COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Migalhas de Responsabilidade Civil >
  4. A suspensão temporária do Telegram pelo STF: indicativo de novos tempos na responsabilidade dos provedores?

A suspensão temporária do Telegram pelo STF: indicativo de novos tempos na responsabilidade dos provedores?

quarta-feira, 23 de março de 2022

Atualizado às 15:36

Neste fim de semana foi determinada pelo STF a suspensão temporária do o aplicativo Telegram no Brasil. O pedido proveio da Polícia Federal, por meio da Petição 9.935 do Distrito Federal.1 O fato foi amplamente noticiado, inclusive no exterior.2

Os fundamentos da ordem judicial foram, essencialmente, dispositivos do Marco Civil da Internet (lei 12.965/14, doravante MCI), tendo sido aplicada a sanção da suspensão temporária dos serviços uma das sanções, prevista no artigo 12, inciso III, do MCI. Portanto, não houve "bloqueio" do serviço, mas uma mera suspensão temporária, dentre outras medidas. Majorou, ainda, o STF a multa diária para 500 mil reais ao Telegram em caso de descumprimento e 100 mil às "pessoas naturais e jurídicas que incorrerem em condutas no sentido de utilização de subterfúgios tecnológicos para continuidade das comunicações ocorridas pelo Telegram." 3

 

Não tardou e o famoso CEO da empresa, Pavel Durov, publicou em seu Twitter um pedido de "desculpas pela negligência", afirmando que os e-mails teriam sido enviados a endereços eletrônicos não usados na atualidade, e que tomariam providências para contribuir com as autoridades brasileiras, etc., pedindo para que a ordem não fosse cumprida e prometendo inclusive um escritório de representação no Brasil.4

O presidente chamou a decisão de inadmissível e a Advocacia Geral da União rapidamente peticionou nos autos da ADIn 5.557, que julga a constitucionalidade ou não dos bloqueios de serviços de mensagens como o Whatsapp pelo descumprimento de ordem judicial, requerendo interpretação conforme à constituição do art. 12, inciso III e IV, para assentar que as penalidades ali previstas não possam ser impostas por inobservância de ordem judicial.

 O Telegram respondeu e, em decisão posterior, o Ministro Moraes deu mais 24 horas para cumprir integralmente as determinações judiciais do STF, em resumo, indicação, em Juízo, de representação oficial no Brasil (pessoa física ou jurídica), prestação de informação "de todas as providências adotadas para o combate à desinformação e à divulgação de notícias fraudulentas, incluindo os termos de uso e as punições previstas para os usuários que incorrerem nas mencionadas condutas" e exclusão de alguns conteúdos e canais de comunicação com conteúdo ilícito.

 As ordens judiciais de agora divergem em muito da primeira decisão a se tornar nacionalmente conhecida, proferida por um juiz criminal em Lagarto, Sergipe, que determinou a suspensão do Whatsapp (com a prisão do CEO do Facebook na América Latina à época), no ano de 2.016, por não fornecer informações protegidas pela criptografia ponta a ponta de um grupo de pessoas em que supostamente combinavam a prática de crimes. A decisão ensejou a propositura da ADPF 403,5 cujo julgamento conjunto com a ADIn 5.527 está suspenso por voto vista do próprio Ministro Alexandre de Moraes.

 Ali, a problemática central diz respeito à possibilidade (e proporcionalidade) de determinação de bloqueio pelo não fornecimento de informações pessoais de usuários, nos termos do art. 10 e 11 do MCI, pois protegidas pela "criptografia ponta a ponta". Curioso salientar que o Executivo Nacional, à época pelo Ministério da Justiça, defendeu a constitucionalidade da lei, salientando que seria um abuso permitir a ausência total de controle a qualquer provedor de aplicação de mensagens. Em sentido semelhante, a Procuradoria da República naquele momento, asseverando que - outro ponto central da discussão naqueles autos - seria constitucional a determinação judicial de fornecimento de metadados.

