Migalhas de Peso

O acendedor de lampiões e o legislador penal

Analise crítica de como o PL 3.890/24 incorpora a Justiça restaurativa, apontando reduções conceituais e riscos de distorção pela lógica retributiva e limita seu potencial.

10/12/2025
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1. O acendedor de lampiões como metáfora do descompasso normativo

De todos os personagens da célebre obra “O Pequeno Príncipe” de Antoine de Saint-Exupéry, há um que geralmente passa desapercebido, mas que provoca uma reflexão muito atual, a considerar nosso padrão de inovação (ou omissão) legislativa. Trata-se do acendedor de lampiões, único habitante do quinto planeta (o menor de todos os visitados pelo príncipe). O acendedor tinha por missão acender e apagar o lampião uma vez a cada minuto, o que lhe parecia uma tarefa terrível. Ao ser perguntado do porquê, respondeu que era “o regulamento”. E completou:

- Antigamente era razoável. Apagava de manhã e acendia à noite. Tinha o resto do dia para descansar e o resto da noite para dormir...

- E depois disso, mudou o regulamento?

- O regulamento não mudou, disse o acendedor. Aí é que está o drama! O planeta de ano em ano gira mais depressa, e o regulamento não muda!

- E então? disse o principezinho

- Agora, que ele dá uma volta por minuto, não tenho mais um segundo de repouso. Acendo e apago uma vez por minuto!

Essa passagem da clássica obra ilustra, ainda que com as inevitáveis limitações das metáforas, o modo como o movimento legislativo brasileiro vem lidando com o tratamento da vítima na política criminal. No presente estudo, referimo-nos especificamente ao PL 3.890/24 - que pretende instituir o Estatuto da Vítima - no tocante aos dispositivos relacionados à JR - Justiça Restaurativa.

Não se trata de um cenário de completa desconexão com a realidade contemporânea - afinal, a própria inclusão explícita da JR no Projeto de Estatuto revela sensibilidade para novas abordagens. A proposta representa também um passo significativo e bem-vindo no sentido de superar a invisibilidade histórica das vítimas.

Desde a promulgação da CF/88, o art. 245 permanece invisível no debate público e legislativo, apesar de seu potencial estruturante para uma política nacional de atenção às vítimas. De fato, passadas quase quatro décadas, a proteção por ele prevista ainda não se concretizou. Por isso, a iniciativa merece elogios, pois, pela primeira vez e de forma tão explícita, coloca a vítima no epicentro das discussões sobre política criminal. Esse deslocamento é relevante para reorientar o foco do sistema de justiça, que tradicionalmente concentra sua atenção na violação da norma e na figura do ofensor.

Entretanto, no tocante especificamente à inclusão da JR, a proposta revela equívocos e imprecisões significativas. A forma como essa intenção convive com expectativas herdadas do modelo penal tradicional faz com que, em vez de permitir que a nova política se estruture a partir de seus próprios fundamentos, ela seja reinterpretada pelas lentes antigas.

Mantido tal como está, o PL tende a repetir o movimento do acendedor de lampiões: reconhecer que o mundo mudou, mas insistir nos mesmos gestos normativos de sempre. O legislador corre o risco de permanecer preso ao “regulamento” - isto é, à lógica estritamente retributiva -, comprometendo o potencial transformador da JR.

Este artigo, portanto, busca ampliar o debate e indicar caminhos para que o Estatuto da Vítima represente um avanço efetivo, em consonância com os marcos normativos nacionais e internacionais aplicáveis ao tema.

Afinal, do que as vítimas necessitam?

A discussão a respeito das necessidades das vítimas no processo penal brasileiro tem, historicamente, sido reduzida a um ponto: o combate à impunidade do ofensor. Apregoa-se que, com a punição do agressor, o Estado - e a sociedade como um todo - estaria cumprindo seu papel de proteção à vítima.

