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Reparação não pecuniária do dano coletivo

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Atualizado às 10:35

No último dia 20 de outubro a página na internet do Superior Tribunal de Justiça noticiou que a Primeira Seção do tribunal deliberara admitir mais uma questão a ser resolvida sob o rito dos recursos repetitivos (art. 1.036 e ss., do Código de Processo Civil)1.

A questão, cadastrada sob o número 1.104 do rol de temas do Superior Tribunal de Justiça, consiste em definir a possibilidade de imposição de tutela inibitória, bem como de responsabilização civil por danos materiais e morais coletivos causados pelo tráfego com excesso de peso em rodovias.

Sem dúvida trata-se de controvérsia com enorme repercussão, prática e jurídica. O transporte rodoviário no Brasil, afinal, representa o principal modal para a circulação de cargas e passageiros, envolvendo, apenas para o transporte de cargas, mais de dois milhões e duzentos mil veículos autorizados, entre veículos de empresas ou cooperativas e de motoristas autônomos, segundo dados divulgados pela Confederação Nacional do Transporte, e somente nas estradas federais em 2019 foram registrados mais de cinquenta e cinco mil acidentes de trânsito com vítimas, o que evidencia a gravidade do assunto2.

De pronto, acredita-se que, ao julgar o tema 1.104, o Superior Tribunal de Justiça deverá reafirmar a identificação de dano coletivo em razão do reiterado tráfego de caminhões com excesso de peso3.

Os precedentes existentes indicam que o Superior Tribunal de Justiça entende que o transporte de carga em desacordo com as normas que regem o serviço implica mais do que a violação da legislação de trânsito, importando danos ao patrimônio público e privado, bem como à vida e à segurança4.

Deste modo, compreende que não existiria empecilho legítimo à imposição, em paralelo às sanções administrativas preconizadas pela legislação de trânsito, da responsabilidade pelo dano coletivo, que reconhece ser de ordem material e moral (denominação que se adotará para compreender os danos extrapatrimoniais ou não patrimoniais)5.

O que se propõe neste momento é a reflexão acerca da reparação não pecuniária no âmbito do dano coletivo. E, mais especificamente, procurar-se-á encorajar os intérpretes a aprofundarem o uso dessa modalidade de reparação.

Isto porque, nos casos de reparação do dano coletivo de ordem moral a jurisprudência6 identifica a necessidade de observar as denominadas funções punitiva e preventiva da responsabilidade civil.

Para concretização da função punitiva da responsabilidade civil costuma-se recorrer à imposição de uma condenação agravada em valor se comparada ao dano suportado pelo prejudicado. Este valor adicionado pode ser direcionado ao próprio prejudicado ou a algum fundo7.

Em um dos precedentes específicos sobre o transporte de carga em excesso, o Ministro Herman Benjamin afirmou:

Embora não seja esse o ponto central do presente litígio, nem ao leigo passará despercebido que se esvai de qualquer sentido ou valor prático, mas também moral, jurídico e político, a pena incapaz de desestimular a infração e dela retirar toda a possibilidade de lucratividade ou benefício. De igual jeito ocorre com a sanção que, de tão irrisória, passa a fazer parte do custo normal do negócio, transformando a ilegalidade em prática rotineira e hábito empresarial em vez de desvio extravagante a disparar opróbio individual e reprovação social. Nessa linha de raciocínio, o nanismo e a leniência da pena, incluindo-se a judicial, que inviabilizem ou dilapidem a sua natureza e ratio de garantia da ordem jurídica, debocham do Estado de Direito, pervertem e desacreditam seu alicerce central, o festejado império da lei8. 

Atacar o efeito patrimonial que beneficia o infrator por meio da exacerbação da condenação pecuniária é também, se percebe, uma manifestação da preocupação com a função preventiva (dissuasória) da responsabilidade civil.

No entanto, para qualquer destes fins, o que mais se vê é a tentativa de encontrar critérios para a fixação da reparação dos danos não patrimoniais9.

Ou seja, a uma situação complexa por si só - arbitrar a reparação adequada - o nosso sistema permitiu acoplar mais um fator complicador - fazer com que a indenização opere punitiva e preventivamente.

