Publicidade comportamental e infância digital: Quando o algoritmo molda a infância
quinta-feira, 6 de novembro de 2025
Atualizado em 5 de novembro de 2025 10:57
Nos últimos anos, a publicidade deixou de ser apenas uma estratégia de convencimento para se tornar uma engrenagem invisível do cotidiano digital.
Ela migrou das vitrines e outdoors para dentro das telas. Hoje, cada clique, pausa, rolagem ou reação emocional pode servir de insumo para moldar o que veremos a seguir. O que antes dependia de criação e intuição, agora é mediado por algoritmos capazes de aprender padrões, testar emoções e prever comportamentos.
É o que chamamos de publicidade comportamental: aquela que se baseia na coleta expressiva de dados, processamento e análise com inferência de perfil, decisões automatizadas e práticas manipulativas visando maximizar engajamento. Ela não atua apenas sobre o consumo, mas sobre a atenção - um recurso cada vez mais disputado na chamada economia da vigilância.
A lógica programática da persuasão
Hoje, a publicidade digital é majoritariamente programática: a compra e venda de espaços publicitários é feita por meio de leilões automatizados (real-time bidding), em milissegundos. De um lado estão os anunciantes; do outro, as plataformas como Google, Meta, TikTok e YouTube; e entre ambos um complexo ecossistema de ad techs, que coletam, cruzam e vendem dados para refinar o direcionamento.
Não há mais uma pessoa decidindo o que será exibido e para quem - algoritmos processam dados e direcionam conteúdo, decidindo data, hora, intensidade e mensagem. O resultado é uma publicidade mais precisa, mas também mais opaca. A pessoa vê um anúncio sem saber por que o recebeu, quais dados foram usados ou quem os compartilhou.
Essa arquitetura é o que permite que o sistema funcione: quanto mais dados, maior a segmentação; quanto maior a segmentação e a personalização, mais eficaz a conversão. O problema é que esse mecanismo, aparentemente técnico, tem efeitos jurídicos, éticos e psicológicos profundos - sobretudo quando o público-alvo são crianças e adolescentes, com desenvolvimento mental em formação.
O público mais exposto e menos protegido
Um estudo da Harvard School of Public Health (2024) revelou que seis plataformas - YouTube, TikTok, Snapchat, Instagram, X e Facebook - obtiveram 11 bilhões de dólares em receitas publicitárias apenas com usuários crianças e adolescentes em 2022. Segundo a UNICEF, adolescentes de 14 anos chegam a ver cerca de 1.500 anúncios por dia em redes sociais. Esses números ajudam a dimensionar o tamanho do desafio.
A criança digital de hoje é um público exposto, mas não plenamente consciente de que está sendo alvo de campanhas calibradas a partir de seu comportamento. Quando a publicidade atua de forma invisível, ela não apenas vende um produto, mas fabrica preferências.
Isso porque as estratégias publicitárias se tornaram tão imersivas e naturalizadas - influenciadores, advergames, vídeos de "unboxing", native ads - que a fronteira entre conteúdo e publicidade praticamente desapareceu.
Mais do que consumo, o que está em jogo é a formação de valores, desejos e vínculos afetivos mediados por algoritmos.
Do conteúdo à forma: o vazio normativo brasileiro
Durante décadas, a legislação brasileira tratou a publicidade infantil sob o prisma do conteúdo abusivo, aquele que explora a ingenuidade, a confiança ou a inexperiência da criança.
Mas a publicidade comportamental não é abusiva pelo que diz, como o artigo 37 do CDC tutela, e sim pela forma como age. Ela opera nos bastidores, manipulando a exposição, o direcionamento e o fluxo de informações.
Até recentemente, o Brasil não tinha norma que enfrentasse essa dimensão.
A LGPD trouxe proteções gerais relacionadas ao tratamento de dados pessoais, que é o motor dessa prática, mas não proibia expressamente o uso de dados de crianças para fins comerciais.