Não se olvida que a punição do ofensor é um interesse da vítima. Afinal, é perfeitamente compreensível que a vítima espere uma censura social ao dano que sofreu. Entretanto, não se trata da única necessidade.

Há casos, inclusive, que a própria punição do agressor não é do interesse da vítima ou vai de encontro aos seus interesses. Não são raros os casos em que a vítima, por diversas razões, deseja que a ação penal não seja deflagrada ou que seja descontinuada, mas vê sua pretensão esbarrar em dogmas como a indisponibilidade da ação penal e do bem jurídico tutelado.

A realidade, todavia, nos mostra que mesmo a dimensão mais tradicionalmente reconhecida como forma de atender às necessidades da vítima - a reparação do dano - tem sido relegada a segundo plano e enfrenta uma patente crise. A execução civil ex delicto é de ajuizamento raro e seu potencial de constrição patrimonial é reduzidíssimo, o que demonstra a limitação estrutural do processo penal em responder não apenas a essa, mas também às demais necessidades que as vítimas apresentam.

Outra necessidade negligenciada é o direito de a vítima “dizer a sua verdade”, para usar a expressão de Howard Zehr. O modelo adversarial inerente ao processo tradicional incentiva os agentes processuais a focarem somente nos aspectos que conduzam, respectivamente, à procedência ou à improcedência da pretensão punitiva. A participação da vítima, portanto, tem se limitado aos aspectos que interessam à dinâmica adversarial, isto é, ao que pode contribuir para a procedência ou a improcedência da pretensão punitiva.

A título de exemplo, quando se pergunta à vítima sobre os danos e os traumas que sofreu, não há interesse genuíno em compreender como o crime impactou sua vida ou quais necessidades passaram a emergir a partir do fato. O objetivo, em geral, é outro: no caso da acusação, confirmar a subsunção de eventuais qualificadoras ou causas de aumento ou, ainda, reforçar a gravidade do crime para justificar uma resposta penal mais severa. No caso da defesa, quando se indaga, por exemplo, sobre eventual restituição da coisa furtada ou algum tipo de reparação, a finalidade costuma ser pleitear a redução da pena ou algum outro benefício ao acusado. Enfim, mesmo quando se pergunta sobre a vítima, o foco permanece o mesmo: a violação da norma e o ofensor. 

Nesse contexto, dizer a sua verdade consiste em permitir que a vítima possa abordar outros temas que, para ela, são importantes: os sentimentos a respeito do crime e do ofensor; a significação pessoal que atribuiu ao fato; as formas pelas quais entende que o dano poderia ser reparado (em oposição a um formalismo regulatório que presume saber de antemão o que as vítimas precisam); o direito de influir diretamente na solução do caso; a proteção contra a revitimização; o acolhimento comunitário; e a proteção contra a exclusão social.  

Mas o ponto central, aqui, é que tais necessidades - e outras que sequer reconhecemos plenamente - só podem ser diagnosticadas se o sistema de justiça estiver disposto a rever a forma como percebe e integra a vítima em seus procedimentos. Enquanto sua participação continuar limitada pela lógica adversarial, qualquer compreensão mais ampla de seus interesses permanecerá inacessível. É justamente nesse espaço de escuta qualificada e reconstrução de sentidos que a JR pode oferecer uma contribuição relevante.

Análise crítica dos dispositivos relativos à Justiça restaurativa

Arts. 3, IV e 44

A Justiça restaurativa aparece já no art. 3º, IV do PL, que a define como um “conjunto ordenado e sistêmico de princípios, de métodos, de técnicas e de atividades próprias, aplicável preventivamente ou após a infração penal, com o objetivo de restaurar e encorajar o infrator a responsabilizar-se pelos danos causados”.

À primeira vista, a redação aproxima-se do enunciado da resolução 225/16 do CNJ. No entanto, essa semelhança é apenas superficial. Embora o PL empregue a terminologia do campo restaurativo, não incorpora os elementos estruturantes que conferem sentido e coerência à JR, produzindo uma definição que já surge conceitualmente estreita.

