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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Nelson Rosenvald, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri e Igor Mascarenhas
quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Influenciadores digitais e responsabilidade civil

O mundo vivencia contínuas e aceleradas transformações, impulsionadas pelos avanços tecnológicos. Profissões que no passado recente sequer existiam, passaram a fazer parte do cotidiano, inclusive no setor de marketing. Se, antes, as empresas que desejavam promover os seus produtos, serviços e marcas utilizavam canais tradicionais e consolidados de comunicação, como a TV aberta, jornais e revistas de grande circulação nacional, hoje elas buscam novos meios com alcance amplo e variado, como são as redes sociais. Nas redes sociais, há pessoas que por variados motivos, despertam interesse no público em geral, que passa a segui-las e a interagir com as suas publicações. As publicações dessas pessoas contemplam informações ou imagens para inspirar e difundir ideias, tendências, produtos ou serviços, gerando engajamento com potencial para impulsionar negócios. Esse interesse do público-alvo que fará nascer um desejo de consumir, torna o influenciador digital e a sua rede uma desejável ferramenta de veiculação de publicidade, fazendo que essa nova profissão permita a capitalização do profissional que a exerce, pela possível monetização do seu conteúdo e influência. Assim, no cosmos do direito, os influenciadores ganharam espaço e por vezes tornam-se protagonistas em uma das diversas faixas da franca expansão do ambiente da responsabilidade civil, no mundo que avança pelos inimagináveis e amplos horizontes digitais. Nesse contexto, convém perguntar qual é o critério de imputação da responsabilidade civil dos influenciadores digitais que fazem propaganda nos seus canais tecnológicos de comunicação, fazendo com que, por vezes, os influenciados (seguidores-consumidores) experimentem prejuízos inesperados, notadamente quando os produtos ou serviços não existem, têm vícios ou são defeituosos. Doutrinariamente, há quem sustente que o influenciador pago responde objetivamente pelos prejuízos sofridos pelo consumidor, com base na aplicação da teoria do risco e do princípio da solidariedade. Outros afirmam que a responsabilidade seria subjetiva, pelo enquadramento dessa categoria no rol de profissionais liberais, pois o influenciador somente empresta a sua imagem e voz para terceiros1, como tem sido trilhado na responsabilidade por propagandas em geral e em meios tradicionais. Barbosa, Silva e Brito defendem que, uma vez sendo lícita a publicidade e com observância da lei, caso o produto ou serviço apresente vício ou defeito posteriormente, o influenciador não será responsabilizado, uma vez que não há vínculo com a publicidade lícita, devendo a responsabilidade pelo fato do produto ou serviço ser analisada apenas em relação ao fornecedor2. Ody e D'Aquino prelecionam que o influencer exerce a sua liberdade de expressão em atividade que não é perigosa por si, e que a sua responsabilidade se amolda ao critério subjetivo de imputação, a exigir demonstração da prática de um ilícito para que seja responsabilizado3. Oliveira segue na linha da responsabilização subjetiva do influenciador, desde que este faça uso adequado de sua imagem, sem prejuízo da análise específica das circunstâncias que envolvem os expectadores do conteúdo anunciado e a verificação da capacidade de consumir dos mesmos, se é de forma consciente ou se apenas adquirirão pela opinião da pessoa que está divulgando e que, pela fama, exerce a influência4. Mas há inúmeras vozes a sustentar a responsabilidade objetiva do influencer. Entende-se que a solução da questão demanda ter em conta uma premissa essencial na conjuntura da propaganda digital: a confiança depositada pelos seguidores-consumidores nos seus influenciadores digitais e a utilização desse mote como terreno fértil ao exercício do poder de persuasão para realizar a atividade de divulgação, venda ou promoção de produtos ou serviços próprios ou de terceiros. O digital influencer profissional tenciona sugestionar, induzir e motivar determinados comportamentos por parte dos destinatários das suas atividades. Se o produto ou serviço é do próprio influenciador, este pode ser enquadrado conceito de fornecedor previsto no art. 3º do Código de Defesa do Consumidor (CDC), sujeitando-o aos ditames previstos no referido diploma legal, inclusive nos dispositivos que tratam da responsabilidade por danos sob critério objetivo de imputação. Se o produto ou serviço é de terceiro, a resposta pode ser distinta ou no mínimo personalizável conforme as circunstâncias concretas, incluindo a análise sobre o modo de veiculação e o conteúdo da publicidade levada a efeito pelo influenciador. Para tanto, será necessário tratar critérios comuns e outros específicos. Em comum, pode-se afirmar que o dever de informar deve estar presente tanto na atuação do influenciador, que é ao mesmo tempo divulgador e prestador de serviços ou fornecedor de produtos, quanto na atividade meramente publicitária. Tratando-se de produto ou serviço seu, a própria menção do influencer já é suficiente para que seja tratado como fornecedor (por exemplo, quando menciona "o serviço que eu executo" ou "o produto da minha empresa"). Nesse caso, as informações deverão dizer respeito ao produto ou serviço divulgado. Quando o produto ou serviço for alheio, é essencial a informação ao público de que se trata de postagem de cunho publicitário (conhecido no meio pela expressão publipost), acrescido de cuidado adicional quanto a uma averiguação que diga respeito a quem está contratando e qual é o conteúdo que deverá ser publicizado, como será visto no decorrer deste texto. A informação "visa a assegurar ao consumidor uma escolha consciente, permitindo que suas expectativas em relação ao produto ou serviço sejam de fato atingidas", como referiu a Ministra Nancy Andrighi no REsp n. 1121275-SP. Embora a publicidade não seja permeada pela neutralidade, não se pode admitir que o consumidor seja enganado ou levado a situações de prejuízo inadmissível, a ressaltar a importância do princípio da identificação da publicidade, expresso no art. 36, caput, do CDC, segundo o qual o consumidor "deve identificar fácil e imediatamente a publicidade veiculada". Com isso, "a legislação objetiva que o potencial comprador tenha em mente que há um evento publicitário, evitando-se que o divulgador venha a se valer de mensagem subliminar"5. O caminho é em dois segmentos, pois há o dever de informar, que se divide no dever de informar do fornecedor quanto ao produto ou serviço (que na propaganda é realizada por quem a faz) ou de quem faz a publicidade quanto ao fato de que a exposição ocorre em um contexto de propaganda, e, portanto, não se trata de um testemunho completamente desinteressado. Se em uma publicidade veiculada por um influencer em um comercial de televisão, essa informação explícita seria desnecessária, pelo contexto que permite a presunção de que seja interessada e paga; na propaganda do influencer em rede social isso não ocorre, porque há postagens na linha do tempo da sua página na rede social que são efetivamente desinteressadas mescladas com postagens financeiramente alavancadas, a prejudicar uma análise do próprio consumidor. Isso reforça a necessidade de que o destinatário da postagem saiba o que é efetivamente espontâneo e o que é patrocinado. Por isso, o influenciado, usuário da rede do influenciador, tem o direito de saber que o conteúdo que está consumindo diz respeito a uma publicidade paga e que o influenciador ali está em seu próprio benefício financeiro e em atendimento dos interesses do contratante da propaganda. Um dos meios mais utilizados para prestar a informação é o uso de hashtags indicativas (por exemplo, #patrocinado; #anúncio; #parceriapaga), segundo destaca a doutrina. Não sendo explicitado pelo influenciador que a sua atividade na rede foi executada com fins publicitários, será possível afirmar que a manifestação ocorreu como se estivesse falando em nome próprio, e poderá ser responsabilizado pelo dano que for causado ao consumidor, pelo produto ou serviço divulgado6. Essa responsabilidade pode ser solidária com o próprio fornecedor (conforme art. 7º, parágrafo único, do CDC sem prejuízo do que também dispõe o art. 942, parágrafo único, do Código Civil). Nesses casos, caso o influencer tenha indenizado a vítima quando a questão que diga respeito ao fornecedor, pode exercer seu direito de regresso. A respeito do tema, convém lembrar o texto do art. 37 do CDC, que considera como publicidade enganosa aquela total ou parcialmente falsa, "capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços", e das regras de soft law previstas no denominado Guia de publicidade por influenciadores digitais, publicado em 2021 pelo CONAR7, que orienta a aplicação das regras do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária ao conteúdo comercial em redes sociais. Segundo o referido guia, em seus itens 1.1 e 1.1.1, o conteúdo publicitário "deve ser claramente identificado" como tal, "de forma ostensiva e destacada". E, se pelo contexto não for possível identificar a publicidade, "é necessária a menção explícita da identificação publicitária, como forma de assegurar o cumprimento deste princípio", a qual pode ocorrer por meio do uso das expressões 'publicidade', 'publi', 'publipost' ou equivalentes, "podendo tal menção ser feita em qualquer elemento das postagens, inclusive legenda, desde que a informação sobre a natureza publicitária seja visível de plano". Nas publicações em lives, que são transmissões em tempo real, igualmente emerge a necessidade de "identificação publicitária", a qual "deverá ser periodicamente repetida de forma que fique suficiente claro à audiência integral ou esporádica que existe conexão relevante entre o influenciador, o anunciante e a agência." O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária contém vários artigos sobre o tema, dentre os quais a previsão de que o anúncio deve ser honesto (art. 1º), "presente a responsabilidade do Anunciante, da Agência de Publicidade e do Veículo de Divulgação junto ao Consumidor" (art. 3º)8, sem interferir indevidamente no senso crítico do consumidor. Conforme dito em outra oportunidade, "entre os princípios gerais do referido Código, destaca-se o da honestidade que, em seu art. 20, refere que os anúncios não devem abusar da confiança do consumidor, se beneficiar da sua credulidade, tampouco explorar sua falta de experiência ou de conhecimento. E o princípio da identificação publicitária que refere, no art. 28, que a  publicidade deve ser facilmente identificada como tal"9. Esses deveres de cuidado e de informação se acentuam quando o canal de comunicação for acessível a crianças ou adolescentes, seres em formação e que podem ainda não ter discernimento suficiente para separar o que é real e efetivo e o que é superlativo e sugestionado por razões financeiras.  Por vezes, as próprias plataformas digitais trabalham no sentido de evitar problemas de uso publicitário dos seus canais. Nas políticas do Instagram, por exemplo, na parte de "Políticas de Conteúdo de Marca" da rede, consta que é proibida a publicidade de empréstimos, ofertas de moedas, de cigarros eletrônicos, vaporizadores ou afins, bem como produtos e suplementos não seguros10. Por vezes, são os conselhos de classe que regulamentam e restringem a publicidade de determinados setores, como o CFM e a OAB. A noção de acidente de consumo "que visa ao amparo da incolumidade psicofísica dos consumidores, protegendo contra defeitos de concepção, produção ou informação que viole a legítima expectativa, de forma a tutelar a saúde e a segurança no mercado digital"11 pode alcançar diretamente o produtor ou fornecedor e indiretamente o influenciador que apresentou o produto ou serviço sem as devidas cautelas, como se seu fossem ou sem indicar que a postagem é contratada. Essa resposta se acentua pela presunção de vulnerabilidade do consumidor, que abrange a técnica, jurídica e fática12 prevista no CDC, a qual é "especializada" na vulnerabilidade informativa, decorrente da pressuposta assimetria entre o consumidor e o fornecedor, que é quem detém maior conhecimento sobre o que oferece no mercado. Na prática, há inúmeros casos de responsabilização (por danos morais e materiais) do influenciador que divulga algum produto que o consumidor compra e não recebe. Jojo Todynho, Carla Diaz, Luiza Sonza, entre outros famosos, por exemplo, foram processados por propaganda enganosa de smartphone.13 Alguns influenciadores divulgaram um site falso da Shein no qual, supostamente, os consumidores seriam pagos se avaliassem roupas da referida plataforma on-line de vendas. A repercussão do fato foi tão grande que a própria empresa teve que ir a público mencionar que se tratava de um "golpe"14. Veja-se que, com isso, que não apenas consumidores, mas terceiros (empresas) podem ser envolvidos indevidamente e prejudicados na propaganda irregular de influencers. Em casos como esses, nos quais os influenciadores não tiveram cuidados mínimos na averiguação de que a publicidade contratada contém conteúdo que contempla conhecidas táticas de estelionato, é possível que o influenciador seja condenado a indenizar a vítima. A ilicitude está radicada na da conduta omissiva do influenciador, quanto a falha na possibilidade de identificar risco de danos que seriam constatáveis por qualquer pessoa que agisse com razoável cautela. Expostas sinteticamente as principais questões que cercam o tema, encerra-se com a sugestão de que seria importante que o Brasil, seguindo o caminho que vem sendo trilhado por países como Austrália e França, regulamentasse a profissão e estabelecesse limites ou requisitos à propaganda dos influenciadores digitais. __________ 1 SQUEFF, Tatiana Cardoso; BURILLE, Cíntia; RESCHKE, Ana Júlia de Campos Velho. Desafios à tutela do consumidor: a responsabilidade objetiva e solidária dos influenciadores digitais diante da inobservância do dever jurídico de informação. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 140, p. 313-332, mar./abr. 2022. p. 319. As autoras inclusive referem que a simples menção de que se trata de campanha publicitária, não basta para informar adequadamente os consumidores. Brito  e Silva sustentam que, caso haja anúncio de um produto ou serviço defeituoso ou que contenha vício, haverá o dever de reparar, pois há um dever de diligência mínima quando o influenciador cede sua imagem para divulgação de tal empreendimento, visto que há um pagamento significativo para a divulgação publicitária. SILVA, Carlos Mendes Monteiro da; BRITO, Dante Ponte de. Há responsabilização dos influenciadores digitais pela veiculação de publicidade ilícita nas redes sociais? Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 133, p. 205-2011, jan./fev. 2021. p. 209. Sampaio e Miranda afirmam que a responsabilidade é objetiva, sendo importante destacar o princípio da lealdade que exige que o influenciador confira a veracidade das informações que divulgam, tendo em vista a enorme capacidade de alcance das publicações. SAMPAIO, Marília de Ávila e Silva; MIRANDA, Thainá Bezerra. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais diante do Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 133, p. 175-204, jan./fev. 2021. p. 181 e 184. Speranza refere que a responsabilidade é subjetiva, porque as celebridades não têm condições de conferir todas as informações, diante da falta de conhecimento técnico específico quanto a cada produto divulgado, exceto se elas utilizarem palavras de compromisso, como "eu garanto", o que atrairia a responsabilidade objetiva. SPERANZA, Henrique de Campos Gurgel. Publicidade enganosa e abusiva. Âmbito Jurídico, São Paulo, set. 2012. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-104/publicidade-enganosa-e-abusiva/. Tartuce e Neves prelecionam que a responsabilização objetiva das celebridades, artistas e atletas se justifica pela grande notoriedade que os envolve. TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: Direito Material e Processual. 6. ed. rev. São Paulo: Método, 2017. p. 222. 2 BARBOSA, Caio César do Nascimento; SILVA, Michael César; BRITO, Priscila Ladeira Alves de. Publicidade ilícita e influenciadores digitais: novas tendências da responsabilidade civil. Revista IBERC, [s. l.], v. 2, n. 2, p. 01-21, maio/ago. 2019. Disponível aqui. p. 8. 3 ODY, Lisiane Feiten Wingert; D' AQUINO, Lúcia Souza. A responsabilidade dos influencers: uma análise a partir do Fyre Festival, a maior festa que jamais aconteceu. Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 10, n. 3, p. 01-18, 2021. Disponível aqui. p. 14.   4 OLIVEIRA, Stéphanie Assis Pinto de. Responsabilidade das celebridades em campanhas publicitárias de crédito consignado destinadas a idosos. Revista Jurídica Cesumar, Maringá, v. 10, n. 2, p. 495-504, jul./dez. 2010. Disponível aqui. p. 502-503. 5 BECKER, Maria Alice Ely. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais: análise das novas tecnologias, implicações e discussões necessárias. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2023. p. 73. No mesmo sentido: SPERANZA, Henrique de Campos Gurgel. Publicidade enganosa e abusiva. Âmbito Jurídico, São Paulo, set. 2012. Disponível aqui. 6 BARBOSA, Caio César do Nascimento; SILVA, Michael César; BRITO, Priscila Ladeira Alves de. Publicidade ilícita e influenciadores digitais: novas tendências da responsabilidade civil. Revista IBERC, v. 2, n. 2, p. 01-21, maio/ago. 2019. Disponível aqui. p. 11-12. 7 Disponível aqui. 8 SÃO PAULO. Código de Autorregulamentação Publicitária. São Paulo: Conselho de Autorregulamentação Publicitária, 2022. Disponível aqui. 9 BECKER, Maria Alice Ely. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais: análise das novas tecnologias, implicações e discussões necessárias. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2023. p. 77. 10 POLÍTICAS de Conteúdo de Marca. Meta, [s. l.], c2023. Disponível aqui. Acesso em: 22 out. 2023. Veja-se, sobre o tema BECKER, Maria Alice Ely. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais: análise das novas tecnologias, implicações e discussões necessárias. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2023. p. 75. 11 BECKER, Maria Alice Ely. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais: análise das novas tecnologias, implicações e discussões necessárias. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2023. p. 78. Vide também a respeito do tema: LEITE, Ricardo Rocha. A responsabilidade civil e os influenciadores digitais. Migalhas, [s. l.], dez. 2021. Disponível aqui. 12 MIRAGEM, Bruno. Princípio da vulnerabilidade: perspectiva atual e funções no direito do consumidor contemporâneo. In: MIRAGEM, Bruno; MARQUES, Claudia Lima; MAGALHÃES, Lucia Ancona Lopez de. (Org.) Direito do Consumidor: 30 anos do CDC. São Paulo: Forense, 2020. p. 233-258. p. 236. Também a respeito, veja-se:  SOARES, Flaviana Rampazzo; PASQUALOTTO, Adalberto. Consumidor hipervulnerável: análise crítica, substrato axiológico, contornos e abrangência. Revista de Direito do Consumidor. vol. 113/2017. p. 81 - 109, Set - Out / 2017. 13 RODAS, Sérgio. Influenciadora digital responde por golpe dado por loja que indicou. Consultor Jurídico, Rio de Janeiro, ago. 2021. Acesso em: 22 out. 2023 14 SILVA, Victor Hugo; CATUCCI, Anaísa; CASEMIRO, Poliana. Shein alerta para golpe em site promovido por influenciadores para ganhar dinheiro avaliando roupas: página fraudulenta induz seguidores a fazer pagamento e a informar dados pessoais e bancários. Influenciadores fazem publicidade divulgando plataforma golpista. G1, [s. l.], abr. 2023. Disponível aqui.
