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Considerações sobre os fundamentos filosóficos da Responsabilidade civil: formalismo x funcionalismo

terça-feira, 19 de maio de 2020

Atualizado às 08:31

Texto de autoria de Marília de Ávila e Silva Sampaio

O período de isolamento que vivemos se mostra propício a repensarmos algumas questões importantes da responsabilidade civil, a começar por seus fundamentos filosóficos, debate que tem sido deixado de lado no Brasil. A filosofia, para além do debate acerca dos limites e do papel da responsabilidade civil nos dias de hoje, busca a resposta para o porquê de responsabilizarmos aqueles que cometem ilícitos e sob que fundamentos.

O debate clássico sobre os fundamentos filosóficos da responsabilidade civil sempre esteve ancorado em diferentes visões de justiça, desenvolvendo-se a partir de duas vertentes: o formalismo versus o funcionalismo. A primeira vertente que inspira o debate, a formalista, baseia-se numa ideia aristotélica de justiça corretiva, segundo a qual aqueles que praticam atos ilícitos devem ressarcir as vítimas para a recomposição da igualdade, restabelecendo-se um meio termo entre a perda e o ganho das partes envolvidas. No caso de dano, deve-se subtrair o excesso de ganho do ofensor, restaurando as quantidades originais.

Antes de irmos além, é necessário que se esclareça que o sentido da expressão justiça corretiva não é unívoco. Nicola Abbagnano1 esclarece que em Aristóteles, a justiça corretiva, também dita comutativa, é uma das formas de justiça particular, ao lado da justiça distributiva. As expressões justiça "comutativa" e "corretiva" são usadas como sinônimas.

Já na concepção de outros autores, a justiça corretiva é utilizada para restabelecer o equilíbrio entre duas partes, tendo como referência uma distribuição incialmente justa, quando tal equilíbrio é quebrado pela produção do dano e justiça comutativa é utilizada para resolver problemas de desigualdade resultante da troca de bens2. A primeira seria então afeta à responsabilidade civil e a segunda aos contratos.

A noção de justiça corretiva que ampara a visão formalista da responsabilidade civil apresenta nuances. A definição aristotélica difere da visão tomista. Em linhas gerais, a primeira perspectiva define o justo como "o meio termo entre a perda e o ganho"3, correspondendo a uma igualdade aritmética (comutativa nas relações voluntárias e reparativas nas relações involuntárias), proporcional entre partes.

Na responsabilidade civil, a justiça corretiva implica a busca de um meio termo entre o maior e o menor, ou seja, entre a perda e o ganho. É necessário saber quem cometeu o dano, qual a parte lesada e qual o montante do prejuízo. A justiça corretiva, sob a perspectiva aristotélica, pressupõe uma correspectividade no olhar entre o ofensor e o ofendido.

A visão tomista de justiça corretiva pressupõe que as perdas sofridas por alguém em virtude de ato danosos possam ser reparadas, retificando-se o injusto enriquecimento de um em detrimento de outro4. Assim, no terreno dos danos, a visão tomista tende a favorecer a vítima, propondo repor a vítima ao status quo ante.

Pela vertente rival, a funcionalista, parte-se da premissa de que o direito privado é instrumento para a obtenção de fins econômicos e sociais, externos ao próprio direito, seja por uma abordagem econômica na busca de eficiência, seja por uma abordagem jurídica com base em postulados de outros ramos do direito, principalmente do direito público. A compreensão da responsabilidade civil passa, assim, pela identificação das funções que ela exerce de modo a responder se ela deve ser utilizada como meio para compensar as vítimas ou como um meio de dissuadir comportamentos indesejados.

Representante da corrente funcionalista, a análise econômica do direito toma como base a percepção de que as partes se guiam por comportamentos autointeressados de maximização de riquezas, eficiência e equilíbrio das transações, respondendo a desincentivos. Quando o direito impõe dever de reparar danos causados, ele envia um incentivo aos potenciais realizadores de ilícitos, gerando o efeito de diminuir o número das ações ilícitas, socialmente danosas. Sob essa visão, compreende-se bem que o dano moral assuma uma função punitiva, que tem como alicerce a desproporção da sanção, pois isso desincentiva comportamentos futuros equivalentes, com prevenção especial e geral.

E o que dizer da justiça distributiva? Ela tem lugar no campo da responsabilidade civil? Tal pergunta demanda, assim como no caso da justiça corretiva, uma breve explicação acerca do que estamos chamando de justiça distributiva: se aquela baseada em seu sentido clássico aristotélico ou se é necessária uma releitura contemporânea do sentido e alcance da expressão.

Na definição aristotélica, a justiça distributiva se concentrava primordialmente na distribuição de bens políticos (a capacidade de votar e ser votado), sendo a igualdade representada no fato de cada pessoa ser recompensada na proporção de seus méritos, de sorte que seria injusto que desiguais em méritos fossem compensados de maneira igual. Não havia, portanto, uma preocupação com a distribuição de bens materiais, mas essencialmente a distribuição de bens políticos.

