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Ônus da prova e responsabilidade civil: a equivocada premissa da presunção judicial ou hominis na análise do dano moral in re ipsa

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Atualizado às 07:26

A dificuldade na produção de prova de determinados fatos levou o legislador a prever mecanismos que atenuam o rigor da obtenção da prova de forma direta. Estes mecanismos repercutem na distribuição do ônus da prova, seja em decorrência da própria lei que, já no seu comando, estipula alteração na carga probatória, seja na faculdade concedida ao juiz. Dessa forma, é possível afirmar que nas presunções há redução das exigências de prova.

A presunção é a ilação, ou o processo lógico de raciocínio, que se obtém de fato conhecido e secundário, geralmente um indício, para se provar a existência de fato desconhecido. As presunções são políticas processuais empregadas para facilitar a produção de determinada prova, pois parte-se da premissa de que é mais difícil provar a ocorrência do fato do que a sua não ocorrência. Ao mesmo tempo, tem por escopo, em algumas hipóteses, diminuir a atividade do juiz na apreciação e na valoração das questões fáticas pertinentes, ao substituí-la por critério já previamente estabelecido na lei. As presunções são divididas pela doutrina em legais, que são subdivididas em relativas e absolutas, e judiciais ou simples. 

O Código Civil, no artigo 212, inciso IV, trata a presunção como meio de prova, pois é listada juntamente com a confissão, o documento, a testemunha e a perícia. Esse enquadramento é criticado pela doutrina1 sob o argumento de que a presunção é um processo de elaboração mental e o que é provado é o fato-base que, por dedução lógica, faz chegar à presunção

Quanto às presunções legais, a maioria da doutrina processual entende que a diferença entre a presunção absoluta e relativa está no fato de que a presunção legal absoluta não admite prova em contrário. Na verdade, o que as difere é a relevância e a utilidade da produção da prova em sentido contrário. Na presunção absoluta, a produção de determinado meio de prova em nada influenciará a formação da convicção do juiz.

Nas presunções legais relativas, apesar da ocorrência do fato secundário, é possível a produção da prova de que o fato principal objeto de prova não ocorreu. Nesse caso, como a própria nomenclatura já evidencia, a presunção tem relativa eficácia, pois ela vigora enquanto não desconstituída por prova em sentido contrário. A parte que é beneficiada está dispensada da comprovação do fato principal que é objeto de prova, mas não do fato secundário que desencadeia sua ocorrência.

As presunções simples ou judiciais, também conhecidas por presunções hominis, são aquelas em que o raciocínio é empregado pelo órgão judicial com base naquilo que ordinariamente acontece. Eduardo Cambi aponta a existência de três fases para a sua consolidação: "[...] i) colheita dos indícios; ii) a dedução das presunções e iii) a apreciação (valoração) dessas presunções"2. Com base nesse conceito, é possível verificar a estreita relação existente entre as presunções judiciais, as regras ordinárias de experiência e a verossimilhança.

No campo probatório, as regras de experiência atuam como instrumento de apuração dos fatos e auxiliam o magistrado na formação das presunções simples. As máximas de experiência, no âmbito da prova, atuam na valoração desta pelo juiz e são inseridas no raciocínio do magistrado para a elaboração de sua decisão. A situação retrata um juízo de avaliação que é realizado com respaldo no livre convencimento motivado.

A verossimilhança está relacionada com as máximas de experiência e é a qualidade do que é verossímil, ou seja, daquilo que se apresenta como verdadeiro. Verossímil é o que possui semelhança com a verdade. Apesar do conceito singelo, esse instituto detém multifuncionalidade em nosso sistema jurídico, pois é utilizado em momentos distintos no processo. No campo probatório, funciona na distribuição do ônus da prova e no momento de constatação dos fatos por meio da valoração da prova.

Diante da verdade inatingível, exsurge a verossimilhança como a aparência dessa verdade, a verdade relativa, que está situada em um nível entre a ausência de conhecimento, ou ignorância, e a verdade vista como certeza. O juiz, ao reconhecer um fato como verossímil, atesta esse caráter representativo da verdade como possível no processo e forma sua convicção com base nas provas produzidas, sem que isso represente, necessariamente, ter encontrado a verdade.

