Migalhas de Peso

Responsabilização patrimonial via incidente de desconsideração da personalidade jurídica e (extra)concursalidade da obrigação

O crédito de terceiro incluído por desconsideração da personalidade jurídica é extraconcursal, valendo o acolhimento do incidente como marco.

25/9/2025

Imaginemos a seguinte situação: um credor instaura um incidente de desconsideração de personalidade jurídica que ao seu final é acolhido, contudo, no curso do incidente, uma das empresas requeridas ajuíza pedido de recuperação judicial. Nessa hipótese, o crédito se submeteria aos efeitos do procedimento concursal?

Inicialmente, para responder a tal questão, parece-nos necessário adentrar aos efeitos jurídicos da responsabilização de um terceiro com o acolhimento de um IDPJ.

Quando um pedido de desconsideração da personalidade jurídica é acolhido, é sabido que o acervo patrimonial dos desconsiderados passa a também responder pela obrigação contraída ou destinada aos devedores originários, uma vez que o véu da autonomia patrimonial é rompido.

Contudo, apesar da responsabilização patrimonial, o terceiro incluído não passa a ostentar a mesma posição obrigacional do devedor originário.

Com a decretação da desconsideração da personalidade jurídica, o terceiro incluído não passa a ser parte da obrigação originária com direitos e deveres, mas tão somente sujeito processual em razão dos seus bens estarem agora sujeitos à constrição advinda do referido processo.

É o que se extrai da leitura do art. 790, VII, do CPC, que disciplina que estão sujeitos a execução os bens “do responsável, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica”.

Exatamente por este motivo, que ao terceiro incluído no processo pelo acolhimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica não se dá o direito de rediscutir questões ultrapassadas no processo principal, que assume o procedimento em curso a partir do momento que sua inclusão é definitiva.

Nesse sentido, ao comentar acerca da teoria dualista da obrigação, o professor Marcelo Abelha esclarece que essa dinâmica se trata de uma chamada “responsabilidade sem débito”1:

(...) “Contudo, tendo por maior expoente Gierke, a doutrina alemã identificou outro fenômeno, distinto do vínculo obrigacional, e que é gerador de outra situação jurídica que também se manifestaria numa relação jurídica. Assim, Schuld (débito) e Haftung (responsabilidade) seriam fenômenos distintos, mas atrelados à relação obrigacional. O débito representado pelo dever de prestar; a responsabilidade, na sujeitabilidade do patrimônio do responsável pelo inadimplemento”. (...) “Aspecto bastante interessante, que serve inclusive para demonstrar a autonomia do “débito” em relação à “responsabilidade patrimonial”, é o fato de que nem sempre os dois fenômenos (“débito” e “responsabilidade”) recaem sobre o mesmo sujeito, ainda que se trate de uma mesma obrigação. Isso quer dizer que, em regra, o devedor é ao mesmo tempo o sujeito que deve e o sujeito responsável; mas isso comporta exceções, pois o direito, aprimorando as relações de crédito, permite que a responsabilidade patrimonial seja suportada por um garantidor da prestação inadimplida. É o que acontece com o fiador, que pode ter o seu patrimônio atingido pela atividade executiva do Estado, embora não seja ele o devedor da obrigação”. (...)

Em obra dedicada ao estudo da desconsideração da personalidade jurídica, Henrique de Moraes Fleury da Rocha2 assevera:

(...) “Como se viu, a pessoa atingida pela desconsideração da personalidade jurídica não integra a relação obrigacional. Por meio da desconsideração da personalidade jurídica (clássica), há apenas a inoponibilidade, perante a parte favorecida pela providência, da separação patrimonial havida entre a pessoa jurídica e o sócio, de tal modo que eventual poder de constrangimento de titularidade daquela parte favorecida possa alcançar ativos integrantes formalmente do patrimônio do sócio - patrimônio este que será considerado como parte do patrimônio da pessoa jurídica -, apesar de, na relação de compromisso, a responsabilidade continuar recaindo apenas sobre a pessoa jurídica”. (...)

