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Monitores corporativos independentes no Brasil: Há experiência no CADE?

A atuação dos Trustees no CADE espelha monitores independentes, garantindo fiscalização opinativa de acordos e cumprimento de obrigações corporativas.

15/10/2025

Nos artigos anteriores dessa série, apresentamos a base conceitual sobre os monitores corporativos independentes, sua forma de trabalho, suas vantagens e desvantagens1, bem como a experiência dos EUA2 e do MPF3 no Brasil nesse tema. Neste artigo, vamos explorar em que medida a experiência do CADE com a utilização de Trustees se assemelha à utilização dos monitores corporativos independentes.

Inicialmente, vale destacar que há uma incongruência normativa relevante entre a lei anticorrupção (lei 12.846/13) e a lei antitruste (lei 12.529/11). Enquanto a lei anticorrupção não prevê a imposição unilateral de monitor corporativo independente, restringindo a medida ao âmbito de acordos de leniência, a lei antitruste confere ao CADE poderes amplos para impor medidas necessárias, o que tem se interpretado incluir a nomeação unilateral de Trustees.

Entretanto, da mesma forma como acontece na lei anticorrupção, a nomeação de Trustees acontece, via de regra, em sede de ACC - Acordos em Controle de Concentração e TCC - Termos de Compromisso de Cessação, de modo consensual entre as partes privadas envolvidas e o próprio CADE. Apesar dessa diferença legal, há semelhanças importantes na utilização de ambos os institutos, conforme tratado a seguir.

O CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica, responsável por aplicar a lei de defesa da concorrência no Brasil, utiliza a figura do Trustee, que pode exercer funções de monitoramento, operação ou desinvestimento em ACC e TCC. O Trustee atua, em termos práticos, como uma extensão do CADE no monitoramento de suas decisões mais complexas.

Os Trustees são amplamente utilizados pelo CADE. Inclusive, em 2024, a autoridade publicou o Manual para Uso de Trustee4, que detalha os critérios de seleção e atuação desses profissionais e empresas. Esse manual foi acompanhado de dois estudos importantes e inúmeros casos julgados pela autoridade. Os estudos, publicados em 20235 e 20246, abordam a experiência do CADE com esse instituto. Eles revelam que a autoridade utiliza o Trustee, principalmente, em controle de estruturas em ACCs. Entre 2012 e 2023, o CADE homologou 69 ACCs, dentre os quais 48 previram o Trustee. Dentre esses 48, todos utilizaram o de monitoramento, enquanto 11 implementaram o de desinvestimento e 8, o de operação.

O uso de Trustees também aparece em TCCs, ainda que de maneira menos expressiva. Conforme o estudo de 2024, entre 2012 e 2023, 16 TCCs homologados pelo CADE previram a figura do Trustee de monitoramento, enquanto 17, relativos a casos de cartel, previram a contratação de auditoria externa para supervisionar o progresso do programa de compliance a ser instituído diante da celebração do TCC.7

Assim, existem três tipos de Trustees utilizados pelo CADE: (i) monitoramento, (ii) desinvestimento, e (iii) operação.

O Trustee de monitoramento é cabível para o monitoramento da devida aplicação dos remédios sugeridos pelo CADE em condutas anticompetitivas e em controle de estruturas, como operações de M&A e joint ventures8. Portanto, é sua obrigação, nesses casos, monitorar o comportamento das partes e elaborar relatórios sobre o cumprimento ou não das obrigações estabelecidas, reportando eventuais violações. O Manual exemplifica outras obrigações atribuídas ao Trustee de monitoramento, como: (i) acompanhar medidas de salvaguardas no processo de desinvestimento; (ii) monitorar, em casos de carve-out, separação dos ativos e de realocação de pessoal; (iii) supervisionar o processo das empresas compromissárias em encontrar outro comprador; e (iv) orientar o gerente operacional no cumprimento das obrigações rotineiras da empresa envolvida.

Reconhece-se que o trustee é apenas uma dentre as possíveis formas de monitoramento definida em sede de remédios, sendo possível citar também o acompanhamento das obrigações pelo próprio Cade, além da adoção de auditoria externa independente.

O Trustee de desinvestimento9, por sua vez, é aplicável quando as empresas envolvidas no processo de desinvestimento não conseguem identificar um comprador adequado para os ativos. Portanto, o Trustee tem como obrigação assumir a seleção do comprador e a avaliação das propostas, oferecendo opinião independente e não vinculante ao CADE sobre aspectos técnicos e financeiros da operação.

Por fim, o Trustee de operação volta-se, exclusivamente, ao controle de estruturas. Nesse sentido, tem como obrigação “[...] gerenciar e supervisionar o dia a dia do negócio a ser desinvestido de forma a que mantenha sua independência e competitividade em relação à empresa combinada pós-operação em análise10. Por causa disso, o Manual informa que esse Trustee pode desempenhar funções que se sobrepõem às dos Trustees de monitoramento e de desinvestimento. Destaca-se que, por ser responsável pela condução das operações, o Trustee deve deter todos os direitos, obrigações e responsabilidades para desempenhar suas funções, de modo que a empresa originalmente proprietária dos ativos “[...] deixará de exercer qualquer tipo de controle ou ingerência sobre os ativos a serem desinvestidos.”11

Segundo pesquisa realizada por Maiolino12, abarcando Trustees em ACCs entre 2013 e 2023, o trustee de monitoramento é o mais utilizado (65%), seguido pelo de desinvestimento (27%) e pelo de operação (8%). A autora explica que os trustees de desinvestimento e o de operação são usados em remédios estruturais, e tendo em vista que a maior parte dos remédios aplicados pelo CADE é comportamental, é natural que o tipo de trustee (de monitoramento) também reflita o cenário do tipo de remédio que vem sendo aplicado pelo Cade. Assim, dado o escopo de atuação dos Trustees de desinvestimento e operação, por serem utilizados em atos de concentração e seus remédios antitruste, eles possuem características muito distintas dos Monitores Corporativos Independentes.