Um problema deste modelo, com efeito, é que com a multiplicidade de critérios disponíveis e a ampla liberdade conferida ao magistrado, o arbitramento é um trabalho árduo e sujeito a muita discrepância.

A autonomia do dano coletivo exige, ademais, que, sob o aspecto de dano-evento, seja distinto das diversas lesões individuais correlatas. Tampouco, portanto, sob o aspecto do dano-prejuízo dever-se-á aspirar uma relação de proporcionalidade estrita. O dano coletivo não é equivalente à soma dos danos individuais10, tornando ainda mais complexo o seu arbitramento.

Por outro lado, evidente que a imposição de uma sanção pecuniária vultosa significa um grande ônus para o apenado. Entretanto, não se tem conhecimento da eficácia real deste elemento dissuasório sequer sobre um determinado agente, muito menos sobre o conjunto de agentes do mercado. Ainda mais quando o arbitramento é realizado sem recorrer a evidências concretas e específicas e, principalmente, sem o apoio de modelos financeiros, atuariais e/ou estatísticos para análise do efeito dissuasório da sanção pecuniária.

Efeitos de prevenção geral ou especial, por fim, são importantes, mas não devem esgotar o conteúdo da função preventiva.

Pois bem, sucede que o ordenamento jurídico brasileiro não exige que a reparação do dano seja promovida mediante indenização pecuniária, admitindo-se a reparação não pecuniária, natural ou específica11.

O art. 927, do Código Civil, impõe o dever de reparar, mas não trata expressamente da forma de reparação, legitimando a adoção da forma mais adequada ao caso concreto12.

Ao tratar da indenização, o art. 947, do Código Civil, disciplina que se o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor em moeda corrente.

No que diz respeito ao dano coletivo, pode-se agregar o disposto nos artigos 1º, 3º e 11 da LACP, para concluir que a imposição de obrigações de fazer ou não fazer podem ser meios para operar a reparação do dano, tanto patrimonial quanto não patrimonial.

No Código de Processo Civil, por sua vez, o art. 499 expressamente assevera que somente haverá conversão em perdas e danos (indenização pecuniária) se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.

Apesar de inserida na legislação processual, trata-se de norma de conteúdo nitidamente material e pertinente à responsabilidade civil, guardando grande sintonia com o citado art. 947, do Código Civil. Acredita-se, portanto, que a noção de resultado prático equivalente se encontra abrangida pela de reparação natural, ao mesmo tempo que a revitaliza!

O direito processual civil parece ter compreendido melhor o modelo de direito civil exigido contemporaneamente, se propondo a assegurar a maior efetividade possível aos deveres e obrigações impostos pelo direito material.

O direito processual civil não é autônomo, contudo, não se podendo imaginar tutela, provisória ou definitiva, independente da relação material. A tutela inibitória, a imposição de obrigações, de fazer ou não fazer, ou a busca pelo resultado prático equivalente, são efeitos, ou concretizações, da responsabilidade civil contratual ou extracontratual, inclusive em sua função preventiva in concreto, sendo essa a resposta mais adequada à questão do fundamento para a outorga de tutela antecedente ao dano, rectius, ao prejuízo13.

Vê-se que a relação entre o direito civil e o processual civil não precisa ser de exclusão, antes devendo ser de coordenação14. Perceber e aproveitar o alcance dos remédios processuais disponíveis para a concretização da função preventiva é extremamente importante.

Nesta ordem de ideias, a imposição de obrigação de não fazer coincidente com a proibição da circulação de veículo com excesso de carga prevista na legislação de trânsito se revela uma medida insatisfatória, que poderia ser conjugada a outras consequências, como a imposição de obrigações de fazer, tais como a de ampliação ou renovação da frota, ou de restrição a usufruir de benefícios fiscais ou creditícios, dentre outras.

A reparação não pecuniária deve ser a mais adequada possível e são numerosas as formas que pode assumir. Se tomarmos o exemplo francês, veremos ser admissíveis a restituição ou restauração do bem, a demolição de construções, o encerramento forçado de atividade, a substituição da vontade do responsável para obriga-lo a contratar, dentre outras15.

