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O ocaso da eficácia indenizativa e a relevância da eficácia restitutória: afinal, qual é o papel da responsabilidade civil na tutela da privacidade?

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Atualizado às 07:22

A partir da edição do Código Civil de 2002, poucas foram as categorias jurídicas que denotaram tamanha expansão quanto o direito à privacidade. Em duas décadas, testemunhou-se o deslocamento do espaço lateral que a privacidade ocupava para a centralidade de discussões em diversas áreas: de certo modo, tratar da dimensão normativa das relações jurídicas (em seus diversos matizes) passou a significar, também, a tratar do alcance normativo da privacidade.

É possível identificar diversas causas para este movimento centrípeto da privacidade; porém, uma delas parece expressar particular importância: o desenvolvimento potencializado da tecnologia da informação, que promove o uso incessante de algoritmos para a coleta e processamento de dados e viabiliza o predomínio, hoje percebido, das plataformas digitais.

Surge disso, nas palavras de Ana Frazão, "[...] a ideia de uma economia movida a dados [...], já que os dados pessoais são hoje o novo 'petróleo' ou principal insumo das atividades econômicas"1, perspectiva que globalmente vem sendo denominada como data-driven economy.2 De modo similar, Shoshana Zuboff, professora da Harvard Business School, afirma que esse predomínio das plataformas digitais implica na consolidação da "era do capitalismo de vigilância" ("The Age of Surveillance Capitalism"), que caracteriza "[...] uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como material livre para práticas comerciais ocultas de extração, previsão e venda"3.

Tal modelo compreende a estruturação das plataformas digitais para além de simples ferramentas de usuários, porquanto, ao erigirem-se como verdadeiro modelo de negócios, criam um ecossistema de interação entre agentes empreendedores que viabiliza substanciais trocas econômicas.

Essas trocas, ao seu turno, consubstanciam-se por meio da colheita de dados pessoais dos usuários das referidas plataformas e, do mesmo modo, da expansão da utilização de produtos e objetos dotados de interfaces tecnológicas (smartwatches, termostatos informatizados, palmilhas inteligentes, etc) que os conectam com a internet e a outros dispositivos, otimizando o dia a dia de consumidores em ambiente doméstico e profissional. É nesse espaço de inovação que Eduardo Magrani define a consolidação da chamada "Internet das Coisas", globalmente referida pela sigla IoT (Internet of Things), como "[...] um ecossistema de computação onipresente [...] voltado para a facilitação do cotidiano das pessoas [...]. O que todas as definições de IoT têm em comum é que elas se concentram em objetos que interagem uns com os outros e processam informações/dados em um contexto de hiperconectividade"4.

Apesar de atrativo, todo esse cenário parece colocar em xeque a definição da privacidade balizada exclusivamente no paradigma da autodeterminação informativa, que a compreende a partir do controle de dados e informações pessoais por cada sujeito - paradigma esse que, apesar de relevante, já se mostra insuficiente em face dos desafios contemporâneos.

É necessário, portanto, ir além, justamente porque a privacidade expressa importante valor normativo se reconhecida como eixo para o exercício das liberdades, sendo o vetor de projeção e gênese dos direitos da personalidade na medida em que se reconhece que as expressões de nossa existência dela (da privacidade) surgem. E, se assim o é, a privacidade pode também servir como chave de configuração de um sistema normativo desinente de institutos correlacionados do Direito Civil que possam contribuir com os mecanismos de tutela da personalidade humana já encetados na ordem jurídica.

Esse viés abre espaço para uma compreensão renovada da Responsabilidade Civil e de seu contributo à proteção da privacidade como vetor de projeção dos direitos da personalidade e exercício de liberdades, justamente a partir do reconhecimento do traçado multifuncional que vem sendo a ela atrelada.

De plano, cumpre destacar que desde a primavera de 1988, a Responsabilidade Civil no Brasil tem sido objeto de crescentes modificações e flexibilizações, inicialmente derivadas do giro conceitual que fixou na vítima do evento lesivo o foco de maior atenção5. Bem por isso é que Nelson Rosenvald afirma que a Responsabilidade Civil expressa contemporaneamente uma face multifuncional, envelopando funções de reparação, punição e precaução, acabando por se mostrar "[...] dúctil e maleável às exigências de um direito civil, comprometido com as potencialidades transformadoras da Constituição Federal."6

Esse traçado multifuncional da Responsabilidade Civil pode se mostrar útil ao desafio de tutela da personalidade humana inaugurado pela data-driven economy a partir do crescente interesse verificado na doutrina nacional para uma melhor compreensão sobre a restituição derivada de lucros ilícitos, corporificadas normativamente a partir de duas figuras oriundas do common law: o disgorgement (estruturado como a remoção dos lucros ilícitos) e o restitutionary damages (delineado com a restituição dos lucros ilícitos).

