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Planos de saúde, negativa de cobertura e danos: rol de desafios

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Atualizado às 09:11

Não fosse isso
e era menos
Não fosse tanto
e era quase1

Introdução

Débora solicitou um tratamento cuja negativa pelo plano de saúde fundou-se na ausência de previsão no Rol da ANS. Em sede judicial, julgou-se razoável a negativa, e ainda assim, determinou-se a cobertura. Sarah ingressou com demanda judicial e obteve tutela antecipada a qual assegurou que cirurgia eletiva (sem urgência) fosse realizada. As situações acima expostas, embora hipotéticas, servem como singela ilustração da complexidade da saúde suplementar e das nuances das controvérsias que se desdobram em reparação por danos. Enfoca-se neste artigo as negativas de tratamentos não previstos no rol da ANS, e as hipóteses em que são afastados os danos à pessoa, frequentemente, designados de "danos morais". Não se examina os danos associados a reajustes, extinção contratual ou atos de prestadores como clínicas e hospitais2.

Rol da ANS: afinal, quais as coberturas obrigatórias?

A lei 9.656/1998, "Lei dos planos de saúde", estabelece de forma ampla as coberturas obrigatórias. Por exemplo, o art. 12, inc. II, alínea 'a' impõe o custeio de internações para os contratos com cobertura hospitalar. A respeito cabe indagar, isso significa o dever de custeio de todas as cirurgias imagináveis realizadas em hospitais? Para regular o tema, a Agência Nacional de Saúde Suplementar estabeleceu por meio de resolução uma listagem de procedimentos obrigatórios, popularmente chamada de "Rol da ANS".

"A jurisprudência do STJ, até o ano de 2020, havia consagrado a compreensão de que o rol da ANS possuía caráter ilustrativo. Ao mesmo tempo, contudo, não havia um critério claro para o fornecimento"3. A cobertura fora rol frequentemente exigia apenas a prescrição do médico que acompanha o paciente, em que pese os acórdãos apontassem também como parâmetro o caráter indispensável tratamento4. Assim, julgava-se que "A recusa indevida à cobertura de cirurgia é causa de danos morais"5.

A construção jurisprudencial ensejou a divergência no sentido de que "a operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do Rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo".6 Na apreciação do tema, ao adotar a expressão "taxatividade mitigada", ao invés de um "caráter exemplificativo condicionado", o STJ buscou, possivelmente, reforçar dois aspectos centrais: i-) o rol é a regra; ii-) as exceções dependem da verificação de hipóteses cujo ônus probatório recai sobre o solicitante. Vale dizer, nem se consagrou o rol da ANS como exaustivo, nem se pode, simplificadamente, afirmar um caráter ilustrativo.

A edição da lei 14.454/2022, equivocadamente tem sido associada à consagração de um rol ilustrativo, o que não encontra respaldo no texto normativo. De acordo com o art. 10, § 4º, da Lei dos Planos de Saúde, na redação definida pela nova lei: "A amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS, que publicará rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado a cada incorporação".

Para tratamentos não previstos no rol, exige-se, de forma muito próximo ao que estabeleceu o STJ, a comprovação de requisitos específicos, senão vejamos:

O quadro acima revela considerável identidade entre a compreensão jurisprudencial e a nova redação da Lei dos Planos de Saúde, com exceção ao critério (i-) da decisão judicial.

Danos à pessoa e planos de saúde: afastamento do chamado "dano moral"

Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é possível identificar precedentes que consideram que a negativa de tratamento pelo plano de saúde caracteriza dano moral in re ipsa7. Em sentido contrário, consagra-se a compreensão de que a recusa, mesmo ilegítima, "não configura dano moral indenizável, que pressupõe ofensa anormal à personalidade"8. Dessa maneira, a negativa de cobertura somente enseja reparação "quando trouxer agravamento da condição de dor, abalo psicológico e prejuízos à saúde já debilitada do paciente"9.

A partir do exame dos precedentes do STJ, identifica-se um segundo filtro a ser observado que consiste em apurar se a negativa fundamenta-se em dúvida razoável de interpretação, tal como na hipótese procedimentos não contemplados no Rol da ANS. Dessa maneira, julga-se que "não há se falar na ocorrência de dano moral indenizável quando a operadora se nega a custear tratamento médico com base em previsão contratual que excluía a cobertura da referida terapêutica, ou seja, com base em dúvida razoável"10, o que na compreensão do STJ afasta a antijuridicidade da conduta. "Há situações em que existe dúvida jurídica razoável na interpretação de cláusula contratual, não podendo ser reputada ilegítima ou injusta, violadora de direitos imateriais, a conduta de operadora que optar pela restrição de cobertura sem ofender, em contrapartida, os deveres anexos do contrato, tal qual a boa-fé, o que afasta a pretensão de compensação por danos morais"11.

Para maior clareza, sem caráter exaustivo, apresentam-se os seguintes quadros:

Considerações finais

A jurisprudência do STJ, ao longo do tempo, tornou mais rígida a possibilidade de concessão de tratamentos não contemplados pelo Rol da ANS. Não obstante seja impreciso afirmar que adotou-se a compreensão de taxatividade, no plano do direito de danos, a ausência de previsão no rol é tomada como "dúvida razoável", o que, na compreensão do Superior Tribunal de Justiça afasta o dever de reparar.

