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O iter criminis: Punibilidade e análise político-criminal no Direito brasileiro

O iter criminis: da cogitação à punibilidade. Uma exploração dogmática e político-criminal das fases do crime no Direito Penal brasileiro, essencial para o debate jurídico atual.

15/9/2025

1. Introdução: A topografia do delito e o desafio da intervenção penal

O fenômeno criminal, em sua essência, não se manifesta de forma instantânea. Pelo contrário, desenrola-se em um percurso que a dogmática penal convencionou denominar iter criminis – o caminho do crime. Compreender a topografia desse trajeto, desde a mera ideação até a completa realização do ilícito, é fundamental para a delimitação da intervenção estatal e para a aplicação justa e proporcional do ius puniendi. Em um Estado Democrático de Direito, a delimitação precisa entre o que é penalmente relevante e o que não o é constitui uma garantia inafastável da liberdade individual, evitando a arbitrariedade e a punição de meros pensamentos ou atos inofensivos.

A complexidade do tema reside na fluidez das fronteiras entre as fases, especialmente entre os atos preparatórios e os atos executórios, e nas exceções à regra geral da impunibilidade de certas etapas. Este artigo propõe uma análise aprofundada das fases do iter criminis, explorando suas nuances teóricas e práticas, os desafios impostos pela criminalidade moderna e as implicações para a política criminal e a prevenção delitiva. A rigorosa observância dos princípios constitucionais e das normas da ABNT, como a NBR 14724 (que estabelece princípios gerais para a elaboração de trabalhos acadêmicos) e a NBR 10520 (diretrizes para citações), é o alicerce metodológico deste trabalho, garantindo a credibilidade e a robustez da análise.

2. A fase interna: a cogitação e o princípio da intranscendência do pensamento

iter criminis inicia-se na esfera mais íntima do ser humano: a mente. A cogitação (ou cogitatio) é a fase em que o agente concebe, planeja e delibera sobre a prática de um delito. É um processo puramente intelectual, onde a ideia criminosa se forma e se desenvolve, sem qualquer exteriorização no mundo físico. Trata-se do momento em que o indivíduo "mentaliza, idealiza, prevê, antevê, planeja, deseja, representa mentalmente a prática do crime" (ARAÚJO e COSTA, 2020, p. 78). Essa fase, que pode incluir subfases de deliberação e resolução, permanece inteiramente no plano subjetivo do agente, sem qualquer exteriorização observável.

A impunibilidade da cogitação é um dogma basilar do Direito Penal, universalmente reconhecido e expresso na máxima latina "cogitationis nemo poenam patitur" (ninguém pode ser punido pelo pensamento). Este princípio não é uma mera conveniência prática, mas um corolário da liberdade individual e da própria natureza do Direito Penal, que se ocupa de condutas exteriorizadas e lesivas a bens jurídicos. Punir o pensamento implicaria uma inaceitável invasão da esfera privada do indivíduo, transformando o Direito Penal em um instrumento de controle de consciências, incompatível com os valores de um Estado Democrático de Direito (BITENCOURT, 2017).

Os fundamentos dessa intranscendência do pensamento são múltiplos e robustos:

Embora impunível, a cogitação não é irrelevante para a criminologia e para a política criminal. A compreensão dos fatores que levam à formação de uma intenção criminosa, como as crenças comportamentais, as normas subjetivas e o controle comportamental percebido (conforme a Teoria do Comportamento Planejado de Ajzen, 1991), pode subsidiar estratégias de prevenção primária e secundária. Ao atuar na raiz do problema, antes que a ideia se materialize em condutas lesivas (ARAÚJO e COSTA, 2020), é possível desestimular a formação de intenções criminosas. É neste ponto que a criminologia oferece ferramentas valiosas, permitindo a compreensão dos processos deliberativos que antecedem a exteriorização da vontade.

3. A fase externa: Atos preparatórios e a antecipação da punibilidade

A transição da cogitação para a fase externa do iter criminis ocorre com os atos preparatórios. Nesta etapa, a intenção criminosa se exterioriza, mas a conduta ainda não iniciou a agressão direta ao bem jurídico tutelado. O agente realiza atos que visam criar as condições necessárias para a execução do crime, como a aquisição de instrumentos, o estudo do local, a obtenção de informações ou o planejamento logístico. São condutas que, embora exteriorizem a vontade criminosa, ainda estão aquém do ataque ao bem jurídico (MARONES, 2009, p. 45).

