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A responsabilidade do Estado pela má condução de políticas públicas: perspectivas diante da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

terça-feira, 6 de julho de 2021

Atualizado às 08:50

"Direitos Fundamentais", sobretudo quando se utiliza essa expressão no plural, é o modo como denominamos o conjunto de compromissos assumido pelo Poder Público perante o cidadão. Em contrapartida, os deveres fundamentais seriam o projeto civilizatório caracterizador de determinada comunidade1.

A partir dessa forma de pensar, observá-los e implementá-los seria o papel do Estado. E, assim, a missão de respeitar, fazer respeitar, regular e torná-los acessíveis é a melhor definição do que seja um "objetivo fundamental da República Federativa do Brasil". Seria a melhor síntese para a busca de uma sociedade livre, justa, solidária e desenvolvida, sem espaço para a pobreza, a marginalização e as desigualdades, na qual o bem de todos fosse promovido para afastar a discriminação preconceituosa. Mas seria possível responsabilizar o Estado por não cumprir esse projeto constitucional?

Os requisitos básicos para a existência da responsabilidade estão presentes. Atenção especial será dada ao descumprimento de um dever jurídico.

Primeiramente, considere-se que essa compreensão impacta diretamente o que se entende por Estado e o que se espera dele. E "responder" e "esperar" são duas palavras que se unem para formar o diálogo da responsabilidade: há uma expectativa por uma atitude. E, diante da falibilidade humana, certas expectativas insatisfeitas dão ensejo à responsabilidade do sujeito de Direito. Essa conexão entre prescrição de condutas e resultados esperados2 marca a transição de um Estado no qual avultam as funções protetoras e repressivas para um outro modelo no qual a atividade dita promocional ocupa lugar de destaque3. Enquanto aquelas são marcadamente delineadas pela descrição de direitos, estabelecimento de proibições e fixação de atribuições institucionais, estas se caracterizam pelo implemento de mecanismos de acessibilidade aos direitos. As primeiras dependem de uma atitude estatal específica: a edição de leis. As segundas derivam de uma conexão estrutural entre condutas e normas. Nestas, o planejamento passa a ser um método indispensável como vetor do republicanismo e do debate democrático.

O advento de um governo por políticas4 ultrapassa as questões sobre o juízo meramente de diretrizes políticas governamentais (policies) para se preocupar com a gestão pública de direitos. Não basta mais ao cidadão a concessão legal do mesmo, mas a construção de vias para a sua efetivação. E essa concepção se espraia por todos os direitos nas múltiplas funções que possuem simultaneamente.

Por isso a Constituição de 1988 estabeleceu o dever da União de elaborar e executar planos nacionais e regionais de desenvolvimento econômico e social (21, IX, c/c 43, II, 48, IV, e 174, § 1º), os quais devem ter seus relatórios apreciados pelo Legislativo (49, IX c/c 166, § 1º, II), e sujeitam-se a ser debatidas em suas comissões (58, § 2º, VI). Consequentemente, o Executivo deve anualmente apresentar ao Congresso Nacional as providências que considera cabíveis para a situação nacional (84, XI); as quais se congregam no planejamento orçamentário nacional (165). Além disso, o controle interno de cada Poder deve avaliar o cumprimento das metas dos programas (74, I) - o que é um dever de todos os entes públicos (37, § 16) -, a ser obrigatoriamente considerado no planejamento orçamentário (165, § 16). Essa avaliação, no caso das políticas sociais, deve, inclusive, ter a participação da sociedade (193, parágrafo único). Enfim, deve haver planos de desenvolvimento urbano e agrário, de saúde e assistência social, de educação, cultura e juventude (182, 187, 196, 204, 214, 215, § 3º, e 227, § 8º, II). Como se pode ver, uma obrigação com largo esteio constitucional.

Portanto, a consideração do resultado - ainda que possa não ser uma obrigação de fim - ingressa como elemento na atuação do Poder Público5.

E que posicionamento se pode extrair do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto? É possível vislumbrar que a Corte passa a observar o planejamento do Estado para proteger direitos fundamentais como fator para sua responsabilidade. As decisões passam a surgir mais técnicas e com suporte em dados e algumas situações podem ser assim classificadas:

a)            Dever de planejar:

No contexto social, ao julgar o MI 7300, a Corte estabeleceu - após análise de dados orçamentários e de impacto financeiro - que deveria haver a implementação do programa renda cidadã. Uma decisão técnica, com suporte em fatos, redução do caráter retórico-ideológico e com atenção ao planejamento estatal. Tudo isso participa de um contexto maior de redução de riscos por meio da regulação de expectativas de conduta.

b)            Dever de implementar planos vigentes:

No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 620 (Rel. Min.  Roberto Barroso, julgado em 24/2/21), ao analisar a possibilidade de bloqueio de verbas públicas vinculadas a um aspecto específico, a par do aspecto relativo à ingerência do Judiciário em tema orçamentário, foi dado particular destaque à política pública. Ali é destacada a importância de se "resguardar o planejamento" constitucionalmente elaborado, com atenção ao fato de que se tratava de dar cumprimento a projetos sociais de acesso à água para populações de baixa renda mediante a construção de barragem. 

c)            Dever de não ampliar riscos e observar o estado da técnica:

Verifica-se uma sistemática atenção da Corte a dados científicos, sobretudo em aspectos que envolvem direta ou indiretamente a saúde pública. Em 2008, no julgamento da ADIn 3.937, o STF entendeu que os danos causados pelo amianto suplantavam a jurisprudência da casa acerca da repartição de competências federativas, tendo em vista a necessidade de se proteger a saúde do trabalhador (Rel. para acórdão, Min. Dias Toffoli). Mencionou-se ali a "inconstitucionalização em razão da alteração nas relações fáticas subjacentes".