Portanto, o terceiro que ingressa no polo passivo de uma execução após um pedido de desconsideração ser acolhido torna-se “responsável” pela obrigação e não “devedor” da obrigação.

Nesse sentido, verifica-se que a lei 11.101/05 em nenhum momento trata especificamente sobre hipóteses em que o empresário ou a sociedade empresária é responsabilizado por dívidas de terceiro.

Verifica-se que os parágrafos do art. 49 da lei de bancarrotas nada dispõem sobre créditos nos quais a recuperanda seja “responsável patrimonial”, cuidando apenas de hipóteses em que a empresa é “devedora” da obrigação.

Assim, a ausência expressa de previsão legal abre lacunas para o exercício interpretativo que o crédito cobrado de responsabilizado patrimonialmente por IDPJ jamais ostentará concursalidade.

No entanto, eventuais distinções entre “devedor” e “responsável”, que pudessem afastar qualquer possibilidade de concursalidade da obrigação, são merecedoras de um estudo bem mais aprofundado e interdisciplinar.

Por outro lado, partindo-se do pressuposto que após o acolhimento do IDPJ o terceiro incluído, ainda que mero responsável, ostenta a condição de devedor pura e simplesmente, a verificação de concursalidade em caso de pedido de recuperação judicial parece-nos um exercício menos complexo.

Uma vez que os bens do terceiro ficarão sujeitos à execução apenas após o acolhimento do IDPJ, independentemente da data, forma e origem da dívida originária, quase que à obviedade, tem-se que a decisão que acolhe o pedido de desconsideração tem natureza constitutiva em face do terceiro incluído. 

Inclusive, é o que defende o professor Daniel Amorim Assumpção Neves3:

(...) “A desconsideração tem natureza constitutiva, considerando-se que por meio dela tem-se a criação de uma nova situação jurídica. Sempre houve intenso debate doutrinário a respeito da possibilidade da criação de uma nova situação jurídica de forma incidental no processo/fase de execução, ou se caberia ao interessado a propositura de uma ação incidental com esse propósito”. (...)

E isso se deve pois - sem adentrar a exigibilidade, liquidez ou certeza da obrigação - a responsabilidade patrimonial do terceiro pelo débito surge apenas com o acolhimento do pedido de desconsideração, ou seja, para sua esfera de direito, aquela obrigação passou a existir somente com a decretação da desconsideração da personalidade jurídica.

Corroborando com tal raciocínio é o entendimento do STJ no sentido que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica é um direito potestativo do credor, que pode ser exercido a qualquer tempo:

AGRAVO INTERNO. DIREITO CIVIL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. PRAZO PRESCRICIONAL. NÃO INCIDÊNCIA. DIREITO POTESTATIVO. PRAZO DECADENCIAL. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO ANALÓGICA DO PRAZO PRESCRICIONAL DECENAL. PRECEDENTES DESTA CORTE. PRESSUPOSTOS DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ART. 50 DO CC. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7 DO STJ. AGRAVO INTERNO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (...) 2. O STJ já pacificou que a desconsideração da personalidade jurídica pode ser postulada a qualquer tempo, não se sujeitando a prazo prescricional. (...) (STJ - AgInt no REsp: 1.810.456/RS (2017/0106638-6), Relatora: ministra Maria Isabel Gallotti, Data de Julgamento: 26/06/2023, 4ª turma, Data de Publicação: DJe 30/6/2023)

Ou seja, a decisão que acolhe o pedido de desconsideração da personalidade jurídica possui inequívoca natureza constitutiva, sendo ainda o marco temporal a ser observado para fins de definir se o crédito será, ou não, submetido à recuperação judicial da sociedade empresária incluída no polo passivo do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Apesar de pouquíssimos julgados sobre o tema, em março de 2024, a 10ª Câmara de Direito Privado da Augusta Corte Paulista se posicionou no sentido que a decisão que acolhe o pedido de desconsideração deve ser considerada como fato gerador para a submissão do crédito à recuperação judicial da desconsiderada:

CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - IMPUGNAÇÃO - AUSÊNCIA DE SUBMISSÃO DO CREDITO À RECUPERAÇÃO JUDICIAL - FATO GERADOR QUE OCORRE COM A INCLUSÃO DA EMPRESA RECUPERANDA NO POLO PASSIVO EM INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO - Agravante que pretende a extinção do cumprimento de sentença por submissão do crédito ao plano de recuperação judicial já homologado - Desacolhimento - Demanda originalmente movida em face de sociedade de propósito específico, por inadimplemento de compromisso de compra e venda em 2011 - Responsabilização da agravante (recuperanda) que só ocorreu em incidente de desconsideração da personalidade jurídica da SPE, julgado em dezembro de 2022 - Fato gerador da constituição do crédito em face da empresa recuperanda (Tema 1.051 dos recursos especiais do STJ) que corresponde a sua inclusão no polo passivo - Natureza constitutiva da decisão que estende a responsabilidade por dívidas em razão da desconsideração da personalidade jurídica - Pedido de recuperação judicial muito anterior à desconsideração da recuperanda, sendo patente a extraconcursalidade do crédito - Recuperação judicial que, inclusive, já se encerrou com o cumprimento das obrigações do plano durante o período de fiscalização – Desnecessidade de avaliação dos atos constritivos pelo Juízo recuperacional, em razão da extinção do processo de recuperação - Decisão mantida - RECURSO DESPROVIDO. (TJ/SP - Agravo de Instrumento: 2337540-72.2023.8.26.0000 São Paulo, Relatora: Angela Moreno Pacheco de Rezende Lopes, Data de Julgamento: 12/3/2024, 10ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 12/3/2024)

Como visto, tal precedente soluciona a questão proposta, observando que o momento em que a recuperanda é responsabilizada por dívida de terceiro, ou seja, quando o IDPJ é acolhido, é o fato constitutivo para apuração de eventual concursalidade do crédito.

Deste modo, para verificação de concursalidade de crédito cobrado de terceiro incluído na execução em razão de incidente de desconsideração de personalidade jurídica, temos que o fato constitutivo da obrigação será a data de em que o pedido de desconsideração é acolhido.

Entretanto, à luz do entendimento doutrinário acerca dos sujeitos da relação obrigacional e das lacunas da lei 11.101/05, não nos parece ser desarrazoado descartar a hipótese que todo crédito cobrado de recuperanda responsabilizada patrimonialmente após o acolhimento de IDPJ deva ser considerado extraconcursal, independentemente de marco temporal.

__________

1 ABELHA, Marcelo. Manual de execução civil / Marcelo Abelha. – 5.ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2015. Págs. 178 e 181.

2 FLEURY DA ROCHA, Henrique de Moraes. Desconsideração da Personalidade Jurídica / Henrique de Moraes Fleury da Rocha – São Paulo: Editora JusPodivm, 2022. Pág. 91.

3 NEVES, Daniel Amorim Assumpção – Manual de direito processual civil – Volume único – 23. ed. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2021. Pág. 380.

Arthur Dias da Silva
Sócio da Mazzotini Advogados Associados.

Gregório Tomoyosi
Advogado da área de Special Situations e Recuperação Avançada de NPLs da Mazzotini Advogados Associados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

A força da jurisprudência na Justiça Eleitoral

3/12/2025

Edição gênica e agronegócio: Desafios para patenteabilidade

3/12/2025

Abertura de empresas e a assinatura do contador: Blindagem ou burocracia?

3/12/2025

Como tornar o ambiente digital mais seguro para crianças?

3/12/2025

Recuperações judiciais em alta em 2025: Quando o mercado nos lembra que agir cedo é um ato de sabedoria

3/12/2025