Ao adentrar na inter-relação entre o ônus da prova e a responsabilidade civil, deve ser destacado que a responsabilidade civil contemporânea está permeada pela dupla expansão dos meios lesivos: o primeiro decorre da evolução tecnológica, e o segundo, dos interesses lesados com a normatividade dos princípios. Com base nesse entendimento, surge a "erosão dos filtros tradicionais da reparação"3. A visão liberal da responsabilidade subjetiva cede espaço à visão social decorrente dos conflitos do capitalismo industrial, e surge a teoria do risco-proveito, que visava amparar as vítimas dos riscos criados pelas atividades praticadas pelas empresas cujo lucro não fosse repartido socialmente.

Na evolução da responsabilidade subjetiva para a responsabilidade objetiva, com a intenção de mitigar as exigências probatórias, foi desenvolvida a ideia de culpa presumida. Posteriormente, houve o surgimento da mencionada teoria do risco, a qual, nas hipóteses previstas em lei, prescinde da valoração do comportamento do causador do dano. A partir de então, o foco da responsabilidade civil passou a ser a vítima, pois, nessa conjuntura de produção em massa de bens e serviços, a relação de poder estabelecida a colocou em situação de desvantagem.

Com relação ao dano, houve a expansão desse elemento da responsabilidade civil tanto no aspecto quantitativo (indenizações por dano moral, acesso ao Judiciário por meio dos juizados especiais e das ações coletivas) quanto no aspecto qualitativo (interesses existenciais da pessoa humana e interesses transindividuais). Surgem os novos danos, pois as hipóteses de violação de direitos não apresentam tipicidade fechada. Nesse contexto, despontou o chamado dano presumido ou in re ipsa, que, segundo propalado por parcela da doutrina e por julgados do Superior Tribunal de Justiça, prescinde de comprovação e decorre da própria violação do ato em si.

Acerca do dano moral, consoante este entendimento, em alguns casos, são utilizados métodos que reduzem as exigências de prova devido à dificuldade de sua comprovação. O dano moral consiste na violação de direitos da personalidade4 e devem ser desconsideradas, para esse fim, as situações de mero mal-estar decorrentes das vicissitudes do cotidiano, tais como algum aborrecimento diuturno ou um episódio isolado e passageiro, pois nem toda alteração anímica do sujeito configura o dano moral. A sanção imposta pelo juiz corresponde a uma indenização com a finalidade de compensar a vítima, punir o causador do dano e prevenir a prática de novos atos.

A expressão dano moral in re ipsa decorre da identificação do prejuízo como consequência lógica da alteração de estado da vítima, a qual resultou da violação de um ou de mais direitos da personalidade. Conforme divulgado pela jurisprudência, essa hipótese de dano presumido surge da dificuldade de provar algo que possui elevada carga subjetiva e geraria uma presunção hominis.  Todavia, a premissa de que se parte para a afirmação dessa hipótese de dano é equivocada. Os sentimentos anímicos da vítima, tais como dor, tristeza ou humilhação, não constituem suporte para a ocorrência do dano moral, pois estão relacionados à consequência do ato violador dos direitos da personalidade e atuam como circunstâncias que devem ser valoradas pelo juiz na fixação do valor indenizatório.

Por exemplo, se houve a inscrição indevida pelo fornecedor do nome do consumidor nos bancos de dados de inadimplentes, o dano decorreu da conduta comissiva do agente, que atingiu a honra e a privacidade da vítima5. Não é utilizada a presunção judicial para a dispensa de comprovação do dano moral, pois este é aferido pelo ato que violou algum direito da personalidade. Na relação de consumo que envolva ação judicial baseada nessa hipótese de ocorrência do dano moral, deve o consumidor demonstrar o apontamento do seu nome nos bancos de dados e o vínculo com o agente causador6.