Na contemporaneidade, notadamente quando o mundo assiste perplexo uma pandemia de um vírus que tem diariamente exigido novas respostas do direito, pode se reconhecer, sem medo de errar, que a noção de justiça distributiva está a demandar novos contornos. Os pobres, menos favorecidos e aqueles em situação de vulnerabilidade social são merecedores do mesmo status social e econômico dos demais grupos da sociedade. Não se trata de caridade ou benesse, mas do reconhecimento do direito que têm os menos favorecidos de sair dessa situação, inclusive com a intervenção do Estado, como garantia de equalização de direitos e privilégios na proteção da igual dignidade de que todos os cidadãos são detentores.

A Constituição brasileira de 1988 consagrou a justiça social como um de seus primados, na medida em que, em seu art. 3º, estabeleceu como objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais. De igual modo, o art. 170 da CF/88 condicionou a ordem econômica à valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, como objetivo de garantir a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Neste contexto, a responsabilidade civil estaria pautada não só em parâmetros formalistas da justiça corretiva, guiada por uma lógica aritmética, mas também por fins distributivos, pois socialmente importantes e necessários. É nessa perspectiva que se permite falar em uma função social da responsabilidade civil, do arrefecimento da culpa como filtro da responsabilidade civil, de solidariedade e reparação integral da vítima e outros tantos temas que têm ocupado a centralidade dos debates da responsabilidade civil contemporânea.

Um dos mecanismos distributivos na responsabilidade civil é, sem sombra de dúvida, a responsabilidade objetiva, pois, na medida em que há um deslocamento da avaliação moral da culpa do ofensor, para a avaliação ética sobre as consequências da ação assumida por quem detém o poder sobre certa atividade, em algumas circunstancias será mais justo determinar que o pagamento da indenização à vítima se faça por quem administra o risco da atividade.

A responsabilidade civil objetiva retira o foco da sanção ao ofensor, colocando-o na tutela do ofendido. Se a responsabilidade sem culpa retira dos ombros da vítima o peso econômico da lesão que sofreu, ela favorece o criador do risco, que, num primeiro momento, por deter capacidade econômica, suporta o custos das indenizações, mas que, no longo prazo, distribui esse custo entre outros agentes econômicos (usualmente outros consumidores ou uma seguradora). Assim, a responsabilidade objetiva exerce a função de distribuir o grande prejuízo que desaba sobre os ombros da vítima para alocá-lo, em pequenas frações, no bolso de inúmeros outros agentes.

Esse sistema favorece a flexibilização do conceito de causalidade na responsabilidade objetiva. Não importa tanto quem causou dano ao ofendido, mas quem tem capacidade de repará-lo e, após, distribuir os custos daí advindos. Em circunstâncias excepcionais, o causador do dano poderá ser demandado a reparar mesmo que não exista nexo causal entre sua atividade e o dano, havendo aí a coletivização da responsabilidade em certo setor da vida social.

É fácil perceber, portanto, que diversas perspectivas de justiça convivem no campo de responsabilidade civil. Isso significa reconhecer que as escolhas legislativas não são totalmente aleatórias e voluntaristas, assim como não deve ser a atuação jurisprudencial. Num sentido amplo, em que a justiça equivale a todas virtudes somadas, justiça corretiva e distributiva não são antagônicas entre si, conquanto visem a objetivos diversos. Entender os mecanismos de justiça por trás de regras de responsabilidade objetiva e subjetiva é circunstância essencial para evitar que o equânime produza injustiças.

Vale dizer que esse e outros temas têm sido objeto de análise pelos professores signatários no grupo de pesquisa que ambos conduzem no IDP, Instituto Brasiliense de Direito Privado. O Grupo de Pesquisa "Direito Privado no Século XXI" se ocupará do debate dos fundamentos filosóficos da responsabilidade civil e suas variadas vertentes durante o próximo ano. O grupo é aberto e todos os interessados podem se inscrever no site.

Agradecemos, por fim, ao IBERC - Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil, por franquear esse espaço para debate.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).

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1 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo. Martins Fontes. 2012, p. 638.

2 FLETCHER, George, apud BARBIERI, Catarina Helena Cortada. Filosofia e Direito privado. A fundamentação da Responsabilidade Civil a partir da obra de Ernest Weinrib. São Paulo. Almedina 2019, p. 92.

3 Aristóteles. Ética e Nicômaco. Livro V. Os pensadores. Volume 2. Nova Cultural. São Paulo. 1991, parágrafo 1132, p.98.

4 BODENHEIMER, Edgar. A ciência do direito e metodologias jurídicas. Rio de Janeiro. Forense. 1966, p. 40.