Ministros Gilmar Mendes e Flávio Dino votaram contra a aplicação do marco temporal para a demarcação de terras indígenas.
Os votos foram proferidos no plenário virtual do STF, no julgamento que discute a constitucionalidade da lei 14.701/23, norma que trata do reconhecimento, da demarcação, do uso e da gestão das terras indígenas.
As ações foram ajuizadas por partidos políticos e entidades representativas de povos indígenas, que questionam dispositivos da lei aprovada pelo Congresso Nacional após a derrubada de vetos presidenciais.
Elas também apontam omissão inconstitucional da União no cumprimento do art. 67 do ADCT, que previa a conclusão das demarcações indígenas até 1993.
Relator dos processos, ministro Gilmar Mendes defendeu a adoção de uma solução estrutural e transitória para enfrentar os conflitos fundiários envolvendo terras indígenas.
Segundo o ministro, o tema deve ser examinado à luz da CF, da jurisprudência consolidada do STF - especialmente o Tema 1.031 da repercussão geral, que afastou o marco temporal - e dos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Ministro Flávio Dino acompanhou o relator na maior parte do voto, no entanto, apresentou ressalvas pontuais, ampliando o rol de dispositivos da lei 14.701/23 que considera inconstitucionais e sugerindo a prorrogação do prazo para o cumprimento das determinações relacionadas à superação da omissão estatal na demarcação das terras indígenas.
O julgamento ocorre no plenário virtual, com previsão de encerramento na próxima quinta-feira, dia 18.
Até lá, os ministros ainda podem apresentar votos, além de formular pedidos de vista ou de destaque para julgamento presencial.
Confira o placar até o momento:
O que está em julgamento?
A ADC 87 foi ajuizada por Progressistas, Republicanos e PL, que pedem o reconhecimento da constitucionalidade integral da lei 14.701/23, especialmente dos dispositivos que haviam sido vetados pela Presidência da República e posteriormente restabelecidos pelo Congresso.
Já as ADIns 7.582, 7.583 e 7.586, propostas por entidades indígenas e partidos políticos, questionam diversos trechos da lei, sob alegação de inconstitucionalidades formais e materiais, incluindo violação aos arts. 231 e 232 da CF, à vedação ao retrocesso em direitos fundamentais e a tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.
Voto do relator
Ministro Gilmar Mendes destacou que o caso revela um quadro estrutural de omissão estatal, marcado pela demora histórica da União na conclusão dos processos de demarcação de terras indígenas. Segundo o relator, essa inércia contribuiu para a intensificação de conflitos no campo, a insegurança jurídica e a ocorrência de episódios de violência.
Para o decano da Corte, passadas mais de três décadas desde o prazo fixado no art. 67 do ADCT, não é mais possível tratar a omissão administrativa como situação tolerável, sendo necessário o seu reconhecimento formal como inconstitucional, acompanhado da adoção de medidas concretas para sua superação.
Segundo o relator, o julgamento deve considerar não apenas os atos comissivos do Legislativo, mas também as omissões administrativas do Executivo, além do impacto de decisões judiciais já proferidas sobre o tema.
O ministro resgatou a evolução da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, destacando o reconhecimento do direito à propriedade coletiva dos povos indígenas, o dever estatal de demarcação, a exigência de consulta prévia, livre e informada e a possibilidade excepcional de compensações ou de destinação de terras alternativas quando a restituição do território tradicional se mostrar inviável.
De acordo com Gilmar, esses parâmetros internacionais devem orientar a interpretação do art. 231 da CF e das normas infraconstitucionais, em consonância com o entendimento já firmado pelo STF no Tema 1.031 da repercussão geral, que afastou a tese do marco temporal.
Com isso, o relator defendeu a adoção de um plano transitório para a regularização das terras indígenas em litígio judicial, como forma de reduzir a conflituosidade no campo, assegurar segurança jurídica e viabilizar o cumprimento progressivo da Constituição.
Ao final, afirmou que o julgamento deve ir além da simples validação ou invalidação de dispositivos legais, buscando uma resposta institucional capaz de enfrentar um problema histórico e estrutural do Estado brasileiro.
O voto propõe o reconhecimento da omissão da União quanto às demarcações, a fixação de diretrizes constitucionais para a aplicação da lei 14.701/23 e a adoção de medidas estruturais voltadas à pacificação dos conflitos fundiários envolvendo terras indígenas.
- Veja o voto.
Ressalvas
Ministro Flávio Dino acompanhou, em linhas gerais, o voto do relator, Gilmar Mendes, com ressalvas pontuais, manifestando-se pela inconstitucionalidade de dispositivos específicos da lei 14.701/23 que, a seu ver, fragilizam a proteção territorial indígena.
Entre eles, regras que subordinam o usufruto indígena à gestão de unidades de conservação por órgãos ambientais e dispositivos que flexibilizam excessivamente a exploração econômica por não indígenas em terras indígenas, abrindo espaço, segundo o ministro, para práticas ilegais e para a exploração predatória dos territórios.
Para S. Exa., o caso evidencia uma intensa colisão entre direitos constitucionais: de um lado, os direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras; de outro, situações consolidadas de posse e propriedade de não indígenas, muitas vezes de boa-fé.
Nesse contexto, afirmou que a interpretação constitucional deve observar o princípio da unidade da CF, com harmonização dos interesses em conflito, mas com prioridade hermenêutica aos direitos indígenas, por se tratar do grupo mais vulnerável e historicamente dependente da atuação estatal para sua sobrevivência física e cultural.
Embora tenha concordado com o relator quanto ao reconhecimento da omissão inconstitucional da União na demarcação das terras indígenas, Dino ressaltou que essa mora prolongada produz efeitos ainda mais graves do que os já reconhecidos, por comprometer a própria existência das comunidades indígenas e, simultaneamente, prolongar a insegurança jurídica das populações não indígenas afetadas.
O ministro afirmou que qualquer tentativa legislativa de instituir o marco temporal, inclusive por meio de emenda constitucional, é materialmente inconstitucional, por violar o núcleo essencial dos direitos fundamentais assegurados pelo art. 231 da CF.
Segundo Dino, a Constituição de 1988 reconhece direitos originários, não os cria, razão pela qual não é admissível condicioná-los à ocupação das terras em 5 de outubro de 1988.
Para S. Exa., a adoção do marco temporal representaria retrocesso vedado e proteção insuficiente aos direitos indígenas.
Dino também tratou da autodeterminação dos povos indígenas. Afirmou que cabe às próprias comunidades definir seus modos de vida, inclusive quanto à adoção de bens, tecnologias ou atividades econômicas, sem que o Estado ou o Judiciário imponham visões etnocêntricas sobre o que seria o "bem viver".
Nesse sentido, sustentou que a CF deve funcionar como instrumento de máxima proteção e mínima ingerência, garantindo que decisões fundamentais sejam tomadas pelas próprias comunidades, desde que compatíveis com a ordem constitucional.
Por fim, ao tratar da omissão inconstitucional prevista no art. 67 do ADCT, Flávio Dino acompanhou o relator quanto ao reconhecimento do descumprimento, mas divergiu quanto ao prazo para cumprimento das determinações, propondo sua ampliação para 180 dias, diante da complexidade das providências necessárias para a efetiva conclusão das demarcações.
Veja o voto.