1. Introdução
O poder punitivo do Estado é um dos temas mais complexos e delicados do Direito, sobretudo quando analisado sob a perspectiva do Direito Administrativo sancionador.
Tradicionalmente vinculado ao Direito Penal, o jus puniendi estatal foi gradualmente ampliado para abarcar a esfera administrativa, de modo a permitir que a Administração Pública exerça um controle mais direto sobre condutas que afetam a ordem social, econômica e institucional. Essa expansão trouxe consigo novos instrumentos de atuação estatal e, ao mesmo tempo, gerou intenso debate acerca de sua legitimidade e de seus limites.
As sanções administrativas, que antes ocupavam papel secundário diante da centralidade do Direito Penal, passaram a desempenhar funções decisivas para a regulação de setores estratégicos. O Estado contemporâneo, diante da multiplicidade de atividades que envolvem riscos coletivos, como a proteção ambiental, a regulação de mercados, a tutela da probidade administrativa e a defesa do consumidor, recorre cada vez mais a mecanismos sancionatórios administrativos.
Nesse cenário, as sanções cumprem não apenas a função repressiva, mas também assumem caráter preventivo e regulatório, buscando moldar comportamentos em consonância com os objetivos públicos.
Essa realidade, entretanto, não pode ser analisada de forma acrítica. A ampliação da esfera sancionatória da Administração gera o risco de que o poder punitivo se converta em ferramenta de arbítrio, caso não seja adequadamente delimitado. É nesse ponto que emerge a questão central deste trabalho, que consiste em refletir sobre a legitimidade do poder sancionador do Estado e sobre as balizas que devem orientar a sua aplicação no campo administrativo.
A análise se justifica pela necessidade de equilibrar dois valores igualmente importantes. De um lado, a Administração precisa de instrumentos eficazes para assegurar o cumprimento de normas e a proteção de interesses públicos relevantes. De outro, o cidadão, enquanto destinatário das sanções, deve ter sua esfera de direitos protegida contra excessos, vagueza normativa e decisões arbitrárias. O desafio consiste em compatibilizar a eficácia regulatória com as garantias constitucionais, construindo um modelo de poder sancionador que seja, ao mesmo tempo, eficiente e legítimo.
Com isso, objetiva-se investigar como as sanções administrativas se estruturam e quais princípios e fundamentos teóricos devem nortear a sua aplicação. Busca-se demonstrar que a compreensão do poder punitivo, sob a ótica da teoria da norma, oferece instrumentos analíticos valiosos para esclarecer sua função e seus limites.
Por fim, pretende-se evidenciar que a juridicidade, entendida como a vinculação simultânea à legalidade e aos princípios constitucionais, deve ser considerada o verdadeiro marco de legitimação e de contenção do poder sancionador estatal.
2. O poder punitivo do Estado e sua manifestação no campo administrativo
Conforme já exposto anteriormente, o poder punitivo do Estado, tradicionalmente identificado com o Direito Penal, manifesta-se também em outras esferas normativas, especialmente no âmbito administrativo (Bobbio, 1999). Essa evolução do exercício do poder punitivo estatal revela a criação do Direito Administrativo sancionador, que constitui uma forma autônoma e, ao mesmo tempo, complementar de exercício do jus puniendi (Ferraz Jr., 2016).
A expansão desse jus puniendi, ao longo das últimas décadas, tem sido impulsionada pela complexidade crescente das relações sociais e pela necessidade de intervenção regulatória em áreas antes não alcançadas pelo Direito Penal, como o mercado de consumo, o sistema financeiro, o meio ambiente, a concorrência econômica e a probidade administrativa (Carvalho; Fonseca, 2020).
Ao se reconhecer a presença do poder sancionador no campo administrativo, é importante compreender que não se trata de mera reprodução do Direito Penal em outra instância, mas de uma manifestação própria do poder punitivo estatal.
As sanções administrativas possuem características singulares, uma vez que são aplicadas diretamente pela Administração Pública, sem a necessidade de prévia intervenção judicial, e têm como finalidade primordial assegurar o cumprimento das normas que organizam setores essenciais da vida social. Essa peculiaridade, que aproxima o Estado de um papel de regulador permanente das atividades privadas e coletivas, exige um debate constante sobre a legitimidade, os limites e os riscos decorrentes do exercício desse poder (Gonçalves; Grilo, 2021).
