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Autonomia tributária versus neutralidade federativa: Uma leitura crítica da ADI 7476/RJ

O STF declarou inconstitucional lei do RJ que favorecia produtores locais, reafirmando neutralidade fiscal e isonomia, mas tensionando a autonomia dos Estados.

16/10/2025

Em fevereiro deste ano, o STF concluiu o julgamento da ADI 7476/RJ, versando sobre o art. 22, parágrafo único, inciso I, da lei estadual 2.657/1996, do Estado do Rio de Janeiro.

A norma fluminense suspendia o regime de substituição tributária para determinados produtos, quando fabricados por estabelecimentos sediados no Estado. O objetivo era claro: estimular a produção interna e aliviar o custo tributário de empreendimentos locais.

Por unanimidade, o STF estabeleceu que essa diferenciação viola os princípios da isonomia, da não discriminação em razão de procedência ou destino e da neutralidade fiscal, julgando procedente o pedido e declarando a inconstitucionalidade do dispositivo. 

A decisão reacende um debate antigo e, talvez, nunca resolvido em nossa federação: até que ponto a neutralidade fiscal pode limitar a autonomia tributária dos Estados?

ICMS e a lógica da substituição tributária

O ICMS é um dos pilares da autonomia financeira dos entes federativos. Previsto no art. 155, inciso II, da Constituição, ele garante aos Estados uma fonte expressiva e própria de arrecadação, fundamental para a concretização da descentralização político-administrativa prevista na Carta de 1988.

A substituição tributária, por sua vez, é uma técnica de arrecadação que antecipa o recolhimento do imposto. Nela, um único contribuinte, normalmente o fabricante, recolhe o ICMS devido por toda a cadeia produtiva, evitando a evasão fiscal e simplificando a fiscalização.

No caso da lei fluminense, a exceção concedida aos produtores locais afastava essa antecipação, criando um benefício indireto em favor da produção regional. O argumento do Estado era de que a medida fomentava a economia interna e reduzia o custo financeiro das pequenas e médias empresas locais, que muitas vezes sofrem com o ônus antecipado do ICMS.

Os princípios em conflito

A decisão do Supremo invocou três princípios constitucionais centrais: isonomia tributária, não discriminação por procedência ou destino e neutralidade fiscal.

O primeiro, de matriz aristotélica, impõe o dever de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. O segundo impede que os entes federativos adotem critérios de origem ou destino para conceder benefícios ou estabelecer encargos, evitando guerras fiscais e desequilíbrios federativos.

Já a neutralidade fiscal é uma construção moderna do Direito Econômico Tributário, e significa que o sistema tributário não deve distorcer a concorrência, nem favorecer artificialmente determinado agente, produto ou localidade.

O STF, ao combinar essas balizas, entendeu que a lei fluminense introduzia uma vantagem competitiva indevida, comprometendo o equilíbrio entre os entes federados e violando o pacto federativo em sua dimensão econômica.

A tensão entre coerência constitucional e realidade federativa

Embora o raciocínio jurídico do Supremo seja tecnicamente correto, ele levanta uma questão incômoda: a coerência constitucional nem sempre coincide com a lógica econômica do federalismo brasileiro.

A Constituição de 1988 conferiu aos Estados competência para instituir e arrecadar o ICMS, justamente para garantir autonomia financeira, essencial à autonomia política. No entanto, decisões que impõem uma leitura maximalista da neutralidade fiscal acabam esvaziando essa competência, transformando os Estados em meros executores de uma política tributária uniforme.

O ministro relator reconheceu essa contradição ao afirmar que “a neutralidade é baliza constitucional imprescindível na arquitetura de regimes de tributação”, mas também que “cada ente federativo deve possuir uma esfera de competência tributária que lhe garanta renda própria”.

Essas duas afirmações, embora ambas verdadeiras, exprimem a contradição estrutural do federalismo fiscal brasileiro: exige-se neutralidade de um sistema que, por desenho, é fragmentado e concorrencial.

Neutralidade ou paralisia?

A neutralidade fiscal, quando interpretada de modo absoluto, corre o risco de converter-se em paralisia federativa.

Se cada tentativa de política fiscal local, ainda que legítima e pontual, for tratada como “violação da neutralidade”, os Estados perdem sua capacidade de ajustar o sistema tributário às suas realidades econômicas.

O desafio está em compatibilizar a neutralidade com a autonomia federativa, sem que uma elimine a outra.

Autonomia formal e substância econômica

A autonomia dos entes federativos é mais do que uma cláusula formal, ela é condição de existência do federalismo.

Sem capacidade efetiva de arrecadar e gerir suas receitas, os Estados se tornam dependentes de transferências, e o equilíbrio federativo passa a ser apenas retórico.

O excesso de uniformização, muitas vezes imposto por interpretações constitucionais rígidas, conduz à centralização disfarçada, na qual a União define, direta ou indiretamente, o espaço fiscal de todos os demais entes.

Nesse cenário, a autonomia tributária dos Estados torna-se subordinada à tutela do Supremo, e o federalismo brasileiro, embora mantido em sua forma, perde densidade material.

Um federalismo cooperativo ainda por construir

O julgamento da ADI 7476/RJ reflete, em última análise, a dificuldade do País em conciliar unidade e diversidade dentro de seu sistema federativo.

Nosso modelo, híbrido e por vezes contraditório, exige coordenação e lealdade entre os entes, mas frequentemente recorre à judicialização para resolver disputas fiscais, o que demonstra a ausência de verdadeira cooperação horizontal.

É preciso reconhecer que a neutralidade fiscal e a autonomia tributária não são valores excludentes, mas complementares. A neutralidade protege o mercado nacional, a autonomia garante o pluralismo econômico e político.

O desafio está em definir o ponto de equilíbrio, ou seja, permitir que os Estados tenham instrumentos legítimos de política tributária, sem romper a integridade do sistema e sem retornar à guerra fiscal.

Conclusão

O STF agiu em conformidade com a Constituição, reafirmando os princípios que sustentam o equilíbrio federativo.

Entretanto, é legítimo questionar se a aplicação rígida da neutralidade fiscal vem produzindo um efeito colateral indesejado: o enfraquecimento prático da autonomia dos Estados e o esvaziamento do próprio pacto federativo que se pretende proteger.

O caminho talvez não esteja em negar a neutralidade, mas em reinterpretá-la à luz de uma neutralidade cooperativa, que permita aos Estados certa margem de manobra fiscal, desde que exercida de modo transparente, deliberado e compatível com os objetivos da Federação.

Somente assim a autonomia tributária deixará de ser um símbolo retórico e se tornará instrumento efetivo de desenvolvimento regional e de fortalecimento da Federação brasileira.

Elisa Rafaella Lima Silva
Advogada Associada do escritório Sérgio Murilo Braga Advogados Associados.

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