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Responsabilidade administrativa, civil e penal das instituições financeiras pela prática de churning

O artigo analisa o churning no Brasil, detalhando suas implicações jurídicas, responsabilidade civil, administrativa e penal de gestores e instituições financeiras.

5/11/2025

1. Introdução

O mercado de capitais brasileiro vem enfrentando desafios significativos quanto à conduta de instituições financeiras na gestão de carteiras de investimento. 

Em especial, tem ganhado notoriedade a prática conhecida como churning, caracterizada pela realização excessiva de operações com o fim exclusivo de gerar comissões para o gestor, em prejuízo ao melhor interesse do investidor. Trata-se de conduta vedada pela regulação do mercado financeiro e que pode ensejar responsabilização civil, administrativa e até criminal.

Neste artigo, pretende-se examinar os contornos jurídicos do churning, seus efeitos sobre a responsabilidade das instituições financeiras e seus prepostos.

2. A prática de churning: Conceito e natureza jurídica

O termo churning tem origem na jurisprudência da SEC - Securities and Exchange Commission, especialmente na Rule 15c1-7, que classifica como fraudulenta a conduta do gestor que, detendo mandato discricionário, emite ordens de compra e venda de valores mobiliários de forma excessiva - seja em volume, seja em frequência - sem considerar os melhores interesses do cliente.

No Brasil, a CVM - Comissão de Valores Mobiliários e a BSM Supervisão de Mercados1 já identificaram tal prática como uma forma de fraude financeira. 

O diretor da CVM, Gustavo Gonzalez, no julgamento do PAS CVM 22/132, definiu o churning como “uma modalidade de fraude realizada por pessoas que, atuando com controle sobre recursos de terceiros, realizam excessivos negócios em nome do cliente, visando não o melhor interesse desse, mas o fim de gerar taxas e comissões para si ou para outrem”.

A caracterização do churning exige, entre outros elementos, a demonstração de que:

  1. Houve operações excessivas em número ou volume;
  2. O investidor não autorizou tais operações ou foi induzido em erro;
  3. A finalidade das transações não era a maximização do retorno da carteira, mas a geração de receitas para o gestor.

3. Fundamentos jurídicos da responsabilização

A responsabilização das instituições financeiras e de seus prepostos pode ocorrer nas esferas civil, administrativa e penal, com base em diversos fundamentos normativos:

a) Responsabilidade civil

Nos termos dos arts. 927, 932, III e 933 do CC3, responde objetivamente o empregador pelos atos de seus empregados, independentemente de culpa, desde que praticados no exercício de suas funções.

Além disso, o art. 31, da instrução CVM 35/214, estabelece que:

“Art. 31. O intermediário deve exercer suas atividades com boa fé, diligência e lealdade em relação a seus clientes.

§ 1º É vedado ao intermediário privilegiar seus próprios interesses ou de pessoas a ele vinculadas em detrimento dos interesses de clientes.”

Por fim, o art. 20, incisos VII e VIII, da instrução CVM 21/215 são categóricos no sentido de coibir a prática de churning, in verbis:

“Art. 20. É vedado ao administrador de carteiras de valores mobiliários:

[...]

VII – negociar com os valores mobiliários das carteiras que administre com a finalidade de gerar receitas de corretagem ou de rebate para si ou para terceiros; e

VIII – negligenciar, em qualquer circunstância, a defesa dos direitos e interesses do cliente.”

b) Responsabilidade administrativa

A CVM tem aplicado sanções rigorosas em casos de churning, como nos processos PAS CVM 11/136 e 6.143/157

A BSM, por sua vez, desenvolveu metodologia específica para caracterização da prática, baseada na análise de índices como o Turnover Ratio e o Cost-Equity Ratio.

O primeiro indicador, conhecido como Turnover Ratio, indica o número de “giros” efetuados com a carteira do cliente, comparando-se o patrimônio médio do cliente com o volume total de compras efetuado. Como benchmark para verificar se determinada Turnover Ratio é excessiva, sugere-se compará-la com a taxa de turnover dos fundos de investimento em ações, partindo-se do princípio de que é razoável supor que um investidor particular gire sua carteira a taxa inferior à de fundos geridos por profissionais. De acordo com os cálculos efetuados, taxas de turnover superiores a 8 seriam fortemente indicativas da prática de churning, não podendo-se descartar, contudo, a possibilidade de churning para taxas entre 2 e 8.