As distinções entre sanções penais e administrativas, ainda que relevantes sob o ponto de vista dogmático, não podem obscurecer a convergência existente entre ambas.
Tanto no âmbito penal quanto no administrativo, a sanção desempenha função de prevenção, buscando desestimular a prática de condutas ilícitas, mas também função repressiva, ao punir o infrator pela violação da norma (Schauer, 2015).
Além disso, no campo administrativo, a sanção assume uma função regulatória de extrema importância, pois visa garantir que as atividades econômicas e sociais se desenvolvam dentro de parâmetros de legalidade e de proteção ao interesse público. Trata-se, portanto, de um poder que, embora paralelo ao Direito Penal, atua de modo complementar e com finalidades próprias, frequentemente relacionadas à tutela de bens jurídicos coletivos e difusos (Alexy, 2008).
Esse processo de expansão, no entanto, não ocorre sem tensões. O alargamento do poder punitivo administrativo gera o risco de violação de garantias fundamentais asseguradas no processo penal.
O Estado, ao ampliar sua atuação sancionadora, corre o perigo de transformar o Direito Administrativo em um espaço de punição mais célere e menos rigoroso, o que pode implicar fragilização das garantias processuais, como a ampla defesa, o contraditório e a presunção de inocência (Ferraz Jr., 2016).
Essa preocupação tem sido amplamente discutida pela doutrina, que alerta para o perigo de banalização das sanções administrativas e para a necessidade de estabelecer parâmetros normativos claros que delimitem a atuação estatal (Carvalho; Fonseca, 2020).
Ademais, a expansão sancionadora no Estado contemporâneo reflete uma mudança de paradigma em relação à função do Direito. O Direito Administrativo sancionador não apenas organiza a relação entre Administração e administrados, mas também assume a tarefa de moldar comportamentos e estruturar mercados. Essa função regulatória implica um poder de intervenção profundo, que exige do Estado equilíbrio constante entre a busca pela eficácia das normas e a preservação dos direitos fundamentais dos cidadãos (Gonçalves; Grilo, 2021).
A questão central que se coloca, portanto, é como garantir que a atuação sancionadora não se converta em exercício arbitrário de poder, mas permaneça dentro dos marcos da juridicidade e da proporcionalidade (Alexy, 2008).
Assim, compreender o poder punitivo no Direito Administrativo significa reconhecer não apenas sua legitimidade, mas também os riscos de sua expansão descontrolada. É nesse ponto que se torna essencial recorrer à teoria da norma como instrumento de análise, permitindo compreender a sanção não apenas como elemento central da normatividade jurídica, mas também como mecanismo que só se legitima quando condicionado por princípios constitucionais e garantias fundamentais (Bobbio, 1999; Ferraz Jr., 2016).
3. Sanção e normatividade jurídica: Validade, eficácia, imperatividade e coerção
A compreensão do poder sancionador estatal exige uma análise que vá além da perspectiva meramente formal da lei e que alcance os elementos estruturantes do fenômeno jurídico. É nesse ponto que a teoria da norma se apresenta como ferramenta essencial, pois permite examinar a função das sanções e o modo como elas se inserem no sistema normativo.
A sanção, longe de ser apenas uma consequência acessória ao descumprimento de uma regra, constitui um elemento central da normatividade jurídica, sem o qual o direito perderia sua força prescritiva e seu caráter vinculante.
Na concepção de Bobbio na obra “A teoria da norma”, a norma jurídica é antes de tudo um comando prescritivo que se distingue por estar sempre acompanhado da previsão de uma consequência em caso de descumprimento. Essa consequência, que se traduz em sanção, é aquilo que diferencia a norma jurídica das demais regras sociais, como as normas morais ou de etiqueta.
Assim, o direito não se limita a aconselhar ou recomendar condutas, mas prescreve comportamentos cuja inobservância acarreta reações institucionalizadas. Essa centralidade da sanção permite entender o porquê de o discurso normativo ser caracterizado pela ambiguidade de impor comportamentos e, ao mesmo tempo, prever os efeitos de sua violação, mantendo-se válido mesmo diante da desobediência.
Já Tércio Sampaio Ferraz Jr. desenvolve uma perspectiva pragmática que amplia o alcance da teoria da norma. Para ele, as normas jurídicas não apenas qualificam juridicamente comportamentos, mas também estruturam relações de poder, estabelecendo vínculos entre autoridade e sujeito. A sanção, nesse contexto, não é apenas um dado empírico de coerção, mas uma ameaça discursiva que se manifesta como expectativa de reação da autoridade diante de determinada conduta.