Além disso, o próprio Ministro Fachin, no voto da ADPF 430, advertiu preliminarmente: "a solução proposta por este voto não abrange outros debates já submetidos à pauta deste Tribunal, como a questão sobre a constitucionalidade do art. 19 da lei 12.965, de 2014, ou Marco Civil da Internet (RE 1.037.396, Rel. Min. Dias Toffoli, Tema 987)."  Aliás, a conclusão do voto do Ministro Fachin é diversa daquela agora requerida pela AGU na atualidade (a qual vai além do próprio pedido da ADIn 5.527). Isto porque, concluiu o ministro que caberia

[...] declaração a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto parcial sem redução de texto tanto do inciso II do art. 7º, quanto do inciso III do art. 12 da lei 12.965/14, de modo a afastar qualquer interpretação do dispositivo que autorize ordem judicial que exija acesso excepcional a conteúdo de mensagem criptografada ponta-a-ponta ou que, por qualquer outro meio, enfraqueça a proteção criptográfica de aplicações da internet.6

Declaração parcial de nulidade sem redução de texto e interpretação conforme são técnicas de interpretação no controle de constitucionalidade aparentemente similares, mas, na verdade, são faces distintas da mesma moeda.

Isto porque, sinteticamente, a interpretação conforme pode ser vista como técnica de interpretação e princípio de interpretação no controle de constitucionalidade. Como primeira, genericamente, constitui eventual fundamento para uma leitura conforme a Constituição de um dispositivo.

Assim, como técnica de interpretação no controle, dá ao intérprete a possibilidade de, dentre todos os significados possíveis, somente uma  interpretação (ou mais de uma a ser indicada expressamente) de determinada regra seja considerada constitucional.

Por seu turno, a técnica da declaração de nulidade parcial sem redução do texto, significa, em suma, que, dentre todos os sentidos possíveis de uma norma, somente um deles soja considerado inconstitucional pelo intérprete.7

 

Assim, o pleito da AGU na Pet. 9.555 é radicalmente diverso do que foi pedido inicialmente na própria ADI 5.557. A atual AGU quer que o STF determine que somente um sentido seja válido, ao passo que os próprios propositores da ADI pleiteiam que somente um sentido seja considerado inválido. Portanto, nos termos da atual AGU, as sanções do artigo 12, incisos III e IV, do MCI não poderiam decorrer, em hipótese alguma, do descumprimento de ordem judicial.8

 Uma temeridade, já que, como lecionam Felipe Medon e Isabela Ferrari: "Ninguém é a favor de suspender a comunicação de milhares de usuários. Os bloqueios são a ultima ratio, [...]: é uma tentativa desesperada, em muitos casos, de fazer cumprir uma decisão que pode salvar vidas."9

Nesses tempos de guerra, é triste a notícia do filho que vivia na Ucrânia, contou ao pai na Rússia estar sendo alvo de bombardeios e escutou: "Pare de mentir, é só uma operação especial."10 Após descoberta a vacina, durante a Pandemia, a desinformação sanitária chegou a níveis assustadores. Quantos mais enterraremos por "não acreditar"?

Mas muitos devem estar se perguntando: qual a relação disso com a responsabilidade dos provedores de redes sociais por conteúdo inserido por terceiros? Toda, já que, hoje, o artigo 19 do MCI será resolvido na esfera da constitucionalidade.