Para verificar a presença de uma excessiva despesa para os investidores, sugere-se a adoção do indicador denominado Cost-Equity Ratio, que compara o total de despesas que incidiu sobre a carteira do investidor com seu patrimônio médio. Este indicador reflete o retorno mínimo que seria necessário para cobrir as despesas que incidiram sobre a carteira do investidor em determinado período. Como base de comparação para verificar se determinada cost-equity ratio é elevada ou não, sugere-se compará-la com a rentabilidade histórica do Ibovespa, que, nos últimos 15 anos, foi de, aproximadamente, 21% ao ano. Ou seja, cost-equity ratios superiores a 21% ao ano seriam consideradas como indicativas da prática de churning, vez que reduziriam a probabilidade do investidor obter algum lucro a menos de 50%.

c) Responsabilidade penal

Conforme os fatos apurados, a apresentação de relatórios falsificados e a omissão dolosa de informações podem configurar o crime de estelionato (art. 171, CP8 ), bem como de falsidade ideológica e documental (arts. 298 e 299, CP9 ).

4. Apuração no caso concreto

Para que possamos analisar e constatar a prática de churning, é necessário solicitar à instituição financeira documentos como relatórios, notas de corretagem e, principalmente, as autorizações do cliente/investidor para as aplicações/investimentos, informações estas que devem ser rigorosamente registradas pelas instituições financeiras.

5. Reflexos cíveis, administrativos e penais

A partir da análise e elementos constantes destes documentos, é possível tomar as seguintes medidas:

  1. Ação de indenização por danos materiais e morais, com base na teoria da responsabilidade objetiva;
  2. Representação junto à CVM e BSM, para apuração da conduta do gestor e da instituição;
  3. Lavratura de Boletim de Ocorrência, para apuração de eventuais ilícitos penais (estelionato, falsidade ideológica, etc.);
  4. Produção antecipada de provas, como medida de preservação da prova técnica indispensável para apuração dos danos.

6. Considerações finais

A prática de churning se revela uma grave violação aos princípios da boa-fé, da lealdade e da transparência que devem nortear a relação entre investidores e instituições financeiras. 

A prática de churning - ainda que sofisticada e difícil de detectar - representa uma fraude contra o sistema financeiro e, sobretudo, contra a confiança do investidor.

É imprescindível que o Poder Judiciário e os órgãos reguladores imponham sanções exemplares a condutas dessa natureza, com vistas à proteção do mercado e à integridade do sistema de intermediação financeira.

Como alerta final, é necessário reforçar a importância da produção antecipada de provas e da atuação preventiva do investidor, a fim de que seja resguardado contra condutas abusivas que, infelizmente, ainda se fazem presentes no mercado de capitais brasileiro.

_______________

1 A BSM Supervisão de mercados (https://www.bsmsupervisao.com.br) é uma associação civil, pessoa jurídica de direito privado, constituída para realizar a supervisão e fiscalização dos mercados organizados administrados pela B3.

2 https://conteudo.cvm.gov.br/sancionadores/sancionador/2018/20180918_PAS_222013.html 

3 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. (Vide ADI nº 7055) (Vide ADI nº 6792)

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

[...]

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:

[...]

III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;

[...]

Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.

4 https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/resolucoes/resol035.html 

5 https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/resolucoes/resol021.html 

6 https://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/noticias/anexos/2018/20180130_voto_DGG_PAS_11_2013.pdf 

7 https://www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/anexos/2018/20180424_PAS_RJ2015_6143_Pilla_CVMC_Voto_DGG.pdf-22f0fcf721d44f31a8f647b5f6dbb339 

8 Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

9 Art. 298 - Falsificar, no todo ou em parte, documento particular ou alterar documento particular verdadeiro:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.

[...]

Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis, se o documento é particular.  (Vide Lei nº 7.209, de 1984)

Gutemberg de Siqueira Rocha
Advogado do escritório Cerdeira Rocha Vendite e Barbosa Advogados e Consultores Legais.

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