A resolução 225/CNJ - principal marco normativo nacional - define a Justiça restaurativa como processo orientado para “a satisfação das necessidades de todos os envolvidos e a responsabilização ativa daquelas que contribuíram direta ou indiretamente para o fato danoso”, deixando claro que o foco está nas relações e nas pessoas afetadas, e não apenas no ofensor.

Essa compreensão está em perfeita harmonia com marcos internacionais amplamente reconhecidos. A Declaração de Veneza sobre Justiça Restaurativa1, por exemplo, a descreve como “processo que permite que as pessoas afetadas pelo crime e aquelas responsáveis por ele participem, mediante consentimento livre, da resolução das questões decorrentes da infração, com apoio de facilitador imparcial”. Da mesma forma, a resolução ECOSOC 12/022 definem as práticas restaurativas como “processos nos quais vítimas, ofensores e, quando apropriado, outras pessoas afetadas pelo crime participam ativamente, devendo atender às necessidades de todas as partes impactadas”.

Comparada a esses documentos, a definição do PL confere centralidade indevida ao infrator. Ao estabelecer que a finalidade da JR é “restaurar e encorajar o infrator a responsabilizar-se pelos danos causados”, o texto desloca o foco para o ofensor e trata a restauração como operação dirigida a ele, reproduzindo a velha narrativa segundo a qual a causa do crime reside na pessoa do infrator e cabe ao sistema penal corrigi-lo. Em vez de compreender a JR como processo de construção compartilhada de reparação do dano e de responsabilização ativa, o PL lhe atribui um sentido reduzido, compatível apenas com a lógica penal tradicional, na qual responsabilizar equivale, em última análise, a submeter o ofensor a mecanismos estatais de controle e punição.

O resultado é uma definição que aparenta modernidade, mas que permanece presa à mesma lógica cuja ineficiência motivou, em escala global, o surgimento e a expansão dos movimentos de Justiça restaurativa.

Essa restrição conceitual, porém, não se limita ao art. 3º.

O art. 44 confirma, com ainda mais clareza, o problema conceitual já identificado acima. Embora a seção II anuncie tratar do direito a garantias no contexto das práticas restaurativas, sua redação parece partir de uma premissa sem qualquer respaldo na literatura nacional ou internacional: a ideia de que a vítima precisaria ser protegida no âmbito de um processo restaurativo.

Tal preocupação só faria sentido se a JR reproduzisse dinâmicas de revitimização típicas do processo penal tradicional, como silenciamento, secundarização e uso instrumental da vítima como meio de prova. Todavia, ao contrário do que sugere o art. 44, a JR não constitui ambiente de ameaça à vítima, mas o espaço no qual ela recupera protagonismo e voz. Sua própria estrutura metodológica - fundada em participação informada, voluntariedade, preparação prévia, facilitação qualificada e cuidado relacional - impede, por desenho institucional, a revitimização. Os riscos que parecem ter motivado o texto do PL pertencem ao universo do processo penal tradicional, não ao da JR.

O inciso I determina que as práticas restaurativas sejam utilizadas somente no interesse da vítima. Tal formulação não encontra respaldo nas referências qualificadas do campo: o interesse restaurativo é plural, não exclusivo; relacional, não individualizado. Reduzi-lo à perspectiva da vítima desfigura a natureza dialógica e comunitária do modelo. Os incisos II e III - dever de informação adequada e dever de confidencialidade - tampouco agregam, pois já integram os pressupostos estruturais das práticas restaurativas. Assim, o art. 44 não amplia a proteção da vítima nem aprimora o ambiente restaurativo. Ao contrário, revela compreensão equivocada do próprio instituto.