Desse modo, a norma jurídica opera como um mecanismo de controle comunicativo, garantindo que a relação de autoridade não seja rompida mesmo quando o sujeito descumpre o comportamento prescrito. Essa visão demonstra que o poder sancionador é inseparável da própria estrutura normativa, pois a ameaça de sanção constitui um componente essencial da autoridade da norma.
Frederick Schauer, por sua vez, enfatiza o caráter coercitivo do Direito e defende que sua força decorre justamente da capacidade de impor consequências ao descumprimento das regras. Para o autor, a normatividade jurídica não pode ser reduzida a um sistema de recomendações racionais, mas deve ser compreendida como um conjunto de comandos respaldados pela possibilidade concreta de coerção. Essa concepção coloca em evidência o caráter performativo da norma, que não apenas descreve condutas, mas efetivamente molda comportamentos, apoiando-se na credibilidade da ameaça de sanção.
A teoria da norma, portanto, permite compreender a sanção administrativa não apenas como um instrumento de repressão, mas como o núcleo que assegura a eficácia do ordenamento jurídico. É a sanção que transforma o dever-ser em uma expectativa real de comportamento, conectando a prescrição normativa às consequências jurídicas de sua violação.
No âmbito do Direito Administrativo, essa análise revela a importância da tipicidade e da taxatividade das sanções, que funcionam como garantias contra a arbitrariedade do poder público. Sem parâmetros normativos claros, a ameaça de sanção se converte em um exercício ilimitado de poder, comprometendo a legitimidade do sistema.
Assim, a partir da teoria da norma, é possível concluir que o poder punitivo administrativo deve ser compreendido como manifestação legítima da autoridade estatal, mas somente quando acompanhado da previsão normativa clara, da possibilidade de controle e da submissão aos princípios constitucionais.
A sanção não é um elemento acessório ou eventual do Direito, mas o componente que assegura sua força e sua autoridade. Essa constatação permite perceber que a legitimidade do poder sancionador não decorre apenas de sua previsão em lei, mas da forma como se articula com a estrutura normativa e com as garantias fundamentais do Estado Democrático de Direito.
4. Estrutura e função das normas sancionatórias administrativas
A estrutura das normas sancionatórias no Direito Administrativo pode ser compreendida a partir de sua lógica condicional.
Trata-se de comandos que estabelecem condutas a serem observadas e vinculam ao seu descumprimento a imposição de uma consequência jurídica negativa. Essa característica permite diferenciar as normas sancionatórias de simples enunciados programáticos, conferindo-lhes um papel instrumental na preservação da ordem jurídica e no reforço da autoridade estatal.
No âmbito administrativo, essa estrutura condicional cumpre dupla função. De um lado, assegura a eficácia das normas de conduta, uma vez que o administrado reconhece que o descumprimento de seus deveres implicará em sanções. De outro, organiza expectativas sociais, criando um ambiente de previsibilidade que fortalece a confiança na autoridade da Administração.
Nesse sentido, as sanções não são apenas um recurso repressivo, mas um mecanismo essencial para dar estabilidade ao ordenamento e para reforçar a legitimidade das prescrições normativas (Bobbio, 1999).
A distinção entre normas de conduta e normas de sanção é fundamental para compreender a lógica do Direito Administrativo sancionador.
Enquanto as primeiras prescrevem comportamentos desejados, as segundas asseguram a efetividade do sistema ao preverem consequências para a violação daquelas condutas.
Essa divisão impede que o poder punitivo seja exercido de maneira autônoma ou arbitrária, já que a sanção deve sempre estar ancorada em um dever jurídico previamente estabelecido. A ausência de clareza nessa relação compromete a legitimidade da sanção e gera insegurança jurídica (Ferraz Jr., 2016).
A vagueza normativa, contudo, apresenta-se como um dos grandes desafios do Direito Administrativo sancionador. A utilização de tipos abertos e conceitos jurídicos indeterminados, embora permita flexibilidade, pode comprometer a previsibilidade das consequências jurídicas. Essa característica, quando não equilibrada por princípios constitucionais, abre espaço para arbitrariedades e violações de direitos fundamentais. Por isso, a tipicidade e a taxatividade das infrações administrativas constituem garantias centrais, funcionando como limites materiais ao exercício do poder sancionador (Carvalho; Fonseca, 2020).