Introdução O atual texto do Código Civil brasileiro, pelo menos em uma hermenêutica literal, assevera que a Responsabilidade Civil depende da existência da constatação de um dano, quer patrimonial ou extrapatrimonial. Com efeito, na redação do art. 186 c/c 927 do C.C., depreende-se que o legislador afirmou que deve se verificar a existência de uma ação ou omissão, quer culposa ou dolosa, com violação de direito e causação de dano, para que o ofensor responda e, por consequência, repare o prejuízo que causou. Como se não bastasse, pelo art. 944 do C.C. é reafirmada a natureza reparatória da responsabilidade civil ao se prever que a indenização mede-se pela extensão do dano. Nesse quadro, vem à tona algumas indagações: sempre é possível reparar um dano? Não seria mais inteligente que o legislador dispusesse sobre uma responsabilidade civil preventiva, ou seja, a que evitasse o dano? Portanto, o problema que ora se enfrenta é: existe juridicidade na estipulação de uma responsabilidade civil preventiva na reforma do Código Civil ora em andamento? Por hipótese, afirma-se que o Código Civil na redação vindoura, deverá, atento ao estudo contemporâneo da Responsabilidade Civil, estabelecer que a função preventiva é fundamental para que se evite um dano, mormente aquele de difícil ou impossível reparação, como, comumente, é o dano ambiental. Não é difícil afirmar que a reparação ambiental da Baía de Guanabara, da Lagoa da Pampulha, da extinção de uma espécie animal, da devastação de uma espécie vegetal, da introdução equivocada de uma espécie animal desequilibrando um ecossistema são exemplos de danos de difícil ou impossível reparação. É perceptível a insuficiência dos critérios indenizatório e compensatório da responsabilidade civil em relação aos danos existenciais, tanto individuais como coletivos, ou metaindividuais, da impossibilidade da  restituto in integrum, pois não há como se retornar indene ou compensar integralmente a dignidade violada ou o projeto de vida interrompido, sendo a natureza reparatória lato sensu, fundada no dano concreto, incongruente com a própria efetividade da responsabilidade civil. Objetiva-se, portanto, demonstrar que o texto atual do Código Civil é anacrônico, completamente dissociado do que a doutrina mais moderna sustenta e que uma sociedade lúcida espera, sendo, portanto, imperioso que o novo texto, para muito além de uma Responsabilidade Civil somente reparatória, preveja que é possível estabelecer uma resposta jurídica antes da ocorrência do dano, sobretudo para que se evite que degradações ambientais irrecuperáveis ocorram. Da responsabilidade civil ambiental preventiva Comumente os danos ambientais são de difícil ou impossível reparação. Pode-se, portanto, com tranquilidade, afirmar que seria muito melhor para a sociedade que almeja alcançar um meio ambiente ecologicamente equilibrado, intenção expressa na Constituição Federal de 1988 (art. 225), que tais danos não ocorrem. Por consequência, pouco importa se o Estado, quer pelo Poder Judiciário quer pelo Executivo, impute responsabilidade ao degradador se, em verdade concreta, não for possível a restauração original do ambiente degrado ou destruído. Afirma-se, portanto, que muito melhor seria se o dano não ocorresse e, de forma alvissareira, afirma-se que isso é possível através da adoção no ordenamento jurídico brasileiro, a função preventiva da Responsabilidade Civil. Nesse sentido, Nelson Rosenvald e Graziella Trindade Clemente: Diante das demandas de sociedades complexas, plurais e altamente tecnológicas marcadas pela incerteza e desumanização inerentes, torna-se evidente e necessária a superação do caráter monofuncional da responsabilidade civil. A trajetória do modelo jurídico da responsabilidade civil, no século XXI, deixa de ser linear e estática tornando-se sensível e adaptável à nova realidade em evolução1. Em julgado paradigmático de 2017, das Seções Unidas da Corte de Cassação Italiana,2 considerou-se que "deve ser superado o caráter monofuncional da responsabilidade civil, pois lateralmente à preponderante e primária função compensatória se reconhece também uma natureza polifuncional que se projeta em outras dimensões, dentre as quais as principais são a preventiva e a punitiva, que não são ontologicamente incompatíveis com o ordenamento italiano e, sobretudo, respondem a uma exigência de efetividade da tutela jurídica".1 Sabe-se que nesta década, o Brasil, tristemente, assistiu a duas grandes tragédias ambientais que tiveram causas semelhantes, qual seja: o rompimento de barragem em área minerária. Tais fatos causaram, como se sabe, para além do evento morte humana, significativos danos ao meio ambiente natural e artificial, destruindo, para sempre, a dignidade das pessoas que com o luto sofrem, bem como, para todos que neste planeta vivem, diante da degradação de rios, mortandade de animais, devastação florestal e outros danos que sequer, anos depois das tragédias, ainda temos dimensão. Entre as categorias de riscos catastróficos, Christian Lahnstein2  destaca os riscos tecnológicos, estes que tanto se realizam em um acidente industrial como durante a difusão de efeitos negativos de uma tecnologia ou dos seus danos colaterais. Referidos riscos persistentes do futuro e os litígios épicos que acompanham a história de processos administrativos e judiciais envolvendo grandes corporações farmacêuticas e químicas, petrolíferas, mineradoras, entre outras, autorizam o desenvolvimento de medidas precaucionais e também de acompanhamento das populações atingidas em razão dos efeitos críticos tardios do acidente. O tempo está a demonstrar que as ferramentas dissuasórias não se apresentam eficientes quando se trata de atividades de riscos tecnológicos, diante da capacidade de grandes conglomerados econômicos internalizarem parcialmente as externalidades negativas, mantendo o lucro global das operações,  ou mesmo  transferirem o encargo e o próprio risco para a sociedade, tanto através de outras relações jurídicas quanto por novas operações financeiras ou de engenharia fiscal e compensatória não integral com o Estado. Com efeito, contaminações petrolíferas, catástrofes químicas e farmacológicas, inclusive a adição por opioides, rompimento de barragens de contenção de rejeitos minerários e a própria difusão descontrolada de tecnologias de inteligência artificial tem o condão de causar danos que não serão compensados e, por vezes, sequer serão indenizados pelas empresas degradadoras durante a sua vida útil. Mínimas são as perspectivas dissuasórias concretas que possam evitar o poluidor de continuar a atuar de forma predatória, pois, segundo Lahnstein ao trazer o comentário de um juiz inglês, a filosofia do mercado presume que é lícito obter lucro causando outras perdas econômicas ("the philosophy of the market place presumes that it is lawful to gain profit by causing other economics loss")3 Imagine que existisse em nossa legislação civil/ambiental a previsão de que o desastre ambiental, independentemente de suas consequências danosas, acarretasse à empresa uma multa milionária ou a cassação, por longo período, do direito de exercer sua atividade. Será que tragédias teriam ocorrido? E se existisse, no ordenamento jurídico uma previsão que a construção e manutenção de estruturas de risco acarretassem à empresa uma responsabilidade civil pela simples razão de colocar uma sociedade em risco para reduzir o custo empresarial, tragédias teriam ocorrido? Vidas teriam sido perdidas ou maculadas? O meio ambiente seria degradado? Enfim, os danos não seriam evitados? Afirma-se que a resposta para todas as perguntas acima é: os danos não teriam, provavelmente, ocorrido. Assevera-se, portanto, que se lei brasileira, dispusesse de modo preventivo que determinados comportamentos, independentemente da produção de resultados, já acarretassem a imputação de Responsabilidade Civil, muitos horrores não teriam ocorrido. Helita Barreira Custódio4 é incisiva ao advertir sobre tais problemas, apontando os riscos de um retrocesso nas técnicas reparatórias dos danos já causados e nas ações preventivas para os danos potenciais: A experiência tem demonstrado, reiteradamente, que as prejudiciais consequências da poluição ao meio ambiente resultam, geralmente, em danos irremediáveis e, quando remediáveis, a recuperação, a correção, a reposição ou a restauração dos recursos ambientais (naturais e culturais) degradados somente será possível a longo prazo, mesmo assim, mediante o emprego de técnicas caríssimas, ou de mecanismos ou processos complexos de elevadíssimos custos, notadamente socioambientais. O Código Civil brasileiro tem a eticidade como fundamento, como já preconizava desde de sua construção Miguel Reale, coordenador da comissão de juristas que o estruturou. Eticidade pressupõe que a conduta dos atores nas relações jurídicas esteja conforme o fundamento constitucional da preservação da dignidade da pessoa humana e tenha a sociedade como destinatária de sua proteção. Para tanto, critérios de correção da conduta na formação da obrigação jurídica passaram a ser essenciais para a verificação da responsabilidade civil, conduzindo a interpretação para além de sua versão clássica reparatória lato sensu, fundada no dano concreto, a abarcar a preocupação social com a prevenção e repercussão do dano. Não alheio ao mandado constitucional de garantia de inviolabilidade dos direitos fundamentais, não perdendo de vista o princípio do neminem laedere, o legislador reconheceu aqui e ali no Código Civil, de forma tímida, a eficácia preventiva da responsabilidade civil, como quando previu a tutela contra ameaças aos direitos de personalidade (art. 12 do Código Civil), porém não aproveitou a oportunidade de sistematizar normativamente a responsabilidade civil preventiva e seu alcance. Imperiosa, pois, que a nova redação do Código Civil disponha sobre a função preventiva da Responsabilidade Civil sob pena de se reescrever um texto arcaico e, porque não dizer, muitas vezes inútil. Afinal, seria o mesmo que determinar que um destruidor repare um dano que causou, como se, por uma ridícula estupidez, pudéssemos admitir que morte de alguém que se ama é reparada por dinheiro. Conclusão Espera-se que a reforma do Código Civil expressamente inclua no seu texto que a Responsabilidade Civil, consagre definitivamente a tutela preventiva do ilícito, possibilitando que se iniba práticas potencialmente degradadoras, independentemente da ocorrência de danos. Somente assim, afirma-se com tranquilidade, que o nosso planeta para as presentes e futuras gerações não continuará a sofrer com verdadeiras devastações praticadas pelo homem que, sem nenhuma conotação pessimista, será a própria vítima de suas ações e omissões. O legislador civil brasileiro tem a obrigação de superar conceitos anacrônicos, há muito afastados por legislações estrangeiras mais evoluídas, prevendo expressamente que devem responder civilmente, antes mesmo da ocorrência de qualquer dano, mormente o ambiental, aqueles que optam por, ainda que potencialmente, colocar o ambiente que vivemos em risco. Não há qualquer justificativa para que se primeiro degrade para, posteriormente, como se possível fosse recuperar a vida, o Estado determine uma resposta jurídica, por mais severa que seja, imputando ao ofensor a óbvia obrigação de reparar o estrago que causou. Ora, por que não evitar o dano? Por que não evitar a morte? Por que insistir em uma reparação comumente inviável? Não existe resposta,com robustez jurídica, a essas perguntas. Sobretudo em matéria de dano ambiental, oxalá o Código Civil em gestação amplie ao máximo a legitimidade ativa para a propositura de ações judiciais e medidas administrativas que objetivem que os danos difusos oriundos da degradação ambiental não ocorram, requerendo-se imposições de providências que assegurem um resultado prático que efetivamente impeçam a ocorrência da degradação. Afirma-se, em conclusão, que o Código Civil vindouro deve reconhecer que a Responsabilidade Civil para muito além da primitiva tutela reparatória deve admitir, com realce, que a tutela preventiva é fundamental para que alcancemos o objetivo social de vivermos um meio ambiente ecologicamente equilibrado. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 8 nov. 23. 2 GUARDIA, Mariano José Herrador .Derecho de daños (cuestiones actuales).Lefebvre:Madrid 2020. P.  101 a 120. 3 Ob.cit. P.107. 4 CUSTÓDIO, Helita Barreira. Responsabilidade Civil por Danos ao Meio Ambiente. Campinas: Millenium, 2006, p. 3.
Da sua origem de cura baseada na fé e no misticismo, a relação médico-paciente é marcada pela verticalização, onde o médico, detentor do conhecimento técnico, é quem definia (e muitas vezes ainda define) as melhores escolhas para o paciente. Ao paciente restava acolher a opinião técnica médica e cumprir as recomendações e prescrições para alcançar a cura ou melhorar seus sintomas. A comunicação, inicialmente utilizada como recurso de apuração de diagnóstico e de criação de conexão e confiança para envolver o paciente nos cuidados e tratamentos prescritos pelo profissional sem maiores questionamentos, foi relegada para um plano ainda mais secundário com o desenvolvimento de tecnologias, pois, os exames, por exemplo, se tonaram suficientes para trazer respostas sobre o que se passava com o corpo do paciente. Já não era preciso tanto diálogo para saber o que se passava com a saúde do enfermo e o objetivo da equipe de saúde era curar o paciente, salvar sua vida. No Direito, havia a mesma desvalorização do diálogo e o sistema de justiça alicerçado na perseguição da culpa e punição do culpado. É o sistema de justiça retributiva e, nas palavras de Howard Zehr:  A administração da justiça é uma espécie de teatro no qual os temas culpa e inocência predominam. O julgamento ou a confissão da culpa formam o clímax dramático, tendo a sentença como desenlace. Assim a justiça se preocupa com o passado em detrimento do futuro" (Zehr, 2008, p. 77)  O mesmo movimento de transformação das relações aconteceu e ainda acontece no Direito e na Medicina. No Direito, a troca de lentes para compreensão do conflito, da justiça e das relações ficam a cargo dos meios de gestão de conflitos, especialmente pautados na cultura da paz e do consenso, os quais objetivam a restauração das relações futuras. Na medicina, o surgimento do Direito do Paciente como ramo jurídico, com foco na proteção e na participação do paciente na ambiência clínica e na construção da horizontalização da relação médico-paciente (Albuquerque, 2023, p. 132), e a crescente valorização dos cuidados paliativos, os quais imprimem, na prática, condutas que efetivamente centralizam a pessoa humana nos seus cuidados e valorizam não apenas a via biológica, mas também a vida biográfica do indivíduo. Os movimentos que acontecem no Direito na Medicina convergem em diversos aspectos, mas substancialmente na valorização da pessoa humana, seus interesses, necessidades, valores e todo o aspecto subjetivo que envolve suas questões, reconhecendo-a como capaz de exercer sua autonomia e assumir o protagonismo da sua vida. Há um afastamento da postura combativa e adversarial em direção à colaborativa e o centro passa a ser o cuidado com a pessoa. Os médicos deixam de querer somente curar o paciente e o advogado defender o cliente. À cura e ao êxito na demanda, agrega-se a noção de cuidado (Fürst, 2022, p. 241). Como recurso principal para alcançar a centralização da pessoa tanto na solução de conflitos, como em seus cuidados em saúde, o diálogo contribui como o veículo de estabelecimento de relacionamento e troca de informações, tão fundamentais para o exercício da autonomia do paciente. Estima-se que a comunicação é causa direta de 90% dos conflitos e, nos 10% restante, atua de forma indireta para sua ocorrência. Ou seja, a comunicação ocupa relevantes papéis nas relações humanas e, como não poderia ser diferente, na relação médico-paciente. Compreender alguns desses papéis permite vislumbrar sua importância como meio de prevenção da crescente Judicialização na Saúde, especialmente em relação à ocorrência de eventos adversos que, muitas vezes, culminam em longos e dolorosos processos apuração e condenação de responsabilidade civil. No Relatório Justiça em Números 2023 (CNJ, 2023), disponibilizado em 01/09/2023 com ano base 2022, indica a crescente judicialização de ação de ressarcimento civil por erro médico de 2020 a 2023. Em 2020 houveram 6.926 processos novos/ano, em 2021 houveram 7.450 processos novos/ano, em 2022 houveram 8.499 processos novos/ano e em 2023, até 21/7/23, já haviam sido levantados 5.546 processos novos, com a observação que ainda restavam 6 meses para ser possível concluir o total de distribuições, cuja projeção seria a dobra desta quantidade.  É certo que a apuração da responsabilidade civil do médico deve preencher todos os requisitos legalmente estabelecidos como desencadeadores do dever de ressarcimento. Contudo, para o paciente, muitas vezes esses requisitos são relegados e, havendo um resultado diverso do esperado, passa a perseguir um culpado e, ainda que judicialmente sua teoria não seja reconhecida, passam-se anos e anos discutindo culpados e vítimas, em processos extremamente custos financeira e emocionalmente. A comunicação, principal recurso utilizado por meios consensuais de gestão e prevenção de conflitos, contribui firmemente para que as relações entre médicos-pacientes não avancem para demandas judiciais, especialmente de responsabilidade civil. O primeiro ponto da comunicação que deve ser considerada como forma de prevenir responsabilidade civil é que é impossível não se comunicar, afinal, tudo comunica. O dizer algo comunica, e o ficar em silêncio também comunica. Uma ação comunica, e a inércia também comunica. Porém, a impossibilidade de não se comunicar, não exime a necessidade de dizer algo. É clichê, mas o óbvio precisa ser dito, pois muitas vezes o silêncio diz aquilo que está na esfera de compreensões outro, que, em mais vezes ainda, não é a mesma de quem silencia. Cada indivíduo constrói em si as suas próprias percepções a partir das suas próprias experiências. É como se fosse um DNA: particular, único e individual. Deste modo, o caminho percorrido entre a mensagem emitida e recebida não garante que ambas sejam idênticas, o filtro das percepções influencia o conteúdo e a forma da informação e, dedicar-se a traduzir em palavras o que se pretende expressar é o meio mais simples e eficaz de alcançar a maior medida de semelhança entre elas. A comunicação transporta um conteúdo informacional, seja pelo que é verbalizado e escrito, seja na forma com que é conduzida, pois o comportamento também comunica. É o diálogo que reduz à menor distância entre o que é comunicado pelo emissor e o que é compreendido receptor. O médico detém o conhecimento técnico e experiência de tratamento da doença e o paciente é o titular, com exclusividade, do conhecimento do seu conceito de vida boa e o que é, para ele, experienciar aquela enfermidade. Essas informações precisam alcançar um ao outro para que juntos, de forma colaborativa e cooperativa, possam chegar à uma decisão e o paciente exercer plenamente sua autonomia e reduzir os riscos de danos e eventos adversos. Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, quando reduzidos a meros documentos formais que não imprimam verdadeiro processo informacional não se prestam aos fins pretendidos e, não raro, acabam gerando maiores conflitos que sua completa inexistência. Isto porque, a simples entrega de um documento pelo médico ao paciente para assinatura e cumprimento de um protocolo sem que a linguagem técnica e o que nele consta sejam verdadeiramente esclarecidos, para muitos, pode comunicar que a decisão compete ao profissional de saúde e, com ela, toda a carga de responsabilidade pelo sucesso e insucesso. E mais! Que aquele tratamento não passa de mais um protocolo, que aquele paciente não passa de mais um número desprovido de pessoalidade. Este é o segundo aspecto da comunicação que se pretende trazer como relevante: a comunicação estabelece os contornos da relação formada. É por meio da comunicação que se constrói conexão e confiança. O bom relacionamento entre sujeitos promove ambiente de resiliência e superação de falhas humanas, que reflete diretamente na prevenção de culpabilização e judicialização. Entre as expectativas do paciente e as condições técnicas do médico em proporcionar a cura ou o tratamento desejado existe um vazio. Não é o profissional que detém o poder de curar e salvar o paciente. O médico possui conhecimento e experiência técnica, que, nem sempre, são suficientes. A vida e a morte contemplam grandes complexidades que não são totalmente dominadas pelo homem e, nestas situações, a relação estabelecida entre médico e paciente permite o diálogo sobre esse vácuo, os limites de cada um, o acolhimento das frustrações e que juntos possam tomar as melhores decisões. O paciente é acolhido, empoderado e a ele são dadas condições para fazer suas próprias escolhas e, com elas, as responsabilidades são compartilhadas. O compartilhamento da responsabilidade não tem o objetivo simplório de eximir o médico da carga da decisão, mas sim manter o paciente como protagonista da sua vida, capaz de tomar suas decisões, valorizado-o enquanto condutor do seu destino e não o reduzido à figura de um doente incapaz. É a valorização da pessoa, a percepção de que a decisão também foi sua e tomada com base em farta informação sobre riscos e benefícios, acolhimento, encorajamento e reconhecimento que se pretende alcançar. Como reflexo da valorização e da participação ativa do paciente, em caso de frustração pelos resultados ou mesmo falhas, que se tenha a ciência de que nem sempre há um culpado e que existe limites não transponíveis ao médico para alcançar a cura, que o sentimento verdadeiro e genuíno de ter sido respeitado e bem cuidado sejam maiores que a atribuição de culpa, e todos os esforços do profissional para que projeto de vida do paciente fosse concretizado não sejam menores que sua eventual falha humana. Isso tudo somente é possível com a também verdadeira e genuína disponibilidade do médico nos cuidados com o paciente e a comunicação o seu veículo. A experiência da aviação em relação à gestão adequada e consensual de conflitos, divergências e adversidades promoveu significativa alteração do contextos de dano, revelação de falhas humanas e prevenção de acidentes e pode contribuir na ressignificação da relação médico-paciente, em especial na valorização do diálogo e de uma sólida relação. Por receio da atribuição de culpa, da sujeição em dolorosos e longos processos e, inclusive, do julgamento por seus pares, as falhas humanas na aviação deixavam de ser relatadas e, com isso, ora deixavam de ter suas causas resolvidas e ora suas pequenas consequências eram ocultadas e, por não solucionadas, ganhavam maiores proporções. Com a gestão adequada dos conflitos, especialmente com a implementação de processo comunicacional com o foco em solução e não de busca de um culpado, houve aumento significativo de relatos de falhas humanas e, com isso, redução do número de acidentes. A mesma dinâmica da aviação pode ser transplantada para a relação médico e paciente, que, quando há verdadeira conexão e confiança, propicia ambiente confortável pra que eventuais falhas sejam relatadas e resolvidas sem maiores consequências e danos, e eventuais mudanças de tratamentos sejam realizadas de forma conjunta. A comunicação, portanto, além de ser veículo para suprir o dever de informação do médico, que, se deficitário pode sim ensejar responsabilização civil, promove a construção de um relacionamento que, bem alicerçado, ainda que haja eventos humanos adversos, há incentivo de que sejam revelados pelos profissionais, os quais gozam de maior segurança e tranquilidade na condução do tratamento daquele paciente, prevenindo que danos de maior impacto e importância aconteceram. Por meio do diálogo, a postura colaborativa e cooperativa entre médico e paciente predomina onde a combatividade e adversaridade certamente prejudicaria o próprio tratamento, inibiria os cuidados médicos e incentivaria que pequenas divergências assumiriam maiores proporções com atribuições de culpa e responsabilidade civil. ______________  Albuquerque, A. (2023). Empatia nos Cuidados em Saúde: Comunicação e ética na prática clínica. (Manole, Ed.) Santana da Parnaíba, SP. CNJ, C. N. (2023). Justiça em Números 2023. Brasília, DF: CNJ. Acesso em 21 de 11 de 2023, disponível em https://painel-estatistica.stg.cloud.cnj.jus.br/estatisticas.html Fürst, O. (2022). Cuidados Paliativos Pediatricos e a Importância dos Processos de Diálogo. Em L. Dadalto, Cuidados Paliativos Pediatricos. Aspectos jurídicos. Indaiatuba, SP: Editora Foco. Zehr, H. (2008). Trocando as Lentes. Justiça Restaurativa para o nosso tempo. (T. V. Acker, Trad.) São Paulo, SP: Palas Athena.