Esse raciocínio não se mostra historicamente estranho à Corte. No voto condutor da decisão na ADIn 3.366, após salientar a importância do contexto para a hermenêutica sistemática do texto constitucional, o ministro Eros Grau argumentou em prol da apropriação do produto da lavra de jazidas minerais pelo concessionário por ser "inerente ao modo de produção social capitalista". No RE 566471, onde foi discutido o direito a obter judicialmente o acesso a medicamentos de alto custo, desempenhou papel decisivo a consideração de dados científicos acerca da solução medicamentosa e, inclusive, acerca dos procedimentos burocráticos cabíveis.

E, no julgamento da ADIn 6.421, foi debatida a responsabilização do agente público no contexto da pandemia de COVID-19. Ficou estabelecido em tese que a motivação decisória deve estar em consonância com as "normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria".

d)            Dever de zelar pelo aprimoramento da política pública:

E, em referência direta à política prisional, tem sido tratada a questão da responsabilidade do Estado por pessoa foragida (repercussão geral, tema 362)6. No qual são estabelecidas condições como o nexo causal. Mas, em suma, refere-se à possibilidade de responsabilização objetiva do Estado em caso de falha no cumprimento de política pública. 

e)            Dever de observar o planejamento e alcançar resultados:

Por fim, na decisão da ADPF 770, que chancelou a possibilidade de os Estados e Municípios a adquirirem vacina, trouxe inovadora perspectiva constitucional. Resumidamente, em caso de descumprimento ou insuficiência do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, estes "poderão dispensar às respectivas populações as vacinas das quais disponham". Observe-se: o descumprimento de um planejamento passa a ser fator disparador da competência constitucional. E, por outro lado, considerado inclusive os aspectos políticos envolvidos, torna-se uma sanção à União pela inobservância ou falibilidade do plano. 

Portanto, pode ser vista uma consolidação do planejamento como um método para o respeito ao desenvolvimento como direito fundamental de acesso a políticas públicas. E a responsabilidade do Estado passa a ser, mais do que um mecanismo indenizatório, uma forma de proteção e promoção dos direitos fundamentais.

Para isso, basta verificar os requisitos para constatar o dever de se impor uma conduta reparadora ao Estado. Há o ato, omissivo ou comissivo, do Poder Público perante o planejamento, o nexo causal e o resultado propriamente relacionado com o dever jurídico inobservado. Essa situação causa um prejuízo ao acesso a direitos e que pode tanto ser um dano material subsistente, certo e presente, como um dano moral coletivo. De outra parte, pode haver a condenação a efetuar o planejamento, implementá-lo ou responder pelo seu descumprimento.

Dessa maneira, republicanamente, as diversas dimensões dos direitos fundamentais alcançariam proteção para além das lides individuais.

__________

1 Sobre o tema dos deveres fundamentais, v. DUQUE, Bruna Lyra, PEDRA, Adriano Sant'Ana. Os deveres fundamentais e a solidariedade nas relações privadas. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 147-161, jul./dez., 2013.

2 Tratando da análise do resultado para o Direito, cf. CARNELUTTI, Francesco. Teoria Generale del Diritto. 3. ed. Roma: Foro Italiano, 1951. p. 21. Da mesma forma, acerca da importância do alcance de objetivos de bem comum, v. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1972. p. 541.

3 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de Teoria do Direito. Prefácio de Mario Losano. Apresent. Celso Lafer. Trad. por Daniela B. Versiani. Barueri: Manole, 2007.

4 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 86, n. 737, p. 11-22, mar., 1997. 

5 Cf. sobre o tema da legalidade de resultado, IANNOTTA, Lucio (org.) Economia, diritto e politica nell'amministrazione di risultato. Torino: G. Giappichelli Editore, 2003. (Nuovi Problemi di Amministrazione Pubblica, n. 9). MENDONÇA, Fabiano. Introdução aos direitos plurifuncionais: os direitos, suas funções e a relação com o desenvolvimento, a eficiência e as políticas públicas. Natal: 2016. p. 65. BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas.  São Paulo: Saraiva, 2013. p. 198.

6 V. CALIXTO, Marcelo Junqueira. A responsabilidade civil do Poder Público por omissão e a recente decisão do STF em sede de repercussão geral. Migalhas de Responsabilidade Civil. 10 jun., 2021. Disponível na Internet em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/346805/a-responsabilidade-civil-do-poder-publico-por-omissao