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Responsabilidade civil do médico residente em meio ao caos pandêmico

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Atualizado às 08:10

Introdução

A realidade nos hospitais brasileiros, que mantêm programas de Residência Médica, mostra médicos residentes - em época de normalidade - trabalhando em excesso. O limite da carga horária prevista na legislação é ultrapassado. A urgência ou emergência impõem aos residentes, muitas vezes, intervenções sem a imprescindível assistência do preceptor. Literalmente, os residentes ficam entregues à sua própria sorte - ao lado de pacientes inteiramente alheios àquela anômala situação. O sistema é implacável, não permite insurgências ou reclamações. O ingresso na Residência demanda enorme sacrifício - e a única alternativa que resta ao médico em formação é concluir sua especialização, habilitando-se ao exercício profissional em condições mais favoráveis.

O propósito da Residência Médica é possibilitar, por meio de treinamento, que o profissional adquira um nível de excelência e aprimoramento em determinada área específica da Medicina. Os médicos residentes são aprendizes de uma especialidade sob orientação de preceptores, que sãoprofissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional.Contudo, desde 2020, com o anúncio da Organização Mundial da Saúdesobre a pandemia da Covid-19, o cenário da atuação dos residentes tem sido substancialmente modificado.Em meio ao caos da atual pandemia, no olho desse furacão da emergência sanitária, os médicos residentes têm sido exigidos até o limite de suas forças. Trabalham até a exaustão, em condições adversas e, muitas vezes, hostis. Veem-se na contingência de descurar da própria formação, para se dedicar inteiramente aos pacientes da Covid-19.

Em linhas gerais, a Residência Médica, por força da lei 6.932/81, consiste em modalidade de ensino de pós-graduação, e os médicos que a realizam, apesar de terem concluído o curso de Medicina são juridicamente equiparados a estudantes na área da especialidade correspondente. A Referida lei traz consigo certo grau de utopia, sobretudo no artigo 1º, que tipifica o médico como mero estudante. Todavia, como bem afirmam Pessoa e Constantino (2002, p. 821), muito além de estudante, o residente é- de fato - mão de obra essencial dos hospitais:

A força de trabalho do residente, reconhecidamente importante em todos os hospitais com programa de Residência Médica, deve ser vista e utilizada no sentido de que esse é um momento de aprendizagem. Ou seja, o atendimento prestado pelo residente, isoladamente, não é o objetivo da inserção do mesmo no programa.

Se em tempos normais os residentes já eram reconhecidamente peças fundamentais na rotina dos nosocômios, quiçá com o advento da atual pandemia, que os colocou à linha de frente do combate ao novo coronavírus, conforme se observada descrição abaixo do cenário caótico na prática da Medicina:

Não demorou muito para o sistema de saúde entrar em colapso. Hospitais de campanha começaram a ser montados; faltavam leitos, respiradores, oxigênio. Não bastassem todas essas dificuldades, os profissionais de saúde foram rapidamente contaminados, pois faltavam materiais de proteção individual e, o próprio desconhecimento do comportamento do novo vírus, propiciava o contágio entre os membros das equipes assistenciais [...]. É aí que fora convocada a força de trabalho dos médicos residentes. (Folha Machado e Stellfeld, 2020, p. 71).

Após inúmeros profissionais da saúde serem contaminados no país, criou-se, por meio da Portaria nº 580 do Ministério da Saúde, o programa "O Brasil Conta Comigo - Residentes na área da Saúde", a fim de suprir a necessidade de médicos e demais profissionais da saúde no combate ao novo coronavírus, sendo uma ação estratégica criada para ampliar o número de atendimentos aos pacientes contaminados e salvar o maior número de vidas possível. Contudo, residentes deixaram seus programas de estudos nas mais diversas áreas de especialidades médicas e, praticamente sem nenhum arbítrio, foram remanejados ao atendimento de pacientes acometidos pela Covid-19. Ao lado do maior reconhecimento nacional da relevância desses profissionais no cenário pandêmico, os quais saíram do anonimato e assumiram papel de protagonismo, surge imprescindível reflexão acerca da eventual responsabilização civil dos médicos residentes.