Além disso, a estrutura das normas sancionatórias não pode ser analisada apenas sob a ótica da legalidade formal. É necessário considerar a juridicidade em sentido amplo, que engloba não apenas a conformidade da sanção com a lei, mas também a sua compatibilidade com os princípios constitucionais que estruturam o Estado de Direito.
A proporcionalidade, a razoabilidade e a segurança jurídica constituem, nesse contexto, parâmetros indispensáveis para aferir a validade das sanções.
O Direito Administrativo sancionador, portanto, deve ser compreendido como espaço em que se cruzam a eficácia regulatória e as garantias fundamentais, exigindo equilíbrio constante (Gonçalves; Grilo, 2021).
Assim, a função das normas sancionatórias vai além da simples punição. Elas cumprem um papel organizador e legitimador da ordem jurídica, ao mesmo tempo em que atuam como barreiras contra o abuso de poder. A sanção administrativa não é apenas um castigo, mas um elemento central da normatividade que estabiliza relações entre Estado e administrados. Por isso, sua estrutura condicional, sua função regulatória e seus limites principiológicos devem ser analisados de forma integrada, permitindo a construção de um modelo de poder sancionador que seja eficaz sem perder de vista a proteção dos direitos fundamentais (Schauer, 2015).
5. Balizas constitucionais e o controle do poder sancionador
A expansão do poder sancionador da Administração Pública, embora necessária para garantir a eficácia da regulação estatal em sociedades complexas, não pode ser exercida de forma ilimitada. O exercício desse poder exige balizas materiais e formais que assegurem a compatibilidade entre a atuação punitiva do Estado e os valores constitucionais que estruturam o Estado Democrático de Direito. Essas balizas são fornecidas pelos princípios jurídicos, que funcionam como limites e parâmetros de racionalidade para a aplicação das sanções administrativas.
O princípio da legalidade é o primeiro e mais evidente desses limites. Ele garante que nenhuma sanção pode ser imposta sem previsão normativa prévia e clara.
No entanto, no âmbito administrativo, a legalidade deve ser compreendida em sentido amplo, englobando não apenas a conformidade estrita à lei, mas também a observância dos princípios constitucionais que orientam a atividade estatal. Essa perspectiva, muitas vezes designada como juridicidade, reforça a ideia de que a Administração não pode agir apenas porque a lei autoriza, mas deve fazê-lo de modo compatível com os direitos fundamentais e com os valores que informam a ordem constitucional (Gonçalves; Grilo, 2021).
Além da legalidade, a proporcionalidade e a razoabilidade desempenham papel decisivo na aplicação das sanções administrativas. Esses princípios exigem que a resposta sancionadora seja adequada, necessária e equilibrada em relação à gravidade da infração e às circunstâncias do caso concreto. (Alexy, 2008).
Ao exigir essa ponderação, evita-se que o poder punitivo seja utilizado de forma desproporcional ou desmedida, assegurando um espaço de equilíbrio entre a eficácia da sanção e a proteção da esfera jurídica do administrado (Alexy, 2008).
A segurança jurídica e a proteção da confiança legítima também constituem fundamentos centrais nesse campo. A Administração não pode alterar de maneira abrupta e arbitrária o tratamento de situações que criaram expectativas legítimas dos cidadãos e empresas. No contexto sancionador, isso significa que não apenas as condutas proibidas devem ser previamente determinadas, mas também que a interpretação e a aplicação das normas devem seguir padrões estáveis e previsíveis. Essa previsibilidade é condição essencial para que os administrados possam orientar suas condutas em conformidade com o direito, sem receio de mudanças inesperadas na atuação do poder público (Carvalho; Fonseca, 2020).
Outro aspecto relevante é a motivação dos atos sancionadores. A imposição de uma sanção não pode se limitar a uma decisão formalmente válida, mas deve ser acompanhada de fundamentação clara, demonstrando a adequação da medida e a sua compatibilidade com os princípios constitucionais.
A exigência de motivação, além de ser um corolário do devido processo legal, constitui uma barreira contra a arbitrariedade, pois permite o controle da legalidade e da legitimidade da decisão administrativa, tanto pelo próprio administrado quanto pelo Poder Judiciário (Schauer, 2015).