Primeiramente, deve-se ter em mente que a Internet e todos os protocolos lógicos que a compõem são fruto de um ambiente descentralizado, onde uma minoria de engenheiros criou originalmente um "mundo a parte" em que se acreditava a ausência de intervenção do Estado como solução.11 Mas, hoje, décadas depois, vai se tornando paulatinamente mais evidente a cada dia a visão esboçada por grande parte da doutrina: espaço de "independência" da jurisdição não existem, são fruto de uma visão ideológica, mitológica que fingem desconhecer que a Internet é palco de violações desta mesma "liberdade" que acreditam ser absoluta e ilimitada.12

E mais: aos poucos se desmontam os tabus de que, para o cumprimento da lei, não seriam constitucionais determinações que atinjam a esfera lógica (filtros de conteúdo e recurso a inteligência artificial, por exemplo) ou a esfera física (backbones). É mais que necessário que os provedores de aplicação desenvolvam seus modelos de negócio (em exercício, portanto, do direito fundamental à liberdade de iniciativa econômica) em respeito a outros direitos fundamentai.

Nelson Rosenvald leciona que responsabilidade é um termo polissêmico, razão por que ser condenado a pagar uma indenização (liability) é o último assunto a se falar. A responsabilidade civil nesses tempos globalizados convive com anglicismos com a dimensão moral da responsability, a assunção dos deveres jurídicos de accountability, e a capacidade da empresa em explicar por que tomou ou deixou de tomar determinada providência (answerability).13 E as práticas de compliance e due diligence servem para mostrar, na prática, que o negócio onde potencialmente haverá agentes causadores dos danos está manejando de modo a, ao menos, que se tente evita-los.

O provedor de mensagens privadas que é o segundo mais usado no Brasil tem mecanismos eficazes para combater práticas como pedofilia, neonazismo e venda de comprovantes falsos de vacina, por exemplo? Não. A empresa compre com alguma política de conteúdo, contra crimes de ódio, crimes contra crianças e adolescentes, estelionatos e outras falsidades? Não. Foi intimada judicialmente para o cumprimento de decisões judiciais da mais alta Corte do país, para bloqueio de uma série de perfis e retirada de canais, cumpriu a decisão em prazo razoável? Não, sequer se obteve resposta. Até o CEO reconheceu publicamente que na instituição faltou due diligence é necessário compliance.

Este episódio, inclusive, revela uma certa mudança de mentalidade no tema da responsabilidade dos provedores. A lógica do art. 19 do Marco Civil é a de que, para proteger a liberdade de expressão, só ordem judicial com o link específico, prazo razoável e nas "possibilidades técnicas" dos provedores pode ensejar a responsabilidade (liabilty). São tantas exceções que é quase uma peça em defesa dos provedores.

Enquanto isso, em nome da "liberdade de expressão", o Brasil é chamado de "Disneylândia do Neonazismo."14

Nos últimos tempos, a compreensão crescente de que algo deve ser feito tem chegado aos Tribunais Superiores. Como exemplos recentes dessa tomada de consciência, a decisão do STJ sobre publicação ofensiva envolvendo menor de idade, concluindo ser  "insuficiente a aplicação isolada do art. 19" do MCI, "o qual, interpretado à luz do art. 5º, X, da CF, não impede a responsabilização do provedor de serviços por outras formas de atos ilícitos, que não se limitam ao descumprimento da ordem judicial a que se refere o dispositivo da lei especial." 15

Nessa esteira, o STF e o TSE estão fechando o cerco contra as chamadas "milicias digitais", que atuam com modus operandi ao que chamamos de "censura reversa". Uma coisa é isoladamente uma pessoa mentir, outra é uma organização mantida ostensivamente para se dirigir e divulgar notícias fraudulentas, transpassando o ilícito individual para atingir a coletividade e o próprio regime democrático.

Tanto é assim que, ao final da elaboração desse texto, noticiou-se que o TELEGRAM cumpriu a integralidade da decisão e o STF a revogou,16 tendo sido importante o fato para incrementar a proteção da pessoa humana e reforçar a necessidade de se repensar o "safe harbor" aos provedores do art. 19, do MCI.

____________

1 Petição 9.935 Distrito Federal. Relator: Ministro Alexandre de Moraes.

2 BRITO, Ricardo; PARAGUASSU, Lisandra. Brazil's Supreme Court suspends Telegram, a key Bolsonaro platform. Reuters. Brasília, 18/03/2022. Disponível aqui. Acesso em: 19/03/2022; BRAZIL: Telegram messaging app blocked by top court. Deutsche-Welle, 18/03/2022. Disponível aqui. Acesso em: 19/03/2022.