Portanto, os arts. 3º, IV e 44 carregam o mesmo problema estrutural: em vez de incorporar a Justiça restaurativa a partir de seus fundamentos próprios, o PL a redescreve segundo categorias do modelo penal tradicional. A correção conceitual mais adequada seria alinhar o texto aos princípios já consolidados na resolução CNJ 225/16, que disciplina voluntariedade, participação informada e confidencialidade em consonância com as referências internacionais. A adoção explícita desses parâmetros evitaria reduções conceituais, eliminaria conflitos internos do PL e asseguraria coerência normativa na implementação da JR no país.

3.2. Art. 47

O capítulo dedicado à JR inicia-se no art. 47 e mantém a redução conceitual já observada nos dispositivos anteriores ao apresentar a prática como estratégia preventiva à vitimização. Tal enquadramento é inadequado: a prevenção de novos danos não é finalidade da JR, mas pressuposto metodológico de qualquer prática restaurativa, destinado a assegurar que o processo não produza revitimização. A não revitimização - assim como a voluntariedade, o respeito e a inclusão - atua como princípio orientador, não como objetivo final.

O problema é aprofundado pelo parágrafo único. Os incisos I, II e III estabelecem como objetivos das práticas restaurativas: (i) a reparação dos danos sofridos pela vítima, (ii) a restauração da vítima e (iii) a reafirmação dos valores sociais da norma violada.

Mais uma vez, o PL reduz o escopo da JR à vítima direta. O inciso I restringe o objetivo à reparação dos danos por ela sofridos, em desacordo com a própria lógica do instituto, que parte de um dano vivido em rede de relações e exige que os meios de reparação e responsabilização sejam construídos a partir das necessidades de todos os afetados, e não apenas da vítima imediata.

A expressão “restauração da vítima”, presente no inciso II, é particularmente problemática. A JR não pretende restaurar a vítima a um estado anterior ao crime - pretensão impossível e conceitualmente equivocada. Os processos restaurativos oferecem reconhecimento, validação, responsabilização e reconstrução de sentidos, mas não operam como mecanismos terapêuticos de “restauração” subjetiva. Não que tal efeito não possa eventualmente ocorrer, mas não se trata da finalidade da JR. O inciso, portanto, introduz um vocabulário impreciso e desnecessário.

O problema do inciso III está no próprio objetivo que ele propõe: a reafirmação dos valores sociais da norma violada. Trata-se de finalidade típica da sanção penal, alheia à lógica da JR. Para o modelo restaurativo, o crime não é concebido como violação abstrata de norma, mas como ruptura que atinge pessoas, relações e contextos comunitários - ponto elementar que o dispositivo simplesmente desconsidera. O que a JR busca, exista ou não processo judicial, é criar condições para que os envolvidos construam, de forma compartilhada, meios significativos de abordar o dano, restaurando-o ou mitigando suas consequências por meio da responsabilização ativa de quem contribuiu para sua ocorrência.

Mais uma vez, evidencia-se a descaracterização de aspectos centrais da JR, produzindo um texto que não dialoga com os marcos normativos existentes nem com a literatura especializada.

3.3. Art. 48

Mesmo não se tratando de um projeto destinado a regular a política nacional de Justiça restaurativa, o PL avança sobre temas centrais do modelo restaurativo - e, pior que isso, o faz de modo conceitualmente equivocado.

O art. 48 enumera como princípios orientadores da JR: autorresponsabilidade, reparação dos danos, atendimento das necessidades da vítima e de seus familiares, voluntariedade, participação informada, sigilo e confidencialidade. É evidente que o rol apresentado não reflete os princípios restaurativos tal como consolidados no campo, mas uma adaptação seletiva desses elementos para ajustá-los ao recorte adotado pelo projeto - uma concepção de Justiça restaurativa centrada exclusivamente na vítima.

Comparado ao art. 2º da resolução 225/CNJ, o contraste é imediato: enquanto a resolução descreve um conjunto amplo e coerente de princípios que expressam a natureza multifocal e corresponsável da JR, o PL apresenta um rol restrito, voltado apenas à vítima e seus familiares.

A tentativa de definir princípios, feita em um projeto que não foi concebido para tratar da JR, amplia o problema. Como o tema não integrou o objeto central do PL, é plausível que não tenha havido debate técnico aprofundado nem participação de especialistas - o que torna ainda mais temerária a fixação de enunciados que, na ausência de lei nacional sobre a matéria, podem acabar orientando práticas institucionais futuras. O risco é cristalizar uma compreensão reduzida do instituto justamente quando se exige maior aderência aos referenciais consolidados. Por isso, seria mais adequado - e normativamente mais coerente - reproduzir os princípios da resolução 225/16-CNJ, cujo enunciado expressa com precisão a lógica multifocal e corresponsável da JR.

3.4. Art. 48, § 1º

O § 1º do mesmo artigo estabelece que a vítima pode revogar o consentimento a qualquer tempo. Embora a ênfase na voluntariedade seja correta, a redação cria restrição incompatível com o modelo restaurativo ao pressupor que apenas a vítima teria a faculdade de desistir.

A resolução 225/16-CNJ é explícita: É condição fundamental para que ocorra a prática restaurativa o prévio consentimento, livre e espontâneo, de todos os seus participantes, assegurada a retratação a qualquer tempo (art. 3º, § 2º3). No mesmo sentido, dispõe a resolução 2002/12 do ECOSOC/ONU: A vítima e o ofensor devem ter o direito de se retirar do processo restaurativo a qualquer momento4.

Reproduzindo o padrão já criticado acima, o PL reduz o alcance da voluntariedade ao restringi-la à vítima e excluir a possibilidade de retratação pelos demais participantes, em desacordo com a resolução 225/16-CNJ.

3.5. Art. 48, § 2º

O § 2º reafirma a voluntariedade e veda qualquer forma de coação ou a emissão de qualquer espécie de intimação judicial ou extrajudicial para as sessões. A intenção - ao que parece, evitar que a JR adquira conotação compulsória - é legítima, mas a solução é inadequada.

Primeiro, o dispositivo é redundante: a voluntariedade já consta do caput e do § 1º, bem como da resolução 225/16, de modo que repeti-la não amplia garantias.

Segundo, a proibição absoluta de intimações ignora a realidade institucional. No sistema de justiça brasileiro, a intimação é instrumento ordinário de comunicação, não de coerção. Impedir seu uso, mesmo para atos não obrigatórios, rompe fluxos de trabalho, cria dificuldades operacionais e pode tornar a implantação da JR mais confusa.

A preocupação central - evitar que participantes interpretem a comunicação como obrigatória - não se resolve proibindo intimações, mas garantindo, por exemplo: linguagem clara e acessível; informação explícita de que a participação é voluntária; materiais explicativos adequados (visual law, vídeos, textos simples); verificação da voluntariedade pelos facilitadores.

Mais adequado seria permitir o uso dos meios ordinários de comunicação, desde que acompanhados de salvaguardas metodológicas e controle rigoroso dos principios restaurativos previstos na resolução 225/16-CNJ.

 3.6. Art. 49, § 3º

O § 3º do art. 49 contém uma falha pontual: prevê a homologação do acordo restaurativo após a oitiva do Ministério Público, mas omite a participação da defesa. Trata-se de lacuna que exige correção, pois qualquer resultado restaurativo com efeitos processuais pressupõe contraditório e ampla defesa. Sua exclusão viola princípios constitucionais e compromete a legalidade de eventual homologação.

3.7. Art. 50

O art. 50 apresenta talvez os mais graves problemas conceituais do capítulo dedicado à Justiça restaurativa, por desconsiderar tanto a lógica do processo penal quanto a própria natureza da JR.