Nesse sentido, é possível identificar uma análise bifásica da reparabilidade do dano extrapatrimonial em sede de negativa de cobertura. Em um primeiro momento, examina-se o contrato e a legislação para verificar se há dever de cobertura; em uma segunda fase, avalia-se se há dúvida razoável na interpretação contratual, e os impactos que a recusa representou, no caso concreto ao paciente.

Ao retomar os casos apresentados ao início sob a perceptiva da compreensão do STJ, observa-se que a negativa do tratamento para Débora pode não ensejar danos extrapatrimoniais se fundada em cláusula contratual que enseje dúvida razoável, mesmo se o tratamento for assegurado por interpretação extensiva do Rol da ANS12. Sarah, igualmente, poderá ter rejeitada a pretensão reparatória visto que seu procedimento é eletivo e o atraso no acesso não tenha representado impacto a sua saúde.

Em apertada síntese, é possível afirmar que na compreensão do Superior Tribunal de Justiça:

1. A negativa de cobertura de um tratamento pela operadora de plano de saúde não é suficiente para caracterização do dano à pessoa (dano moral);

2. Para examinar a reparabilidade do dano faz-se necessário uma dupla análise. Além de verificar o dever de cobertura, no plano objetivo examina-se a presença de dúvida razoável na interpretação contratual; no plano subjetivo, a reparação do dano à pessoa depende da comprovação de impacto à saúde ou abalo relevante;

3. Na jurisprudência do STJ, a recusa indevida de cobertura pode ensejar a reparação por danos; a contrario sensu, a negativa baseada em dúvida razoável é legítima e afasta o dever de reparar.

4. Um tratamento, mesmo se previsto no Rol da ANS, pode ser negado de modo legítimo, por exemplo em vista de carência, extinção do contrato, por não haver compatibilidade com a condição de saúde do paciente.

__________

1 LEMINSKI, Paulo. Não fosse isso e era menos; não fosse tanto e era quase. Curitiba: ZAP, 3 ed. 1980.

2 Enfrentamos o tema recentemente, permita-se referir: SCHULMAN, Gabriel. Responsabilidade civil dos planos de saúde e suas nuances: erro médico, ações regressivas e responsabilidade solidária na saúde suplementar. Revista IBERC, v. 5, n. 2, p. 220-246, 8 jun. 2022. 

3 SCHULMAN, Gabriel. Duas novidades surpreendentes na jurisprudência do STJ sobre a cobertura de tratamentos por planos de saúde: necessidade de registro de medicamentos na Anvisa (2018) e caráter taxativo do rol da ANS (2020). Revista do Advogado, São Paulo, v. 40, n. 146, p. 53-67, jun. 2020.

4 Idem. Sobre o tema, confira-se recente levantamento, em que temos a alegria de figurar: BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Amplitude da cobertura dos planos de saúde e rol de procedimentos da ANS: bibliografia, legislação e jurisprudência temática. Brasília: STF, Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação, 2022.

5 STJ. AgRg no AREsp 158625. Rel.: Min. João Otávio de Noronha. 3ª Turma. DJe 27/08/2013.

6 STJ. REsp 1733013/PR, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª, Turma, julgado em 10/12/2019, DJe 20/02/2020. No mesmo sentido, STJ. AgInt no REsp 1848717/MT, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª. Turma, DJe 18/06/2020. STJ. Agravo em Recurso Especial n. 1.562.169. Rel. LUIS FELIPE SALOMÃO. DJe: 14/04/2020. O presente artigo não aprofundará esta discussão, seus acertos ou limites.

7 Com igual teor: STJ. EREsp: 1889704 SP, Rel: Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe: 29/6/2021.

8 STJ. AgInt no AREsp n. 1.978.927/PB, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, 3ª. Turma, DJe: 30/06/2022. STJ. AgInt no AREsp n. 1.782.051/PR, Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, 3ª. Turma, DJe: 15/6/2021.

9 STJ. AgInt no REsp n. 1.988.367/SE, Rel.a Minª. Maria Isabel Gallotti, 4ª. Turma, DJe de 30/9/2022. Distingue-se assim o inadimplemento do dano: ROSENVALD,  Nelson. As  funções  da  responsabilidade  civil:  a  reparação  e  a  pena  civil.  São Paulo: Atlas, 2013, p. 187.

10 STJ. REsp n. 1.904.603/RS, Rel.a Minª. NANCY ANDRIGHI, 3ª. Turma, DJe de 24/2/2022.

11 STJ. AgInt no REsp 1927347/RS, Rel. Min. MOURA RIBEIRO, 3ª. Turma. DJe 28/05/2021.

12 STJ. REsp 1.645.762/BA, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, 3ª. Turma, DJe 18/12/2017.

13 Nessa linha STJ. REsp: 1876630, Rel. Minª. NANCY ANDRIGHI, 3ª. Turma, DJe 11/03/2021.