O presente ensaio, dividido em duas partes sequenciais, busca apresentar critérios de interpretação que possibilitem melhor estruturar o contrato de seguro-garantia de forma a possibilitar o cumprimento de sua função promocional. Na Parte I, evidenciou-se que não há na legislação brasileira disciplina específica sobre os elementos estruturais do contrato de seguro-garantia. E, a partir do exame de algumas dificuldades observadas quanto ao cumprimento específico de obrigações contratuais pelo segurador, recomendou-se a adoção preferencial da opção indenizatória nos contratos privados de empreitada e nas contratações públicas - em seus mais diversos modelos - envolvendo a realização de obras. E, agora, na Parte II, serão objeto de análise os fatos supervenientes que podem acarretar a própria supressão da garantia nesse tipo de contrato de seguro. Diversos fatos surgidos durante a execução do contrato podem acarretar o agravamento do risco técnico e financeiro do contrato, agravamento esse que será refletido diretamente nas obrigações originariamente estabelecidas, uma vez que importam na modificação das premissas negociais que motivaram a formação do seguro-garantia. Cite-se, como exemplo de agravamento do risco, a hipótese em que o segurado, durante a execução do contrato, obtém acesso a informações privilegiadas sobre acidente envolvendo o despejo de produtos químicos ocorrido na região em que serão realizadas as obras, com potencial de substancial modificação do projeto originário e, deliberadamente, as omite do tomador e do segurador. No âmbito estrito das contratações privadas, o agravamento do risco é disciplinado pelos artigos 768 a 770 do Código Civil1. Particularmente no que se refere ao exemplo citado no parágrafo precedente, dispõe o art. 769 que o segurado é obrigado a comunicar ao segurador, logo que saiba, todo incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de perder o direito à garantia, se provar que silenciou de má-fé. Ao estatuir essa regra, o objetivo do legislador foi o de perpetuar o dever de o segurado prestar informações relevantes associadas ao risco durante toda a fase de execução contratual, obrigação já estabelecida quando da formação do contrato, nos termos dos artigos 765 e 766 do Código Civil, e que deve ser observada durante todas as etapas contratuais2. A dinâmica própria da realidade social, notadamente em uma sociedade marcada pela crescente complexidade e por transformações cada vez mais velozes3, pode acarretar o surgimento de novos fatos que agravem o risco, fatos esses não previstos quando prestadas as informações iniciais que balizaram a formação do contrato. Dada a complexidade dos elementos sociais e econômicos produzidos pela sociedade contemporânea, que gera inúmeras novas situações de risco e o agravamento dos já existentes4, bem como tendo em vista a natureza específica do contrato de seguro, que pressupõe uma relação jurídica de trato sucessivo estruturada com base no princípio da boa-fé e em deveres informativos5, quaisquer fatos relevantes associados ao risco devem ser noticiados de forma contínua no âmbito da relação contratual. E a consequência jurídica pela não observância da obrigação estabelecida no caput do art. 769 do Código Civil é a perda do direito à garantia estabelecida no contrato. O dever de comunicação estabelecido nesse dispositivo relaciona-se a qualquer circunstância que possa agravar o risco6, mesmo que a nova circunstância seja externa e não se vincule diretamente ao segurado7. Se o segurado tiver ciência inequívoca, mesmo que não tenha contribuído para a sua ocorrência, deverá informar oportunamente o segurador. O silêncio do segurado em tal circunstância evidenciará a sua má-fé de forma a justificar a perda do direito à garantia. Nesse ponto, estabelece a Circular 662/22 da Superintendência de Seguros Privados - SUSEP que, na hipótese de ser prevista a exigência de comunicação da alteração do objeto principal ao segurador, sua não comunicação, ou sua comunicação em desacordo com os critérios estabelecidos nas condições contratuais do seguro, poderá gerar a perda da garantia se essa omissão agravar o risco e concomitantemente tiver relação com o sinistro ou estiver comprovado, pelo segurador, que o segurado silenciou de má-fé8. A referida Circular dispõe ainda que a não comunicação da expectativa de sinistro ao segurador, ou envio dessa comunicação em desacordo com as disposições contratuais, poderá igualmente configurar hipótese de agravamento do risco, ensejando a perda do direito pelo segurado à garantia caso esse fato impeça o segurador de mitigar os efeitos da inadimplência junto ao tomador9. Podem ocorrer, de igual sorte, atos intencionais imputáveis ao próprio segurado que importem no agravamento do risco. Essa hipótese é regida pelo art.768 do Código Civil que dispõe que o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato. No momento de formação do contrato, o segurado deve prestar todas as informações necessárias para análise de risco e, uma vez consolidadas, é possível dimensionar o risco concreto associado ao quadro fático-jurídico delineado por esse conjunto de informações. Esse mesmo quadro fático-jurídico deverá ser preservado durante a execução contratual, cabendo ao segurado, por um lado, prestar continuamente quaisquer informações relacionadas à alteração de circunstâncias que possam interferir na análise de risco e, por outro, abster-se de qualquer comportamento que possa agravar o risco10. A disciplina específica conferida pelo Código Civil à matéria, vedando expressamente o agravamento intencional do risco pelo segurado, funda-se igualmente na constatação de ser elevada a probabilidade de ocorrência desse tipo de comportamento nocivo no âmbito dos contratos de seguro11. Dado que a avença tem por pressuposto a cobertura de riscos predeterminados12, observa-se a existência do intitulado risco moral associado à própria natureza dessa espécie contratual. O segurado, ciente de que a cobertura do risco constitui uma obrigação assumida contratualmente pelo segurador, pode ser levado a reduzir as medidas de precaução que ordinariamente adotaria caso não houvesse formalizado o contrato de seguro, podendo, inclusive, atuar de forma negligente ou mesmo dolosa com o objetivo de receber a indenização resultante da ocorrência do sinistro13. Interfere o legislador, assim, de forma a coibir esse tipo de comportamento hostil por parte do segurado com o objetivo de assegurar, no plano singular, a higidez do contrato de seguro e, no plano macro, a preservação do mutualismo14. Como no seguro-garantia há uma relação tripartite sui generis, a questão que se coloca é saber se o agravamento do risco levado a cabo pelo tomador também pode ensejar a perda do direito à garantia. Embora não exista disciplina normativa específica sobre essa hipótese, a interpretação consentânea com o sistema normativo que rege os contratos de seguro é a que afasta a possibilidade de perda da garantia, uma vez que essa é prestada exclusivamente em favor do segurado, não havendo qualquer benefício auferido pelo tomador caso ocorra o sinistro. Como visto, uma das razões subjacentes à vedação da conduta que acarreta o agravamento intencional do risco associa-se ao denominado risco moral que, por sua vez, pressupõe a redução de medidas de precaução com o objetivo de receber a indenização resultante da ocorrência do sinistro. O tomador, no entanto, mesmo que deixe de adotar medidas preventivas que seriam ordinariamente exigíveis, não adota esse tipo de conduta no âmbito do seguro-garantia com o objetivo de receber indenização em razão da ocorrência do sinistro, não havendo, assim, sob a perspectiva teleológica, razão para aplicar extensivamente a regra estabelecida no art.768 do Código Civil à hipótese. Pode-se afirmar, no que diz respeito aos efeitos produzidos diretamente sobre o contrato de seguro, que a eventual negligência do tomador, sob o ponto de vista funcional, não seria abusiva, pois não busca ele, conforme acima destacado, criar uma situação específica em favor da ocorrência do sinistro que lhe favoreça15. A regra estabelecida no art.768 do Código Civil deve ser funcionalizada à luz do princípio da boa-fé, que orienta os negócios jurídicos de forma geral16 e possui especial relevância setorial na compreensão do contrato de seguro17, não se aplicando, de acordo com essa perspectiva, a consequência jurídica de perda da garantia na hipótese de negligência por parte do tomador18. Delineado, assim, o quadro de agravamento do risco nos contratos de seguro-garantia, é de se concluir que, em inúmeras situações concretas em que se observe agravamento, esse instrumento não será capaz de cumprir seu papel de assegurar o efetivo cumprimento das obrigações estabelecidas no contrato principal. Ao revés, haverá perda da garantia nas mencionadas hipóteses de agravamento de risco, afastando-se, com isso, as alternativas legalmente previstas de pagamento de indenização ou de assunção direta das obrigações a cargo do tomador.           A partir do reconhecimento inicial de que o seguro-garantia faz-se capaz de mitigar problemas associados ao descumprimento de obrigações contratuais, buscou-se apresentar, nas duas partes que integram o presente ensaio, um panorama crítico dos contratos privados de empreitada e das contratações públicas envolvendo a realização de obras para, ao final, sugerir alguns critérios de interpretação que possibilitem assegurar maior efetividade a esse tipo sui generis de contrato de seguro, destacadamente no âmbito das contratações públicas envolvendo obras de infraestrutura. O percurso foi iniciado com a apresentação do quadro normativo existente de forma a identificar as diversas fontes legislativas e regulamentares, reconhecendo-se que não há disciplina específica em sede normativa sobre elementos estruturais do contrato de seguro-garantia. A seguir, foram apresentadas as características gerais do seguro-garantia e evidenciadas algumas vicissitudes observadas nos contratos privados de empreitada e nas contratações públicas envolvendo a realização de obras de forma a conjugá-las com a utilização do seguro-garantia. Nesse ponto, buscou-se dar ênfase a três especificidades observadas em contratos dessa natureza: (i) precariedade técnica dos projetos de engenharia e arquitetura; (ii) complexidade de arranjos contratuais em que a realização de obras é apenas um dos itens que configuram o objeto contratual; e, (iii) incompatibilidade com os percentuais legais estabelecidos para o alcance do seguro-garantia. A análise crítica dessas especificidades, por sua vez, revelou haver dificuldades substanciais quanto ao cumprimento específico de obrigações contratuais pelo segurador, sugerindo-se, em razão dessa análise, um primeiro critério norteador para a interpretação e aplicação do seguro-garantia: a adoção preferencial da opção indenizatória nos contratos privados de empreitada e nas contratações públicas - em seus mais diversos modelos - envolvendo a realização de obras, prestigiando-se a diretriz geral de pagamento em dinheiro estabelecida no art.776 do Código Civil.    Paralelamente, sugeriu-se que a previsão de assunção do cumprimento de obrigações pelo segurador em caso de inadimplência deve ser estabelecida apenas nas hipóteses em que: (i) seja possível a especificação de forma pormenorizada, segregada e objetiva da obrigação a ser cumprida; (ii) o projeto originário apresentar viabilidade técnica para ser executado continuamente; e, (iii) o remanescente da obra não ultrapassar os valores fixados como limites máximos pela legislação para a cobertura do seguro-garantia. Como etapa final, foi enfrentado o tema do agravamento do risco, apresentando-se as hipóteses em que deverá ocorrer a supressão da garantia, o que implicará na não aplicação das alternativas legalmente previstas de pagamento de indenização ou de assunção direta das obrigações a cargo do tomador. Advirta-se, por fim, que os critérios hermenêuticos apresentados deverão ser conjugados com inúmeras medidas concretas a serem tomadas pelos diversos atores envolvidos no contrato de seguro-garantia a fim de que seja ampliada a vocação desse instrumento para mitigar problemas associados ao descumprimento de obrigações contratuais. Dentre essas medidas, destacam-se as seguintes: (i) melhoria na estruturação dos projetos e efetiva avaliação de sua solidez pelo segurador; (ii) fortalecimento dos mecanismos de gestão e governança com ênfase no acompanhamento das etapas de execução contratual; e, (iii) maior detalhamento contratual das etapas de execução contratual e respectivas obrigações, bem como das circunstâncias específicas que evidenciem o inadimplemento. Assim, será possível utilizar o seguro-garantia como instrumento apto a mitigar com maior efetividade o descumprimento de obrigações estabelecidas em contratos privados de empreitada e de contratações públicas envolvendo a realização de obras, assegurando-se o cumprimento da sua relevante função promocional19. ____________       1 Para a análise mais acurada da disciplina conferida ao agravamento do risco, remetem os autores aos comentários por eles apresentados aos artigos 768 a 770 do Código Civil em obra coletiva que buscou abordar de forma sistemática e pormenorizada a disciplina normativa conferida ao contrato de seguro pelo Código Civil.  MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; TÁVORA, Rodrigo de Almeida. Comentários aos artigos 768, 769 e 770 do Código Civil. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. (Org.). Direito dos seguros: comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2023. 2 Úrsula Goulart Bastos classifica a obrigação estabelecida no art.769 do Código Civil como um dever de informar qualificado. BASTOS, Úrsula Goulart. O agravamento do risco no seguro de dano. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. (Org.). Temas atuais de Direito dos Seguros. Tomo I. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 521. 3 Bauman qualifica essa sociedade de "líquido-moderna". Conforme assinala o Autor "numa sociedade líquido-moderna, as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades. As condições de ação e as estratégias de reação envelhecem rapidamente e se tornam obsoletas antes de os atores terem uma chance de aprendê-las efetivamente". BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p.7 4 Conforme adverte Beck, "na modernidade tardia, a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos. Consequentemente, aos problemas e conflitos distributivos da sociedade da escassez sobrepõem-se os problemas e conflitos surgidos a partir da produção, definição e distribuição de riscos científico-tecnologicamente produzidos". BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 23. 5 Martins-Costa evidencia que "desde os mais arcanos tempos da História securitária tanto o princípio da boa-fé quanto a configuração de deveres informativos a cargo das partes tiveram no contrato de seguro um campo de especialíssimas relevância e função". MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 372. 6 Sobre a circunstância que deve ser reportada ao segurador, os autores já tiveram oportunidade prévia de esclarecer que, diferentemente do Código Civil de 1916, que também previa em seu art.1.455 a obrigação a cargo do segurado de comunicar qualquer fator que possa agravar o risco, o atual o atual Código qualifica esse incidente, relacionando-o apenas às hipóteses de agravamento considerável do risco. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; TÁVORA, Rodrigo de Almeida. Comentários aos artigos 768, 769 e 770 do Código Civil. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. (Org.). Direito dos seguros: comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2023. 7 Conforme esclarece Serpa Lopes "a causa do agravamento do risco pode decorrer de uma circunstância exterior, isto é, alheia à vontade do segurado". LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. 4ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1993. p. 413. 8 Art.11. (...)  § 2º Na hipótese de ser prevista a exigência de comunicação da alteração do objeto principal à seguradora, sua não comunicação, ou sua comunicação em desacordo com os critérios estabelecidos nas condições contratuais do seguro, somente poderá gerar perda de direito ao segurado caso agrave o risco e, concomitantemente: a) tenha relação com o sinistro; ou b) esteja comprovado, pela seguradora, que o segurado silenciou de má-fé. 9 Art.17. (...)§ 2º Na hipótese de ser prevista a exigência de comunicação da expectativa de sinistro à seguradora, sua não comunicação, ou sua não comunicação de acordo com os critérios estabelecidos nas condições contratuais do seguro, somente poderá gerar perda de direito ao segurado caso configure agravamento do risco e impeça a seguradora de adotar as medidas dos incisos II e III do artigo 29. 10 Nesse ponto, Serpa Lopes extrai da boa-fé não apenas o dever do segurado de prestar informações verdadeiras, como igualmente o dever de não omitir circunstâncias associadas à análise de risco: "Já assinalamos o aspecto moral da principal obrigação do segurado: é o dever de boa-fé nas declarações que prestar, quer no sentido positivo de dizer a verdade, quer no sentido negativo de não calar circunstâncias que, por influírem no risco, tinha o dever de informar". LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. 4ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1993. p. 412. Rosenvald  e Farias, por sua vez, enquadram a conduta do segurado no âmbito do chamado princípio do absenteísmo, constituindo o agravamento intencional do risco uma espécie de venire contra factum proprium: "Essas situações se consubstanciam no chamado princípio do absenteísmo, que, embora pareça óbvio, indica que quem quer prevenir riscos de danos patrimoniais ou existenciais perante um contrato de seguro, assim se conduz por absoluta ojeriza a um fato danoso previsível que se quer impedir que ocorra e, em sendo impossível, remediar. O agravamento intencional do risco é uma espécie de venire contra factum proprium por parte do segurado que manifesta um comportamento sucessivo contraditório, atuando decisivamente para a conflagração do dano que, inicialmente, desejou segurar". ROSENVALD, N.; FARIAS, C. C. Curso de Direito Civil - V.4 - Contratos. 11. ed. Salvador/BA: Juspodivm, 2021. p. 1369. 11 Há mesmo quem sustente ser uma das funções da disciplina do agravamento intencional do risco a sanção ao ato doloso do segurado. Nesse sentido Miragem e Petersen apontam uma dupla função: a preservação da base econômica do contrato de seguro e a sanção ao ato doloso do segurado. MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Alteração do risco no contrato de seguro e critérios para sua qualificação: agravamento e diminuição relevante do risco. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. (Org.). Temas atuais de Direito dos Seguros. Tomo I. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 468. 12 A assunção de riscos pelo segurador só se torna possível a partir da análise técnica de referências de sinistralidade produzidas a partir das informações geradas pelo próprio universo de segurados, permitindo-se, com isso, a precificação do prêmio de forma mais consentânea com a realidade. Nesse ponto, Goldberg assinala que "a precificação da generalidade dos seguros dispõe de base estatística confiável, capaz de proporcionar ótimos níveis de assertividade por parte dos subscritores". GOLDBERG, Ilan. Reflexões a respeito do seguro garantia e da nova lei de licitações. Revista IBERC, Rio de Janeiro, v. 5, n.2 p. 66, maio/ago. 2022. Disponível em:    https://revistaiberc.responsabilidadecivil.org/iberc. Acesso em: 4 set. 2023. 13 Esclarecem nesse ponto Miragem e Petersen que o conceito de risco moral (moral hazard) abrange "tanto a possibilidade de o titular do interesse adotar, ao longo da relação contratual, justamente por estar garantido pelo seguro, uma postura negligente, diminuindo seu grau de vigilância, de modo a facilitar a ocorrência do sinistro (comportamento culposo), como, até mesmo, uma conduta oportunista, visando o recebimento da indenização securitária ou do capital segurado (comportamento doloso)". MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 47. 14 Conforme assinalam Tepedino, Konder e Bandeira, "busca-se, a partir do princípio do mutualismo, diluir os riscos pela coletividade dos segurados, que contribuem em prol de fundo mutual, formado pelas reservas técnicas, que se destinarão ao pagamento das indenizações na hipótese de sinistro". TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson; BANDEIRA, P. G. Fundamentos do Direito Civil: Contratos, v. 7. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 472. 15 Ao discorrer sobre o conceito de merecimento de tutela, esclarece Eduardo Nunes de Souza que representa ele o reconhecimento de que a eficácia de certa conduta particular é compatível com o sistema. Segundo o autor, trata-se de uma consequência necessária da constatação de que certo ato é lícito do ponto de vista estático ou estrutural e, em perspectiva dinâmica ou funcional, não é abusivo (não constitui o exercício disfuncional de uma situação jurídica). SOUZA, Eduardo Nunes de. Merecimento de tutela: a nova fronteira da legalidade no direito civil. Revista de Direito Privado (São Paulo), v. 58, p. 75-110, 2014. 16 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 17 Art. 765. O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes. 18 Conforme destacado por um dos autores do presente ensaio, nas nuances do caso concreto, cabe ao intérprete superar a análise meramente estrutural (o que é?), para privilegiar a funcionalização dos interesses irradiados (para que servem?), por meio de interpretação aplicativa dos comandos infraconstitucionais à luz da Carta Magna ou pela aplicação direta dos princípios e valores constitucionais. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Reflexões metodológicas: a construção do observatório de jurisprudência no âmbito da pesquisa jurídica. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 9, p. 1, 2016. Na mesma direção, v. também: Rumos Cruzados do Direito Civil Pós-1988 e do Constitucionalismo hoje. In: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Rumos Contemporâneos do Direito Civil: Estudos em Perspectiva Civil-Constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 17-35. 19 Ao abordar a função promocional do ordenamento, Bobbio (2007, p. 15) destaca que a técnica do encorajamento visa não apenas a tutelar, mas também a provocar o exercício dos atos conformes, e, a introdução da técnica do encorajamento reflete uma verdadeira transformação na função do sistema normativo em seu todo e no modo de realizar o controle social. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. São Paulo: Manoele, 2007.
quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Novos paradigmas da responsabilidade civil ambiental

Assiste-se na atualidade a escassez de recursos naturais diante da busca desenfreada por crescimento econômico e consumo de massa. Conforme Ulrich Beck1 vive-se em uma "sociedade de risco" que coloca as origens e as consequências da degradação ambiental no centro das discussões na sociedade moderna. A deterioração dos bens ambientais atingiu patamar tão elevado que está a comprometer a qualidade de vida da humanidade, havendo prognósticos pessimistas para a natureza e o bem-estar das futuras gerações se não forem criados mecanismos para a proteção ambiental e efetivar os já existentes.  Desde a década de 1960, após a criação do Clube de Roma e do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), iniciou-se o processo de emancipação do Direito Ambiental como meio de regulamentar as relações do ser humano com a natureza, abrangendo não apenas seu aspecto ecológico, mas também buscando o uso racional e sustentável dos recursos naturais de forma multidisciplinar. A medida em que aumenta a irracional degradação do meio ambiente natural, afetando negativamente a qualidade de vida da humanidade e colocando em risco as futuras gerações (princípio da equidade intergeracional), torna-se necessária uma maior e eficaz tutela dos recursos ambientais pelo Poder Público e coletividade. Nesse cenário e não omissa a essas questões, como forma de conter a degradação ambiental, a Constituição da República posicionou-se de forma exemplar ao prever no artigo 225, parágrafo 3º, que as "condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados". Portanto, a reparação ambiental está sujeita a tríplice responsabilização: penal, administrativa e civil. Especificamente no que concerne a essa última, vislumbra-se que atualmente, a tradicional responsabilidade civil conforme previsto na legislação privada, não possui instrumentos hábeis para proteger e concretizar o Direito Ambiental.  Tanto referido é verdade que Sérgio Ferraz2  e Nelson Nery Junior3  foram os pioneiros a demonstrar que as ferramentas fornecidas pelo Direito Civil não eram suficientes para a restauração do meio ambiente degradado, por serem bens tipicamente difusos. Essas discussões, aliadas à possibilidade de responsabilização objetiva prevista no art. 14, parágrafo 1º da lei  6.938/81 propiciaram um terreno fértil para a construção de um sistema autônomo com regras próprias para a reparação ambiental. De fato, o Direito Ambiental se especializou criando ferramentas singulares para sua efetivação. Além dos instrumentos estabelecidos para a realização dos objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente como zoneamento ambiental, avaliação de impacto ambiental, licenciamento ambiental, entre outros, estabelecidos no art. 9º da Lei n.º 6.938/81, a responsabilidade civil ambiental migrou da teoria do risco administrativo para a teoria do risco integral. A questão atual não é necessariamente fundamentar novos direitos, mas criar mecanismos para a proteção dos já existentes, como de forma muito pertinente justificou Norberto Bobbio4. Nos anos que se seguiram, a doutrina e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça percorreram um caminho autêntico, construindo um modelo próprio para a reparação dos danos ambientais, sempre tendo como referência os pressupostos da responsabilidade civil do direito comum. Ocorre que na contemporaneidade, em meio à sociedade de risco e à era do conhecimento, a adoção do modelo tradicional de reparação civil imporia limitações aos imprescindíveis avanços na proteção ambiental, especialmente considerando as novas e inimagináveis demandas ambientais que estão se apresentando ao Poder Judiciário. Cita-se, por exemplo, o rompimento da barragem em Mariana e Brumadinho, considerados como os maiores desastres ambientais brasileiros, verdadeiro leading case na jurisprudência nacional. Vislumbra-se que a defesa ao meio ambiente e por consequência, o Direito Ambiental, estão passando por constantes e aceleradas transformações. Diante das mudanças sociais experimentadas na sociedade de risco, talvez seja a responsabilidade civil um dos campos que sofrem, nas palavras de Jean-Louis Gazzaniga5, maior metamorfose na atualidade, não apenas acumulando experiências e conhecimentos, mas incorporando novos modelos de atuação o que, como se verá, trouxeram repercussões no Direito Ambiental. Se, por um lado, houve um aumento no número de ações judiciais em matéria ambiental6, por outro, a responsabilidade civil está sendo um importante instrumento para resolver disputas que antes eram previamente solucionadas por outros institutos jurídicos ou instrumentos legais. Significa dizer que o Direito de Danos, como vem sendo chamada a responsabilidade civil por Carlos Ghersi7, acaba por mudar completamente seu foco de estudo: o que tradicionalmente recaía sobre a pessoa do causador do dano, que por seu ato reprovável era punido, com a expansão das atividades econômicas da sociedade de risco deslocou-se para a tutela de garantia à vítima de ser indenizada pelo dano injusto. No caso da reparação civil por danos ambientais o foco passou a ser o da reparação in integrum, ou seja, preferencialmente busca-se "recuperar o meio ambiente degradado até sua restauração plena e imediata" (REsp 1.114.893-MG, julgado em 16/3/2010.), precisamente porque "o dano ambiental é multifacetário ética, temporal, ecológica e patrimonialmente falando, sensível ainda à diversidade do vasto universo das vítimas, que vão desde o indivíduo isolado à coletividade às gerações futuras e aos próprios processos ecológicos em si" (RESP 1.198.727, julgado em 14/08/2012). Justamente o despertar dessa consciência que fez com que o Superior Tribunal de Justiça tenha se tornado nos últimos anos referência internacional no campo do Direito Ambiental, de modo a apresentar soluções inovadoras e sólidas o suficiente para se transformarem em paradigmas, segundo reconhecimento de autoridades internacionais do setor8. Isto porque o dano apresenta-se de forma multifacetada9 e requer soluções inovadoras para sua proteção. De fato, com a complexidade e multidisciplinaridade dessas questões, somadas ao aumento significativo das demandas ambientais, inflação dos bens ambientais objetos de tutela e a emancipação de novos sujeitos de direitos potencialmente atingidos pelos danos ao meio ambiente demonstram que o modelo até então construído pelo STJ passa por uma nova metamorfose. Como então equacionar todas essas variáveis e tutelar de forma mais eficaz o meio ambiente, de forma a obrigar os responsáveis a repararem civilmente os danos ambientais na sociedade de risco? A resposta à pergunta acima não é simples, perpassando por diversas questões polêmicas e inúmeras indefinições. Bem da verdade a pós-modernidade tem (re)construído, sistematicamente, o modelo de responsabilização civil ambiental diante das novas demandas que estão chegando ao Poder Judiciário.   Na contemporaneidade assistem-se novos modelos sendo construídos e a propositura de novas soluções hermenêuticas. As mudanças se justificam diante da maior criatividade dos juristas em propô-las aliada a uma postura de vanguarda do Superior Tribunal de Justiça, que se tornou um dos protagonistas mundiais ao decidir as causas ambientais, o que resultou em recentes atualizações no ano de 2023 do "Jurisprudência em Teses" em matéria de "responsabilidade civil por dano ambiental"10. Para ilustrar o aqui exposto e demonstrar que está em curso uma nova construção dos paradigmas da responsabilidade civil tradicionais à luz dos danos ambientais, pode-se extrair da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça algumas conclusões: a) aplicação da responsabilidade civil objetiva na modalidade teoria do risco integral (REsp 1.114.398/PR) o que significa dizer que nessa hipótese não há excludente de responsabilidade civil a ser alegada (CR, art. 225 parágrafo 3º, combinado com art. 14 parágrafo 1º da lei 6.938/81). A esse respeito, importante esclarecer que o "reconhecimento da responsabilidade objetiva por dano ambiental não dispensa a demonstração do nexo de causalidade entre a conduta e o resultado" (AgInt no AREsp 1682237/RJ, julgado em 12/06/2023); b) reparação integral dos danos cabendo se falar em cumulação de recuperação de área degradada - obrigação de fazer ou não fazer - com a indenização pecuniária pelos prejuízos devidos (Resp 1.120.117 e Súmula 629 do STJ), independentemente dos danos serem individuais ou coletivos (REsp 1.373.788, julgado em 21/12/2013) ou mesmo de prévio licenciamento ambiental (REsp 1.354.356, julgado em 26/3/2014.)11; c) a mitigação do nexo de causalidade na responsabilidade civil ambiental sob a alegação de que excepcionalmente pode ser dispensada a prova do nexo de causalidade para os casos de adquirentes de imóveis já degradados ambientalmente, imputando-se ao novo proprietário a responsabilidade pelos danos causados (REsp 1.056.540), o que mais precisamente se caracteriza como obrigação propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor" (Súmula n. 623/STJ)12; d) a impossibilidade de fato de terceiro excluir o dever de indenizar, de modo que não há excludente do nexo de causalidade nesse caso, como tradicionalmente ocorre na responsabilidade civil do direito comum, responsabilizando o degradador em decorrência do princípio do poluidor-pagador (REsp 1612887/PR, julgado em 28/04/2020); e) a aplicação da tese da inversão do ônus da prova aplica-se às ações de dano ambiental, contrariando a regra geral que o ônus da prova é de quem acusa (Súmula n. 618/STJ); f) vedação da intervenção de terceiros para garantir maior celeridade das ações de modo que aquele que reparar o dano deverá buscar seu ressarcimento por meio de ação própria (AgRe no Ag 1.213.458, julgado em 24/08/2010); g) aplicação do dever de solidariedade de todos os poluidores aos danos ambientais (REsp 604.725 e Resp 1.137354); h) responsabilidade civil objetiva do Estado por omissão (Resp 1.071.741), sendo certo que a "responsabilidade civil da Administração Pública por danos ao meio ambiente, decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, é de caráter solidário, mas de execução subsidiária (Súmula n. 652/STJ);  i) reconhecimento do dano moral ambiental coletivo, diante da violação  massificada de inúmeros direitos da personalidade de pescadores impedidos de exercer a profissão (REsp 1.269.494, julgado em 24.9.2013,); j) imprescritibilidade da pretensão de reparação civil de dano ambiental (conforme Repercussão Geral - Tema n. 999/STF); k) Não admissão da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental (Súmula n. 613/STJ); l) Não há direito adquirido à manutenção de situação que gere prejuízo ao meio ambiente (REsp 1983214/SP, julgado em 14/06/2022); m) O termo inicial da incidência dos juros moratórios é a data do evento danoso nas hipóteses de reparação de danos morais e materiais decorrentes de acidente ambiental (AgInt no REsp 1990643/PR, julgado em 22/11/2022). Como se vê, as transformações sofridas pela responsabilidade civil ao longo dos últimos anos na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça trouxeram como consequência o descarte ou mitigação dos tradicionais pressupostos da responsabilidade civil, substituindo-os por novos critérios de forma a garantir a melhor proteção ambiental e o acesso ao meio ambiente como um direito fundamental de cunho intergeracional. Isso implica na reconfiguração de seus próprios paradigmas à luz da tábua axiológica constitucional, que orientam os valores fundamentais da sociedade e o momento da crise climática e ambiental que é vivenciada. Portanto, a evolução da doutrina e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, impulsionada pela crescente quantidade de casos apresentados para apreciação jurídica, tem revelado uma nova dogmática da responsabilidade civil ambiental, construída de forma coerente e adaptada às novas realidades socioambientais. Essa transformação aponta para caminhos que visam a proteção mais efetiva dos valores ambientais, sem comprometer a necessária segurança jurídica. _____________ 1 BECK, Ulrich. La Sociedad del riesgo: Hacia uma nueva modernidad. Barcelona: Paidós Básica, 2002. 2 FERRAZ, Sérgio. Responsabilidade civil por dano ecológico. Revista de Direito Público, São Paulo: 1979, p. 34-41. 3 NERY JUNIOR, Nelson. Responsabilidade civil por dano ecológico e a ação civil pública. Revista Justitia, São Paulo, v. 126, 1984, p. 168-189. 4 BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. 8ª Edição. Campus, Rio de Janeiro, 1992, p. 17. 5 GAZZANIGA, Jean-Louis. Les métamorphoses historiques de la responsabilité. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. 6 Conforme divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, essa tendência foi revelada pela edição do "Justiça em Números" do ano de 2023. Disponível em < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/09/justica-em-numeros-2023-010923.pdf>. Acesso em 01 de novembro de 2023. 7 GHERSI, Carlos A. Teoría General de la Reparación de Daños. Buenos Aires: Ed. Astrea, 1997. 8 Conforme reportagem do site Consultor Jurídico. Disponível em . Acesso em 01 de novembro de 2023. 9 De acordo com o entendimento do STJ: "O dano ambiental existe na forma difusa, coletiva e individual homogêneo, este, na verdade, trata-se do dano ambiental particular ou dano por intermédio do meio ambiente ou dano por ricochete" (REsp 1641167/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/03/2018, DJe 20/03/2018). 10 Disponível em . Acesso em 01 de novembro de 2023. 11 Conforme entendimento do STJ:  o "erro na concessão de licença ambiental não configura fato de terceiro capaz de interromper o nexo causal na reparação por danos ao meio ambiente" REsp 1612887/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/04/2020, DJe 07/05/2020. 12 Com efeito, "Causa inequívoco dano ecológico quem desmata, ocupa, explora ou impede a regeneração de Área de Preservação Permanente - APP, fazendo emergir a obrigação propter rem de restaurar plenamente e de indenizar o meio ambiente degradado e terceiros afetados, sob o regime de responsabilidade civil objetiva" (AgInt no REsp 1882947/SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/03/2023, DJe 23/03/2023).