A ampla gama de soluções concretas possíveis que se descortina mediante a admissão de uma reparação orientada pelo critério da satisfação do prejudicado torna mais nítido do que nunca que a compensação pecuniária deve ser uma solução residual ou complementar nas hipóteses de dano moral16.

O nosso sistema, enfim, dispõe de alternativa melhor para a concretização da função preventiva, qual seja, a adoção de reparações não pecuniárias específicas para a situação de dano concretamente enfrentada, e é importante utilizá-las.

*Fábio Jun Capucho é Mestre e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Procurador do Estado de Mato Grosso do Sul e associado ao IBERC

___________

STJ: Responsabilidade por danos pelo tráfego com excesso de peso em rodovias

2 Confederação Nacional dos Transportes. Anuário CNT do Transporte: estatísticas consolidadas. Brasília, 2020, p. 13/14, In: Anuário CNT do Transporte

3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Segunda Turma). Agravo no Agravo de Instrumento contra despacho denegatório de Recurso Especial 1.580.705/MG {...} É cabível a ação civil pública para obter pronunciamento judicial voltado à imposição de obrigação de não fazer e pagamento de indenização por danos morais coletivos por empresa que persiste com a prática de fazer com que seus veículos circulem com excesso de peso, ainda mais após considerável número de autuações administravas no Código Brasileiro de Trânsito{...} rel. Min. Mauro Campbell Marques, Julgamento 03/03/2020, DJE 06/03/2020

4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Segunda Turma). Recurso Especial 1.574.350/SC {...} Ao lado das implicações patrimoniais stricto sensu (danosidade a bens públicos e privados), o direito ao trânsito seguro manifesta primordial e urgente questão de vida, saúde e bem-estar coletivos, três dos pilares estruturais do Direito Brasileiro {...} rel. Min. Herman Benjamin, Julgamento 03/10/2017, DJE 06/03/2019

5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Segunda Turma). Agravo Interno no Recurso Especial 1.783.304/DF {...} viii) a vedação ao sobrepeso decorre da necessidade de proteção ao patrimônio e à segurança, sendo esse o fundamento das presunções quanto ao dano e ao nexo causal; ix) o dano decorrente da conduta é tanto moral quanto material, competindo às instâncias ordinárias a fixação do patamar; x) são cabíveis astreintes para inibir a reiteração da conduta; {...} rel. Min. Og Fernandes, Julgamento 02/03/2021, DJE 15/03/2021

6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Terceira Turma). Recurso especial 1.737.412/SE {...} No dano moral coletivo, a função punitiva - sancionamento exemplar ao ofensor - é, aliada ao caráter preventivo - de inibição da reiteração da prática ilícita - e ao princípio da vedação do enriquecimento ilícito do agente, a fim de que o eventual proveito patrimonial obtido com a prática do ato irregular seja revertido em favor da sociedade {...} rel. Min. Nancy Andrighi, Julgamento 05/02/2019, DJE 08/02/2019

7 Conforme previsão do art. 13, da Lei 7347/85 (Lei que disciplina a ação civil pública - LACP)

8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Segunda Turma). Recurso Especial 1.574.350/SC, rel. Min. Herman Benjamin, Julgamento 03/10/2017, DJE 06/03/2019

9 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 282/284

10 LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade civil: de um direito dos danos a um direito das condutas lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, p. 116

11 FAJNGOLD, Leonardo. Dano moral e reparação não pecuniária: sistemática e parâmetros (p. 35). Edição do Kindle

12 DANTAS BISNETO, Cícero. A reparação adequada de danos extrapatrimoniais individuais: alcance e limite das formas não pecuniárias de reparação. 2018. Universidade Federal da Bahia, Salvador, p. 154

13 Em sentido diverso da opinião de Marinoni (2019-06-16T22:58:59). Tutela Inibitória e Tutela de Remoção do Ilícito . Edição do Kindle.

14 MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de direito processual civil moderno. 4ª ed. rev., atual. e amp. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, p. 96/97

15 VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Traité de Droit Civil: les effets de la responsabilite. 2ª ed., Paris: LGDJ, 2001, p. 57/84

16 DANTAS BISNETO, 2018, p. 119