O caput estabelece que a prática restaurativa realizada antes ou paralelamente ao processo judicial “não suspenderá a persecução penal”. A formulação parte de premissa incompatível com o modelo restaurativo: se vítima, ofensor e demais afetados manifestam interesse em construir uma resposta dialógica, significativa e reparadora ao dano, não há justificativa para que o processo penal siga automaticamente seu curso, duplicando esforços institucionais e submetendo as partes a dois procedimentos simultâneos que se orientam por racionalidades distintas.

A suspensão é plenamente compatível com o sistema jurídico brasileiro e se harmoniza com o princípio constitucional da duração razoável do processo, desde que acompanhada de prazo definido, sujeito a controle judicial e prorrogável diante da continuidade legítima das tratativas restaurativas.

Ainda mais problemática é a disposição do parágrafo único, segundo a qual “na esfera penal, os efeitos da prática restaurativa somente poderão ser produzidos até o trânsito em julgado da sentença”. Trata-se de limitação frontalmente incompatível com todos os marcos normativos da JR.

A resolução CNJ 225/16 admite expressamente sua utilização em qualquer fase, incluindo a execução penal; os Princípios Básicos das Nações Unidas (1985 e 2005) não estabelecem qualquer restrição temporal; e a prática nacional e internacional demonstra que, mesmo após a condenação, há amplo espaço para construção de resultados restaurativos, responsabilização ativa, reparação de danos e reconstrução de vínculos comunitários.

A exclusão da fase executória, além de carecer de fundamento teórico ou empírico, inviabiliza práticas restaurativas reconhecidamente eficazes para modulação de posturas, reconstrução de sentidos e redução de reincidência.

Considerações finais

O Estatuto da Vítima surge em momento oportuno: a centralidade das vítimas na política criminal brasileira é um déficit histórico que o projeto, de modo geral, enfrenta com seriedade. Contudo, no que se refere à Justiça restaurativa, o texto aprovado pela Câmara revela limitações importantes, ora por reduzi-la a uma ferramenta voltada exclusivamente à vítima, ora por reinterpretá-la segundo categorias próprias do modelo penal tradicional.

As sugestões apresentadas ao longo deste artigo buscam corrigir essas distorções, mas entendemos que o ideal seria que o Senado ampliasse o debate, a fim de incorporar uma compreensão alinhada às definições, princípios e procedimentos já estabelecidos na resolução 225/16 e nos documentos internacionais de referência. Só assim o Estatuto poderá cumprir sua promessa de fortalecer a atenção às vítimas sem comprometer - ainda que inadvertidamente - a integridade conceitual da Justiça restaurativa.

_______________________

1 Refere-se à Venice Declaration on the Role of Restorative Justice in Criminal Matters, adotada pelos Ministros da Justiça dos Estados-Membros do Conselho da Europa em 13 e 14 de dezembro de 2021. https://rm.coe.int/venice-ministerial-declaration-eng-4-12-2021/1680a4df79

2 Refere-se aos Basic Principles on the Use of Restorative Justice Programmes in Criminal Matters, adotados pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) em 24 de julho de 2002, por meio da Resolução 2002/12. Basic principles on the use of restorative justice programmes in criminal matters :

3 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 225, de 31 de maio de 2016. Institui a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário. Disponível em:

https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2272

4 UNITED NATIONS. Economic and Social Council. Basic principles on the use of restorative justice programmes in criminal matters. Resolution 2002/12, adopted 24 July 2002. Disponível em Basic principles on the use of restorative justice programmes in criminal matters :

Autores

Decildo Ferreira Lopes Juiz de Direito (TJGO). Doutorando em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa - IDP (2023-2026). Visiting Researcher na Australian National University - ANU.

Maxuel Pereira Dias Defensor Público Estadual na Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso. Bacharel em Direito pela Faculdade Evangélica de Goianésia (FACEG - atual UNIEGO). Especialista em Execução Penal.

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