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Reparação integral vs. indenização tarifada: o que a lei 14.128/21 espera de nós?

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Atualizado às 08:18

Tout le dommage, mais rien que le dommage.

Meses atrás, nessa coluna, tive a oportunidade de afirmar que o ano de 2020 é um ano inesquecível.1 Mal sabia, naquele momento, que o ano de 2021 igualmente o seria, ou, na verdade, que 2020 seria o mais longo dos anos; um ano inacabado, que insiste em repetir-se diante de nós, dia a dia, mês a mês, todos à espera da cura que a Ciência promete nos entregar. A essa tão peculiar sensação de perplexidade, ansiedade e impotência soma-se a dor da perda de pessoas queridas; amigos (e amigos de amigos), parentes (e parentes de parentes), tocados abruptamente por um mal que, para nosso assombro, parece aproximar-se de nós. Mas é a esperança que deve nutrir nosso espírito: com as perdas, aprendemos a valorizar as dádivas. Compreendemos que a saúde é mais que um Direito Fundamental: é um presente divino, sem o qual não há campo fértil para semeadura de sonhos e colheita de realizações. Nesses dias, em uma diuturna e heroica luta, os profissionais de saúde têm enfrentado, com coragem e obstinação, os perigos que a pandemia nos traz.

A tais profissionais de saúde, em boa hora, o legislador procurou dispensar proteção. No último dia 26 de março, foi sancionada a lei 14.128.2 Cuida-se de diploma que, em conformidade com o seu art. 1º, "dispõe sobre compensação financeira a ser paga pela União aos profissionais e trabalhadores de saúde que, durante o período de emergência de saúde pública de importância nacional decorrente da disseminação do novo coronavírus (SARS-CoV-2), por terem trabalhado no atendimento direto a pacientes acometidos pela Covid-19, ou realizado visitas domiciliares em determinado período de tempo, no caso de agentes comunitários de saúde ou de combate a endemias, tornarem-se permanentemente incapacitados para o trabalho, ou ao seu cônjuge ou companheiro, aos seus dependentes e aos seus herdeiros necessários, em caso de óbito."

O tema foi bem examinado nessa coluna por Monica Cecilio Rodrigues e Romualdo Baptista dos Santos, em artigo intitulado Primeiras impressões sobre a lei 14.128/21: Indenização aos profissionais de saúde por danos na pandemia da Covid-19.3 Dentre os temas que suscita, desperta agora interesse a regra prevista no art. 3º, incs. I e II. O dispositivo estabelece valores de compensação financeira para os agentes de saúde infectados. Será a compensação financeira, diz a lei, composta de uma única prestação em valor fixo de R$50.000,00, para o profissional ou trabalhador de saúde incapacitado permanentemente para o trabalho. Em caso de óbito, prossegue, o valor é revertido para o seu cônjuge ou companheiro, para seus dependentes e seus herdeiros necessários, sujeita a rateio entre os beneficiários. Nos termos do inc. II, acentua a lei, a compensação financeira corresponderá "a uma única prestação de valor variável devida a cada um dos dependentes menores de 21 (vinte e um) anos, ou 24 (vinte e quatro) anos se cursando curso superior, do profissional ou trabalhador de saúde falecido, cujo valor será calculado mediante a multiplicação da quantia de R$10.000,00 (dez mil reais) pelo número de anos inteiros e incompletos que faltarem, para cada um deles, na data do óbito do profissional ou trabalhador de saúde, para atingir a idade de 21 (vinte e um) anos completos, ou 24 (vinte e quatro) anos se cursando curso superior."

Da leitura de tais regras, despontam as questões centrais que devem ser examinadas nesse brevíssimo ensaio. A lei 14.128/21 criou uma hipótese de limitação do valor indenitário? A limitação estabelecida por lei afasta a realização do Princípio da reparação integral na hipótese de a indenização concretamente devida às vítimas ser superior aos patamares legais? É constitucional a fixação de limites indenitários aos profissionais e trabalhadores de saúde permanentemente incapacitados para o trabalho, ou na hipótese de contágio aos entes que especifica, certo que Constituição Federal de 1988 assim não o faz? É esse o desafio ao qual me proponho. Para tanto, em primeiro lugar, examinarei o Princípio da reparação integral (e o papel que exerce na responsabilidade civil). Em segundo lugar, é considerarei a coexistência pacífica e harmônica de três modelos distintos (sistemas) de responsabilização civil: a responsabilidade subjetiva; a responsabilidade objetiva, e o que aqui importa, a responsabilidade civil tarifada. Buscarei doravante enfrentar tais intrincadas questões.