Por outro lado, o Trustee de monitoramento possui semelhanças com o Monitor Corporativo Independente. Ambos são utilizados para monitoramento de cumprimento de obrigações em processos relacionados à conduta ilegais. Entretanto, o CADE foca a sua utilização em ACCs e TCCs, sendo que não há casos públicos da utilização de Trustee para monitorar o cumprimento de obrigações em acordos de leniência.

Há outras semelhanças: como o monitor corporativo independente, os Trustees têm poderes de fiscalização, mas não de decisão. Nesse sentido, o Manual também deixa claro que a decisão sobre o cumprimento ou não do acordo pela empresa é de competência do CADE13. Portanto, a avaliação do Trustee é de caráter opinativo e não vinculativo. Isso abre possibilidade para eventuais discordâncias entre o Trustee e o CADE sobre o cumprimento do acordo. Além disso, os Trustees possuem responsabilidades gerais perante o CADE muito similares às definidas aos monitores corporativos independentes nos acordos do MPF e nos memorandos do DOJ. Dentre elas, destacam-se: o dever de apresentar relatórios periódicos sobre o cumprimento das obrigações no acordo celebrado; e elaborar relatórios extraordinários sobre denúncias ou quaisquer obstáculos ao cumprimento do acordo celebrado. Portanto, dentre os tipos de Trustee, o que mais apresenta similaridades com o monitor corporativo independente é o Trustee de monitoramento, dado que ambos estão encarregados de acompanhar o fiel cumprimento das obrigações acordadas entre a empresa e a autoridade pública.

Conforme apresentado acima, a experiência na lei antitruste pode contribuir com a experiência na lei anticorrupção e vice-versa. De um lado, dada a ampla utilização dos Trustees pelo CADE, é possível aproveitar toda a experiência adquirida pela autoridade concorrencial - desde o processo de seleção do Trustee até o acompanhamento de seus trabalhos - para o melhor desenvolvimento da utilização do monitor corporativo independente. De outro lado, é possível aproveitar a experiência na utilização do monitor corporativo independente em acordos de leniência da lei anticorrupção, para os acordos de leniência da lei antitruste, ampliando a sua utilização no CADE.

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1 Monitores corporativos independentes anticorrupção e antitruste: O que são? O que fazem? Onde vivem? Quais suas vantagens e desvantagens? Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/440224/monitores-corporativos-independentes-anticorrupcao-e-antitruste

2 Monitores corporativos independentes nos Estados Unidos e seus possíveis reflexos no Brasil: Os memorandos do DOJ e as experiências concretas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/440791/monitores-corporativos-independentes-nos-eua-e-reflexos-no-brasil

3 Monitores corporativos independentes no Brasil: Qual a experiência do MPF? Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/441386/monitores-corporativos-independentes-no-brasil-a-experiencia-do-mpf

4 Disponível em: https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/noticias/superintendencia-geral-do-cade-publica-manual-para-uso-de-trustee/Manualdetrusteefinal.pdf#page=9.45. Acesso em 30 jul. 2025.

5 ATTAYDE, Maria Cristina de Souza Leão. Monitoramento de Remédios Antitruste: uma análise da jurisprudência do Cade. Documento de Trabalho nº 003/2023. Brasília: Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Departamento de Estudos Econômicos, mai. 2023. ISSN 2764-1031. p. 28 a 32. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/documentos-de-trabalho/2023/DT_003-Monitoramento-remedios-antitruste.pdf. Acesso em 6 set. 2025.

6 TEREPINS, Sandra; SEVERINO, Lílian Santos Marques. Uso de Trustees: experiência brasileira e internacional. Documento de Trabalho nº 003/2024. Brasília: Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Departamento de Estudos Econômicos, nov. 2024. ISSN 2764-1031. p. 44 e 45. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/documentos-de-trabalho/2024/Uso%20de%20trustees%20-%20DT%20%20VF%2012112024.pdf#page=43.08. Acesso em 6 set. 2025.

7 Idem.

8 Manual para Uso de Trustee. Pg. 10 e 11.

9 Idem. Pg. 12 e 13.

10 Ibidem. Pg. 13.

11 Ibidem. Pg. 13.

12 MAIOLINO, Isabela. REMÉDIOS EM ATOS DE CONCENTRAÇÃO:  UMA ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA E PERSPECTIVAS FUTURAS. Tese de doutorado, UnB. 2024.

13 Ibidem. Pg. 26.

Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.

Rafael Szmid
Counsel no escritório global Reed Smith. Advogado licenciado no Brasil e nos Estados Unidos (Nova Iorque). Mestre e Doutor, Universidade de São Paulo. LL.M., Stanford Law School. Membro da International Association of Independent Corporate Monitors. Autor do livro "Monitores Corporativos Anticorrupção no Brasil: Um Guia para sua Utilização no Processo Administrativo e Judicial" e de artigos acadêmicos sobre anticorrupção, antitruste e compliance.

Alessandro Pezzolo Giacaglia
Advogado sênior no Pinheiro Neto Advogados, com atuação nas áreas de Direito da Concorrência e Disputas Econômicas e Compliance. Possui mestrado em Direito pela Universidade da Chicago (EUA). Atuou como advogado internacional no escritório Cleary Gottlieb Steen & Hamilton LLP.

Pedro Henrique Ache Buturi
Advogado em Silva Prado Advogados. CPC-A. Pós-graduado em Direito Empresarial. As opiniões são pessoais e não necessariamente representam a percepção das instituições às quais esteja vinculado.

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