Em recente obra sobre o tema, Nelson Rosenvald explica que a restituição pelo lucro ilícito é usualmente encarada por meio do modelo fragmentado erigido pelo instituto do enriquecimento sem causa, alicerçado no art. 884 do CC/20027. Em um comparativo com o sistema normativo alemão, o autor sustenta8 que o instituto do enriquecimento sem causa pode funcionar como "[...] fonte de obrigações, apto a ocasionar o exercício da ação in rem verso" em hipóteses de enriquecimento obtido por fato injusto; enriquecimento pela frustração negocial indevida descrita no art. 885 do CC/20029; e o enriquecimento decorrente da prestação de terceiro, hipótese regulada pelo art. 305 do diploma material cível em vigor.10

Adiante, é forçoso reconhecer que o modelo de restituição pelo lucro ilícito, se melhor explorado nos limites da Responsabilidade Civil brasileira, poderá servir como um mecanismo de tutela restitutória em face da apropriação indevida de dados pessoais por meio de plataformas digitais, aplicativos e dispositivos de IoT.

Ora, se mesmo com os escândalos de hackers e coleta não autorizada de dados pessoais o Facebook arrecadou lucro recorde no último trimestre de 2018, alcançando a cifra de US$ 6.800.000.000.000,00 (seis bilhões e oitocentos milhões de dólares)11, a restituição pelo lucro ilícito poderia ser compreendido como uma contribuição adequada da Responsabilidade Civil (i) ao desestímulo gradual da continuidade da atual tecnorregulação da coleta de dados pessoais e (ii) à possível restituição e consequente tutela concreta da privacidade erodida pelas plataformas digitais que protagonizam a atual economia movida a dados.

Neste ponto, é necessário sublinhar que o dano caracterizado pelas plataformas digitais possui feições singulares no âmbito da data-driven economy. Ainda que a captura e processamento incessante e não autorizados de dados pessoais atinja interesses juridicamente tutelados (como bem categoriza Anderson Schreiber ao tratar da definição jurídica de dano12), verificados na personalidade humana e privacidade, a mera eficácia indenizativa do ato ilícito não se mostra, a rigor, adequado ao propósito de uma tutela e reparação efetivas. Há que se melhor investigar a projeção da eficácia restitutória derivada dos atos ilícitos praticados em tal âmbito, justamente para que se alcance o contributo acima assinalado.

Ponderando sobre a definição de civilização vertida por Mario Vargas Llosa e a tutela da propriedade imaterial, Nelson Rosenvald afirma hipótese que bem se amolda ao cenário da data-driven economy: a ampliação incalculável de possibilidade de novas violações aos direitos da personalidade e o estabelecimento de lucros consideráveis a partir dessas condutas ilícitas. Em suas palavras:

A par de todas estas vicissitudes - inerentes à civilização do espetáculo -, comparados aos direitos das propriedades intelectuais, vê-se que os direitos da personalidade apresentam similar necessidade de tutela. Um infinito número de violações é possível, não existe tutela preventiva efetiva e a proteção oferecida pelo direito penal é insuficiente. Ademais da consolidada reparação do dano moral, o resguardo de situações existenciais pode ser implementado por tutelas inibitórias e pretensões desmonetizadas, como retratações e direito de resposta. Todavia, esses remédios são inadequados para levar em consideração o alto nível de proteção que estes direitos demandam. Além disso, consideráveis lucros podem ser produzidos pela violação de atributos intrínsecos à pessoa, em quantias muito superiores aos danos estimados, especialmente pela inerente dificuldade de sua avaliação. Essa combinação de fatores, torna atrativa sob o cálculo matemático a reiteração dessas violações [...]13. 

Assim, no estabelecimento da Responsabilidade Civil inserta no sistema normativo fundado na privacidade e esteado no Direito Civil, mostra-se possível identificar na investigação comprometida do instituto estabelecido no art. 884 do CC/2002 a trilha de contributo que possa nos levar ao estabelecimento concreto da restituição do lucro derivado de práticas ilícitas aos titulares dos dados pessoais que tiveram sua privacidade, em sentido além da autodeterminação informativa, erodida.