A regra prevista no caput do art. 944 do Código Civil em vigor é fundamental nos passos a seguir: "a indenização mede-se pela extensão do dano". Nela se corporifica o que se convencionou denominar Princípio da reparação integral, que, na sua essência, tem por finalidade repor a vítima ao estado anterior à ocorrência do dano injusto. Ele serve para que se transfira ao patrimônio do ofensor (ou daquele que assume o dever de indenizar) as consequências do evento ilícito, permitindo que, com a maior proximidade da realidade possível, volte a vítima a ocupar a situação equivalente ao momento anterior à prática do ilícito (Código Civil, arts. 186 e 187)4. No Brasil, o Princípio da reparação integral foi bem desenvolvido por Paulo de Tarso Vieira Sanseverino5, em obra monográfica de peso. Ele radica no ideário Aristotélico de realização concreta da Justiça Corretiva, pondera o jurista, realizando as três funções da responsabilidade civil: atende à função compensatória da reparação da integralidade do dano; realiza a função indenitária, inibindo o enriquecimento indevido da vítima, e densifica a função concretizadora da responsabilidade ao permitir a justa medida da extensão dos prejuízos concretamente suportados pela vítima.6 Conquanto tal princípio possua exceções, nada o infirma. Vale recordar, a propósito, que ao tratar do evento morte e de lesões à saúde de outrem, o próprio legislador civil preocupou-se em atendê-lo, dentre outras passagens, nos artigos 948 a 951.

Em segundo lugar, não creio que o propósito do legislador na lei 14.128/21 fora criar um tabelamento absoluto de valores indenitários. Não se pretendeu, a meu ver, sedimentar um patamar máximo (teto), que excluiria a vivificação do Princípio da reparação integral nas hipóteses por ela disciplinadas. A esse respeito, é oportuno recordar as lições do Prof. Dr. Renan Lotufo, que recentemente tive ocasião de registrar em homenagem a ele prestada pelo IBERC7. No Brasil, dois são os sistemas já consagrados de responsabilidade civil. Um sistema tradicional, fundado na culpa (responsabilidade civil subjetiva), de origem no Direito Romano (Lex Aquilia), que chega até nós, dentre outros dispositivos, pelo art. 927 do Código Civil; "aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". No século XX, com o advento da Teoria do Risco, erigiu-se um outro sistema que abandona a rigidez da formulação subjetiva, e vem hoje estampado no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, segundo a qual "haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". Dentre as leis especiais, a responsabilidade civil sem culpa é a tônica nas relações de consumo (CDC, arts. 12, 14, etc.).

Nos dois modelos acima, esteja a responsabilidade a depender da culpa, esteja a dela independer, busca-se concretizar o Princípio da reparação integral (restitutio in integrum). Ocorre que, ao lado desses dois modelos de responsabilização civil, coexiste um terceiro modelo, que, a meu ver, é o que se quer ver realizar pela lei 14.128/21. É o que Renan Lotufo identifica ser o Sistema de Responsabilidade Civil Tarifada. Nele, o legislador identifica hipóteses e agentes responsáveis pela reparação de danos, atribuindo às vítimas valores indenitários previamente definidos por lei. Esse modelo tem por mérito permitir uma indenização inicial (mínima), de modo eficiente e célere, pois se contenta com a prova do nexo causal entre a vítima e o agente responsável, independentemente de perquirir-se o dolo, a culpa, ou a exata incidência da Teoria do Risco. Observe que o legislador recorre a esse modelo em diversas passagens, tais como na lei 6.149/748 (que disciplina o seguro DPVAT) e na indenização por extravio de bagagens de passageiros no contrato de transporte aéreo internacional (Convenções de Varsóvia, Montreal e Resolução ANAC nº 400/16).9 A esses dois exemplos, a meu ver, soma-se a lei 14.128/21.

