1. Introdução
O controle jurisdicional dos atos administrativos praticados no âmbito de procedimentos licitatórios ocupa posição central na garantia da legalidade, da isonomia e da proteção dos direitos dos licitantes. Dentre os instrumentos disponíveis ao particular para a tutela de suas prerrogativas, o mandado de segurança destaca-se como via célere e eficaz para coibir ilegalidades flagrantes, sobretudo na fase anterior à contratação.
Não obstante sua importância, tem-se verificado uma tendência preocupante na jurisprudência: a denegação da segurança sob o fundamento de ausência de interesse de agir, nos casos em que a Administração Pública, logo após a prática do ato impugnado - como a negativa de um recurso administrativo -, promove a homologação e a adjudicação do certame, esvaziando, na visão desta jurisprudência, a utilidade prática da via mandamental.
A leitura restritiva da proteção jurisdicional, nesses moldes, esvazia a efetividade do controle judicial e subverte a lógica constitucional de tutela de direitos no procedimento licitatório. Afinal, a legalidade do contrato firmado com base em ato administrativo eivado de vício permanece questionável, e os efeitos do ato lesivo continuam a produzir consequências jurídicas concretas, ainda que a adjudicação e a assinatura do contrato tenham ocorrido.
O presente artigo propõe uma reflexão crítica sobre essa problemática, examinando os limites e possibilidades do controle jurisdicional em sede de mandado de segurança, as nuances do interesse de agir, a modulação dos efeitos das decisões mandamentais e os desdobramentos da nulidade dos contratos firmados com base em atos viciados. Também é apresentado um caso concreto que ilustra os riscos de um formalismo processual que, ao invés de proteger, acaba por sacrificar direitos legítimos.
2. O mandado de segurança como instrumento de tutela contra atos administrativos em licitações
A CF/88, ao prever o mandado de segurança como instrumento destinado à proteção de direito líquido e certo lesado ou ameaçado por ato de autoridade pública (art. 5º, LXIX), reconheceu a necessidade de mecanismos jurisdicionais céleres e efetivos para conter arbitrariedades administrativas. No contexto das licitações públicas, essa via mostra-se especialmente adequada para impugnar atos que possuem efeitos concretos e imediatos sobre a esfera jurídica dos licitantes.
A jurisprudência consolidada admite o cabimento do mandado de segurança contra atos praticados ao longo do procedimento licitatório, como inabilitações, desclassificações, indeferimento de recursos administrativos, preterição de proposta mais vantajosa, revogação sem motivação idônea e outras manifestações que afetem direta e individualizadamente o licitante. Trata-se, portanto, de matéria que não apenas admite, mas frequentemente exige controle judicial urgente, dada a celeridade dos procedimentos licitatórios e a iminência de celebração do contrato administrativo.
A natureza do direito discutido nesses casos - em regra, o direito de permanecer na disputa em igualdade de condições - é plenamente compatível com a noção de direito líquido e certo. Isso porque, a verificação da legalidade dos atos licitatórios, na maioria das vezes, não pressupõe dilação probatória, especialmente quando fundada em documentos preexistentes e em fatos incontroversos, de modo que o mandado de segurança se revela instrumento apto a evitar a consolidação de ilegalidades.
Ainda assim, observa-se uma certa resistência dos Tribunais em conceder a segurança, especialmente quando a impetração é manejada após a homologação do certame ou a adjudicação do objeto. Nesses casos, a impetração é muitas vezes tida por carente de interesse de agir. Essa leitura, entretanto, merece crítica, especialmente quando a própria celeridade da Administração contribui para impedir a análise judicial efetiva do ato impugnado.
3. Interesse de agir e a persistência da nulidade após a adjudicação
A extinção de mandados de segurança por ausência de interesse de agir, com base no art. 485, VI, do CPC, tem sido recorrente em julgados que lidam com atos administrativos praticados no curso de licitações públicas. A tese sustentada por tais decisões é simples: uma vez encerrado o procedimento licitatório - com a homologação e a adjudicação - não haveria mais utilidade na medida mandamental, tornando-se “inútil” a discussão sobre a legalidade do ato impugnado. Essa lógica, contudo, não se sustenta quando confrontada com a disciplina normativa e com a própria estrutura jurídico-material das licitações públicas.
No julgamento da apelação cível 1000856-35.2025.8.26.0045, o TJ/SP reafirmou esse entendimento, negando provimento ao recurso de uma empresa que impetrou mandado de segurança contra sua exclusão de certame já homologado e adjudicado menos de 24 horas após a decisão administrativa que rejeitou seu recurso interno. O fundamento para a extinção do feito sem resolução de mérito foi a alegada perda do interesse de agir - uma leitura que parte da falsa premissa de que a conclusão formal do procedimento licitatório impediria qualquer revisão do ato anterior.
Ocorre que a própria lei 14.133/21 impõe uma lógica diversa. O art. 71, III, autoriza expressamente a anulação da licitação, inclusive após o encerramento das fases de julgamento e habilitação e esgotados os recursos administrativos, desde que constatada ilegalidade insanável. O §1º do mesmo artigo reforça que, ao reconhecer a nulidade, a Administração deve indicar os atos com vícios insanáveis e tornar sem efeito todos os atos subsequentes que deles dependam - ou seja, a nulidade do ato antecedente (como a inabilitação ilegal de uma empresa) contamina todos os atos posteriores, inclusive a adjudicação e a futura contratação.
