COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Migalhas de Responsabilidade Civil >
  4. Apontamentos sobre o caso fox vs. Dominion: o paradoxo de uma transação vultosa

Apontamentos sobre o caso fox vs. Dominion: o paradoxo de uma transação vultosa

terça-feira, 23 de maio de 2023

Atualizado às 08:37

Causou expressiva atenção na esfera jurídica, social e política a ação movida pela empresa Dominion Voting Systems frente à empresa de mídia Fox Corporation.

A ação tinha por finalidade pedido indenizatório, por difamação, decorrente da conduta da Fox, que veiculou em seus noticiários referências à suposta irregularidade na eleição americana, sendo que a empresa Dominion produz máquinas eleitorais utilizadas na votação ocorrida em estados americanos objeto de críticas pelo resultado ocorrido. Nesse contexto, o pedido indenizatório era no valor de 1.6 bilhão de dólares.

Cumpre recordar que a origem da questão residia nas referências falsas divulgadas pela Fox sobre a Dominion, a partir das alegações feitas pelo anterior presidente americano, Donald Trump, de que as eleições americanas tinham sido roubadas.

Nesse contexto, a Dominion tinha de provar não apenas que as alegações não eram verdadeiras, como também demonstrar que a conduta da Fox configura o standard jurídico de 'actual malice'1, correspondente à noção de que a empresa de comunicação sabia que as notícias eram inverídicas ou que demonstrou uma irresponsável desconsideração pela verdade.

A partir da fase inicial do processo, correspondente ao denominado legal discovery process, foi possível para a Dominion obter acesso à documentação que demonstrava que a Fox efetivamente tinha conhecimento (knowledge) sobre as teorias conspiratórias divulgadas e que optou por levá-las ao ar com o objetivo de atrair sua audiência, propícia a acreditar nessas alegações.

Ao analisar a documentação obtida, Eric M. Davies, o juiz do caso, observou ser absolutamente cristalino (crystal clear foi a expressão utilizada pelo magistrado) que as alegações divulgadas pela Fox eram falsas.

Diante disso, o recurso à transação apresentou-se como um caminho natural para a Fox, poupando-a dos dissabores, para dizer o mínimo, de ser submetida a todas as démarches do processo, que incluiriam por exemplo depoimentos de seus principais executivos e acionistas.

Constitui um truísmo ressaltar que a transação configura um instrumento jurídico contratual para pôr fim a litígio, mediante concessões recíprocas, conforme a previsão do artigo 840, do Código civil2.

Sobressai, porém, que a transação contemporaneamente não se limita a um simples contrato particular: ocupa um lugar entre os instrumentos para a solução de conflitos por meios alternativos, conforme reconhecido pelo Código de Processo Civil e pontuado pela melhor doutrina nacional3.

Essa finalidade se apresenta no presente caso, em que no dia previsto para o início do julgamento propriamente dito sobreveio a notícia de que a transação fora celebrada entre as partes, mediante o pagamento do valor de cerca de 787 milhões de dólares pela Fox - praticamente metade do valor pretendido pela autora.

Muito embora a distinção entre as finalidades da responsabilidade penal e a da responsabilidade civil seja tradicional e historicamente conhecida4, a circunstância de a transação envolver apenas o pagamento da expressiva cifra antes indicada, quase um bilhão de dólares, acarretou, em alguns setores, uma certa frustração, que teve por base mais de um fundamento.

Em primeiro lugar, a transação não foi acompanhada de qualquer reconhecimento por parte da Fox de que ela havia agido maliciosamente. De forma mais concreta, não houve por parte dela qualquer pedido de desculpas em face da Autora, muito menos qualquer reconhecimento de que agiu contrariamente a padrões exigidos em sua atividade. Limitou-se a empresa a reconhecer que algumas alegações divulgadas relativamente à Dominion não eram verdadeiras, mas reafirmou os seus elevados padrões de jornalismo5.

Em síntese, não houve tanto perante a Dominion, autora da ação, como por extensão em relação à comunidade em geral, o reconhecimento por parte da Fox de que ela agiu erradamente, violando códigos éticos e morais de conduta6.

Essa circunstância parece representar uma certa dissociação entre os interesses da Dominion, que mediante o resultado financeiro do acordo, alavancou seu patrimônio de forma astronômica, na medida em que o investimento inicial na companhia foi de 38 milhões de dólares7, e os críticos da Fox, que a veem como uma inimiga dos melhores interesses da opinião pública - e por extensão da democracia -, razão pela qual esperavam que ela fosse explicitamente sancionada. 

Em essência, a mera conclusão patrimonial não pareceu a melhor solução para os analistas, que exigiam uma espécie de penalidade e, provavelmente, uma execração pública da Fox, na medida em que consideravam sua conduta como violadora de padrões morais da sociedade. 

Vislumbra-se, portanto, que apesar do reconhecimento da função corretiva da responsabilidade civil8, essa finalidade não pode, em princípio, ser alcançada de ofício, ou ao menos quando o interesse da vítima se dirige primordialmente à compensação, como ocorreu no caso da Fox.

Com efeito, observa-se que não obstante seja reconhecido o valor das desculpas como instrumento de correção e sanção para o causador do dano9, este mecanismo pressupõe o interesse da vítima, que não se apresentou no caso concreto. Desse modo, o papel institucional que as desculpas poderiam desempenhar foi substituído pelo pagamento de uma soma em dinheiro exclusivamente ao ofendido, sem que a opinião pública pudesse vislumbrar que os seus valores morais violados foram igualmente, ainda que de forma simbólica e mínima, reparados10.