1. INTRODUÇÃO Já imaginou ter um encontro virtual com algum morto querido? Não apenas vê-lo, mas ouvir sua voz, conversar e até ter a sensação de tocá-lo? O aprimoramento de tecnologias que permitem a reprodução exata da imagem e da voz de pessoas já falecidas tem permitido a chamada "ressuscitação digital", que é feita por meio da manipulação digital dos registros de som e de imagem da pessoa que morreu. Essa realidade chama atenção para importantes questionamentos na utilização da imagem, da voz e dos dados digitais de pessoas falecidas que, em vida, não manifestaram consentimento para tal, seja para reprodução de falas e imagens seja para a criação de áudios e vídeos inéditos. A quem cabe o uso de dados pessoais de pessoas falecidas? Mesmo existindo consentimento para a utilização após a morte, há limite de uso? 2. DADOS VIVOS DE PESSOAS MORTAS Em comemoração ao dia dos pais, o Mercado Livre, em parceria com a Soundthinkers, exibiu uma propaganda com a recriação da voz de José Antunes Coimbra, pai do ex-jogador Zico, construindo uma frase nunca dita por aquele, em que pedia que o filho fizesse um gol em sua homenagem. O ex-jogador, postado no meio do campo, foi surpreendido pela voz de seu pai com o pedido, veiculado no sistema de som do estádio. Para que isso fosse possível, a Soundthinkers usou um vídeo do arquivo pessoal de Zico e um sistema de síntese neural, e criou um dicionário de voz personalizado e um novo texto com fala digitalizada. Esse caso aparentemente é inofensivo, o que não retira a dificuldade de justificá-lo juridicamente, em especial no que toca aos direitos da personalidade. Os aspectos que reduzem a problematicidade do evento vertem no sentido de que (a) Zico voluntariamente forneceu arquivos com a voz e a imagem do pai; (b) não houve violação da imagem-atributo1, porquanto a propaganda não distorceu a identidade socialmente construída; e (c) não se está diante de deepfake2, pois o comercial identifica a voz como construção de inteligência artificial. No entanto, além do problema de se "reviver" os mortos em contextos por eles não vividos, está-se diante da falta de consentimento do retratado para tal reconstrução. Os direitos da personalidade são intransmissíveis, logo o simples consentimento dos parentes próximos não importaria em validade do negócio jurídico. No entanto, na prática, nada disso é revolvido ou condenado se o ato não estiver atrelado a uma situação de contrafação ou deepfake.                 Ainda que o uso da imagem seja autorizado pelos parentes ou herdeiros, há que se questionar sobre a permanência do direito da personalidade à imagem propagada após a morte.  3. SOBREVIDA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE O tema em análise nos remete a pensar se há sobrevida dos direitos da personalidade. Em princípio, os direitos da personalidade pressupõem a existência da pessoa, em sentido jurídico. A personalidade jurídica termina com a morte. Com ela extinguem-se todas as situações subjetivas que lhe são inerentes, inclusive os direitos da personalidade. Além do mais, diz-se, comumente, que os direitos da personalidade não admitem transferência, só podendo ser exercidos por seu titular. Por várias vezes, todavia, o ordenamento protege o que aparenta ser uma "continuidade da personalidade do morto", como é o caso do parágrafo único do art. 20 do Código Civil. Como explicar direitos da personalidade de quem não é mais pessoa? A doutrina clássica estabeleceu que os direitos da personalidade seriam direitos subjetivos, isto é, comporiam relações jurídicas intersubjetivas, na posição de sujeito ativo, o detentor do direito, e sujeitos passivos determinados ou não, com o dever de se absterem de quaisquer atos lesivos à dignidade da pessoa. Mas, e o morto, como atribuir a ele direitos subjetivos? Haveria reflexos de direitos a justificar a tutela jurídica, uma vez lesada a imagem do indivíduo que ele foi? A teoria clássica da relação jurídica busca explicar a situação do morto por meio de um de quatro argumentos: a) não haveria um direito da personalidade do morto, mas um direito da família, atingida pela ofensa à memória de seu falecido membro; b) há tão somente reflexos post mortem dos direitos da personalidade, embora personalidade não exista de fato; c) os direitos da personalidade, que antes estavam titularizados na pessoa, com a sua morte passam à titularidade coletiva, já que haveria um interesse público no impedimento de ofensas a aspectos que, ainda que não sejam subjetivos, guarnecem a própria noção de ordem pública; e, por fim, d) com a morte, transmitir-se-ia a legitimação processual, de medidas de proteção e preservação, para a família do defunto3. Pela primeira opção (a), a família seria vítima em razão de ofensa à memória do morto. Não podemos concordar com o surgimento de um novo direito porque se encontra despido de qualquer conteúdo, criado, simplesmente, para satisfazer à fundamentação da tutela judiciária. Ao se dizer que há reflexos de direitos da personalidade (b), embora personalidade já não mais exista, pressupõe-se que pode haver consequência sem causa. Estamos a criar uma nova categoria de "reflexos de direitos sem direitos" ou, pior, "reflexos de direitos sem personalidade". Como terceira corrente, a noção de titularidade coletiva de direitos (c) nada mais é do que um lugar comum para se tentar justificar um paternalismo e uma posição funcionalista sem qualquer fundamentação. É estranho passar a titularidade de informações personalíssimas, definidoras da própria pessoa, a uma coletividade que não possui sequer os mesmos interesses. Por fim, apresenta-nos a ideia de que a legitimatio é transmitida aos parentes (d). Caio Mário da Silva Pereira chega mesmo a afirmar que o direito de ação é transferido a determinadas pessoas.4 O problema dos "direitos da personalidade do morto" resumir-se-ia a uma questão de tutela processual. No entanto, a legitimidade processual tem existência própria e distinta do direito material. Além do mais, há interesses e expectativas de direitos que podem proporcionar a alguém a atuação processual. É o caso dos legitimados referidos pelo parágrafo único do art. 20 do Código Civil. Dessa maneira, admitimos a existência de um interesse legítimo da família e, portanto, de alteração da legitimidade. Mas direito subjetivo não há. Ele se extinguiu com a morte. Resta agora um interesse, cuja legitimação processual é dada a certas pessoas. Em relação aos dados pessoais, por exemplo, direito realmente não há. Não há que se confundir direito subjetivo e interesse legítimo. O primeiro se traduz em um poder de atuação, guarnecido por diversas faculdades e por pretensão. Já o segundo, é uma situação que só pode ser reclamada judicialmente, pois não se concede um espaço de atuação extrajudicial, mas tão somente "uma pretensão razoável cuja procedência ou não só pode resultar do desenvolvimento do processo"5. O morto não tem direito aos dados pessoais, mas pode existir interesse legítimo da família na proteção dos mesmos. A proteção pode se dar inclusive contra a própria família. Isso ocorre porque o interesse não possibilita um campo de atuação, como é comum nos direitos subjetivos. Assim, a família não pode atuar sobre os dados da pessoa falecida, a não ser que esta, em vida, tenha expressamente concedido o direito de exploração da imagem manipulada. E, sendo assim, admitimos a existência de um direito subjetivo criado negocialmente pela outorga do titular. Sem o consentimento, à família se defere apenas a legitimidade processual na defesa da situação jurídica de interesse. Com o consentimento, haveria um direito a ser explorado, mas pautado em pressupostos de emissão de vontade válida, que incluem não somente a capacidade e a legitimidade material, mas também a idoneidade do objeto.                 A manifestação de vontade é necessária e validada por três princípios jurídicos: boa-fé, informação e autonomia. Como já dissemos em outra ocasião:  A boa-fé informa toda a construção interna da vontade e sua manifestação, pois exige que ambas as partes atuem segundo um padrão de lealdade e lisura, não gerando, no outro, falsas expectativas e procedendo com a segurança que a intervenção de saúde exige. A informação garante que a manifestação de vontade não se forme unilateralmente, mas dialogicamente, permitindo que as partes ponderem argumentos e alternativas. E a autonomia privada protege o livre desenvolvimento da personalidade pela satisfação de interesses críticos e experienciais na tomada de decisão, respeitado o grau de discernimento.6  O consentimento para a manipulação e o uso da imagem deve se dar por documento escrito, que explicite tal permissão no âmbito de limites temporais, temáticos e pessoais. Os limites temporais deverão ser fixados por meio de termo final ou de condição resolutiva, porquanto temerário seria o uso por tempo indeterminado. Os limites temáticos referem-se ao contexto em que a imagem será colocada ou à atuação fictícia que se imporá a ela. Logo, é improvável que a cessão ultrapasse os contornos da pessoalidade edificada em vida, configurada na imagem-atributo. Por fim, os limites pessoais vertem na determinação das pessoas a quem se concede a cessão de uso e manipulação da imagem. Como não há forma prescrita em lei, defendemos a necessidade de um documento escrito, particular ou público, podendo, inclusive, ser o próprio testamento.  4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Saudade, apego, medo da morte são sentimentos desde sempre experimentados pelo ser humano, que é confrontado com a inevitabilidade do fim. A ressuscitação digital dos mortos leva-nos à intransmissibilidade e à vitaliciedade dos direitos da personalidade. O uso da imagem manipulada pode não ter maiores consequências jurídicas se respeitados os limites impostos pelo titular. E exatamente por isso propusemos que a cessão se efetive por meio de documento escrito. Não se trata de cessão de direito da personalidade. Não existe direito da personalidade do morto. Com a morte, cessa a personalidade e, ato contínuo, os direitos da personalidade. Direito da personalidade é, tradicionalmente, considerado direito subjetivo, pois concede a seu titular um poder de atuação e de pretensão sobre aquele que o viole. A morte extingue este direito, que não é transferido para a família. A situação jurídica subjetiva a envolver o morto na proteção da imagem é de interesse legítimo. É nesse ponto que se instaura a confusão entre legitimidade processual e titularidade material. Não se trata de uma discussão nova, basta pensar nos direitos morais de autor. A repercussão patrimonial é transmitida, mas não a titularidade da obra. Quanto à imagem, o documento de cessão cria direito subjetivo de uso e manipulação para o cessionário, embora esse direito não se confunda com direito da personalidade. Tendo como pressuposto o documento em que o titular da imagem permite o uso desta após a sua morte, a violação do interesse legítimo dos familiares faz nascer uma pretensão indenizatória de que pode se valer algum herdeiro eventualmente excluído da decisão e do contrato de utilização de imagem do parente falecido. Da mesma forma, poderão os legitimados requerer indenização se houver extrapolação do objeto por parte do cessionário da imagem, tendo em vista os limites temporais, temáticos e pessoais estabelecidos contratualmente. Ainda há que se especular que a situação concreta pode conduzir o agente que explora comercialmente a imagem a obter ganhos maiores do que o dano suportado pelos herdeiros do falecido. Ou seja, como nos mostra Nelson Rosenvald e Bernard Korman Kuperman7, a função compensatória da responsabilidade civil pode se mostrar insuficiente diante de agentes racionais, "uma vez que, casos como esse, transmitem o sinal econômico que o ilícito não só se paga, mas remunera bem." Nesse caso é fundamental a pretensão restitutória que, pautada no enriquecimento sem causa, justifica a responsabilidade civil pela extrapolação lucrativa daquele que explora a imagem do falecido. ____________ 1 Imagem-retrato é a materialização audiovisual do indivíduo por meio de representação da personalidade. E imagem-atributo se relaciona aos aspectos de construção da pessoalidade, ali inseridos valores e construção de vida. 2 Deepfake é a imagem ou som que passou por processo de edição, por meio de inteligência artificial, com o intuito de gerar aparência de fato real. Com o uso da técnica de edição, se pode modificar o conteúdo da fala, inserir uma pessoa em um contexto, substituir uma pessoa por outra etc. 3 Tal divisão em quatro fundamentações se faz presente por razões didáticas, sem que, com isso, possamos afirmar a existência de correntes doutrinárias claras e bem definidas. 4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: introdução ao direito civil; teoria geral do direito civil. 20. ed. rev. e atual. por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 1, p. 243. 5 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 263. 6 NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direitos da personalidade. 2. ed. Belo Horizonte: Arraes, 2021, p. 139-140. 7 ROSENVALD, Nelson; KUPERMAN, Bernard Korman. Restituição de ganhos ilícitos: há espaço no Brasil para o disgorgement? Revista Fórum de Direito Civil, Belo Horizonte, ano 6, n. 14, p. 11-31, jan./abr. 2017, p. 12.
A proteção de dados pessoais no Brasil tem uma história fascinante e ainda pouco conhecida pelo grande público. O tema está em alta em razão de muitos fatores: o trabalho monumental de Danilo Doneda na autonomização dessa disciplina em trabalho de décadas, a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018), o reconhecimento deste direito na Constituição Federal e sua consistente interpretação no Supremo Tribunal Federal. Quando o primeiro projeto de lei sobre o assunto foi apresentado no Brasil, Doneda tinha apenas sete anos de idade. Muitas pessoas pensam que as discussões sobre proteção de dados pessoais no Brasil são novíssimas, iniciadas neste século. Engana-se quem pensa assim. Como argumentei com Doneda no ensaio Personality Rights in Brazilian Data Protection Law: a historical perspective, publicado em livro editado por Marion Albers e Ingo Wolfgang Sarlet pela editora Springer, as discussões sobre direitos da personalidade possuem raízes profundas, assim como a construção dos princípios fundantes da proteção de dados pessoais. Permita-me uma viagem ao tempo. Voltemos ao governo Ernesto Geisel, o quarto da ditadura militar brasileira. Em 1977, o Serpro - empresa pública criada em 1964, após o golpe, para alavancar a emergente economia de processamento de dados e modernizar a administração pública - estava sendo instrumentalizado pelos militares para lançamento do ambicioso Registro Nacional das Pessoas Naturais, o Renape. A ideia dos militares era organizar em um único sistema interoperável todos os registros de uma pessoa, como certidão de nascimento, registro geral, cadastro de pessoa física, registros trabalhistas e registros previdenciários. Dedicamos um episódio do podcast Dadocracia a este tema. Nem todos os militares apoiavam o projeto, que foi formulado de forma opaca, sem anúncios públicos, por cinco anos, com aval do ministro da justiça Alfredo Buzaid. Conforme descobri ao reler os principais jornais da época da década de 1970, o Renape foi criticado por alguns poucos militares dissidentes, que já sinalizavam para riscos e necessidade de novos direitos associados aos usos secundários de dados. Um deles, o coronel José Maria Nogueira Ramos, criticou publicamente o Renape em entrevistas concedidas ao Estado de São Paulo. Fiquei curioso e fui pesquisar mais a fundo sobre a vida do coronel Nogueira Ramos. Com a ajuda dos funcionários da Biblioteca do Exército do Rio de Janeiro, encontrei textos seus em exemplares da revista A Defesa Nacional sobre o assunto. Foi grande a minha surpresa ao observar que o coronel Nogueira Ramos não só alertava sobre as "potencialidades da informática" em termos de "segurança e dignidade do cidadão", como também defendia que qualquer política pública de identidade unificada deveria ser precedida da adoção de uma lei "sobre a proteção de dados pessoais". Pelo que pude apurar, o coronel Nogueira Ramos era engenheiro de telecomunicações formado no IME e havia exercido o cargo de engenheiro de projetos na União Internacional de Telecomunicações (UIT) entre 1970 e 1973. Provavelmente em razão de sua atuação internacional na UIT, teve contato com os debates de ponta sobre privacy and data protection que estavam sendo travados na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no início da década de 1970. Ele não só tinha contato com os famosos seminários de junho de 1974 em Paris sobre proteção de dados pessoais - encontro que reuniu figuras como Alan Westin, Stefano Rodotà, Arthur Miller e outros pioneiros dessa disciplina -, como mostrava conhecimento básico sobre os modelos de licenciamento de bancos de dados na Suécia, os novos direitos civis pensados na França e os princípios de informação justa formulados nos EUA (os famosos Fair Information Practices Principles, derivados do importantíssimo relatório Records, Computers and the Rights of Citizens). Por influência do pioneiro trabalho realizado de forma multissetorial pelo governo dos EUA em 1972 - envolvendo especialistas, membros de empresas de tecnologia, professores acadêmicos e cidadãos que pudessem manifestar opinião pública -, os FIPPs cristalizaram cinco princípios básicos, que formaram a espinha dorsal de muitas legislações de proteção de dados pessoais no século passado: (i) não deve existir um sistema de registro de dados pessoais secreto, (ii) deve existir uma forma pela qual alguém pode descobrir quais informações pessoais estão em um registro e como essas informações são usadas, (iii) deve existir uma forma de uma pessoa prevenir que uma informação utilizada para uma finalidade específica seja utilizada para outra, sem consentimento, (iv) deve existir uma forma alguém corrigir um registro de informação sobre uma pessoa identificável, (v) toda organização que realiza tratamento de dados pessoais deve garantir tratamento leal e prevenir usos abusivos dos dados. Nos principais círculos de cientistas da computação e de engenheiros de redes do Brasil, já existia preocupação com proteção de dados pessoais e suas relações com catalogação dos cidadãos e democracia. Em revistas como DataNews e Dados & Ideias, pessoas como Ivan da Costa Marques, Mario Dias Ripper, Ricardo Saur e Maria Teresa Oliveira promoveram debates iniciais sobre liberdades informáticas, o impacto do Privacy Act de 1974 nos EUA e os direitos de acesso debatidos no legislativo francês. Em uma das entrevistas que conduzi na pesquisa que deu origem ao livro A proteção coletiva dos dados pessoais no Brasil, publicado esta semana pela Editora Letramento, ouvi de Luiz Antonio Ewbank, marido da socióloga Maria Teresa Oliveira: "nós íamos para praia, no Rio, e discutíamos esses assuntos por horas, com Ivan e José Ricardo Tauile". Nessa época, este grupo de jovens lideranças que haviam estudado fora do país, introduziam preocupações comunitárias sobre privacidade e liberdade dentro de comunidades epistêmicas da CAPRE, do Serpro e da Associação de Profissionais de Processamento de Dados. Enquanto Tauilie realizou doutorado na The New School nos EUA, Ivan da Costa Marques doutorou-se pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Já Maria Teresa Oliveira estudou em Louvain, na Bélgica. Quando a implementação do Renape foi direcionada ao Serpro, iniciou-se uma crítica interna sobre riscos a direitos fundamentais em revistas especializadas que eram produzidas pela própria empresa pública. Essa era uma época pré-Internet e fóruns virtuais. Portanto, uma das formas de promover discussões relevantes dentro da comunidade de processamento de dados era por meio da revista Dados & Ideias. Foi lá que circularam os primeiros artigos que discutiram a lei sueca de proteção de dados (Datalagen de 1973), as críticas à centralização de dados e assimetrias de poder informacional e comentários sobre novos princípios para conter abusos no tratamento automatizado de dados por sistemas computacionais. Os técnicos responsáveis pela implementação do Renape também iniciaram uma estratégia de desaceleração do projeto a partir de argumentos que pudessem ser vistos como "técnicos" e não propriamente "políticos", como complexidades de arquiteturas de sistemas, problemas de interoperabilidade de dados e problemas de qualidade das bases de dados. Uma pequena comunidade de engenheiros e programadores com ideias liberais iniciou uma estratégia discreta de resistência democrática, "melando tecnicamente" o projeto, na expressão que ouvi de Mario Dias Ripper. Já na esfera pública, Raymundo Faoro, presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, deslanchou uma série de críticas sobre problemas de legitimidade do Registro, seu caráter policialesco e severos riscos à autonomia e dignidade humana. Em uma matéria famosa do Estadão chamada "Um número para cada cidadão", discutiu-se à ameaça à privacidade individual e o "espírito de iniciativa empresarial". A construção de massa crítica que vai culminar no primeiro projeto de lei sobre proteção de dados pessoais no Brasil - o PL 4.365/1977, muito inspirado no modelo de licenciamento escandinavo e nos controles de finalidade - teve início na comunidade ligada ao Seminário sobre Computação na Universidade (SECOMU), criado em 1971 no Rio de Janeiro. Antes da fundação da Sociedade Brasileira da Computação em 1978, o SECOMU era um dos fóruns de encontros e trocas dos membros da emergente comunidade informática no país. Em 1976, pessoas ligadas à SECOMU e à Associação dos Profissionais de Processamento de Dados (APPD) anunciaram ser imperativa uma "ação coletiva" para evitar tentativas de manipulação do trabalho de processamento de dados para fins escusos. Em abril de 1977, um seminário técnico foi realizado e culminou em manifesto assinado por 150 líderes da comunidade informática. Este manifesto defendia a aprovação de uma lei federal para garantir ao cidadão (i) o direito de conhecer e corrigir as informações pessoais suas, contidas nos sistemas de informação, (ii) contabilidade (auditoria) do sistema e segurança contra má utilização das informações, (iii) consentimento toda vez que suas informações sejam utilizadas para fins diversos daqueles inicialmente definidos, (iv) proteção contra interligação de sistemas de informações contendo dados pessoais para fora do país, (v) controle da disseminação de arquivos com dados pessoais. Nota-se aqui um aspecto crucial de nossa história: as articulações da sociedade civil organizada para tentativa de afirmação de novos direitos fundamentais diante das transformações tecnológicas, reduzindo as assimetrias de poder produzidas pela concentração de poder e os riscos constantes de abusos. Fundamentalmente, esta é uma preocupação democrática e de dimensão coletiva, como observou Stefano Rodotà em seu clássico Elaboratori elettronici e controllo sociale. O PL 4.365/1977, do deputado Faria Lima de São Paulo, aprofundou essas recomendações ao propor a instituição de um controle de finalidade para bancos de dados, uma estrutura de fiscalização semelhante à Comissão Nacional de Liberdades Informáticas na França e claros direitos de acesso. O art. 10 do projeto dizia que qualquer cidadão poderia solicitar por escrito que lhe sejam informados os dados pessoais constantes em bancos de dados. No entanto, o órgão fiscalizador poderia impor duas limitações. Primeiro, cobrar pelo direito de acesso. Segundo, não prover informação caso o registro envolvesse infração à Lei de Segurança Nacional. Lembre-se que estamos falando de uma discussão durante o regime militar, em período de acirrada perseguição às lideranças de esquerda no país e de doutrina de segurança nacional. Portanto, são ideias liberais mobilizadas em um contexto autoritário e repressivo. Como argumento em A proteção coletiva dos dados pessoais no Brasil, é neste período histórico que começam a surgir no Brasil aquilo que chamo de "protoprincípios" de proteção de dados pessoais no Brasil. Eles não são tão elaborados como os princípios cristalizados no artigo 6º da LGPD, mas são construções iniciais, mais rudimentares, dos princípios básicos que temos hoje no direito brasileiro. Por exemplo, há um protoprincípio de "livre acesso", hoje concebido como "garantia, aos titulares, de consulta facilitada e gratuita sobre a forma e a duração do tratamento, bem como sobre a integralidade de seus dados pessoais". O direito de acesso era considerado um pilar de lutas na década de 1970 e havia forte influência do exercice du droit d'accès criado na lei francesa (todo cidadão tem direito de interrogar serviços responsáveis pela realizada de tratamento automatizado para saber se o tratamento diz respeito a informações nominativas que lhe digam respeito). A proposta de Faria Lima não qualificava o acesso como livre e gratuito, mas buscava instituir tal direito básico. Inclusive, ele chegou a propor uma Proposta de Emenda Constitucional para garantir o direito de acesso como liberdade informática básica - proposta derrotada no Congresso. Há também, neste período da década de 1970, um protoprincípio de "finalidade", conceitualizado hoje como "realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades". Por forte influência dos FIPPs (1972) e o modelo escandinavo de licenciamento, buscava-se alguma estrutura de controle e supervisão para atrelar certos tratamentos de dados pessoais a certas finalidades, buscando sempre um exame de razoabilidade e compatibilidade para usos secundários de dados - um dilema presente até hoje. Em um segundo texto, explicarei como esses "protoprincípios" são mobilizados em projetos de lei formulados por Cristina Tavares, José Freitas Nobres e José Eudes entre 1978 e 1985. São projetos interessantíssimos, que antecipam discussões que tivemos no Brasil sobre habeas data e sobre direitos de privacidade garantidos na Constituição Federal. O que se nota nesse movimento é uma inseparabilidade entre dimensões individuais e coletivas na origem da proteção de dados pessoais, algo que chamo de "dualidade constitutiva" desta disciplina. Voltarei a esses projetos de lei e este argumento de dualidade em momento oportuno. Por enquanto, deixo o convite a obra lançada e a investigação histórica que ela promove.