Essa é a lógica da nulidade em cadeia, segundo a qual o vício jurídico não se esgota com o fim do procedimento licitatório, mas se projeta sobre o contrato dele derivado. Por consequência, o interesse jurídico do licitante prejudicado persiste, mesmo após a conclusão formal do certame. Não se trata de uma “mera expectativa frustrada”, mas de um direito subjetivo violado por ato administrativo viciado, cujos efeitos ainda se irradiam.
Além disso, o art. 147 da lei 14.133/21 complementa esse raciocínio ao prever que, constatada irregularidade no procedimento licitatório ou na execução contratual, o Poder Público poderá optar, conforme o interesse público, pela nulidade do contrato ou pela sua continuidade com pagamento de indenização. O parágrafo único do dispositivo é ainda mais eloquente: ao prever a indenização por perdas e danos ainda que a paralização ou a nulidade não forem declaradas, a lei reconhece a sobrevivência do interesse jurídico da parte lesada. Se há direito à indenização, há interesse a ser protegido - e, por conseguinte, não pode haver extinção prematura do mandado de segurança por ausência de interesse de agir.
Negar a análise do mérito com base em formalidades procedimentais ignora o conteúdo material do direito violado e perpetua o desequilíbrio entre Administração e administrado, comprometendo os princípios do devido processo legal e da inafastabilidade da jurisdição. A impetração do mandado de segurança - mesmo após a homologação e adjudicação - continua a desempenhar papel essencial na proteção da legalidade e na viabilização de eventual reparação, seja pela via anulatória ou pela via indenizatória.
Portanto, não é a conclusão formal do processo licitatório que extingue o interesse de agir, mas sim a correção do vício ou a reparação do direito - seja pela revogação do ato, pela anulação do contrato, ou pela compensação em perdas e danos. A leitura restritiva adotada por parte da jurisprudência, ao afastar a jurisdição com base no esgotamento do rito procedimental, esvazia o controle judicial justamente quando ele se faz mais necessário. A perda do interesse de agir, nesse cenário, somente poderia ser reconhecida se houvesse a consumação material do objeto da licitação - como, por exemplo, na entrega efetiva de bens em lote único, na execução integral de uma obra ou na prestação de serviços já concluídos - ou ainda se a própria Administração, provocada ou não, reformasse o ato impugnado ou revogasse o certame, reconhecendo a nulidade arguida pela via mandamental. Fora dessas hipóteses, a alegação de carência de ação soa como mero obstáculo processual para evitar o controle da legalidade do ato administrativo.
4. Modulação dos efeitos da sentença e racionalidade decisória
É compreensível que, em determinados contextos, o Judiciário se veja diante de um impasse entre a proteção de um direito subjetivo violado e o risco de desorganização administrativa que poderia advir da anulação de um contrato já firmado. Todavia, reconhecer a nulidade de um procedimento licitatório não implica, automaticamente, que a anulação do contrato seja a única resposta possível. E, de fato, nem sempre essa anulação será medida que melhor atende ao interesse público.
Contudo, o que se critica não é a ponderação entre legalidade e interesse público - plenamente legítima e até desejável -, mas sim o uso desse juízo de conveniência como justificativa para extinguir a ação por falta de interesse de agir, antes mesmo de examinar o mérito da impetração. Essa solução não apenas infringe o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF/88), como estimula a Administração a acelerar artificialmente o encerramento do certame, justamente para impedir o controle judicial de seus atos, invertendo a lógica constitucional do devido processo e do controle da legalidade.
Nesses casos, o que se impõe ao julgador não é a extinção da demanda, mas a análise do mérito da controvérsia com modulação dos efeitos da sentença, nos termos do art. 21 da LINDB. O caput e o parágrafo único do dispositivo autorizam expressamente que o julgador reconheça a ilegalidade do ato administrativo, mas indique as condições para que sua regularização se dê de forma proporcional, equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, evitando ônus excessivo às partes atingidas.
Assim, nada impede que o magistrado, reconhecendo a ilegalidade do ato impugnado, decida pela não anulação do contrato - quando a desconstituição do vínculo contratual se mostrar contrária ao interesse público - mas declare o direito da parte lesada à reparação por perdas e danos, a ser pleiteada em sede própria. Essa técnica decisória resguarda o direito do impetrante, prestigia a coerência do ordenamento jurídico, e evita a repetição desnecessária de atos processuais em nova demanda - o que, ironicamente, impõe custos adicionais não só à parte lesada, mas ao próprio sistema de justiça.
5. Conclusão
A atuação jurisdicional no controle da legalidade dos atos administrativos praticados em processos licitatórios não pode se submeter à lógica procedimental da Administração. A homologação e adjudicação do certame não têm o condão de apagar a existência de vícios anteriores, tampouco de esvaziar o direito do licitante à revisão jurisdicional desses atos, sobretudo quando manejada tempestivamente a via mandamental.
É necessário que o Poder Judiciário adote uma interpretação funcional do interesse de agir, alinhada à realidade dos processos licitatórios e aos comandos constitucionais da ampla defesa e da inafastabilidade da jurisdição. Reconhecer o direito do impetrante à apreciação do mérito da demanda - ainda que a solução não implique anulação do contrato, mas eventual indenização - é preservar não apenas o direito individual violado, mas a própria legitimidade do ordenamento jurídico.
Nesse cenário, o mandado de segurança deve ser revalorizado como instrumento legítimo e eficaz de controle dos atos administrativos em matéria licitatória, mesmo após a conclusão formal do certame. A sua banalização pela via da extinção prematura compromete a confiança nas instituições, incentiva expedientes administrativos estratégicos para afastar o controle judicial e impõe custos desnecessários ao jurisdicionado e ao próprio sistema de justiça.