1. Introdução
O pós-feminismo emerge como fase de reinterpretação das conquistas feministas, caracterizada pela individualização do empoderamento e pela reflexão crítica sobre contradições entre autonomia e expectativas relacionais. McRobbie (2008) define o fenômeno como resposta cultural complexa que simultaneamente reconhece conquistas feministas e as problematiza através da revalorização de elementos tradicionais. Nas redes sociais, observa-se proliferação de narrativas femininas que expressam frustração com a "falta de homens maduros", associando solidão à própria independência conquistada.
Este estudo parte da hipótese de que tais narrativas configuram vitimização simbólica, mobilizando vulnerabilidade como recurso discursivo e relacional. O conceito de "energia masculina" opera como marcador dessa ambivalência, sinalizando desejo de retorno a papéis tradicionais dentro de discurso aparentemente emancipatório. A relevância da investigação reside na necessidade de compreender transformações nas relações de gênero mediadas pelas tecnologias digitais, fenômeno ainda pouco estudado sistematicamente no Brasil.
O objetivo geral é analisar o fenômeno da vitimização simbólica nas narrativas pós-feministas digitais, investigando padrões discursivos de frustração relacional. Os objetivos específicos incluem mapear e categorizar narrativas em redes sociais, comparar padrões entre Brasil e contexto internacional, desenvolver instrumento analítico para mensuração da intensidade da vitimização simbólica e discutir implicações socioculturais para as relações de gênero contemporâneas.
2. Referencial teórico
O pós-feminismo representa fenômeno cultural que valoriza escolhas individuais e realização pessoal, deslocando o foco da luta coletiva para gestão individual da própria vida (LIPOVETSKY, 2000). Diferentemente das ondas feministas anteriores centradas em transformação estrutural, o pós-feminismo reconhece conquistas como adquiridas, gerando tensão entre desconstrução de papéis tradicionais e desejo de reestabilização de categorias fixas de gênero. Butler (2019) demonstra que gênero é performance continuamente reiterada através de práticas discursivas, e no contexto pós-feminista essa performatividade manifesta-se em ambivalências características.
Giddens (1993) analisa transformações da intimidade nas sociedades modernas, argumentando que relações afetivas tornaram-se progressivamente reflexivas e negociadas, perdendo garantias institucionais tradicionais. Esse processo gera simultaneamente possibilidades de democratização e novas formas de incerteza e vulnerabilidade. Bauman (2004) caracteriza relações contemporâneas como "líquidas", marcadas por fragilidade e constante renegociação, processo intensificado pelas redes sociais que oferecem infinitas possibilidades de conexão enquanto dificultam compromissos duradouros.
A vitimização simbólica refere-se à mobilização estratégica da vulnerabilidade como recurso relacional e comunicacional. Diferentemente da vitimização real envolvendo danos concretos, opera no plano discursivo construindo narrativas de sofrimento que legitimam demandas e posicionamentos sociais. No pós-feminismo digital, manifesta-se na articulação paradoxal entre autonomia e carência, força e fragilidade, independência e desejo de proteção.
3. Resultados e discussão
3.1. Panorama geral
A análise evidenciou prevalência significativa do fenômeno investigado em ambos os contextos. O sentimento predominante brasileiro caracterizou-se como frustração/nostalgia (65%) enquanto o internacional assumiu tom mais reflexivo/terapêutico (55%), sugerindo diferenças qualitativas relevantes.
3.2 Padrões narrativos
Em 80% das análises, a narrativa-padrão revela a ambivalência pós-feminista: inicia-se com a celebração da autonomia e conquistas financeiras/profissionais ("pago minhas contas"), seguida pela expressão de carência ("sinto falta de um homem de verdade") e culmina na culpa atribuída aos homens contemporâneos (fracos/imaturos) ou ao feminismo. Este padrão oscila entre a valorização da independência e o anseio por modelos relacionais tradicionais.
3.3. Análise categórica
O conteúdo analisado revela um padrão de ambivalência, onde a Autoafirmação de independência (V1), com foco em autonomia financeira e conquistas, coexiste com a Frustração afetiva (V2), a categoria mais frequente, marcada pela solidão e dificuldade em encontrar parceiros. Paralelamente, 76% das pesquisas brasileiras apresentam Críticas aos homens (V3), rotulados como "imaturos" ou "sem iniciativa," enquanto a Nostalgia do masculino tradicional (V4) é expressa em 88% dos textos nacionais, valorizando a "energia masculina forte" e a capacidade de proteção. Esse contraste entre a independência e o anseio por um parceiro de perfil tradicional consolida a tensão identitária pós-feminista.