Desta forma, entende-se que o critério da presunção judicial ou hominis para a caracterização do dano moral in re ipsa é equivocado, pois não há um juízo de probabilidade pelo magistrado, com base naquilo que ordinariamente acontece, mas sim a aferição direta de algum dano que foi ocasionado pela violação de direitos da personalidade, como sói acontecer no dano moral.

*Ricardo Rocha Leite é doutorando e mestre em Direito. Juiz no Distrito Federal.

Referências

BESSA, Leonardo Roscoe. O Consumidor e os Bancos de Dados de Proteção ao Crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

CAMBI, Eduardo. A Prova Civil. Admissibilidade e relevância. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004

MOREIRA, José Carlos Barbosa. As presunções e a prova. Temas de Direito Processual Civil: primeira série. São Paulo: Saraiva, 1977.

SCHREIBER, Anderson.  Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 4ed. São Paulo: Atlas, 2012.

SANTANA, Héctor Valverde. Dano Moral no Direito do Consumidor. 2ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

 

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1 A classificação é rechaçada por José Carlos Barbosa Moreira: "Parece bastante claro que tal presunção não constitui, a rigor, meio de prova, ao menos no sentido de que se dá a semelhante locução quando se afirma que é meio de prova, v.g., um documento ou o depoimento de uma testemunha. O processo mental que, a partir da afirmação do fato x, permite ao juiz concluir pela afirmação também do fato y, não se afigura assimilável à atividade de instrução, em que se visa a colher elementos para a formação do convencimento judicial. Quando o juiz passa da premissa à conclusão, através do raciocínio 'se ocorreu x, deve ter ocorrido y', nada de novo surge no plano material, concreto, sensível: a novidade emerge exclusivamente em nível intelectual, in mente iudicis. Seria de todo impróprio dizer que, nesse momento, se adquire mais uma prova: o que se adquire é um novo conhecimento, coisa bem diferente. A atividade probatória realizou-se antes, e terá produzido frutos na medida em que permitiu estabelecer-se a ocorrência do fato x". (MOREIRA, José Carlos Barbosa. As presunções e a prova. Temas de Direito Processual Civil: primeira série. São Paulo: Saraiva, 1977.p. 57) ("destaque do original").

2 CAMBI, Eduardo. A Prova Civil. Admissibilidade e relevância. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 377.

3 SCHREIBER, Anderson.  Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 4ed. São Paulo: Atlas, 2012. p.11.

4 Adriano de Cupis entende que a denominação direitos da personalidade deve ser reservada aos direitos essenciais, pois são "[...] direitos sem os quais todos os outros direitos subjetivos perderiam todo o interesse para o indivíduo - o que equivale a dizer que, se eles não existissem, a pessoa não existiria como tal". (DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Trad. Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana, 2004.p. 24

5 BESSA, Leonardo Roscoe. O Consumidor e os Bancos de Dados de Proteção ao Crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p.130.

 

6 Héctor Valverde Santana explicita seu raciocínio acerca do tema: "Finalmente, cumpre registrar que a presunção judicial ou simples (praesumptio hominis) e a característica in re ipsa do prejuízo moral são realidades jurídicas distintas, cada qual atuando em sua peculiar esfera. A presunção é um processo mental, um raciocínio lógico que o juiz desenvolve partindo do conhecimento do ato violador dos direitos da personalidade (fato conhecido) para inferir a verdade de que houve uma alteração psíquico-emocional da vítima (fato probando ou thema probandum). Presume-se que a violação dos direitos da personalidade enseja uma alteração na esfera subjetiva do consumidor, que por sua vez deve obter do sistema jurídico uma resposta adequada. Por outro lado, a característica in re ipsa do dano moral reside na identificação de um prejuízo (reparável) como consequência natural daquela alteração subjetiva. Não se confunde a presunção do thema probandum com a dispensa de prova (in re ipsa) do prejuízo moral". (SANTANA, Héctor Valverde. Dano Moral no Direito do Consumidor. 2ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.p. 214).

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).