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É possível apagar a forja de Alberich? - sobre a necessidade de se repensar a duração das demandas ressarcitórias existenciais

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Atualizado às 07:47

Alberich, senhor dos Nibelungos, segundo a mitologia nórdica, forjou um anel que trazia consigo uma benção ou poder e, ao mesmo tempo, uma maldição. E, estes rápidos escritos, que têm pretensão de apenas plantar uma reflexão, irão tratar de um poder que traz consigo, muitas das vezes, uma dura maldição.

Quando se fala em demanda ressarcitória, ação de indenização, ação de compensação etc., somos levados a pensar, quase que mecanicamente, em danos materiais que geram indenizações ou danos morais (como a conhecida negativação indevida) que promovem a possibilidade do pleito compensatório. É um reflexo natural. Pensamos em danos do dia a dia e da importância do sistema de ressarcimento estabelecido para eles.

Contudo, nos esquecemos de situações mais profundas, mais delicadas, principalmente ligadas a grandes tragédias e/ou danos existenciais em que um ingrediente duro, áspero, doloroso, se faz presente a todo momento: a lembrança. O tempo é capaz de amansar e adelgaçar as feridas. Mas ele possui uma adversária cruel, a recordação. Ela, senhora do ontem, faz uso de todo momento e oportunidade possível para trazer à tona o que jazia no fundo, de tornar revolto o que já havia decantado. E é o tempo que tenta apagar o motor que mantém cada vez mais forte o poder da lembrança. É a lembrança, a recordação, a responsável por gerar a revitimização pelo viés que interessa este escrito. O rememorar, o reviver a dor. E todo episódio é uma infeliz oportunidade para o sofrer.

A revitimização é tema de estudo na Ciência do Crime, em delitos contra a dignidade sexual, violência doméstica. Na esfera civil, o abandono afetivo é pari passu com esta questão. Mas a esfera da Responsa Civil, quando fincada em danos existenciais, é repleta de questões que, despertas, nos levam a refletir sobre o dano intrínseco à própria demanda.

Nos livros mais antigos, o conceito de strepitus judicii (literalmente, o barulho do julgamento) buscava abarcar o dano contido no manejo da ação criminal e, justificava, restrições ao direito de agir nos, ao tempo, crimes contra os costumes. Hoje, evoluindo esta visão, inicia-se uma jornada para se evitar que a vítima seja submetida à uma desnecessária exposição.

Das diversas facetas que a revitimização pode se apresentar, duas interessam diretamente a este rápido escrito. A primeira, através da conduta opressora do próprio Estado-Juiz ou Estado-Administração, quando do conduzir do processo e, outra, decorrente da duração excessiva do feito. A primeira vertente já foi objeto de análise pelo Direito Penal. A segunda, contudo, resta esquecida na compreensão indevida de que o processo dura o tempo que se faz necessário.

De lege lata, é possível ver que o sistema Processual Penal, tanto o comum quanto o regime dos Juizado Especiais Penais, há tempos, já demonstra preocupação com a revitimização. Desde 2017, com a lei 11.340, o tema da revitimização ganhou tutela no art. 10-A da referida lei. Antes, já se reconhecia a violência institucional como um mecanismo que poderia gerar a revitimização, na lei 13.431/17 (em seu art. 4º, IV). O Conselho Nacional de Justiça se manifestou, em 2018, sobre o tema, através da resolução 254. E, mais recentemente, as leis 14.425/21 e 14.321/22, trouxeram em seu bojo a penalização da conduta da violência institucional1.

A segunda situação, que se apresenta para análise de lege ferenda, é a possibilidade de se estabelecer, a símile do que ocorre no processo penal, um sistema especial de prazos, sem que se decote ou suprima o contraditório e ampla defesa, mas garanta um transcorrer célere entre a propositura da ação ressarcitória existencial e a sentença final. Fundamental que se tenha, também, reflexos sobre o sistema recursal, como já, timidamente, agiu o Legislador no art. 1.015 do Código de Processo Civil acrescido da visão do Superior Tribunal de Justiça em relação à norma.

É conhecida a frase que afirma ser a justiça tardia, na realidade, injustiça qualificada e manifesta, imortalizada por Rui Barbosa. Contudo, os prazos processuais destinados ao Magistrado e às Serventias e Auxiliares, enfim, ao Judiciário como um todo, são, no mais das vezes, impróprios. Tentado reunir os conceitos, não se pode confundir tal questão com a possibilidade de uma citação levar um ou dois anos para se efetivar, ou um processo, em ponto de decisão final, levar meses para ser sentenciado. Ou, também, em demanda de erro médico, o conhecimento ou não de denunciação da lide tenha sua apreciação, em grau de recurso por Tribunal, após quase três anos.

Os Juizados Especiais, por sua lei, tiveram por objetivo trazer celeridade para demandas de menor complexidade e, desta forma, desatende de plano a proposta que aqui se apresenta. Pior, é fato que, na prática forense, as demandas por tal via acabam, por vezes, consumindo mais tempo até a final decisão do que se se optasse pela via comum de conhecimento.