Note que os modelos de responsabilidade civil com culpa e sem culpa têm em comum o mérito de atender ao que é mais relevante no campo do Direito de Danos: buscam realizar o Princípio da reparação integral. Significa dizer, seja a responsabilidade civil objetiva, seja subjetiva, o foco aqui é tornar a vítima indene, isto é, é reparar, na melhor e maior extensão possível, os danos injustos pela vítima suportados. Entretanto, em pacífica convivência, é possível admitir uma terceira via da Responsabilidade Civil tarifada. Nela, a finalidade não é atender ao Princípio da reparação integral. São hipóteses específicas nas quais o legislador, independentemente de preocupações com os esquemas de responsabilidade subjetiva ou objetiva, indica valores preestabelecidos por lei em favor das vítimas de determinados eventos contemplados. De fato, em certas circunstâncias, os valores podem vir a atender ao Princípio da reparação integral. Em outras hipóteses, não. Aqui, não há preocupação imediata em reparar-se integralmente (mas, sim, em fornecer um mínimo célere de indenização). Depender-se-á da prova da extensão do dano suplementar para que, no futuro, possa haver a integral reparação. Daí que o valor a ser prontamente recebido pela vítima não implica, necessariamente, na quitação ampla geral e irrestrita de todo o valor devido. Será, sim, como sublinhei, o mínimo de indenização, se houver a prova de que o dano se deu em extensão superior. Nesse caso, deve o valor inicialmente recebido ser abatido do que se apurar realmente devido ao final, evitando-se com isso o enriquecimento indevido da vítima.

A lei 14.128/21, portanto, espera de nós, juristas de boa vontade, a compreensão de que não se está diante de um teto intransponível de quantificação do valor indenitário nas situações regidas pelo art. 3º. Os intérpretes agirão com acerto se aqui identificarem nada além de um valor inicial fixado por lei que, por vezes, será suficiente para atender à extensão do dano, e, em outros casos, será somente o início (o mínimo) de indenização, repito, não afastando a indenização suplementar caso a extensão do dano a maior seja demonstrada. Assim compreender a regra permitirá conciliar as potencialidades do instituto à realização das funções da responsabilidade civil na sociedade contemporânea. Sempre com apoio na boa doutrina, a jurisprudência deve dar concretude ao compromisso que a responsabilidade civil inspira: "(n)o mundo atual, não mais cabe pensar no juiz como um mero locutor oficial da lei, mas, sim, como participante da integração dos valores expressos nos princípios gerais, da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e nas formulações de cláusulas gerais como a boa-fé objetiva, que ensejam a atualização e oxigenação permanente do ordenamento"10. Assim seja.

*Alexandre Guerra é doutor e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Professor de Direito Civil da Escola Paulista da Magistratura e da Faculdade de Direito de Sorocaba. Especialista em Direito Público (EPM). Professor convidado nos cursos de pós-graduação da PUC-SP/COGEAE. Juiz de Direito no Estado de SP. Membro fundador do Instituto de Direito Privado (IDiP), do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Autor e coordenador de obras e artigos jurídicos.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 A respeito dos amplos horizontes do ato ilícito e da responsabilidade que pode ensejar, seja consentido remeter a: GUERRA, Alexandre. Responsabilidade civil por abuso do direito. In: GUERRA, Alexandre D. de M.; BENACCHIO, Marcelo (coords.) Responsabilidade Civil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2015. Disponível aqui. Acesso: 27.4.2021.

5 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010.

6 A respeito, ver excelente obra de: FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 53-54.

7 GUERRA, Alexandre. Três lições de responsabilidade civil, de Renan Lotufo: A coexistência de três modelos de responsabilidade civil. A culpa e a fênix. A indenização social para entidades de beneficência. In: GUERRA, Alexandre: MORATO, Antonio Carlos; MARTINS, Fernando Rodrigues; ROSENVALD, Nelson (coords.). Da estrutura à função da responsabilidade civil. Uma homenagem do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) ao Professor Renan Lotufo. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 315-330.

8 Disponível aqui.

9 A coexistência de três sistemas de Responsabilidade Civil foi recentemente reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal, que proclama a constitucionalidade da limitação da indenização estabelecida em convenções internacionais que disciplina o contrato de transporte aéreo (STF, Recurso Extraordinário nº 636.331/RJ, Relator Min. GILMAR MENDES, j. 25.05.2017). Disponível aqui.

10 LOTUFO, Renan. A responsabilidade civil e o papel do Juiz no Código Civil de 2002. In: ANDRADE NERY, Rosa Maria de; DONINI, Rogério (coords.). Responsabilidade civil: estudos em homenagem a Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 458

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil