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Responsabilidade civil por estelionato sentimental

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Atualizado em 3 de agosto de 2022 15:17

O crescente número de casos de estelionato no Brasil e no mundo chama a atenção. Mais de 5 milhões de brasileiros foram vítimas de algum de tipo de golpe só no ano passado e, especificamente sobre o estelionato afetivo, houve um aumento de quase 70% de casos, segundo dados da Polícia Civil1.

Os dados são ainda incipientes, haja vista que grande parte das vítimas deste tipo de golpe se sentem constrangidas de denunciar, seja pela exposição de sua intimidade, seja pelo abalo psicológico ocasionado pela humilhação de ter sido vítima em virtude do amor. Tal aspecto demonstra que há muitas vítimas que preferem suportar o prejuízo financeiro e emocional a reviver o trauma.

A referida situação não é uma exclusividade brasileira2, a fraude ocorre em todo mundo e ficou evidenciada pelo famoso documentário "O Golpista do Tinder", lançado em fevereiro deste ano e que já conquistou a marca de documentário mais assistido na Netflix em todos os tempos.

Diante desse cenário, no qual o afeto vem sendo utilizado em larga escala para vitimizar pessoas, surge questionar se a responsabilidade civil pode ser aplicada aos casos de Estelionato Sentimental e, em caso afirmativo, quais seriam seus pressupostos.

Antes, no entanto, é preciso esclarecer que a terminologia estelionato advém do tipo previsto no art. 171 do Código Penal, no qual, "obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento" é crime.

Não há nenhuma referência no tipo penal ao aspecto afetivo para configuração do crime, mas a jurisprudência entende que o meio fraudulento empregado pode ser o afeto. Nesse sentido, entende o Superior Tribunal de Justiça que o estelionato é um crime de forma livre, que pode ser cometido por qualquer meio eleito pelo agente e, na hipótese de estelionato sentimental, o ardil utilizado é o próprio relacionamento afetivo construído com a vítima, concluindo que "merece maior reprovação a conduta do paciente de se valer do relacionamento íntimo que possuía com a vítima para a prática do delito."3

A definição do estelionato prevista no Código Penal vem sendo utilizada para fundamentar pedidos de responsabilidade civil por estelionato afetivo, pois facilita a compreensão da configuração do comportamento ardiloso praticado pelo agente e que deve ser suficiente e proporcional para a consecução dos fins almejados de obter vantagem financeira, através de um estímulo irresistível provocado na vítima, que acaba por transmitir o próprio patrimônio para o agente.

Cumpre distinguir, nesse momento, que o ato de disposição patrimonial em um contexto afetivo não pode, por si só, ser considerado como estelionato sentimental, razão pela qual é preciso delimitar seu conceito e alcance.

Outrossim, o estelionato sentimental é diferente de empréstimos ou doações que podem ocorrer em uma relação afetiva como forma de apoio ou incentivo, visto que no estelionato afetivo a transmissão patrimonial não se dá por mera liberalidade, mas ocorre mediante um vício de consentimento.

Dessa forma, o entendimento aqui defendido perpassa pela necessidade de enquadrar a conduta da vítima como erro, induzido pela manipulação e consequente imprecisão da realidade, decorrente dos meios ardilosos aplicados pelo agente, que seduz a vítima a agir sob falso pressuposto, transferindo seus bens de forma errônea, baseada em uma confiança construída mediante fraude. O erro da vítima, nesse aspecto, não se confunde com culpa, pois a exteriorização de sua vontade não se deu de forma livre.

Assim, a vítima, ao celebrar negócios jurídicos com o agente, doando seu patrimônio ou emprestando dinheiro, o faz mediante vício que macula a validade dos contratos firmados. Ou seja, a pessoa manifesta sua vontade em negócios jurídicos que lhe são desfavoráveis, em razão de uma falsa percepção da realidade. Falsa percepção esta desencadeada pela pessoa com quem está se relacionando intimamente. A manifestação de vontade decorre, portanto, de dolo. 

Se a constatação de que os negócios jurídicos praticados neste contexto decorreram de um vício de consentimento, tendo o dolo como sua causa, estes negócios são anuláveis, nos termos do art. 145 do Código Civil.  

No entanto, assim como a responsabilidade penal, a anulação do negócio jurídico, por si só, também não é suficiente para compensar a vítima pelo estrago advindo do estelionato sentimental. Dessa forma, entende-se que a Responsabilidade Civil se apresenta como a melhor opção para a vítima, o que não significa dizer que ela não possa se utilizar dos outros institutos ou cumulá-los.

Resta, portanto, investigar o problema central do tema que é a incidência da Responsabilidade Civil e seus pressupostos.