Pandemia e responsabilidade civil do médico residente

Quem optou pela Medicina e jurou consolar, aliviar e curar, nos moldes ditados por Hipócrates, certamente busca proporcionar qualidade de vida e bem-estar ao paciente. A respeito disso, frise-se que, "a atividade curativa, em regra, não gera risco ao paciente. Antes, muito pelo contrário, visa a afastar o risco do agravamento do seu estado de saúde do doente, propiciando-lhe melhora ou cura total" (Kfouri Neto, 2018, p. 82). Todavia, podem acontecer eventos adversos na atuação médica, especificamente no contexto do médico estudante no front do cenário atual.

Para determinar quando o médico será responsabilizado civilmente por ocorrências danosas provenientes de sua intervenção, o ordenamento jurídico nacional condicionou a existência de culpa na conduta correspondente, como aduz Matielo (2014, p. 31): "no que concerne à responsabilidade civil dos médicos, segue-se a regra geral da imprescindibilidade da demonstração da culpa do agente (...)". A rigor, do médico exige-se diligência, empenho máximo e utilização da melhor conduta profissional.

Contudo, a aferição da culpa médica durante a pandemia adquire certas peculiaridades e exige maiores reflexões. Não há como exigir do profissional, sobretudo do residente, por uma ilusória perfeição e diligência em meio ao caos pandêmico. Rosenvald (2020) enfatiza que "praticar medicina em condições de crise, como as criadas pela Covid-19, não é o mesmo que praticar em condições sem crise" - quanto mais para um profissional ainda em formação. Ademais, "profissionais de saúde precisam de um escudo de responsabilidade civil para que não se preocupem com pretensões judiciais enquanto lutam para salvar vidas".(Rosenvald, 2020)

França (2014, p. 289) assevera que "os médicos residentes são os menos vulneráveis à questão da responsabilidade civil, em virtude da sua condição de aprendizagem e pela necessidade da presença obrigatória dos preceptores em seus atos".Em termos de deveres de cuidado com o paciente, obviamente que a inexperiência não exime o residente da responsabilidade perante o doente, pois ele é graduado e inscrito no Conselho Regional de Medicina. Todavia, já defendemos tese, que vem ganhando voz na doutrina, no sentido de que é possível pensarmos na redução equitativa da indenização, nos termos do art. 944, parag. único, do CC, no caso dos médicos residentes. (Folha Machado e Alvarez Vianna, 2020).

Por outro lado, em estudo anteriormente desenvolvido, verificou-se que esse entendimento é minoritário na jurisprudência brasileira. A realidade consiste em decisões que fundamentalmente atribuem o mesmo grau de responsabilidade ao preceptor e médico-residente, porquanto, de acordo com os julgadores, o residente é médico já formado e, como tal, passível de responsabilização como os demais profissionais (Apelação Cível nº 0015883-16.2011.8.26.0482, TJSP; Apelação Cível nº 0057761-21.8.26.0114, TJSP; Apelação Cível nº 0026718- 21.2013.8.26.0053, TJSP).

Contudo, há célebre e inovadora decisão do STJ, do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, que julgou o Recurso Especial 316.283/PR (2002), na qual destacou a diferença entre a responsabilidade do médico residente e de seu preceptor e enfatizou: "não comungo da assertiva de que, para a lei, todos os médicos são iguais, pois sempre será necessário considerar as condições pessoais do médico e as circunstâncias de sua atuação".

Considerar o residente como um soldado despreparado e ter presente a condição do residente médico como "pós-graduando" é essencial para lembrar que, não obstante se trate de alguém graduado, não se alcançou o nível de especialista, sendo assim, se eventualmente cometer algum equívoco, sua responsabilização deverá ser atenuada com base no artigo 944, parag. único, do Código Civil.