Eis, então, um primeiro passo para (re)pensarmos qual é o papel que a Responsabilidade Civil efetivamente poderá desempenhar na tutela da privacidade compreendida como eixo principal do desenvolvimento da personalidade humana (e de seus direitos correlatos), bem como para o exercício de liberdades por cada sujeito.

Referências

CORRÊA, Rafael. Os plúrimos sentidos da privacidade e sua tutela: a questão da proteção de dados pessoais e sua violação na atual construção jurisprudencial brasileira. In: FACHIN, Luiz Edson et al [Coords.] Jurisprudência Civil Brasileira. Métodos e problemas. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

DONEDA, Danilo. Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil. Sentido, transformação e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015.

FRAZÃO, Ana. Plataformas digitais, big data e riscos para os direitos da personalidade. In: TEPEDINO, Gustavo; MENEZES, Joyceane Bezerra de [Coord.]. Autonomia Privada, Liberdade Existencial e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

MAGRANI, Eduardo. A Internet das Coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018 [livro eletrônico].

PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos Fundamentais do Direito Civil e Liberdade(s).Repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ Editora,2011.

RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade de Vigilância. A privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil. A reparação e a pena civil. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2012.

______. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo. O disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. 

WAHLSTER, Wolfgang et al [Editors]. New Horizons for a Data-DrivenEconomy. Roadmap for usageandexploitationof Big Data in Europe [livro eletrônico]. Springer InternationalPublishing, 2016. 

WALDMAN, Ari Ezra. Privacy as Trust. Informationprivacy for aninformation age [livro eletrônico]. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. 

ZUBOFF, Shoshana. The Age ofSurveillanceCapitalism. The fight for a human future atthe new frontierofPower [livro eletrônico]. New York: PublicAffairs, 2019.

__________

1 FRAZÃO, Ana. Plataformas digitais, big data e riscos para os direitos da personalidade. In: TEPEDINO, Gustavo; MENEZES, Joyceane Bezerra de [Coord.]. Autonomia Privada, Liberdade Existencial e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 333.

2 WAHLSTER, Wolfgang et al [Editors]. New Horizons for a Data-Driven Economy. Roadmap for usage and exploitation of Big Data in Europe. Springer International Publishing, 2016 [livro eletrônico].

3 ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism. The fight for a human future at the new frontier of power. New York: Public Affairs, 2019 [livro eletrônico]. Já na abertura da obra, Zuboff assim consigna o primeiro verbete definidor do "capitalismo de vigilância": "1. A new economic order that claims human experience as free raw material for hidden comercial practices of extraction, predictions, and sales." Posição 102.

4 MAGRANI, Eduardo. A Internet das Coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018 [livro eletrônico].

5 Tais perspectivas redundam, inclusive, em alteração da nomenclatura do instituto, passando a ser encarado como "direito de danos" ou "responsabilidade por danos". A perspectiva do giro paradigmático é espelhada com clareza na reflexão de Luiz Edson Fachin: "Situação que também emerge como exemplar é a imputação sem nexo de causalidade na responsabilidade por danos. [...] A imputação tem no centro a preocupação com a vítima; a imputação é a operação jurídica aplicada à reconstrução do nexo. Da complexidade e da incerteza nascem fatores inerentes à responsabilização por danos. É de alteridade e justiça social que deve se inebriar o nexo de causalidade, atento à formação das circunstâncias danosas." FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil. Sentido, transformação e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. p. 113-114.

6 ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil. A reparação e a pena civil. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 5-6.

7 Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.  Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.

8 ROSENVALD, Nelson. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo. O disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. p. 325-328.

9 Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir.

10 Art. 305. O terceiro não interessado, que paga a dívida em seu próprio nome, tem direito a reembolsar-se do que pagar; mas não se sub-roga nos direitos do credor. Parágrafo único. Se pagar antes de vencida a dívida, só terá direito ao reembolso no vencimento.

11 Em ano de crise, Facebook ganha usuários e lucro bate recorde. Folha de São Paulo. Disponível aqui. Acesso em novembro de 2022.

12 SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil. Da erosão dos filtros de reparação à diluição dos danos. 5ª Edição. São Paulo: Atlas, 2013.

13 ROSENVALD, Nelson. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo. O disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. p. 437-438.