O seguro-garantia é apontado como um instrumento contratual auxiliar capaz de assegurar de forma mais satisfatória a gestão de riscos e fomentar a eficiência no cumprimento de obrigações estabelecidas em contratos, destacadamente em contratações públicas de infraestrutura. Muito embora haja previsão legal expressa autorizando a sua adoção em contratações públicas, não há disciplina específica em sede normativa sobre os elementos estruturais desse tipo sui generis de contrato de seguro, a exemplo da ausência de critérios associados ao agravamento do risco. A despeito da ausência de disciplina normativa específica, busca-se no presente ensaio, dividido em duas partes sequenciais, apresentar alguns critérios de interpretação que possibilitem estruturar o contrato de seguro-garantia de forma a possibilitar o cumprimento de sua função promocional.     Os contratos, como regra, geram a legítima expectativa de que as obrigações nele estabelecidas sejam espontaneamente cumpridas de acordo com a forma, prazo e local preestabelecidos1. No entanto, a relação contratual nem sempre observa uma desejável dinâmica linear em direção ao irrestrito e pontual cumprimento das obrigações. Durante o iter contratual, podem surgir inúmeros fatores capazes de acarretar o atraso ou mesmo o inadimplemento definitivo das obrigações, frustrando-se, com isso, os interesses das partes contratantes. Essas intercorrências são especialmente presentes em contratos privados de empreitada e contratações públicas envolvendo a realização de obras, pois são recorrentes as modificações ocorridas em projetos básicos e executivos de engenharia e arquitetura. No âmbito das contratações públicas, há, inclusive, preceito legal expresso autorizando a promoção de alterações unilaterais no contrato pela Administração Pública após a sua formalização, em virtude, dentre outras circunstâncias, de modificações: (i) no projeto ou especificações para melhor adequação técnica a seus objetivos; e, (ii) no valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto2. Esse quadro de modificações e de descumprimento de obrigações contratuais observado em contratos privados de empreitada e, em especial, em contratações de obras públicas e demais arranjos contratuais públicos que podem igualmente pressupor a realização de obras, a exemplo dos contratos de concessão e de parcerias público-privadas, gera, como regra, o atraso na conclusão de obras imprescindíveis à prestação de serviços públicos, tolhendo os indivíduos de uma forma geral da oportunidade de usufruir bens indispensáveis à manutenção das condições necessárias para uma existência digna.    Em termos estritamente econômicos, o não cumprimento tempestivo de obrigações em contratos de empreitada e congêneres públicos pode acarretar a indesejável elevação dos custos associados às obras que constituem o seu objeto e ensejar a ocorrência de danos de diversos matizes. Associe-se a isso, em termos macroeconômicos, o impacto negativo que o não cumprimento de ditas obrigações pode acarretar no desenvolvimento social e econômico3, afetando, por exemplo, a apuração de índices de desemprego e de crescimento econômico. Com objetivo de diagnosticar o universo de contratações públicas impactadas pelo descumprimento de obrigações contratuais, o Tribunal de Contas da União realiza atualmente o contínuo monitoramento de obras paralisadas envolvendo o dispêndio de recursos federais. No âmbito desse trabalho de auditoria, revelou o referido órgão de controle que, no ano de 2023, de 21.007 obras fiscalizadas, 8.603 se encontravam paralisadas, o que representa o preocupante percentual de 41% - quase metade do objeto da fiscalização4. Em tal cenário, o seguro-garantia desponta como um instrumento capaz de mitigar o problema associado ao descumprimento de obrigações contratuais, pois é apto a assegurar de forma mais satisfatória a gestão de riscos e fomentar a eficiência no cumprimento das mencionadas obrigações. Nos termos da norma geral que disciplina as contratações públicas, inclusive, é expressamente proclamado que o seguro-garantia tem por objetivo garantir o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelo contratado5. Não há na legislação brasileira, contudo, disciplina específica sobre os elementos estruturais do contrato de seguro-garantia, a exemplo da ausência de parâmetros associados ao agravamento do risco, existindo apenas previsões normativas sobre a admissibilidade desse tipo de seguro em algumas situações pontuais. É o caso, por exemplo, da lei 6.830/80 que, em seu art.9º, inciso II, prevê a possibilidade de o seguro-garantia ser utilizado para garantir o cumprimento de obrigações resultantes de títulos que são objeto de execuções fiscais. De forma a ampliar a utilização do seguro-garantia para assegurar o cumprimento de obrigações advindas de processos judiciais em termos mais genéricos, o art.835, § 2º, do Código de Processo Civil, prevê que esse seguro se equipara ao dinheiro e à fiança na ordem preferencial de penhora. Para além do objetivo de assegurar o cumprimento de obrigações estabelecidas no âmbito de processos judiciais, a lei 8.666/93, norma geral sobre contratações públicas com vigência até o dia 30 de dezembro de 2023, enumerou o seguro-garantia dentre as garantias que poderão ser exigidas no âmbito dessas contratações. Dito diploma legal prevê que, ao contrário do que ocorre nos processos judiciais em que a garantia pode abranger o valor correspondente à integralidade da obrigação a ser cumprida, o seguro-garantia deve apenas se circunscrever ao percentual de 5% do valor das obrigações contraídas em contratações ordinárias, admitindo-se a elevação para o percentual máximo de 10% para obras, serviços e fornecimentos de grande vulto6. A lei 14.133/21, que revogará a lei 8.666/93 a partir do dia 30 de dezembro de 2023, por sua vez, manteve a previsão de utilização de seguro-garantia nas contratações públicas. E, com o propósito de fomentar ainda mais a utilização desse instrumento, elevou o percentual de cobertura para até 30% nas hipóteses de contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto, assim como autorizou a criação de cláusula contratual de retomada, introduzindo no ordenamento jurídico a obrigação de o segurador assumir a execução do contrato de forma a concluir o seu objeto na hipótese de caracterização de inadimplência do contratado7. Ainda no âmbito das contratações públicas, a lei 8.987/95, que disciplina os contratos de concessão, não apresenta expressamente o seguro-garantia dentre as opções de garantia. A lei 11.079/04, que disciplina os contratos de parceria público-privada, autoriza textualmente a utilização do seguro-garantia para assegurar o cumprimento de obrigações estabelecidas nesses contratos, não dispondo, contudo, sobre os percentuais incidentes sobre os valores envolvidos na contratação, aplicando-se, na hipótese, os percentuais genericamente incidentes sobre as contratações públicas por força do que dispõe o art.186 da lei 14.133/218. No campo das contratações estritamente privadas, não há disciplina legislativa específica sobre o seguro-garantia. O Código Civil, como se sabe, estabelece as diretrizes incidentes sobre os contratos de seguro em seus artigos 757 a 777, a título de disposições gerais, e propõe regramento específico associado a duas categorias distintas: seguro de dano (artigos 778 a 788) e seguro de pessoa (artigos 789 a 802). Na esfera regulamentar, o tema foi inicialmente disciplinado pela Superintendência de Seguros Privados - SUSEP por intermédio da Circular n.º 477/2013, encontrando-se atualmente disciplinado pela circular 662/229. A norma regulamentar objetiva disciplinar conjuntamente as hipóteses de seguro-garantia destinadas às contratações públicas e privadas, valendo-se para tanto de inúmeras regras aplicáveis indistintamente a essa modalidade de seguro, a exemplo do estabelecimento de regras concernentes ao prazo de vigência, hipóteses de modificação, indenização e exclusão de riscos. Tal quadro normativo, no entanto, não é capaz de fornecer critérios objetivos sobre alguns pontos centrais ligados à aplicação do seguro-garantia, notadamente no que se refere às contratações envolvendo obras públicas, impondo-se a investigação da natureza desse instrumento contratual, assim como das características das obrigações que esse instrumento busca assegurar a fim de que haja a sistematização de critérios coerentes de interpretação à luz da legalidade constitucional. O seguro-garantia apresenta uma relação tripartite, nele figurando o tomador, o segurador e o segurado. No seguro-garantia vinculado a contratos privados de empreitada e contratações envolvendo obras públicas, o tomador é o responsável pelo cumprimento das obrigações estabelecidas no contrato principal associadas à construção das obras e também pelo pagamento do prêmio do seguro. O segurado, por sua vez, é o destinatário final das obras especificadas no contrato principal e remunera o tomador como contrapartida pelo desenvolvimento dessas obras.  O objetivo do seguro-garantia nesses contratos é o de mitigar o risco associado ao descumprimento das obrigações contratuais a cargo do tomador, beneficiando-se, com isso, o segurado que tem nessa garantia a possibilidade de não ver comprometida a entrega das obras contratadas, o que se perfaz alternativamente pelo pagamento de indenização pelo segurador ou por intermédio da assunção direta da execução das obrigações pelo próprio segurador. Objetiva também o seguro-garantia gerar incentivos para que as obrigações estabelecidas no contrato principal sejam efetivamente cumpridas. Nesse ponto, o segurador poderá acompanhar a execução contratual, ter livre acesso às instalações físicas em que o contrato é executado, assim como acessar auditorias técnicas e contábeis e requerer esclarecimentos ao responsável técnico pela obra10. O segurador adquire, nesse contexto, um papel de maior protagonismo na contratação principal, exercendo atividades que não lhe são típicas. Passa o segurador a figurar, inclusive, formalmente no contrato principal e eventuais aditivos como interveniente anuente e a praticar, de forma regular durante o curso do contrato, atos materiais tendentes à verificação do cumprimento de obrigações a cargo do segurado, podendo ainda ocorrer, na hipótese de inadimplência, a intervenção direta na execução das obrigações contratuais11. Esse cenário, em princípio, parece dotado de absoluta racionalidade negocial, pois a previsão de pagamento de indenização, a fiscalização permanente do cumprimento das obrigações contratuais e a possibilidade de assunção direta dessas obrigações pelo segurador em caso de inadimplemento pelo segurado, configuram situações aptas a mitigar os riscos associados à realização de obras. O seguro-garantia propiciaria, assim, a redução dos custos de transação nas relações negociais, o que, em última análise, resultaria em uma desejável melhora no ambiente de negócios e o incremento do desenvolvimento econômico no cenário brasileiro12. Contudo, os contratos privados de empreitada e as contratações envolvendo obras públicas apresentam especificidades que nem sempre permitirão que o seguro-garantia cumpra a função de mitigar substancialmente o risco associado ao não cumprimento de obrigações contratuais. Dentre essas especificidades, destacam-se os seguintes fatores observados em contratos dessa natureza: (i) precariedade técnica dos projetos de engenharia e arquitetura; (ii) complexidade de arranjos contratuais em que a realização de obras é apenas um dos itens que configuram o objeto contratual; e, (iii) incompatibilidade com os percentuais legais estabelecidos para o alcance do seguro-garantia. O primeiro fator que se apresenta crítico para a análise das potencialidades do seguro-garantia consiste na constatação de que os projetos de engenharia e arquitetura ensejam, como regra, modificações quantitativas e qualitativas supervenientes13, alterando-se, com isso, o panorama inicial de análise de risco, elemento central na estruturação e precificação do contrato de seguro14. Tal situação se mostra especialmente relevante no âmbito das contratações públicas, pois a Administração pode alterar unilateralmente os contratos de forma significativa sempre que houver modificação do projeto ou das especificações para melhor adequação técnica a seus objetivos e quando for necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto15, oscilando o percentual de acréscimos e supressões de 25 a 50% do valor total da contrato a depender da natureza da obra a ser realizada16. Além disso, parte significativa desses projetos revela algum nível de insuficiência técnica, acarretando, de igual modo, modificações supervenientes nas obrigações contratuais inicialmente estabelecidas. Nas contratações públicas, em particular, a precariedade técnica dos projetos de engenharia e arquitetura se apresenta como fator que merece especial atenção, uma vez que a Administração Pública não possui, como regra, quadros técnicos que permitam a elaboração de projetos de qualidade satisfatória. Some-se a isso a dificuldade que os administradores públicos enfrentam para a especificação do objeto contratual, o que igualmente se reflete na confecção de projetos inadequados e insuficientes. Ditas circunstâncias acarretam não só a modificação das obrigações originariamente pactuadas, como igualmente podem acarretar o atraso no seu cumprimento ou mesmo o integral descumprimento em razão da dificuldade de se adimplir obrigações lastreadas em projetos técnicos inadequados. A título ilustrativo, o Tribunal de Contas da União, ao elaborar auditoria específica sobre obras paralisadas, apurou que, dentre os motivos para as paralisações, sobressai o percentual de 47% associado a projetos básicos deficientes17. O segundo fator crítico relaciona-se à complexidade das obrigações observada em modelos contratuais em que a realização de obras constitui apenas um dos itens que configuram o objeto contratual, a exemplo do que ocorre nos contratos de concessão de serviços públicos precedidos de obras públicas e nos contratos de parceria público-privada. Nesses contratos, há uma ligação estreita entre as diversas obrigações, uma vez que o financiamento é usualmente estruturado em conexão com diversos aspectos do projeto de concessão, não podendo ser tratado de forma isolada e sim em sua totalidade18. Esses contratos pressupõem, mais precisamente, um financiamento estruturado em que o fluxo de caixa gerado pela prestação de serviços é utilizado no pagamento de obrigações financeiras, não havendo, com isso, a possibilidade objetiva de segregação das obrigações associadas à realização de obras e das demais obrigações fixadas no contrato, dentre as quais as de natureza financeira19. E, por fim, o terceiro fator relevante associa-se ao percentual de cobertura do seguro-garantia. Enquanto nas contratações privadas não há limites associados à extensão da garantia, podendo alcançar o valor integral da obrigação a ser cumprida, o seguro-garantia nas contratações públicas deve apenas se circunscrever ao percentual de 5 a 10% do valor das obrigações contraídas em contratações ordinárias, admitindo-se a elevação para o percentual máximo de 30% nas hipóteses de contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto. Os três fatores abordados, que podem inclusive ser observados concomitantemente em um mesmo contrato, são potenciais inibidores do integral êxito do seguro-garantia. No primeiro caso, a precariedade dos projetos pode inviabilizar a assunção do cumprimento específico das obrigações já existentes pelo segurador, pois o projeto assim elaborado pode simplesmente se revelar imprestável, não se justificando a perpetuação de obrigações com base nele estabelecidas. Em apertada síntese, é possível afirmar que a possibilidade de cumprimento específico das obrigações é diretamente relacionada à qualidade dos projetos. No segundo caso, observa-se a dificuldade da segregação das obrigações fixadas no contrato associadas à realização de obras, havendo, assim, impropriedade técnica na sinalização de obrigações específicas a serem assumidas pelo segurador. E, no terceiro caso, a restrição quanto ao limite de cobertura do seguro-garantia pode igualmente dificultar a assunção do cumprimento específico das obrigações já existentes pelo segurador, destacadamente se o inadimplemento ocorrer na fase inicial de execução dos projetos em que, por um lado, a alocação de recursos é realizada de forma mais substancial e, de outro, a parte remanescente ultrapassará o percentual que constitui o teto legal. Em virtude dessas dificuldades quanto ao cumprimento específico de obrigações contratuais pelo segurador, revela-se recomendável que se adote preferencialmente no seguro-garantia a opção indenizatória nos contratos privados de empreitada e nas contratações públicas - em seus mais diversos modelos - envolvendo a realização de obras. Essa opção é, inclusive, a eleita pelo Código Civil ao fixar as diretrizes gerais atinentes ao contrato de seguro, dispondo o art.776, nesse esteio, que, como regra geral, o segurador é obrigado a pagar em dinheiro o prejuízo resultante do risco assumido20. A previsão de assunção do cumprimento de obrigações pelo segurador em caso de inadimplência deve ser estabelecida apenas nas hipóteses em que: (i) seja possível a especificação de forma pormenorizada, segregada e objetiva da obrigação a ser cumprida; (ii) o projeto originário apresentar viabilidade técnica para ser executado continuamente; e, (iii) o remanescente da obra não ultrapassar os valores fixados como limites máximos pela legislação para a cobertura do seguro-garantia. A Parte II do ensaio examinará, na sequência, como fatos supervenientes podem acarretar a própria supressão da garantia nesse tipo de contrato de seguro. ____________        1 Conforme preleciona Clóvis do Couto e Silva, o adimplemento atrai e polariza a obrigação. É o seu fim. Ao discorrer sobre o conceito de obrigação como processo, esclarece o Autor que a relação obrigacional deve ser compreendida como algo que se encadeia e se desdobra em direção ao adimplemento, à satisfação dos interesses do credor. COUTO E SILVA, Clóvis. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p.17. 2 Art.124 da Lei n.º 14.133/2021. O Código Civil também prevê hipóteses de modificação do contrato de empreitada em seus artigos 619, 620 e 621. O art. 619, em particular, prevê a hipótese de modificação em decorrência de alterações no projeto, muito embora a disciplina seja diversa das contratações públicas.  3 Conforme assinala Gilberto Bercovici, é necessária uma política deliberada de desenvolvimento, em que se garanta tanto o desenvolvimento econômico como social, que são interdependentes, não há um sem o outro. BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento. São Paulo: Almedina, 2022, p.126. 4 Relatório de obras paralisadas divulgadas no sítio eletrônico do Tribunal de Contas da União. Disponível em:. Acesso em: 17 set. 2023. 5 Art.97 da Lei n.º 14.133/2021. 6 Art.56, § 2º da Lei n.º 8.666/1993. 7 Art. 99 da Lei n.º 14.133/2021. 8 Art. 186. Aplicam-se as disposições desta Lei subsidiariamente à Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, à Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, e à Lei nº 12.232, de 29 de abril de 2010. 9 Disponível em:. Acesso em: 17 set. 2023. 10 Nesse sentido é o que dispõe o art.102, inciso I, da Lei n.º 14.133/2021 no que se refere às contratações públicas. 11 O já citado art.102, inciso I, da Lei n.º 14.133/2021 estabelece, no âmbito das contratações públicas, que o segurador deverá firmar o contrato, inclusive os aditivos, como interveniente anuente. 12 A compreensão dos custos de transação pode ser sintetizada a partir das contribuições de Ronald Coase sobre o tema. Destaca o Autor que, ao realizar transações de mercado, há custos associados a atos que lhes são inerentes, a exemplo dos atos associados à formação e execução dos contratos, e que esses atos são usualmente extremamente custosos. COASE, Ronald. O problema do custo social. Journal of Law & Economics, Chicago, v. 3, out. 1960. Tradução: Francisco Kümmel F. Alves e Renato Vieira Caovilla. Disponível em:. Acesso em: 4 set. 2023. 13 É de ser aqui evidenciado que nem sempre será uma tarefa fácil delimitar com precisão os traços distintivos entre alterações qualitativas e quantitativas. Não só as alterações qualitativas podem pressupor modificações quantitativas no contrato, como também o incremento demasiado de alterações quantitativas poderá acarretar uma alteração qualitativa do objeto do contrato. 14 O risco é um dos elementos nucleares do contrato de seguro. Conforme sinalizam Miragem e Petersen, "é o estudo da noção de risco, que se apresenta como conceito nuclear da operação e explica sua função socioeconômica, assim como dos aspectos técnicos e operacionais da atividade desenvolvida pelo segurador, que revela, em sua completude, a realidade fática objeto do direito dos seguros, em suas dimensões institucional e material". MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Direito dos seguros. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 41. 15 Art.124 da Lei n.º 14.133/2021. 16 Art. 125 da Lei n.º 14.133/2021. 17 Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2023. 18 Ao discorrer sobre a ideia de aplicação do conceito de totalidade ao direito obrigacional, esclarece Judith Martins-Costa que esse conceito teve por efeito alargar o âmbito conceitual do adimplemento e, por consequência, do inadimplemento. MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil, volume V, tomo II: do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro, Forense, 2003. 19 Conforme preleciona E. R. Yescombe, o financiamento estruturado, ou project finance, é o método empregado para viabilizar a obtenção de financiamento de longo prazo destinado a projetos de grande porte para que, por meio da técnica da "engenharia financeira", o fluxo de caixa gerado pelo próprio projeto seja empregado para pagar os valores levantados via financiamento e garantir o retorno do investimento. Ainda segundo o Autor, depende de uma avaliação detalhada das condições de construção do projeto, dos riscos operacionais e de receita, e da adequada alocação de riscos inerentes ao empreendimento entre investidores, financiadores e outras partes interessadas. YESCOMBE, E. R. Princípios do Project finance. Tradução de Augusto Neves Dal Pozzo. São Paulo: Contracorrente, 2022. 20 Art. 776. O segurador é obrigado a pagar em dinheiro o prejuízo resultante do risco assumido, salvo se convencionada a reposição da coisa. Sobre esse preceito legal, destaca Walter A. Polido a simplicidade desse procedimento para a satisfação do interesse do segurado. Segundo o Autor, não suscita qualquer tipo de dúvida a universalidade do procedimento de pagamento da indenização em dinheiro, haja vista a simplificação operacional que a operação representa. POLIDO, Walter A. Comentários ao art.776 do Código Civil. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. (Org.). Direito dos seguros: comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p.350.