Esses princípios não funcionam apenas como barreiras abstratas, mas como instrumentos concretos de contenção do arbítrio. A proporcionalidade, por exemplo, impõe a análise da intensidade da sanção em relação ao fim que se pretende alcançar. A segurança jurídica assegura que a sanção não pode ser aplicada com base em normas vagas ou imprecisas. A motivação obriga o administrador a justificar a escolha entre diferentes alternativas sancionatórias. E a juridicidade, em sentido amplo, exige que todo o exercício do poder sancionador seja compatível com o sistema constitucional de garantias.
Portanto, a teoria da norma, que evidencia a centralidade da sanção no Direito, encontra no campo administrativo um ponto de equilíbrio necessário, de maneira que a sanção não é legítima apenas porque prevista, mas porque aplicada em conformidade com princípios constitucionais. O diálogo entre normatividade e principiologia mostra que a força do Direito não pode ser reduzida à mera coerção, mas deve se legitimar no respeito aos direitos fundamentais e no exercício racional da autoridade estatal (Bobbio, 1999; Ferraz Jr., 2016 ; Schauer, 2015).
6. Considerações finais
A análise do poder punitivo estatal à luz da teoria da norma permitiu identificar que as sanções administrativas não são meros instrumentos de coerção, mas sim elementos centrais na estrutura do ordenamento jurídico.
As sanções administrativas cumprem funções regulatórias, preventivas e repressivas, ao mesmo tempo em que revelam a necessidade de limites constitucionais para garantir a legitimidade de sua aplicação. A sanção não pode ser vista apenas como resposta automática ao descumprimento da norma, mas como um mecanismo que mantém viva a autoridade da ordem jurídica e preserva a confiança social em sua eficácia.
O estudo revelou ainda que o Direito Administrativo sancionador se encontra em um espaço de tensão permanente entre eficácia e garantismo. Se, por um lado, há a necessidade de conferir efetividade à atuação regulatória do Estado em setores fundamentais, por outro, há o risco de se ampliar desmedidamente o alcance do poder punitivo, com enfraquecimento das garantias individuais.
Nesse cenário, a juridicidade surge como categoria essencial, integrando legalidade e princípios constitucionais em um mesmo eixo de legitimação. Assim, a Administração não se limita a agir conforme a lei, mas deve também submeter sua atuação ao respeito aos direitos fundamentais e ao equilíbrio proporcional entre meios e fins (Ferraz Jr., 2016; Schauer, 2015).
Outro ponto relevante é que a teoria da norma, especialmente nas formulações de Bobbio e Ferraz Jr., evidencia a ambiguidade do discurso normativo, no qual a sanção funciona como ameaça, promessa de reação e, ao mesmo tempo, como elemento estruturante da autoridade. Essa concepção reforça que as normas sancionatórias não apenas regulam condutas, mas estabelecem relações de poder e expectativa entre autoridade e sujeito. No campo administrativo, essa dinâmica se complexifica, exigindo que a imposição de sanções seja acompanhada por justificativas transparentes, previsibilidade normativa e mecanismos de controle.
As reflexões empreendidas também mostram que o Direito Administrativo sancionador, embora inspirado na matriz penal, possui características próprias, sobretudo no que se refere à função regulatória. Não se trata apenas de punir, mas de organizar comportamentos coletivos em áreas estratégicas, como o mercado, o meio ambiente e as relações de consumo. Contudo, essa função ampliada só pode ser exercida legitimamente se for acompanhada de freios principiológicos, que transformam a força do direito em força legítima, e não mera imposição de violência institucionalizada (Bobbio, 1999; Gonçalves; Grilo, 2021).
Diante disso, conclui-se que a sanção administrativa deve ser compreendida como manifestação legítima do poder punitivo do Estado, desde que estruturada e aplicada em conformidade com a CF. A teoria da norma oferece a chave interpretativa para entender o caráter sancionador do Direito, mas é no diálogo com os princípios constitucionais que se encontram os instrumentos de contenção necessários para evitar abusos. O equilíbrio entre a eficácia regulatória e a proteção dos direitos fundamentais constitui, assim, a condição indispensável para que o poder sancionador administrativo se afirme como legítima expressão do Estado Democrático de Direito.
________________________
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 14. ed. São Paulo: Edipro, 1999.
CARVALHO, André; FONSECA, Rafael. Direito administrativo sancionador: autonomia e função no Brasil. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, São Paulo, v. 6, n. 11, p. 110-125, 2020.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica. 5. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2016.
GONÇALVES, Benedito; GRILO, Renato César Guedes. Os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador no regime democrático da Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 10-30, 2021.
SCHAUER, Frederick. A força do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2015