada “total ou substancialmente fora dos Estados Unidos”.
Com base na IEEPA, o presidente pode: (a) bloquear ou congelar ativos estrangeiros, (b) restringir a importação ou exportação de bens ou tecnologia, (c) impor sanções financeiras, incluindo proibir pagamentos ou transações, e (d) regular investimentos e relações comerciais com o exterior.
Outros estatutos (leis) federais também conferem poderes extensos ao Executivo em matéria de política externa, sanções econômicas e imigração. A lei Global Magnitsky de responsabilização por direitos humanos (2016) autoriza o presidente a impor sanções contra indivíduos ou entidades estrangeiras acusadas de abusos graves de direitos humanos ou corrupção, sem necessidade de processo judicial ou respeito ao devido processo legal estrangeiro. Já a lei de imigração e nacionalidade permite ao presidente suspender unilateralmente a entrada de estrangeiros considerados prejudiciais aos interesses dos EUA. A lei de expansão do comércio de 1962, por sua vez, autoriza o presidente a impor tarifas com base em critérios de segurança nacional. Por fim, leis como a lei de cooperação internacional em segurança e desenvolvimento e a lei de assistência estrangeira permitem a suspensão de ajuda externa com base em determinações executivas sobre violações a direitos humanos ou ameaças a instituições democráticas.
Embora o Congresso tenha criado essas leis para conferir flexibilidade ao Executivo em tempos de crise real (por exemplo, terrorismo, guerra, ciberataques), os critérios são alarmantemente vagos. Termos como “incomum”, “extraordinário” ou “emergência nacional” não são definidos, e sua invocação é amplamente discricionária. Muitas dessas leis (salvo exceções, como a Global Magnitsky) não exigem que a ameaça: (a) seja imediata ou suportada por provas, (b) esteja ligada a atores hostis ou a um contexto bélico, ou (c) passe por revisão judicial ou legislativa antes da adoção de medidas. Na prática, isso permite que o presidente acione uma cadeia de instrumentos econômicos poderosos ao simplesmente declarar uma emergência nacional.
Assim, quando o presidente impõe uma tarifa de 40% ao Brasil, congela ativos de empresas chinesas ou suspende programas de vistos, a engrenagem legal subjacente é a mesma: uma declaração de emergência que aciona leis sem freios e contrapesos efetivos.
3. As doutrinas das questões relevantes e da não delegação: Onde o Congresso deve traçar o limite?
Embora o Congresso tenha autoridade constitucional para delegar certos poderes ao Executivo, a Suprema Corte dos EUA estabeleceu que essa delegação só é válida quando acompanhada de princípios inteligíveis (doutrina da não delegação) e quando não envolve decisões de grande relevância política ou econômica sem autorização clara do Congresso (doutrina das questões relevantes).
Essas doutrinas foram aplicadas em precedentes como Panama Refining Co. v. Ryan (1935) e Schechter Poultry Corp. v. United States (1935), em que a Corte invalidou leis que concediam poderes amplos ao Presidente sem diretrizes legislativas precisas. Em casos mais recentes, como Gundy v. United States (2019) e West Virginia v. EPA (2022), a Corte revisitou esses limites. Em Gundy, uma pluralidade manteve a delegação analisada, mas vários ministros sinalizaram disposição para reavivar um padrão mais rigoroso. Já em West Virginia, a Corte consolidou a doutrina das questões relevantes, decidindo que agências não podem tomar decisões de grande impacto econômico ou político sem orientação expressa do Congresso. Examinadas conjuntamente, essas doutrinas reforçam o princípio constitucional segundo o qual é o Congresso - e não o Executivo - quem deve formular as decisões fundamentais de política pública, sobretudo quando ações executivas afetam direitos individuais, regulam setores econômicos relevantes ou alteram o equilíbrio entre os Poderes.