A doutrina4 que se debruça sobre a temática geralmente enquadra o estelionato sentimental como ilícito subjetivo.

Embora esteja correto o fundamento jurídico para responsabilização civil na modalidade do art. 186 do Código Civil, parece mais adequado pensar na imputação objetiva de responsabilidade por um abuso de confiança, estabelecido a partir do relacionamento afetivo e, nesse ponto, seria possível desvincular a vítima da necessidade de demonstrar culpa (ainda que ela exista).

Assim, pela teoria do abuso do direito, com fulcro no art. 187 do Código Civil, tem-se como fundamento para a imputação de responsabilidade a violação da boa-fé objetiva, em virtude da ardilosa quebra da confiança e da transparência praticada pelo agente.

Os relacionamentos afetivos têm como atributos a confiança estabelecida entre o casal, as expectativas comuns e os compromissos assumidos, atributos estes que são criados de forma ilegítima na vítima, com o intuito de obter vantagem econômica, em flagrante violação à boa-fé. 

Segue-se, do exposto, que o estelionato sentimental se reveste de ilicitude subjetiva e objetiva, motivo pelo qual, para a vítima, a utilização da imputação objetiva por abuso de direito pode ser utilizada, ainda que se vislumbre a intenção do agente de causar o dano.

A própria noção de dolo, enquanto vício de consentimento, está diretamente relacionada à violação da boa-fé, em virtude da manipulação ardilosa5, o que reforça o abuso de direito defendido.

O enquadramento como abuso de direito, portanto, parece muito mais fácil e natural, desincumbindo a vítima da difícil tarefa de perquirir culpa.

A discussão de culpa é sempre tormentosa, a doutrina há muito alerta sobre os percalços de se atribuir culpa nos relacionamentos familiares, por revolver situações que acabam por aumentar a extensão dos danos. Exatamente por isso, desde 2010, com o advento da Emenda Constitucional 66, foi extirpada a discussão de culpa nos processos de dissolução conjugal.

Fato é que o estelionato sentimental quase sempre aparece em relações afetivas que ainda não se transformaram em união estável ou casamento, embora a possibilidade exista6.

Ainda assim, nas relações de namoro ou envolvimento afetivo, revolver a culpa traz os mesmos malefícios apontados para os casos de união estável e casamento, motivo pelo qual opta-se por defender a responsabilização pela violação da boa-fé objetiva.

Também tratando sobre a questão da culpa, chama a atenção a quantidade de comentários sobre a história real retratada no documentário O Golpista do Tinder, em que os expectadores passaram a questionar a conduta das vítimas, atribuindo a elas a responsabilidade por terem sido ludibriadas, em razão de ingenuidade ou interesse na condição financeira do golpista.

A expressiva quantidade de comentários repudiando as mulheres que foram enganadas pelo golpista demonstra a perversa cultura ainda existente de culpar a vítima, especialmente mulheres sexualmente ou afetivamente vitimizadas, que acabam revitimizadas. O que se deve ter em mente é que a culpa não está no afeto que se sente, mas no engodo de quem finge amar para auferir vantagem econômica.

Nesse contexto, resta ainda mais evidente a necessidade de afastar a culpa como critério de imputação de responsabilidade nesses casos, posto que não há fundamento para se questionar culpa ou fato exclusivo da vítima, pois, como foi delimitado, o estelionato sentimental decorre da manipulação praticada pelo agente em claro abuso da confiança da vítima.

Portanto, é necessário compreender que qualquer um está sujeito a ser vítima de estelionato, seja ele sentimental ou não, pois, por mais esperto e prudente que possa se julgar, o fato de gostar de alguém romanticamente é inerente à condição humana. E, segundo a psicologia, amar é se tornar vulnerável.

O problema surge quando a construção da confiança e credibilidade ocorre através de perfis falsos, histórias bem contadas que nunca existiram e promessas de amor que nunca serão cumpridas. Tais fatores são determinantes para que o golpe ocorra. Por mais cauteloso que se possa ser, amar alguém é entregar-se à vulnerabilidade. O que não pode ocorrer é a confusão entre vulnerabilidade e culpa. Seja de forma on-line ou em um tradicional relacionamento presencial, cuidados devem ser tomados, mas sob pena de se esvaziar o caráter afetivo de um relacionamento, a confiança deve estar presente7, em maior ou menor medida.

Considerando tudo isso, reforça-se a noção de que criar expectativas, ajudar financeiramente ou receber presentes não são ações que, por si só, configuram um ato ilícito. Mas não é isso que ocorre no estelionato sentimental, já que este é um tipo de relacionamento abusivo e, como tal, configura-se o nexo de causalidade não pelo prejuízo financeiro decorrente do suporte mútuo e natural que surge de um relacionamento afetivo. O critério de imputação será um descumprimento ético, uma violação à boa-fé e às expectativas criadas em razão de uma falsa realidade.