Algumas resoluções do Conanda já afirmavam que dados pessoais de menores não devem ser utilizados para fins de segmentação mercadológica, mas a ausência de força de lei limitava sua aplicação.
Esse cenário começou a mudar em 2025, com a promulgação do ECA Digital, que incorporou ao Estatuto da Criança e do Adolescente duas disposições fundamentais:
- O art. 22, que proíbe o uso de perfilamento e análise emocional para publicidade direcionada;
- E o art. 23, que veda a monetização de conteúdos que retratem crianças em contextos erotizados.
Trata-se de uma mudança paradigmática.
Pela primeira vez, a regulação brasileira reconhece que a questão não é apenas o que se anuncia, mas como se anuncia - e como a forma técnica pode ofender direitos fundamentais.
A insuficiência de algumas iniciativas
Mesmo antes da lei, plataformas tentaram criar políticas internas voltadas a menores, muitas impulsionadas pelas obrigações advindas na União Europeia pelo digital services act. O YouTube Kids, por exemplo, restringiu anúncios de certos produtos e obrigou criadores a declararem se o vídeo é "feito para crianças".
Na teoria, a segmentação por comportamento seria bloqueada. Na prática, porém, a história é outra. Pesquisas conduzidas por Goga, Medjkoune e Sénéchal, na França, analisaram milhares de vídeos infantis e identificaram que 7% dos anúncios eram exibidos por placement-based targeting (direcionamento pelo contexto do vídeo) e cerca de 25% apresentavam sinais de segmentação comportamental. Ou seja, as plataformas substituíram o perfil pelo contexto, explorando uma brecha técnica que mantém o efeito manipulativo.
Esses estudos também mostram a falta de transparência: as empresas não disponibilizam repositórios de anúncios infantis, o que impede a verificação independente de suas práticas.
ECA Digital e o princípio da integridade cognitiva
O avanço normativo do ECA Digital precisa ser lido à luz de uma nova concepção: a da integridade cognitiva da criança.
Se o corpo físico é protegido contra a exploração e a violência, o corpo eletrônico - ou seja, sua identidade digital - também deve ser. É nesse espaço que se formam percepções, hábitos e expectativas. Quando algoritmos moldam essa experiência de maneira opaca, eles interferem diretamente no livre desenvolvimento da personalidade.
Por isso, o debate sobre publicidade comportamental infantil vai muito além da proteção de dados. Ele toca a própria autonomia decisória e o direito de não ser manipulado.
O ECA Digital inaugura essa discussão no Brasil, ainda que o caminho da implementação - entre fiscalização, cooperação interinstitucional e transparência de plataformas - esteja apenas começando.
Um futuro em disputa
A publicidade comportamental é, ao mesmo tempo, motor e sintoma da economia digital. Ela financia a internet gratuita, mas também a transforma em um espaço de vigilância constante.
A tarefa do direito é justamente equilibrar esses polos: garantir inovação, mas com dignidade; permitir personalização, mas com consentimento real; viabilizar modelos de negócio, mas sem comprometer direitos fundamentais.
No fim, trata-se de repensar o que significa comunicar em uma sociedade de dados. Porque quando o algoritmo manipula a decisão, a liberdade de escolha se torna uma ficção.
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CENTER FOR HEALTH DECISION SCIENCE. Kids' Ad Revenue for Social Media. Harvard T.H. Chan School of Public Health, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 30/10/25.
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MINISTÉRIO DA FAZENDA (Brasil). Digital Platforms: Competition and Regulatory Recommendations. Brasília: Secretaria de Reformas Econômicas, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 30/10/25.
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CONSELHO NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA (CONAR). Guia de Publicidade Infantil: Recomendações e Boas Práticas. São Paulo: CONAR, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 30/10/25.
GOGA, Oana; MEDJKOUNE, Tinhinane; SÉNÉCHAL, Juliette. Marketing to children through online targeted advertising: targeting mechanisms and legal aspects. France. 6 Oct. 2023. Disponível aqui. Acesso em 30/10/25.