Em regra, diante da complexidade de um atendimento emergencial, onde as circunstâncias não são as mais favoráveis e os profissionais precisam agir rápido e ter cuidados redobrados, são imprescindíveis os protocolos e as recomendações ou diretrizes clínicas. Contudo, o cenário da responsabilidade profissional do médico é particularmente delicado quando se considera a inexistência de protocolos terapêuticos universalmente estabelecidos para atendimento dos pacientes, motivo pelo qual é fundamental a análise particularizada da culpa médica tendo em vista a extraordinariedade do momento(Kfouri, Dantas e Nogaroli, 2020).Longe de defendermos a impunidade em situações manifestamente lesivas e erro grosseiro, visa-se, unicamente, garantir ao médico que o exercício da profissão em tempos de pandemia não seja tão "perigoso" quanto o próprio vírus.

Ao investigar cada caso de erro médico, o juiz deverá ponderar sobre as suas peculiaridades, especialmente os diferentes níveis profissionais envolvidos - se acadêmico, residente ou especialista -, e, além disso, deve especialmente considerar o caos da atuação médica trazido pela pandemia, para, então, determinar a responsabilização adequada e razoável.  Vale ainda a ponderação de que a Residência Médica tem diferentes durações conforme a especialidade. Sendo assim, além de tratar o residente com maior benevolência, há de considerar qual estágio da Residência este se encontra (se é, por ex. um R1, R2, R3, R4 ou R5).

Frise-se que o residente é um clínico geral em fase de aprimoramento para o exercício como especialista em determinada área. Magalhães (1984, p. 309) defende critérios para avaliar a culpa médica, dentre estes: "O clínico geral deve ser tratado com maior benevolência que o especialista". Na mesma trilha, Alsina (1993) afirma que "a diligência exigível de um médico especialista é maior que a correspondente ao não especialista". Logo, os "residentes não devem ser confrontados com situações para as quais não estejam preparados" (Kfouri, 2019, p. 270). Paradoxal, não é mesmo?

Considerações finais

Para evitar erros e possibilitar a aprendizagem ideal aos médicos residentes, a legislação impôs a figura do preceptor - profissional médico incumbido de supervisionar a atuação do residente. Entretanto, o programa do Ministério da Saúde foi criado justamente para suprir a ausência de médicos suficientes para combater a pandemia. Como poderia, então, em meio ao caos estabelecido pelo vírus, cumprir a disposição da lei 6.932/1981, ao impor que o estudante deve atuar acompanhado? Ao estabelecer a Portaria nº 580, o próprio Estado de Direito criou um limbo jurídico, no qual o maior prejudicado é o residente médico.

Nas breves considerações ora apresentadas, fundamentamosque, em eventual processo sobre erro médico que envolva o médico estudante como réu, especificamente a atuação isolada de residentes durante a pandemia, caberá ao juiz, ponderar, equalizar ou mitigar a responsabilidade civil deste, após análise minuciosa das peculiaridades do caso. Em momento algum, defendemos aqui a possibilidade de isentar o residente de responder por condutas nitidamente inadequadas e errôneas. A tese é a da necessidade de conferir ao médico residente, profissional em formação, um grau de culpa compatível, não só com o caso concreto, mas também, e sobretudo, com seu estágio acadêmico-profissional, somando-se às peculiaridades da atuação médica em meio ao caos pandêmico.

*Yasmin A. Folha Machado é doutoranda em Direito pela PUCPR. Mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUCPR. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Médico pela Unicuritiba. Graduada em Direito pela PUCPR. Integrante do Grupo de Pesquisas de Direito da Saúde e Empresas Médicas, coordenado pelo Prof. Dr. Desembargador Miguel Kfouri Neto. Membro titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogada.

**Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestranda em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná e em Direito Processual Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Pós-graduanda em Direito Médico pelo Centro Universitário Curitiba. Coordenadora do grupo de pesquisas em "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e do grupo de pesquisas em direito civil-constitucional "Virada de Copérnico" (UFPR).

***Miguel Kfouri Neto é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Pós-Doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Estadual de Londrina. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina. Autor de diversos artigos e obras jurídicas na área de responsabilidade civil médico-hospitalar.

Refereências bibliográficas

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