3 BRITO, Ricardo; PARAGUASSU, Lisandra. Brazil's Supreme Court suspends Telegram, a key Bolsonaro platform. Reuters. Brasília, 18/03/2022. Disponível aqui. Acesso em: 19/03/2022; BRAZIL: Telegram messaging app blocked by top court. Deutsche-Welle, 18/03/2022. Disponível aqui. Acesso em: 19/03/2022.

4 Petição 9.935 Distrito Federal. Relator: Ministro Alexandre de Moraes.

5 ADPF 430/SE. Voto do Relator Ministro Luiz Edson Fachin. Disponível aqui. Acesso em 19/03/2022.

6 Ibidem, p. 73.

7 Cf. STRECK, Lênio et alli. (coord.). Curso de Direito Constitucional. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.  p. 808.

8 Nos seus estritos termos: "[...] a merecer juízo de interpretação conforme, nos termos do exposto e do periculum in mora demonstrado, requerer seja proferida decisão cautelar, ad referendum do Plenário, para fixar interpretação conforme à Constituição ao art. 12, III e IV, da Lei nº 12.965/2014, para assentar que as penalidades nele previstas não podem ser impostas por inobservância de ordem judicial." P. 12.

9 MEDON, Filipe; FERRARI, Isabella. Bloqueios de aplicativos: o que realmente está em jogo na ADIn 5.527 e na ADPF 403 é o direito à criptografia de ponta-a-ponta. Migalhas, 19/05/2020. Disponível aqui. Acesso em 19/03/2022.

10 HOPKINS, Valerie. Ukrainians find that relatives in Russia don`t believe it is a war. The New York Times, Nova Iorque, 06/03/2022. Disponível aqui (acesso em 19/03/2021).

11 Cf. BARLOW, John Perry. A Declaration of the Independence of Cyberspace. Davos, Switzerland, 8 feb. 1996. Disponível em: . Acesso em: 19 mar. 2022.

12 Cf. RODOTÀ, Stéfano. Il mondo nella rete: quali diritti, quali vincoli? Roma: Laterza, 2014. p. 5.

13 ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas, 06/11/2020. Disponível aqui. Acesso em 20/03/2022.

14 COSTA, Íris. Brasil é o país onde o extremismo de direita mais avança, aponta estudo. UOL, 27/02/2022 Disponível aqui (acesso em 21/03/2022).

15 DIREITO CIVIL, INFANTOJUVENIL E TELEMÁTICO. PROVEDOR DE APLICAÇÃO. REDE SOCIAL. DANOS MORAIS E À IMAGEM. PUBLICAÇÃO OFENSIVA. CONTEÚDO ENVOLVENDO MENOR DE IDADE. RETIRADA. ORDEM JUDICIAL. DESNECESSIDADE. PROTEÇÃO INTEGRAL. DEVER DE TODA A SOCIEDADE. OMISSÃO RELEVANTE. RESPONSABILIDADE CIVIL CONFIGURADA.

[...] 1.2. Para atender ao princípio da proteção integral consagrado no direito infantojuvenil, é dever do provedor de aplicação na rede mundial de computadores (Internet) proceder à retirada de conteúdo envolvendo menor de idade - relacionado à acusação de que seu genitor havia praticado crimes de natureza sexual - logo após ser formalmente comunicado da publicação ofensiva, independentemente de ordem judicial.

[...] (REsp 1783269/MG, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 14/12/2021, DJe 18/02/2022)

16 LOSEKANN, Marcos; RODRIGUES, Mateus. Telegram cumpre decisões, e Moraes revoga ordem de bloqueio do app em todo o país. G1, Brasília, 20/03/2022. Disponível aqui. Acesso em: 20/03/2022.