A proposta de reforma do Código Civil de 2002 O Código Civil brasileiro foi promulgado em janeiro de 2002, com vigência a partir de janeiro de 2003. É corrente a afirmação de que o Código já nasceu velho porque resultou do Projeto 634/1975, elaborado pela Comissão coordenada pelo professor Miguel Reale, que tramitava no Congresso Nacional desde 1975. Além disso, passados 20 desde a promulgação, é evidente a necessidade de sua reforma e atualização, em face das importantes transformações ocorridas ao longo desse período de quase 50 anos. Por essas razões, é extremamente oportuna a iniciativa do Senado Federal, por meio do seu presidente, o senador Rodrigo Pacheco, ao criar uma Comissão de Juristas para Revisão e Atualização do Código Civil, formada pelos mais eminentes estudiosos, especialistas em Direito Civil, tendo como presidente o Ministro Luís Felipe Salomão, como vice-presidente o Ministro Marco Aurélio Belizze e como relatores gerais o professor Flávio Tartuce e a professora Rosa de Andrade Nery.1 Em linhas gerais, a reforma consiste em eliminar eventuais inconsistências encontradas no texto legislativo e atualizar o Código em relação aos mais importantes avanços da ciência jurídica e, principalmente, em relação à jurisprudência construída pelos Tribunais Superiores ao longo destes anos. A Comissão está dividida em oito Subcomissões, de acordo com as matérias tratadas no Código: Parte Geral, Obrigações e Responsabilidade Civil, Contratos, Direito das Coisas, Direito das Famílias, Sucessões, Direito Digital e Direito Empresarial. A reforma sistema de responsabilidade civil Um dos capítulos a serem tratados pela Comissão de Revisão e Atualização do Código Civil é aquele atinente à responsabilidade civil. No que se refere especificamente à responsabilidade extracontratual, o Código atual reproduz basicamente a cláusula geral de reparação de danos ex post factum, que remonta ao art. 1.382 do Code Napoleon, de 1804. De moderno, o Código de 2002 trouxe a unificação do conceito de ilícito (art. 186 e 188), como base para a imposição do dever de reparação do dano (art. 927, caput). Ademais, o Código inscreveu uma cláusula de reparação de dano decorrente das atividades de risco (art. 927, parágrafo único). Por essa razão, é imperiosa a necessidade de atualização do sistema de responsabilidade civil, em linha com as importantes transformações ocorridas na vida social e com os desenvolvimentos alcançados pela ciência jurídica em torno do tema. No que se refere às transformações sociais, chama a atenção a ocorrência cada vez mais frequente de danos catastróficos, em grande parte relacionados às mudanças climáticas e a fatores ambientais, mas em grande medida relacionados com as atividades econômicas, que são indispensáveis ao nosso modo de vida contemporâneo, mas realizam forte intervenção no ambiente natural e social, produzindo danos em larga escala.2 De outro lado, a ciência jurídica tem se ocupado do problema dos danos catastróficos, nos campos da responsabilidade civil, do direito ambiental e do direito dos desastres, especialmente com a incorporação dos deveres de prevenção e precaução ao sistema de tratamento de danos. Uma das principais compreensões a respeito dos danos catastróficos é que eles se relacionam com o nosso modo de vida nas sociedades contemporâneas, uma vez que as atividades desempenhadas pelas corporações e pelo poder público se destinam ao atendimento das necessidades das pessoas. Por essa razão, seria impensável cogitar o encerramento da atividade minerária ou da atividade agropecuária, por exemplo, uma vez que essas atividades são indispensáveis ao atendimento das mais diversas necessidades inerentes à vida social. A questão, portanto, é saber como desempenhar tantas atividades, em escala cada vez mais elevada, com o menor impacto socioambiental possível. De outro lado, os danos catastróficos se caracterizam pela gravidade, multiplicidade e irreversibilidade das suas consequências, razão pela qual não se mostra suficiente tratar esse tipo de dano exclusivamente pelo prisma da reparação ex post factum.3 Precisamente por colocar em risco a existência da humanidade e das demais espécies animais, a questão dos danos catastróficos atingiu dimensões humanitárias e despertou a atenção dos organismos internacionais, ensejando a criação da Agência das Nações Unidas de Respostas a Desastres (United Nations Disaster Relief Office - UNDRO), em 1971, com a realização de três Conferências Mundiais sobre Redução de Riscos de Desastres Naturais, em Yokohama (1994), em Hyogo (2005) e em Sendai (2015), quando foi aprovada a denominada "Agenda 2030", com 17 objetivos e 169 metas para o desenvolvimento sustentável (ODS). Os danos catastróficos fazem parte da "Agenda 2030", cujos objetivos 11, 12 e 13 tratam das cidades sustentáveis, do consumo e da produção responsáveis e da ação contra as mudanças climáticas. Todos os Objetivos da Agenda 2030 estão relacionados ao desenvolvimento sustentável, mas os tópicos 11.1 e 13.1 tratam especificamente das catástrofes naturais e desastres, fixando como finalidades: garantir a redução dos riscos de desastres; identificar, avaliar e monitorar os riscos de desastres; empregar conhecimento, inovação e educação para una cultura de segurança e resiliência aos desastres; reduzir os fatores de riscos; fortalecer a preparação para respostas aos desastres. Esse alinhamento do problema dos danos com a temática dos direitos humanos perpassa o valor da dignidade humana, que é um princípio fundamental com assento na Constituição Federal de 1988 e que norteia todo o ordenamento jurídico brasileiro. A essa altura, é de suma relevância trazer para dentro do sistema de responsabilidade civil os deveres de contenção de danos potenciais, além do tradicional dever de reparação dos danos efetivos. A contenção de danos pode ser efetivada por meio dos deveres de prevenção, de precaução e de mitigação. Prevenir a ocorrência de um dano significa atuar positivamente para evitar a ocorrência de um evento que certamente ocorreria se não fossem adotadas as medidas preventivas. Precaver-se contra a ocorrência do dano significa preparar-se para um episódio danoso que conta com alguma probabilidade de ocorrer. Mitigar as consequências de um dano significa atuar positivamente para não agravar a situação danosa já instalada. A prevenção contra danos não é matéria estranha ao nosso ordenamento jurídico, a começar por dispositivos esparsos no Código Civil que impõem dever de adotar medidas para evitar que o dano aconteça ou o agravamento de suas consequências, em determinadas situações (art. 31, art. 96, § 3º, art. 696, art. 1.280). Não será demasiado lembrar que a novel legislação sobre proteção de dados, a denominada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD, impõe aos agentes de tratamento de dados (controlador e operador) uma série de deveres tendentes a evitar a ocorrência de danos para os titulares dos dados pessoais (arts. 46 a 51), sem prejuízo para a reparação dos danos que se efetivarem (art. 42). Ademais, o art. 21, XVIII, da Constituição Federal, assim como o art. 2º da Lei 12.608/2012 dispõe que o poder público deve adotar as medidas necessárias à redução dos riscos de desastres. A oportunidade que se apresenta para a Comissão de Juristas para Revisão e Atualização do Código Civil é de ampliar o alcance do sistema de responsabilidade civil, incorporando a função preventiva e precautória, sem prejuízo para a tradicional função reparatória. Diante das características dos danos catastróficos, os quais se relacionam ao nosso modo de vida e produzem consequências graves e irreversíveis, não se mostra possível tratá-los somente pelo prisma da reparação a posteriori, mas é necessário antecipar-se à sua ocorrência por meio de medidas de prevenção e de precaução. A tutela inibitória substantiva O enfrentamento dos danos potenciais pode se dar por meio de medidas de prevenção ou de precaução, a depender do grau de certeza que envolve a sua ocorrência. Para danos potenciais com elevado grau de certeza, são adotadas medidas de prevenção, sem as quais eles certamente se efetivam. Para danos potenciais com probabilidade de ocorrência, são suficientes as medidas de precaução. É certo que as atividades econômicas envolvem algum grau de risco de produzir danos, consoante o qual se impõe a necessidade de medidas de prevenção ou de precaução. As atividades com baixo grau de risco de danos podem ser tratadas pelo viés da reparação ex post factum, ao passo que aquelas que carregam elevado grau de risco de danos graves e irreversíveis só podem ser tratadas pelo prisma da prevenção e da precaução. A precaução contra danos pode se dar mediante a contratação de seguro de responsabilidade civil (securitização) e a constituição de fundos de reparação de danos (mutualização), em ambos os casos com vista à reparação dos danos que possam acontecer. Já a prevenção deve se efetivar por meio de ações positivas, amparadas pela técnica, com a finalidade de evitar que o dano se concretize.4 Assim, por exemplo, uma empresa de construção civil deve utilizar telas de proteção em volta do edifício em construção, a fim de evitar a queda de resíduos sobre os imóveis vizinhos. A tutela inibitória substantiva consiste na faculdade de exigir que a pessoa natural ou jurídica que desempenhe uma atividade de risco adote medidas de prevenção que, por definição, têm como finalidade evitar a ocorrência de danos.5 Exemplo de tutela inibitória substantiva pode ser encontrado no art. 1.280 do Código Civil, que confere ao proprietário ou possuidor de um imóvel a faculdade de exigir a demolição ou a reparação do prédio vizinho, quando ameace ruína, para evitar a ocorrência de um dano iminente. O próprio art. 20 do Código contempla uma hipótese de tutela inibitória substantiva para fazer cessar a lesão a direitos da personalidade, a fim de evitar a efetivação ou a continuidade de um prejuízo concreto. É importante lembrar que o Código Civil argentino, de 2014, contempla a tutela inibitória substantiva, por meio da denominada ação preventiva, prevista nos art. 1.710 a 1.713 daquele Código.6 A tutela inibitória substantiva não se confunde com o mecanismo previsto no art. 497 do Código de Processo Civil brasileiro, de cunho eminentemente processual, consistente em inibir a prática, a continuação e a reiteração do ato ilícito, com a finalidade de assegurar a efetividade das sentenças judiciais, independentemente da ocorrência de um dano em concreto.7 A tutela inibitória substantiva tem natureza de direito material e visa dar efetividade à função preventiva da responsabilidade civil, sem embargo da tradicional função reparatória, atribuindo a quem se encontre na iminência se sofrer um dano a faculdade de postular uma ordem judicial dirigida a quem esteja a cargo de uma atividade e tenha condições de agir para evitar o resultado danoso.8 Não é de hoje que se sustenta, no âmbito doutrinário, a autonomia dogmática da responsabilidade civil, enquanto sistema de tratamento de danos, envolvendo deveres diversos daquele tradicional dever de reparar os danos causados. Neste momento em que se apresenta a oportunidade de revisar e atualizar o Código Civil brasileiro de 2002, é necessário ampliar o alcance da responsabilidade civil, como sistema de tratamento de danos, para envolver os deveres de prevenção, de precaução e de mitigação dos danos potenciais, além do tradicional dever de reparação dos danos efetivos. Longe de ser uma revolução jurídica, trata-se de sistematizar a disciplina da responsabilidade civil, enquanto instituto jurídico autônomo que tem como objeto o tratamento de danos potenciais e efetivos, em linha com as necessidades do nosso tempo e do nosso modo de vida nas sociedades contemporâneas.    Referências COMANDÉ, Giovanni. L'assicurazione e la responsabilità civile come strumenti e veicoli del principio di precauzione. In: COMANDÉ, Giovani. Gli strumenti della precauzione: nuovi rischi, assicurazione e responsabilità. Milano: Giuffrè, 2006. LLAMAS POMBO, Eugenio. Prevención y reparación: las dos caras del derecho de daños. In: MORENO MARTÍNEZ, Juan Antonio (coord.). La responsabilidad civil y su problemática actual. Madrid: Dykinson, 2007. LLAMAS POMBO, Eugenio. Reflexiones sobre Derecho de daños: casos y opiniones. Madrid: La Ley, 2010. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção - artigo 497, parágrafo único, CPC/2015. São Paulo: RT, 2015. ROGER-LACAN, Cyril. Spécialité, gravité et anormalité dans la responsabilité sans faute. Revue Française de Droit Administratif, Paris: Ed. Dalloz, p. 333-338, mar./abr. 2012. SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba; Porto: Juruá, 2018. VARELLA, Marcelo Dias (Coord.). Responsabilidade e sociedade do risco/Relatório público considerações gerais. Conselho de Estado da França. Tradução de Michel Abes. Brasília: UniCEUB, 2006. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em: 22 Out. 2023. 2 A respeito das características dos danos catastróficos, confira-se: SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba; Porto: Juruá, 2018, p. 201-214. 3 COMANDÉ, Giovanni. L'assicurazione e la responsabilità civile come strumenti e veicoli del principio di precauzione. In: COMANDÉ, Giovani. Gli strumenti della precauzione: nuovi rischi, assicurazione e responsabilità. Milano: Giuffrè, 2006, p. 42 e 46; ROGER-LACAN, Cyril. Spécialité, gravité et anormalité dans la responsabilité sans faute. Revue Française de Droit Administratif, Paris: Ed. Dalloz, p. 333-338, mar./abr. 2012. p. 336. 4 VARELLA, Marcelo Dias (Coord.). Responsabilidade e sociedade do risco/Relatório público considerações gerais. Conselho de Estado da França. Tradução de Michel Abes. Brasília: UniCEUB, 2006, p. 68-72. 5 Segundo Llamas Pombo, "podemos definir la inhibitoria como una orden o mandato dictado por la autoridad  judicial, a petición de quien tiene fundado temor de sufrir un daño, o de que se produzca la repetición, continuación o agravamiento de un daño ya sufrido, y que va dirigido al sujeto que se encuentra en condiciones de evitar tal resultado dañoso, mediante la realización de una determinada conducta preventiva, o la abstención de la actividad generatriz de tal resultado (LLAMAS POMBO, Eugenio. Prevención y reparación: las dos caras del derecho de daños. In: MORENO MARTÍNEZ, Juan Antonio (coord.). La responsabilidad civil y su problemática actual. Madrid: Dykinson, 2007, p. 31. Ver também: LLAMAS POMBO, Eugenio. Reflexiones sobre Derecho de daños: casos y opiniones. Madrid: La Ley, 2010, p. 39-41.   6 ARTÍCULO 1710.- Deber de prevención del daño. Toda persona tiene el deber, en cuanto de ella dependa, de: a. evitar causar un daño no justificado; b. adoptar, de buena fe y conforme a las circunstancias, las medidas razonables para evitar que se produzca un daño, o disminuir su magnitud; si tales medidas evitan o disminuyen la magnitud de un daño del cual un tercero sería responsable, tiene derecho a que éste le reembolse el valor de los gastos en que incurrió, conforme a las reglas del enriquecimiento sin causa; c. no agravar el daño, si ya se produjo. ARTÍCULO 1711.- Acción preventiva. La acción preventiva procede cuando una acción u omisión antijurídica hace previsible la producción de un daño, su continuación o agravamiento. No es exigible la concurrencia de ningún factor de atribución. ARTÍCULO 1712.- Legitimación. Están legitimados para reclamar quienes acreditan un interés razonable en la prevención del daño. ARTÍCULO 1713.- Sentencia. La sentencia que admite la acción preventiva debe disponer, a pedido de parte o de oficio, en forma definitiva o provisoria, obligaciones de dar, hacer o no hacer, según corresponda; debe ponderar los criterios de menor restricción posible y de medio más idóneo para asegurar la eficacia en la obtención de la finalidad. 7 De acordo com Marinoni, "Quando se pensa apenas em direito à prevenção como fundamento da tutela inibitória, não se toma em consideração o mais importante, ou seja, o fundamento da tutela contra o ilícito. A tutela jurisdicional é imprescindível para inibir a prática do ato contrário ao direito e para remover os efeitos concretos derivados da ação ilícita. Num caso e no outro a tutela jurisdicional atua como norma que pode ser violada ou já foi violada. O verdadeiro fundamento das tutelas jurisdicionais inibitória e de remoção, assim, é o direito à tutela do direito" (MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção - artigo 497, parágrafo único, CPC/2015. São Paulo: RT, 2015, p. 60).  8 LLAMAS POMBO, Eugenio. Prevención y reparación: las dos caras del derecho de daños. In: MORENO MARTÍNEZ, Juan Antonio (coord.). La responsabilidad civil y su problemática actual. Madrid: Dykinson, 2007, p. 31; LLAMAS POMBO, Eugenio. Reflexiones sobre Derecho de daños: casos y opiniones. Madrid: La Ley, 2010, p. 39-41.  