A regra geral no Direito Penal brasileiro é a imunidade penal dos atos preparatórios. O art. 31 do Código Penal estabelece que "o ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado". A justificativa para essa impunidade reside na ideia de que, embora a intenção criminosa já seja manifesta, a conduta ainda não representa um perigo concreto e imediato ao bem jurídico, e o agente ainda pode desistir de seu intento criminoso. O Direito Penal, ao não punir a preparação, concede ao agente uma "ponte de ouro" para o retorno à legalidade, incentivando a desistência.

3.1. As exceções à impunibilidade: os crimes-obstáculo (delitos de perigo abstrato)

A impunidade dos atos preparatórios, contudo, não é absoluta. Em situações específicas, o legislador, movido por razões de política criminal e pela necessidade de antecipar a tutela de bens jurídicos de alta relevância, opta por criminalizar condutas que, em um contexto geral, seriam meros atos preparatórios. São os chamados crimes-obstáculo ou delitos de perigo abstrato, onde o ato preparatório, por si só, já constitui um delito autônomo (MASSON, 2015). Nesses casos, a punição não se dá pela tentativa do crime principal, mas pela consumação do crime-obstáculo.

Exemplos clássicos e paradigmáticos na legislação brasileira incluem:

3.2. O caso emblemático dos atos preparatórios de terrorismo

A lei 13.260/16 (lei antiterrorismo) trouxe uma das mais significativas e debatidas exceções à impunibilidade dos atos preparatórios. Seu art. 5º criminaliza os "atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito". Esta previsão é um reflexo da crescente preocupação global com a segurança e a antecipação da tutela penal diante de crimes de extrema gravidade.

A criminalização dos atos preparatórios de terrorismo, no entanto, não está isenta de críticas e debates, especialmente quanto à sua conformidade com o princípio da taxatividade e da legalidade estrita, que exige que a lei penal seja clara, precisa e determinada:

3.3. O desafio da distinção: Atos preparatórios vs. atos executórios

A distinção entre atos preparatórios impuníveis e atos executórios puníveis é um dos debates mais intensos e complexos da dogmática penal. A ausência de uma definição legal clara para "início da execução" levou ao desenvolvimento de diversas teorias, que buscam traçar essa linha divisória com o máximo de precisão:

3.3.1. Teoria subjetiva pura

Defende que o que importa é a intenção do agente. Se a vontade criminosa é inequívoca, o ato é executório.

3.3.2. Teoria formal-objetiva

Predominante na jurisprudência brasileira, define o início da execução quando o agente pratica o primeiro ato que se amolda ao núcleo do tipo penal (o verbo do crime). Por exemplo, no crime de furto ("subtrair"), a execução começa quando o agente efetivamente inicia a retirada do bem.

3.3.3. Teoria material-objetiva (ou da concepção natural)

Amplia a teoria formal-objetiva, considerando executórios os atos imediatamente anteriores ao núcleo do tipo que, em uma "concepção natural" ou para um observador externo, já demonstrem perigo concreto ao bem jurídico. Para essa teoria, o que importa é se a conduta já faz parte da "cena do crime" e se, para um observador, ela já representa uma agressão ao bem tutelado.

3.3.4. Teoria da impressão

Sugere que a execução delitiva se caracteriza quando a conduta do agente causa na comunidade uma "impressão de agressão ao direito", abalando o sentimento de segurança jurídica.

3.3.5. Teoria objetivo-individual

Considerada a mais coerente e adotada pela doutrina e jurisprudência mais modernas, esta teoria foca no plano concreto do autor. O ato executório é aquele que, de acordo com o plano individual do criminoso, coloca em perigo imediato o bem jurídico tutelado. Essa abordagem permite uma análise mais flexível e justa, individualizando a conduta e reconhecendo que a intenção e o plano do agente são cruciais para determinar a natureza do ato. A jurisprudência brasileira tem demonstrado uma tendência a incorporar nuances dessa teoria, especialmente em casos complexos (STJ, AgRg no AREsp 1.278.535/MS).

4. A tentativa (conatus): O crime imperfeito

A fase da execução é o momento em que o agente inicia o ataque direto ao bem jurídico tutelado. É a partir daqui que a conduta se torna penalmente relevante, mesmo que o resultado almejado não seja alcançado. A tentativa ocorre quando, iniciada a execução, o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente (art. 14, II, CP). A punibilidade da tentativa é um dos grandes avanços do Direito Penal, permitindo a intervenção estatal antes da lesão completa ao bem jurídico. A pena da tentativa é a do crime consumado, diminuída de um a dois terços (art. 14, parágrafo único, CP). A fração de diminuição é inversamente proporcional ao iter criminis percorrido: quanto mais próximo da consumação, menor a redução (STF, HC 118.203/MT).