A produção de provas no processo de responsabilidade civil por estelionato afetivo deve ser construída, portanto, de forma a demonstrar os danos materiais, relacionando os prejuízos financeiros a uma manifestação de vontade viciada, que decorre da violação da boa-fé pela manipulação e quebra da confiança, sendo o induzimento ao erro a causa do prejuízo econômico.

Quanto aos danos morais, entende-se que a constatação do estelionato sentimental, por sua natureza, invoca a noção de dano in re ipsa, seja porque há uma clara ofensa à dignidade humana, seja porque a violência patrimonial ou psicológica praticada se enquadra na Lei Maria da Penha, quando a vítima é mulher e, segundo o Superior Tribunal de Justiça, configura-se dano moral presumido nestas hipóteses8. Embora a referida lei não se aplique ao homem, entende-se que os fundamentos utilizados pelo STJ para a presunção do dano, também podem ser aproveitados para o homem vítima de estelionato sentimental.

Assim, enfrentadas as problematizações sobre a incidência de responsabilidade civil, seus critérios de imputação e produção de provas, resta enfrentar a última problematização importante quanto ao estelionato sentimental, referente à possibilidade de responsabilização dos aplicativos de relacionamento em que a vítima e o agente iniciaram o relacionamento.

É certo que não cabe às plataformas de relacionamento o dever de conferir a veracidade de todas as informações alimentadas pelos usuários, tampouco fiscalizar ou se responsabilizar pela conduta destes usuários fora da plataforma. Contudo, como é de consumo a relação que se estabelece entre os usuários e os aplicativos de relacionamento, a incidência do Código de Defesa do Consumidor atrai a teoria objetiva e, portanto, poderia se questionar o cabimento da reponsabilidade independentemente de culpa. Ocorre que o ordenamento jurídico brasileiro não adota a teoria objetiva pura, ou seja, admite-se excludentes de responsabilidade. Sendo assim, a reponsabilidade das plataformas de relacionamento pode ser excluída por fato exclusivo de terceiro, no caso, quem praticou o estelionato sentimental.

Por outro lado, quando há notificação pelo usuário ou por terceiro sobre violação aos termos de uso, ou direitos de imagem, intimidade, ou ainda fraude, é dever da plataforma averiguar tais informações e proceder à remoção do perfil ou conteúdo falso, sob pena de responsabilidade.

Caminhando para o fim, reforça-se a importância de pensar a reparação/compensação civil para as vítimas de estelionato sentimental de forma a evitar a revitimização, utilizando a teoria do abuso de direito.

Se, para a vítima, o amor foi uma ficção transformada em pesadelo e para o estelionatário um negócio lucrativo, que a responsabilidade civil seja o despertar para uma nova realidade possível, mais ética, responsável e equilibrada.

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1 MARQUES, David; LAGRECA, Amanda. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Os crimes patrimoniais no Brasil:  entre novas e velhas dinâmicas. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/07-anuario-2022-os-crimes-patrimoniais-no-brasil-entre-novas-e-velhas-dinamicas.pdf. 

2 Dados apresentados este ano pela Federal Trade Commission revelam perda de 547 milhões de dólares em estelionato afetivo no ano de 2021. Disponível em: https://www.ftc.gov/news-events/news/press-releases/2022/02/ftc-data-show-romance-scams-hit-record-high-547-million-reported-lost-2021

3 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no HC n. 577.861/SC, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 9/6/2020, DJe de 17/6/2020.

4 DA GAMA, Guilherme Calmon Nogueira; RABELO, Sofia Miranda. Responsabilidade Civil nas Relações de Afeto: Análise Crítica sobre o Estelionato Afetivo.  IN: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MULTEDO, Renata Vilela (coord). Responsabilidade Civil e Direito de Família. Induiutaba, SP: Editora Foco, 2021.

5 FERNÁNDEZ, Guillermo Ospina; ACOSTA, Eduardo Ospina. Teoría general del contrato y del negocio jurídico. 7ª ed., Bogotá, Editorial Temis, 2014.

6 Caso o estelionato afetivo ocorra no contexto de relações familiares, como o namoro ou união estável, além da aplicação das normas apresentadas nestes trabalho, incidirá a tutela estatal específica, como por exemplo, direito aos alimentos e regime de bens.

7 HONNETH, Axel. Direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

8 REsp n. 1.675.874/MS, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 28/2/2018, DJe de 8/3/2018.