3.4. Índice IVSPF
O IVSPF - Índice de Vieses Pós-Feministas no Brasil é significativamente superior (média 0,72) ao internacional (média 0,64). Essa diferença é sustentada pela proporção de publicações com IVSPF acima de 0,70 (76% no Brasil versus 52% internacionalmente). Tal disparidade confirma uma maior carga emocional e um desequilíbrio mais acentuado entre empoderamento e vitimização no contexto nacional, possivelmente devido à maior valorização cultural de papéis tradicionais e à menor presença de narrativas terapêuticas individualizadas.
3.5. Análise interacional
A recepção das narrativas difere drasticamente entre contextos, evidenciando maior polarização no Brasil. Enquanto internacionalmente predominam a empatia (38%) e perspectivas terapêuticas (35%), o Brasil apresenta uma alta taxa de concordância/validação (42%) e uma significativa parcela de críticas irônicas masculinas (31%) - como "pediram igualdade, agora aguentem". Essa crítica acentuada no contexto brasileiro sugere que as narrativas pós-feministas estão sendo mais ativamente apropriadas como argumentos antifeministas, intensificando a polarização nas discussões de gênero.
3.6. Dimensão geracional
A faixa etária é um fator determinante, com o IVSPF - Índice de Vieses Pós-Feministas atingindo o pico de 0,74 na faixa 26-35 anos. Este período é identificado como de maior frustração, coincidindo com a pressão social para o estabelecimento de relações duradouras. Em contraste, a faixa mais jovem (20-25 anos) mostra tom mais reflexivo (IVSPF 0,59), enquanto a faixa 36-45 anos exibe nostalgia (0,68) e o grupo acima de 46 anos adota uma perspectiva mais crítica ao feminismo (0,62). Os dados sugerem que as pressões sociais e demográficas intensificam a frustração relacional na faixa etária central.
4. Discussão teórica
O pós-feminismo digital é um fenômeno complexo, não uma rejeição ao feminismo, mas a expressão das contradições da modernidade: a celebração da autonomia coexiste com o lamento pela solidão. Seguindo McRobbie (2008), este "duplo movimento" reconhece as conquistas feministas, mas as deslegitima pela revalorização da feminilidade tradicional. A vitimização é uma estratégia discursiva que usa a vulnerabilidade como poder relacional: a mulher estabelece sua independência para, em seguida, expressar carência e demandar reconhecimento. As narrativas refletem a contradição neoliberal (Bauman, 2004), onde a hiperindividualização gera ressentimento pela solidão. A nostalgia pela "energia masculina" simboliza o desejo de proteção e certeza num mundo líquido. A "crise da masculinidade" emerge do descompasso paradoxal entre as expectativas femininas parcialmente tradicionais (que criticam homens sensíveis como fracos) e as masculinidades reconfiguradas, indicando que as transformações de gênero são processadas de forma desigual.
5. Considerações finais
Esta investigação confirmou o padrão narrativo recorrente (afirmação-frustração-culpa em 80% do corpus) e estabeleceu o IVSPF - Índice de Vieses Pós-Feministas como ferramenta analítica, revelando que a média brasileira (0,72) supera a internacional (0,64), indicando especificidades culturais. A vitimização simbólica emerge como estratégia sofisticada que mobiliza a vulnerabilidade como poder relacional, uma Bolha, refutando interpretações simplistas. A recepção demonstra polarização, com narrativas no Brasil frequentemente alimentando discursos antifeministas, e a faixa 26-35 anos evidencia maior frustração devido a pressões demográficas. O estudo contribui com evidências empíricas e o IVSPF, mas possui limitações (amostra e foco em conteúdo viral). Em última análise, o pós-feminismo digital é sintoma da contradição fundamental entre a autonomia emancipadora e as expectativas afetivas tradicionais, sendo a vitimização simbólica o mecanismo de navegação dessa tensão, o que afasta o homem de relacionamento “duvidosos”.
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BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Unesp, 1993.
LIPOVETSKY, Gilles. A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
MCROBBIE, Angela. The Aftermath of Feminism: Gender, Culture and Social Change. London: SAGE, 2008.