Advirta-se não ser razoável colocar num mesmo quadro de preferência demandas indenizatórias unicamente materiais, derivadas de danos materiais ou mesmo morais, mas que não atinjam o âmago da existência. É preciso realizar, sobre as hipóteses de cabimento, um recorte temático.

Erros médicos graves, abandono afetivo, grandes acidentes, enfim, questões que geram o desgaste a cada retomada. É fato, também, que em se determinando que tocaria a definição de aplicabilidade (ou não) do rito célere ao Magistrado ocorreria o patente risco de construção de mais meios recursais, o que, ao invés de acelerar, tornaria ainda mais lento o feito. Do mesmo modo, a previsão de um rol fechado, estreito, de hipóteses em que deveria ser reconhecido o rito especial, colocar de fora da previsão novas compreensões de danos existenciais, seria também um fato perigoso. Neste espaço, o meio termo pode se apresentar como uma solução. Um rol, de natureza exemplificativa, estabeleceria a aplicação automática do rito, somente sendo recorrível se o Magistrado compreender não se adequar a previsão legal à situação, cabendo ao interessado, o recurso de Agravo para a obtenção do rito especial. Este limite pode servir como um inibidor do mal uso do procedimento.

Dito isto, como se conceber um tal rito especial para as demandas existenciais?

Um primeiro passo, importante para que se ressalte a especial natureza do feito, passa por definir os sujeitos destinatários de uma esperada previsão legal de celeridade. Para isto, o conceito de hipervulnerável (no momento deste texto contempla os indígenas - REsp 135.867 -, crianças e adolescentes - REsp 1.517.973 -, idosos - EREsp 1.192.577 -, pessoas com deficiência - REsp 931.513 - e mulheres em situação de violência doméstica - RHC 100.446), o qual vem sendo cunhado pelo STJ serviria de um porto seguro para a partida. À razão subjetiva, o esteio objetivo baseado nas demandas existenciais, estabeleceria o conjunto elementar para o lastro da norma esperada.

Tudo isso desaguaria no processo. Proposta a demanda ocorria a fixação de urgência na conclusão e, após o despacho, a realização da citação ocorria em regime de urgência. Feito isso, prazos específicos para os atos como os já conhecidos "decidirá em 10 dias", como exemplo. Por fim, o estabelecimento de um prazo final para a sentença, respeitando a necessidade, ou não, de perícia, de forma a limitar no tempo medidas que unicamente buscam atrasar o feito. Pois, aqui, o tempo machuca e faz doer.

Tudo isso faz da função educacional da responsabilidade (prevenção geral) letra morta e acaba por antepor uma questão complexa: se o brocardo popular afirma que o crime não compensa, será que ainda persistiremos em aceitar que os delitos civis compensarão? E, ao mesmo tempo, insistir em desconhecer a importância de se proteger a vítima nas demandas ressarcitórias existenciais?

A proposta pode abarcar variações, por exemplo, um rito próprio para demandas com perícia pessoal e outro para demandas em que a perícia recaia sobre documentos; a efetiva justificativa acerca da necessidade do depoimento do autor solicitado pelo requerido, são exemplos de recortes processuais que não empobreceriam o feito e não amputariam a garantia Constitucional da ampla defesa. Sobre este último tema, o decote de provas ou diligências desnecessárias, contemplado no Código de Processo Civil em seu art. 370, parágrafo único, pode, antes de qualquer modificação legal, trazer maior humanidade para as demandas existenciais. Mas, hoje, sob o argumento de não se impedir a defesa processual, há feitos em que se deferem as medidas mais estapafúrdias e desencontradas ou mesmo passa-se pela fase do saneador com uma simples listagem das provas requeridas, sem que se faça necessário justificar o que pedido. Por tudo isso, perdeu o Legislador, quando tratou da violência institucional, grande oportunidade para cuidar das demandas civis. É necessário entender que aquele que sofre o dano civil deve ser devidamente tratado como vítima e o mesmo sistema que reconhece a proteção para o defendente, deve conhecer da importância de se tutelar quem, a cada momento do encadernado processual, é lembrado da dor, do sofrimento, da ruptura.

Não se tem, assim, um ponto feito, mas espera-se que como todo crochê seja este um movimento que, junto aos que lhe antecederam e aos que ainda virão, possibilitarão, um dia, a compreensão de que a vítima já sofreu e sofre, não havendo sentido em se reforçar, ainda mais, tal lembrança. E, nesta jornada, se não se apagar por completo da forja do Rei dos Nibelungos, que, ao menos, o anel possa ser rompido, livrando a maldição uma parte dos cidadãos brasileiros.

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1 Recomenda-se, para um perfeito recorrido histórico, a leitura do texto de Renee do Ó Souza, publicado aqui.