4.1. Elementos da tentativa:

4.2. Espécies de tentativa:

5. A consumação e o exaurimento: A plenitude do delito

A consumação do crime ocorre quando o tipo penal se realiza por completo, produzindo o resultado jurídico almejado. É o momento em que todos os elementos do tipo objetivo são preenchidos. No homicídio, a consumação se dá com a morte da vítima; no furto, com a inversão da posse do bem. A consumação varia conforme a natureza do crime:

O exaurimento, por sua vez, é uma fase posterior à consumação, na qual o crime produz todos os seus seus efeitos ou o agente obtém a vantagem almejada (CAPEZ, 2007, p. 240). O exaurimento não é um elemento do tipo penal e, em regra, não interfere na consumação do crime, mas pode influenciar a dosimetria da pena, servindo como circunstância judicial ou agravante.

6. Moduladores da punibilidade: Desistência voluntária e arrependimento eficaz

O legislador penal, em uma demonstração de política criminal incentivadora do retorno à legalidade, prevê institutos que podem afastar a punibilidade da tentativa, mesmo após o início da execução. São eles:

Esses institutos refletem a preocupação do legislador em premiar o agente que, por sua própria iniciativa, evita ou mitiga o dano ao bem jurídico, reforçando a função preventiva da pena.

7. Princípios constitucionais e a delimitação da punibilidade

A aplicação das normas que regem o iter criminis deve estar em consonância com os princípios constitucionais que balizam o Direito Penal em um Estado Democrático de Direito, servindo como balizas inegociáveis para a atuação do ius puniendi:

8. Conclusão: A desafio contínuo da Justiça penal

iter criminis, em sua complexa arquitetura, revela a constante tensão entre a necessidade de proteção social e a salvaguarda das liberdades individuais. A punibilidade, em cada fase do caminho do crime, é um reflexo dessa tensão, buscando um equilíbrio que evite tanto a impunidade quanto o excesso punitivo. A dogmática penal brasileira, ao longo de sua história, tem se esforçado para refinar os critérios de punibilidade, buscando um equilíbrio entre as diversas teorias e as exigências da realidade social.

Em um cenário de rápidas transformações sociais e tecnológicas, o Direito Penal e o Processual Penal são chamados a se adaptar, sem, contudo, abrir mão de seus princípios fundamentais. A criminalidade organizada, o terrorismo e os crimes cibernéticos impõem novos desafios, exigindo do legislador a criação de tipos penais mais específicos e do intérprete uma análise mais aprofundada, sempre com o objetivo de proteger a sociedade sem violar as garantias individuais.

A atuação do advogado, do promotor e do juiz, nesse contexto, é crucial. O rigor técnico na aplicação das teorias do crime, a sensibilidade para as nuances do caso concreto e o compromisso inabalável com as garantias constitucionais são imperativos. A busca por uma justiça penal que seja, ao mesmo tempo, eficaz na repressão e fiel aos valores democráticos é um projeto contínuo, que exige o engajamento de todos os operadores do Direito. Somente assim poderemos construir uma sociedade mais segura, justa e livre, onde o Direito Penal, em sua essência, seja um instrumento de proteção da liberdade, e não de sua supressão. A dogmática penal, a jurisprudência e a doutrina, em um diálogo incessante, devem continuar a construir um arcabouço jurídico que não apenas puna, mas que também previna, ressocialize e, acima de tudo, promova a dignidade da pessoa humana.

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AJZEN, Icek. The theory of planned behavior. Organizational behavior and human decision processes, v. 50, n. 2, p. 179-211, 1991.

ARAÚJO, James Frade; COSTA, Isângelo Senna da. A fase da cogitação do iter criminis sob a ótica da Teoria do Comportamento Planejado: entendendo a mente criminosa e seus reflexos na segurança pública. Revista Ciência & Polícia Brasília-DF, v.6, n.2, p.72-103, jul./dez. 2020.

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CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 1: parte geral. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

COSTA, Higor Moreira da. A punição dos atos preparatórios de terrorismo: considerações sobre o art. 5º da Lei 13.260/2016 sob a luz dos princípios constitucionais de garantia. Monografia (Graduação em Direito) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.

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Pompilio Rodrigues Donato
Contador; Advogado; Palestrante; Pós-Graduado em Planejamento Tributário / UNOPAR; Pós-Graduado em Direito Público; Pós-Graduando em Direito Tributário / ESA; Pós-Graduado em Contabilidade Pública

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