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A responsabilidade civil no âmbito da MP 966

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Atualizado às 08:08

Texto de autoria de Nelson Rosenvald

Foi publicada a MP 966 que dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19. De acordo com o Art. 1º: "Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de: I - enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da covid-19; e II - combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19".

A despeito da MP contar com quatro artigos, fiz menção expressão ao dispositivo inicial pois o seu exame é prejudicial à própria consideração dos artigos subsequentes. A meu ver, em termos de responsabilidade civil a MP é inócua, sem que isto impeça a sua aplicação em termos de responsabilidade administrativa.

Não se trata esse texto de uma discussão de inconstitucionalidade, porém, sem qualquer toque fúnebre, de um réquiem, derivado da constatação de uma equivocada fusão entre os requisitos e eficácias das responsabilidades civil e administrativa.

Em princípio não há inconstitucionalidade em uma norma emergencial que prevê ação direta contra agentes públicos, com restrição à imputação subjetiva por ilícitos decorrentes de "dolo ou erro grosseiro". Ao legislador infraconstitucional é dada a possibilidade de modulação da gradação da culpa lato sensu, sobremodo em situações únicas como a de uma extraordinária pandemia, que requer de pessoas que exerçam funções estatais a tomada diuturna de decisões urgentes e, eventualmente, causadora de danos injustos a terceiros.

Poder-se-ia discutir eventual inconstitucionalidade se o objetivo da MP 966 fosse o de afrontar diretamente os pressupostos do § 6º, art. 37 CF, em uma tentativa de imunizar o Estado da responsabilidade objetiva pelos danos que seus agentes causassem a terceiros em tempos do Covid, ou, estreitasse o direito de regresso do Estado perante os agentes públicos, reduzindo-o aos casos de "dolo ou erro grosseiro". Nestas hipóteses seria legítimo o debate sobre o retrocesso em uma conquista advinda desde a Constituição Federal de 1946, protetiva de direitos fundamentais do cidadão e da exigência de a administração pública agir conforme a boa-fé objetiva, prevenindo danos e garantindo a sua efetiva reparação. Insista-se: mesmo para os que visualizam na MP 966 uma burla à amplitude da previsão constitucional de regresso, a mitigação da esfera da culpa não seria uma certeza de inconstitucionalidade, mas apenas uma boa tese, pois não é de hoje normas infraconstitucionais asseguram a magistrados e membros do Ministério Público regimes especiais de responsabilidade por dolo ou fraude (arts. 143 e 181, do CP/15), jamais através de ação direta, mas tão somente pela via regressiva.

Todavia, conforme insistimos, o propósito da MP 966 jamais foi o de ferir o mencionado dispositivo constitucional, na medida em que o art. 1. sequer faz menção à reparação por danos causados a terceiros. Parece-nos que o seu desiderato foi o de temporariamente promover uma adequação entre a segurança jurídica na tomada de opiniões técnicas de agentes políticos e servidores públicos e os limites de responsabilização que assumem por estas decisões. Ocorre que a ponderação não foi bem dosada, pois conceitos que se encaixam bem na responsabilidade administrativa não são necessariamente bem-vindos no mundo da responsabilidade civil. A MP 966 tomou por empréstimo para a esfera da responsabilidade civil o conceito jurídico indeterminado "erro grosseiro", já utilizado pelo art. 28 da LINDB (redação da Lei n. 13.665/18), que por sua feita tomou a expressão de decisões esparsas do STF, STJ e TCU. Ademais, a MP se valeu da exata definição que o § 1º, do artigo 12 do Decreto 9830/19 deferiu ao conceito de "erro grosseiro", para estipular no art. 2º que: "Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia". Fato é que o art. 28 da LINDB já havia sido criticado pela equiparação da referida expressão à ideia de culpa grave, que por sua vez, assemelhar-se-ia ao dolo, convertendo o enunciado da norma em um pleonasmo duplo, seja pela sinonímia entre as duas expressões como pela própria redundância em se responsabilizar um agente pessoalmente por dolo, pois há de nascer uma norma que imunize alguém para a intencional prática de atos lesivos contra outrem.

Outra indevida paternidade que não pode ser atribuída a MP 966 é a redação do § 2º, do art. 1: "O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público". O legislador de plantão reproduziu ipsis litteris o § 3º do art. 12 do decreto 9830/19, no ponto em que regulamenta o artigo 28 da LINDB. Para além do evidente déficit redacional do "mero nexo de causalidade...", é certo que a responsabilidade do agente público é subjetiva, sendo o citado dispositivo uma dispensável circunlocução.