Contudo, a mesma Suprema Corte tem demonstrado relutância em revisar atos presidenciais fundamentados em declarações de emergência nacional, invocando deferência institucional ao Executivo, especialmente em temas envolvendo imigração, política externa ou segurança nacional. Em Trump v. Hawaii (2018), a Corte validou amplas restrições migratórias impostas pelo presidente com base em ameaças à segurança, mesmo diante de alegações de discriminação religiosa. Em Dames & Moore v. Regan (1981), a Corte reconheceu poderes executivos extraordinários para resolver litígios com o Irã, com base em aprovação implícita e posterior anuência do Congresso.
Tais precedentes mostram que, uma vez invocada a “emergência”, há um risco real de enfraquecimento dos freios e contrapesos institucionais, a menos que o Congresso imponha salvaguardas claras e específicas nos textos legais que delegam poder ao Executivo.
Assim, orientação legislativa ao Executivo é necessária. Mas em que medida? Em quais circunstâncias? A resposta não é clara e depende, em grande parte, das cortes.
4. Um marco judicial em Construção: O caso das tarifas
No caso V.O.S. Selections, Inc. v. Trump, a Corte de Apelações do Circuito Federal dos EUA confirmou a decisão de primeira instância da Corte Aduaneira que anulou cinco ordens executivas que impunham tarifas com base na IEEPA, na NEA e na lei de comércio de 19741. A Corte entendeu que a delegação do poder de tributar importações não está prevista na IEEPA e que, por isso, as ordens violam a doutrina das questões relevantes. A opinião concorrente foi além e concluiu que, caso existisse (o que a Corte entendeu não existir) uma delegação tão ampla de poderes como a pretendida pela Administração (um mandato para impor tarifas quase globais), ela violaria a doutrina da não delegação e seria, portanto, inconstitucional.
Embora a Corte Federal de Apelações tenha concordado com o raciocínio jurídico da instância inferior, sua decisão foi automaticamente suspensa conforme os procedimentos-padrão da Suprema Corte, enquanto se aguarda eventual pedido de certiorari. Essa suspensão impede temporariamente que a decisão produza efeitos imediatos, mas ainda assim representa um posicionamento firme quanto aos limites judiciais da discricionariedade presidencial em matéria econômica e de relações exteriores.
Importante destacar que a decisão original da Corte Aduaneira - agora confirmada - não apenas questionou as irregularidades procedimentais na imposição da tarifa, mas a anulou com base constitucional, classificando-a como uso de poderes emergenciais de forma indevida e desvinculada da vontade do Congresso. Ela demonstra que, mesmo em tempos de aparente urgência, o Presidente não pode legislar unilateralmente, e que sanções econômicas devem respeitar os limites legais e constitucionais impostos pelo Legislativo.
Este caso pode se tornar um marco da jurisprudência moderna sobre as doutrinas da não delegação e das questões relevantes, especialmente se o certiorari for concedido. Se a Suprema Corte mantiver as decisões inferiores, poderá reavivar os limites aos poderes econômicos do Executivo, restabelecer o equilíbrio entre os Poderes e oferecer clareza jurídica a importadores e parceiros internacionais que hoje enfrentam incerteza.
Acima de tudo, V.O.S. é um oportuno lembrete de que a via judicial continua sendo um instrumento institucional essencial, sobretudo quando o Congresso permanece inerte e o Executivo extrapola seu mandato sob o manto da emergência.
5. Ver a linha para a proteger
Identificar “a linha” não é um exercício teórico. É uma necessidade prática para proteger o sistema jurídico americano e seus fundamentos. Ao se compreender o arcabouço legal e os precedentes judiciais que definem os limites da ação executiva em tempos de emergência, fica mais fácil identificar quando e por que a linha foi ultrapassada.
Onde há controle, a ação legítima é possível. Onde ele falta, a arbitrariedade pode prevalecer. É dever das instituições democráticas, da sociedade civil e da advocacia zelar para que a linha não se apague.
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1 Esta, sozinha, não requer uma emergência nacional, nem concede poderes tributários ao Presidente.