Sobressai, aliás, a perspectiva de quanto mais alto for o valor pago pelo suposto causador do dano à vítima, especialmente no estágio inicial do processo, mais rapidamente esta estará disposta a renunciar a um eventual pedido de desculpas, o que implica uma certa fragilidade do mecanismo de responsabilidade civil, baseado precipuamente no pagamento de valores indenizatórios, para propiciar a satisfação social almejada por determinadores setores.

Para piorar as coisas, logo apontou-se que o valor da transação, altamente expressivo para o comum dos mortais, não acarretaria um prejuízo expressivo para a Fox.

A razão para essa constatação reside na circunstância de que a quantia paga poderia ser deduzida do seguro contratado pela Fox, estando coberta a partir da previsão para os riscos decorrentes de sua atividade (media liability insurance). Uma demanda como a enfrentada pela Fox e a consequente transação inserem-se nas provisões do seguro normalmente realizadas pelas companhias americanas, de modo que uma parte da indenização paga será reembolsada pelas seguradoras contratadas11.

Além disso, em se tratando de pagamentos a particulares, a companhia poderá deduzir o valor do acordo invocando benefícios fiscais, conforme foi noticiado pelos especialistas americanos, na medida em que pagamento do valor da indenização poderá ser qualificado como uma despesa necessária para o custo da realização do negócio12.  Por fim, foi devidamente ressaltado que a Fox detém, em caixa, a quantia de 4 bilhões de dólares, de modo que, muito embora expressivo, o valor pago no acordo não afetará o desempenho da companhia.

Em essência, portanto, o pagamento do valor decorrente da transação não representará, efetivamente, qualquer valor 'punitivo' para a empresa, capaz de eventualmente abalar suas atividades, ou acarretar ao menos qualquer responsabilidade corporativa para seus dirigentes ou membros do board, por força de um eventual prejuízo para os seus acionistas.

Nesse contexto, muito embora se trate da maior soma paga na história americana em face de uma ação de difamação, a análise feita a partir da transação celebrada resultou em uma percepção crítica sobre as potencialidades da responsabilidade civil para efetivamente exercer uma função corretiva, a fim de alterar uma conduta reputada por todos como contrária aos melhores valores sociais.

Configurou-se, portanto, um paradoxo: diante dos mecanismos de proteção estabelecidos pela empresa previamente e em face de seu extraordinário poderio econômico, ao invés de configurar uma sanção, o valor astronômico da transação resultou inexpressivo frente ao alto grau de culpa atribuída ao ofensor por diversos setores sociais, de modo que o processo civil movido pela autora demonstrou-se, em princípio, incapaz de servir como elemento dissuasório, a fim de impedir a reiteração de condutas como a praticada pela Fox.

Essa percepção, porém, deve ser objeto de ponderação. Deve-se, de um lado, evitar percepções niilistas, capazes de levar ao imobilismo, como 'se não houvesse nada de novo sob o sol'. De outro, há que se afastar a percepção de que o sistema jurídico não atinge as classes dominantes, de modo a automaticamente caracterizar o direito como um instrumento de manutenção do status quo.

Mesmo que a ação civil proposta, e o correspondente processo civil instaurado, tenham sido extintos a partir da transação, o elevado valor pago pelo "suposto" causador do dano revelam indiretamente um reconhecimento de responsabilidade e sinalizam a necessidade de atender a padrões mínimos de condutas: ou seja, certos padrões não podem ser ultrapassados, pois geram consequências.

Nesse contexto, há que se reconhecer que o Direito Privado pode servir como um instrumento de subversão, ou seja, atuar para alterar as condições sociais, sendo que, como subsistema jurídico do Direito Privado, também a responsabilidade civil pode configurar um mecanismo de alteração de condutas sociais, estando presentes os pressupostos para que ela possa exercer esse papel. Desse modo, a transação no processo entre Dominion e Fox e o valor vultoso objeto de pagamento podem servir como um estímulo de reflexão, e não como um fator de desestímulo nesse longo percurso evolutivo.

__________

1 O referido standard foi estabelecido de modo unânime na decisão New York Times v. Sullivan, da Suprema Corte, de 1964.

2 Ver, por exemplo, ANDRADE, Fábio S. Notas sobre a transação como contrato típico: instrumento negocial de autorregulação dos conflitos entre particulares. Revista de Direito Civil Contemporâneo, 2017, v. 13, p. 171ss.

3 Ver por exemplo GARANI, João Peixoto; DENARDI, Eveline. Técnicas de Negociação e de Transação como forma de ampliar a efetividade dos meios extrajudiciais de solução de conflitos - um estudo sobre experiências internacionais. Revista Jurídica Luso Brasileira, 2021, n. 4, p. 891 ss; BERGAMASCHI, André Luis; TARTUCE, Fernanda. A Solução negociada e a figura jurídica da transação. Associação necessária?

4 Ver, por exemplo, ANDRADE, Fabio S. de. Notas sobre as distinções e relações entre a Responsabilidade civil e a responsabilidade penal. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, 2020, n. 95, p. 83 ss.

6 Sobre o tema ver, por exemplo, ROSENVALD, Nelson. Os danos irreparáveis na filosofia da responsabilidade civil norte-americana: Um contributo de Gregory Keating - Parte 1, migalhas direito privado no common law, 20.03.2023.

7 MYSTAL, Elie. The Lesson of the Dominion Suit ? Corporations won't save us from Fox. The Nation.com

8 Ver, por exemplo, CARVAL.  Suzanne. La responsabilité civile dans sa fonction de peine privée. Paris: LGDJ, 1995.

9 Ver, por exemplo, VINES, Prue. Apologies as corrective Justice in Tort Law : Reparation and Compensation as (partial) redemption in a Torts System. UNSL Law Series, 2018, vol. 79, p. 1.

10 MYSTAL, Elie. The Lesson of the Dominion Suit ? Corporations won't save us from Fox. The Nation.com