Não obstante a atecnia que permeia a MP, cremos que, caso mantida, não terá qualquer impacto na responsabilidade civil de agentes públicos pois em agosto de 2019, em sede de Repercussão Geral (tema 940 - RE 1027633) o Plenário do Supremo Tribunal Federal sufragou a tese da "dupla garantia", assentando a ilegitimidade passiva de agentes públicos nas pretensões reparatórias, cabendo ao interessado demandar exclusivamente contra a pessoa jurídica de direito público e a de direito privado prestadora de serviços públicos por atos omissivo ou comissivos de seus agentes, por dolo ou culpa. Por razões teóricas e práticas que não cabem nesse espaço, criticamos a restrição à liberdade do particular de escolher contra quem quer demandar em um cenário de responsabilidade solidária. Contudo, fato é que a trilha adotada pelo STF é incompatível com o propósito de isenção de responsabilidade de agentes públicos por demandas diretas. Como a MP 966 não conflita com a teoria do risco administrativo - restando imunizado o acesso ao Estado com base na causalidade entre a conduta e o dano - indaga-se, o que se pretende de efetivo na Medida Provisória?

A resposta está no próprio art. 1º. A norma transcende a sanção civil consequente à aferição do fato jurídico danoso, centrando-se no direito sancionador, permitindo que o Estado se volte contra o agente pela prática de um ilícito, independentemente de sua eventual eficácia ressarcitória, objetivando penalizar o agente público de modo a resguardar os interesses da administração. Há muito, PONTES DE MIRANDA já havia se debruçado sobre esta temática. A relação entre o ilícito e a responsabilidade civil é de gênero e espécie. "Há mais atos ilícitos ou contrários a direito que os atos ilícitos de que provém obrigação de indenizar" (Tratado de direito privado, t. II, p. 201). A obrigação de reparar danos patrimoniais ou morais é uma das possíveis eficácias do ato ilícito. Em sua estrutura, o ilícito demanda como elementos nucleares a antijuridicidade (elemento objetivo) e a imputabilidade (elemento subjetivo) do agente. O dano não é elemento categórico do ilícito, mas a ele se acresce como fato gerador de responsabilidade civil (art. 927, CC).

Esta especificação é particularmente significativa, pois esclarece que a noção de ilícito conserva um núcleo conceitual unitário mínimo, tendendo a se decompor em algumas categorias fundamentais de ilícito, que muitas vezes se destacarão do ilícito civil, como é o caso do ilícito penal e do ilícito administrativo. Com efeito, deve-se fraturar a clássica distinção entre o ilícito civil e o administrativo, aquele restrito à lesão da esfera jurídica patrimonial no âmbito de um interesse privado (situações jurídicas subjetivas), enquanto a reação ao ilícito administrativo visa proteger um interesse público. O caráter disciplinar da responsabilidade administrativa ressaí das sanções previstas no artigo 127 lei 8.112/90 e na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92). No âmbito do direito sancionador, não se aplica a exigência constitucional de comprovação de dolo ou culpa em sentido amplo, pois é da essência das sanções punitivas a sua justificação por um comportamento extremamente reprovável. Assim, todas as garantias do direito penal são reconhecidas ao ilícito administrativo. Ocasionalmente, a exigência de uma culpa grave pode gerar distorções, pois erros grosseiros podem causar pequenos prejuízos, enquanto erros moderados podem gerar danos bilionários.

Subjacente aos retóricos fins da MP 966, percebe-se aqui o receio da equipe econômica do governo (por isto a MP foi assinada pelo Ministro da Fazenda e não pelo Ministro da Justiça) com uma "disparada" de ações de improbidade administrativa contra agentes políticos pelas eventuais consequências deletérias de medidas "de combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19" (inc.II, art. 1º). Já se afirmava que o artigo 28 da lei 13.665/18 (LINDB) havia revogado o artigo 10 da LIA, no trecho em que permitia a responsabilização por ato de improbidade que causasse prejuízo ao erário apenas por culpa, mitigando o sancionamento do agente para as hipóteses em que apenas foi inábil no trato das regras de direito público. Essa interpretação é posta em xeque pelo próprio artigo 2º, § 2º da LINDB - "A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior", porém a especificação da culpa grave na improbidade administrativa espelha uma orientação jurisprudencial do STJ. A MP 966 procurou consolidar esse entendimento para um momento gravíssimo de forma a poupar de sanções administrativas o agente que se conduz no referencial de "administrador médio" ao ter avaliada a razoabilidade de seus atos.

Ao indevidamente aglutinar responsabilidade civil e administrativa sem que se estabelecessem parâmetros específicos em suas funcionalidades ínsitas, a MP 966 culmina por demostrar a necessidade do refinamento de conceitos e de suas potencialidades práticas. O ato ilícito, explica MASSIMO BIANCA, não é a mera ocorrência de danos, mas um fato humano lesivo de interesses tutelados. Uma coisa é a relevância jurídica do fato como ilícito, outra, a injustiça do dano, que se coloca no plano da eficácia do ato ilícito, isto é, sob o plano de consequências que a norma remete a este e que se exprimem no juízo de responsabilidade. O ilícito se insere no plano da antijuridicidade, pois consiste pela sua natureza em um ato humano contrário ao direito (L'inibitore come remedio di prevenzione dell'illecito. In: Studi in onore di Nicolò Lipari, p. 136-137). Se o art. 1º da MP 966 se restringisse à responsabilidade administrativa poderíamos avançar em uma necessária discussão. Contudo, ao introduzir a responsabilidade civil, culminou por entorpecer conceitos que não lhe dizem respeito.