Atualmente, navegar no oceano de tecnologias emergentes na área da saúde requer mais do que a bússola da lei; é preciso a sensibilidade dos operadores do Direito e da Medicina para compreenderem a profundidade das transformações em curso na relação médico-paciente. É um mergulho num território ainda pouco explorado, onde o escalonamento de riscos é a âncora que mantém a autonomia do paciente como alicerce, sem se descuidar da ressignificação necessária do "dever de informação" e do "consentimento informado". Neste breve texto, propõe-se uma jornada por essas águas, onde o direito, a ética e a sensibilidade se entrelaçam, a fim de conduzir o leitor e a leitora à reflexão sobre "o que informar" e "como informar" o paciente, sobretudo quando estiver envolvido algum recurso tecnológico. Nas últimas décadas, doutrina e jurisprudência brasileiras vêm se firmando no sentido de que não será considerado válido o consentimento genérico (blanket consent) ou por meio de formulário padronizado, necessitando ser claramente individualizado.1-2 O consentimento deficientemente prestado acarreta a presunção de que o ato médico se realizou sem a aquiescência do enfermo.3 O inadimplemento do dever do médico de informar conduz à obrigação de indenizar. Para que se caracterize a responsabilidade civil pela falha na obtenção do consentimento, é preciso ser estabelecida a relação entre a falta de informação (ou incorreta) e o prejuízo final.4 O dano provém de um risco acerca do qual deveria ter sido avisado, para assim o enfermo deliberar sobre a aceitação ou não de determinado tratamento, por exemplo. Na prática, o mais dificultoso será determinar a exata medida da informação devida, ou seja, os benefícios, as alternativas terapêuticas e, especialmente, quais os riscos a serem objeto da informação prestada. Diante disso, é essencial a ponderação sobre o escalonamento de riscos e os níveis de complexidade do atendimento no contexto do consentimento à atuação médica. Como adverte Miguel Kfouri Neto: "quanto mais grave o risco, mais agudo o dever de informar e obter o consentimento plenamente esclarecido do paciente".5 Por meio da denominada "Teoria dos Riscos Significativos", o médico possui a obrigação de informar e explicar ao paciente a respeito dos riscos que o profissional da Medicina sabe ou deveria saber que são importantes e pertinentes, para o homem médio colocado nas mesmas circunstâncias. O risco será considerado significativo em razão de quatro (4) critérios: 1º) necessidade terapêutica da intervenção; 2º) em razão da sua frequência (estatística); 3º) de acordo com a sua gravidade; 4º) conforme as características/comportamento do paciente.6 Esses critérios são aferidos da seguinte forma, segundo Judith Martins-Costa: "(a) o fator da 'necessidade terapêutica' segue a equação: 'quanto mais necessária for a intervenção, mais flexível pode ser a informação'; (b) no fator 'frequência de risco' a equação é: 'quanto mais frequente for a realização do risco, maior a informação'; (c) o critério referente à 'gravidade' indica: a gravidade de um risco, mesmo não frequente, conduz ao dever de comunicação. Os riscos menos graves não precisam ser informados'"7 Sobre os riscos com frequência significativa e os estatisticamente insignificantes, leciona Flaviana Rampazzo: "Os riscos com frequência significativa devem ser informados ao paciente, e nos de ocorrência insignificante, o dever de informação pode ser atenuado, embora riscos típicos médios ou graves, que são específicos de uma intervenção, de um tratamento ou da omissão de providências, devam ser repassados, mesmo quando forem estatisticamente insignificantes (por exemplo, o risco de tetraplegia em cirurgia de coluna, o risco de reversão espontânea de dutos após uma vasectomia) ou quando a sua ocorrência puder causar elevado prejuízo ao paciente, em suas diferentes dimensões (psíquicas, físicas, sociais, familiares, religiosas, laborais etc.)".8 Com apoio na Teoria dos Riscos Significativos que, recentemente, na minha atuação como assessora de Desembargador no TJPR, auxiliei em dois processos nos quais o tribunal considerou que, em ambos os casos, o médico não indicou um dos riscos mais comuns em determinada intervenção cirúrgica - e este risco, de natureza grave, veio a se concretizar. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi considerado inválido e o profissional condenado por violação ao dever de informação.9 Em um dos julgados,10 o paciente se submeteu à cirurgia de catara e algumas complicações decorrentes do procedimento levaram à sua cegueira. O TCLE não indicava os riscos intrínsecos ao procedimento cirúrgico para tratar a doença, dentre eles complicações que poderiam acarretar a cegueira, tal como a "ruptura de cápsula posterior". Embora seja rara de ocorrer, variando de 1,8 a 10,3%, a questão é que se trata da complicação mais frequente nestas cirurgias, de acordo com a literatura médica - e assim afirmou o próprio médico -, além de possuir natureza grave. Assim, foi reformada a sentença, para o fim de reconhecer a violação ao dever de informação. Outro ponto importante a ser considerado na avaliação do conteúdo da informação prestada é a "novidade do tratamento", pois quanto mais recente for um procedimento terapêutico ou diagnóstico, maior rigor deverá presidir à informação dada ao paciente.11 Nesse sentido, torna-se essencial a ponderação sobre os riscos e informações específicas que precisam ser repassadas/esclarecidas ao paciente quando submetido a cuidado de saúde apoiado em novas tecnologias, tais como cirurgias robóticas e sistemas de Inteligência Artificial. Em 2022, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução n. 2.311, que passou a regulamentar a cirurgia robótica no Brasil. Já no art. 1º, § 2º, indica-se o dever de o médico esclarecer adequadamente o paciente e elaborar um termo de consentimento com benefícios e riscos específicos ao procedimento robótico-assistido. O profissional precisa expor claramente quais as diferenças (benefícios e riscos) na adoção de uma cirurgia robótica em comparação à cirurgia convencional (aberta ou laparoscópica). É também importante a indicação da possibilidade de intercorrências no ato cirúrgico por falha do sistema ou de um instrumento da plataforma robótica, com a consequente transformação da cirurgia assistida por robô para uma convencional (aberta ou laparoscópica) - inclusive com outro médico a comandar o ato cirúrgico, que não aquele previamente acordado com o paciente. Imagine-se que um cirurgião, localizado num hospital em Londres, esteja realizando uma telecirurgia em um paciente no Brasil, no exato momento em que o sistema do hospital inglês sofre algum tipo de interrupção ou falha em seu sistema. Diante disso, o monitor - que passava imagens do sítio cirúrgico do paciente brasileiro - de repente, fica escuro, não sendo mais possível visualizar os movimentos reproduzidos pelo robô no Brasil. Necessariamente, a equipe do hospital brasileiro estará em prontidão, ao lado do paciente e, verificando qualquer falha no sistema ou movimento imprevisível do robô-cirurgião, deverá afastá-lo do paciente e, imediatamente, adotar as condutas emergenciais cabíveis, incluindo a transformação do procedimento cirúrgico em uma cirurgia convencional, sem a assistência do robô. Esse é um exemplo, dentre tantos outros, de que podem ocorrer situações nas quais o procedimento robótico-assistido precisará ser interrompido e substituído por uma cirurgia convencional, realizada pelas mãos de outro médico, sem interferência do aparato tecnológico - e, frise-se: esse risco deve ser informado ao paciente. Ainda, é imprescindível que o enfermo seja informado de que a conversão da cirurgia robótica pode ocasionar cortes maiores no seu corpo e maior tempo sob anestesia, o que gera mais riscos ao paciente. Certa vez, tive acesso ao TCLE de um hospital de SP, feito para pacientes submetidos às cirurgias robóticas naquela instituição. Observei, pela leitura do documento, a sua incompletude quanto ao risco supracitado, de natureza grave. Nessas condições, em eventual litígio, o médico pode vir a ser responsabilizado. A fim de se estabelecer o dever de indenizar, deve-se verificar o nexo causal entre a omissão de informação e o dano. O ofendido precisa demonstrar que o dano (no caso, cortes maiores no seu corpo) provém de um risco acerca do qual deveria ter sido avisado, a fim de deliberar sobre a aceitação ou não do próprio uso do robô para assistir à cirurgia.12 Além disso, tanto na aferição da violação ao dever de informação, bem como no momento posterior de quantificação do dano, é necessário ponderar sobre a época da emissão do consentimento. Nesse sentido, destaca-se recente julgado pelo STJ13 que, ao considerar a concepção de outrora sobre autonomia e consentimento e a substancial modificação da prática clínica nas últimas décadas, reduziu equitativamente o valor da indenização - de 50 para 10 mil reais para cada autor. Confira-se: "(...) não se admite o chamado 'blanket consent', isto é, o consentimento genérico, em que não há individualização das informações prestadas ao paciente, dificultando, assim, o exercício de seu direito fundamental à autodeterminação. (...) embora, atualmente, seja comum a prática de se obter o consentimento livre e informado do paciente, principalmente mediante documento por escrito, cujas informações sobre a terapêutica envolvida são prestadas de forma bastante pormenorizada, sobretudo em casos cirúrgicos, não há como ignorar que a cirurgia em discussão foi realizada em março de 2002, isto é, há mais de 20 anos, época em que não havia, ainda, a prática usual em relação à prestação de informação clara e precisa ao paciente. Nessa linha, fixar uma indenização tomando como base a realidade atual, no tocante à relação médico-paciente, para um fato que ocorreu há duas décadas, não se revela consentâneo com o princípio da razoabilidade." Ao trazer o debate para o caso das cirurgias robóticas, tive recentemente ciência de um caso que o paciente, com câncer de próstata, foi submetido à prostatectomia radical por meio de videolaparoscopia. Como há nervos e tecidos sensíveis ao redor da próstata, na hora que é feita a extirpação, há grande risco destes nervos serem atingidos e ocorrer incontinência urinária e/ou disfunção erétil - e ambos os riscos se concretizaram no paciente em questão. O médico não informou sobre a possibilidade e benefícios da utilização do robô para aquele caso clínico, tendo em vista inúmeros estudos científicos atestando o potencial da tecnologia robótica, devido ao grau elevadíssimo de precisão do robô, o que reduz expressivamente os riscos intrínsecos à prostatectomia radical. Diante disso, o paciente questionava o fato de não ter sido informado sobre todas as alternativas terapêuticas, isto é, a utilização do robô, para tratar de maneira mais adequada o seu quadro clínico.14 Caso essa demanda venha a ser judicializada, caberá ao julgador analisar as circunstâncias existentes ao tempo da emissão do consentimento, especialmente, se na época do procedimento cirúrgico já havia o amplo reconhecimento da técnica robótica pela comunidade médica brasileira. Em caso positivo, a princípio, o profissional poderá ser responsabilizado por violação ao dever de informação. Vale a ressalva de que a ressignificação do direito à informação do paciente, nos moldes apresentados, engloba uma espécie de "padrão ouro no tratamento", razão pela qual deve-se considerar as peculiaridades da situação concreta para aferir a possibilidade de exigir do médico determinada conduta diante de eventual condição precária de trabalho ou, ainda, outras questões relacionadas à própria estrutura da entidade hospitalar onde ocorreu o atendimento. Partindo-se para o contexto de sistemas decisionais automatizados para apoiar as decisões clínicas - diagnóstico, prognóstico ou propostas de tratamento -, em que pese as notáveis benesses do arsenal tecnológico, por outro lado, tem-se constatado os riscos inerentes à tecnologia - entre eles, a natural falibilidade algorítmica, os eventos imprevisíveis decorrentes da autoaprendizagem de máquina e o treinamento do algoritmo a partir de uma base de dados incorretos, incompletos ou inadequados -, que geram potenciais cenários de danos ao paciente. Em recente entrevista com Jessica Hamzelouarchive, professora de tecnologia e regulação da Universidade de Oxford (EUA), levanta-se a preocupação de que à medida que sistemas de IA começam a se infiltrar nos ambientes de assistência médica, podemos retroagir para um cenário de "paternalismo da IA" (AI Paternalism),15 pelo fato de os pacientes não serem informados sobre o envolvimento da tecnologia para apoiar a decisão dos médicos. Contudo, a doutrina vem defendendo que o dever de informação neste cenário, decorrente da boa-fé objetiva contratual, está intimamente relacionado com 2 (dois) princípios éticos próprios da Inteligência Artificial (IA): i) proteger a autonomia humana; e ii) garantir a transparência, explicabilidade e inteligibilidade.16 A transparência informacional deve existir sobre a própria indicação ao enfermo de que ele está diante de um sistema de IA, para que seja facultada a opção de decidir a favor ou contra a interação homem-máquina (princípio ético da autonomia humana).17 Além disso, o médico possui o dever de informar que não apenas utilizou um algoritmo de IA para apoiar a sua avaliação de determinado quadro clínico, como igualmente precisa explicar o funcionamento da tecnologia utilizada, de acordo com o grau de compreensão de cada paciente (princípio ético da transparência, explicabilidade e inteligibilidade), sob pena de ocorrer a denominada opacidade explicativa.18 O médico pode ser responsabilizado diante da falta de divulgação (disclosure) ou esclarecimento a respeito do sistema de IA empregado nos cuidados de saúde.19 A título exemplificativo, trago o caso hipotético que criei em uma recente publicação: "Imagine-se o mencionado exemplo do médico da paciente japonesa que utilizou o Watson for Oncology para apoiar o diagnóstico e proposta de tratamento oncológico. O profissional precisa dizer:  'Olha, Joana, a princípio, o seu quadro clínico indica que você tem um tipo de câncer X, mas tentamos um determinado tratamento quimioterápico sem sucesso. Por isso, Joana, vamos inserir os seus dados no Watson, pois ele fará um cruzamento com um imenso banco de dados e, ao final, pode nos demonstrar um quadro diagnóstico diverso, inclusive trazendo novas propostas de tratamento, classificadas por níveis de confiança. Mas veja Joana, o Watson, apesar de diversos benefícios R e S, tem um grau de falibilidade de X%, e possui outros riscos Y e Z'".20 Em que pese existir divergência doutrinária sobre a extensão do conteúdo da informação que deve ser repassada ao paciente para que o médico cumpra com o seu dever de informação, é essencial ponderar no caso concreto sobre o escalonamento de riscos e, nesse sentido, utilizar a "novidade do tratamento/da tecnologia" como ponto importante a ser considerado na avaliação do conteúdo da informação. Além disso, pela aplicação da Teoria da Alteração das Circunstâncias em decorrência dos reflexos do implemento cada vez maior de novas tecnologias na prática clínica,21 os médicos precisam compreender que o direito à informação adequada engloba ainda o consentimento para o uso do aparato tecnológico, a partir do conhecimento do paciente de seu funcionamento, objetivos, vantagens, custos, riscos e alternativas.22  Assim, há atualmente a exigência de nova interpretação ao princípio da autodeterminação do paciente: saímos do simples direito à informação e caminhamos para uma maior amplitude informacional, ou seja, há um direito à explicação e justificação.23 Como navegadores nesse oceano de possibilidades e desafios impostos por novas tecnologias no setor da saúde, somos lembrados de que, mesmo quando as ondas da inovação parecem agitadas, o equilíbrio entre o direito e a ética aponta o caminho para um novo horizonte, no qual a tecnologia otimiza a atividade médica e reduz a carga de trabalho dos profissionais, ao mesmo tempo permitindo que dediquem mais tempo à construção de um relacionamento sólido e humanizado com seus pacientes, em respeito à sua autonomia, por meio da tomada compartilhada de decisões clínicas. __________ 1 Nesse sentido, o entendimento apresentado em julgamento paradigmático pelo Superior Tribunal de Justiça: STJ, 4ª Turma, REsp nº 1.540.580/DF, rel. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), rel. p/ acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 02 ago. 2018. 2 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 11. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 275. 3 Sobre a anulabilidade do termo de consentimento genérico, cf.: SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no direito médico: validade, interpretação e responsabilidade. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 227-228. 4 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil: responsabilidade civil. v. 3. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 887-939. 5 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 11. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 289. 6 A Teoria dos Riscos Significativos é também aplicada em Portugal, como se observa na obra de André Pereira (PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente. Estudo de direito civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 394, 416). 7 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. Critérios para a sua aplicação. 2. ed. 3. tirag. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 597-598. 8 SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no direito médico: validade, interpretação e responsabilidade. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 227-228. 9 TJPR, Apelações Cíveis nº 0003343-28.2020.8.16.0019 e 0008922-19.2018.8.16.0021. 10 TJPR, 8ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 0008922-19.2018.8.16.0021, rel. Des. Clayton De Albuquerque Maranhão, j. 13.03.2023. 11 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente. Estudo de direito civil. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 437. 12 KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil pelo inadimplemento do dever de informação na cirurgia robótica e telecirurgia: uma abordagem de direito comparado (Estados Unidos, União Europeia e Brasil). In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra; DADALTO, Luciana (coord.). Responsabilidade civil e medicina. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 173-203. 13 STJ, 3ª Turma, REsp nº 1.848.862/RN, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 5 abr. 2022. 14 NOGAROLI; Rafaella. A prática da Medicina centrada na pessoa e o novo modelo de consentimento na cirurgia robótica à luz da Resolução n. 2.311/2022 do CFM. In:  SÁ, Maria de Fátima Freire de; ARAÚJO, Ana Thereza Meirelles Araújo; NOGUEIRA, Roberto Henrique Pôrto; SOUZA, Iara Antunes de (coord.). Direito e Medicina: intersecções científicas. Relação médico-paciente. vol. II. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2022, p. 215-232. 15 HAMZELOU, Jessica. Artificial intelligence is infiltrating health care. We shouldn't let it make all the decisions. MIT Technology Review, 21 abr. 2023. Disponível aqui. Acesso em 24 out. 2023. 16 NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. Thomson Reuters Brasil: São Paulo: 2023, p. 201; 264-271. 17 FERREIRA, Ana Elisabete; PEREIRA, André Dias. Uma ética para a medicina pós-humana: propostas ético-jurídicas para a mediação das relações entre humanos e robôs na saúde. In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana (coord.). Responsabilidade civil e medicina. Indaiatuba: São Paulo, 2020, p. 1-19. 18 NOGAROLI, Rafaella; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Tripla dimensão semântica da opacidade algorítmica no consentimento e na responsabilidade civil médica. Migalhas de Responsabilidade Civil, 17 jun. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 24 out. 2023. 19 NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. Thomson Reuters Brasil: São Paulo: 2023, p. 264-271. 20 NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. Thomson Reuters Brasil: São Paulo: 2023, p. 270. 21 NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. Thomson Reuters Brasil: São Paulo: 2023, p. 262; 283. 22 NOGAROLI, Rafaella; DANTAS, Eduardo. Consentimento informado do paciente frente às novas tecnologias da saúde (telemedicina, cirurgia robótica e inteligência artificial). Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, n. 13, ano 17, p. 25-63, jan./jun. 2020. 23 NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. Thomson Reuters Brasil: São Paulo: 2023, p. 205; 293.
A utilização de sistemas automatizados, que dispensam a participação ou revisão humana (human in the loop), se tornou uma tendência irrefreável. Isso tem levado à implementação de novas tecnologias na telemedicina, permitindo a realização de atendimentos remotos, encurtando distâncias geográficas e melhorando a celeridade dos serviços prestados na área da saúde. Embora a automatização de atendimentos tenha vantagens elogiáveis, como a realização de atendimentos remotos síncronos, via ferramentas de videoconferência e webconferência, substituir profissionais humanos por máquinas noutros contextos pode levar a situações que acirram riscos e elevam a possibilidade de danos aos pacientes1. Por isso, a regulamentação da inteligência artificial tornou-se uma demanda urgente, pois os sistemas algorítmicos são os mais desejados para a otimização de rotinas dessa estirpe, especialmente nos atendimentos e consultas iniciais, que podem ser compreendidos pelo conceito de "teletriagem", definido pelo Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução n. 2.314/2022, como "o ato realizado por um médico, com avaliação dos sintomas do paciente, a distância, para regulação ambulatorial ou hospitalar, com definição e direcionamento do paciente ao tipo adequado de assistência que necessita ou a um especialista" (art. 11). Claramente, exige-se a participação humana para a realização do ato, o que evidencia a ilegalidade de tentativas de automatização da triagem inicial de pacientes por sistemas automatizados de interação por mensagens de texto (os famigerados chatbots). Fato é que, embora a telemedicina e a telessaúde não sejam assuntos absolutamente novos2, já se busca a reestruturação dogmática de suas premissas para permitir maior aproximação entre médicos e pacientes, utilizando-se da mobile health (mHealth) e da conexão 5G, bem como da ampliação do acesso a smartphones e da Internet das Coisas3. No Brasil, a Resolução CFM nº 1.643/2002 definiu e disciplinou a telemedicina. Esta norma, até mesmo pela época em que foi editada, quando a realidade tecnológica era diversa, se mostrava vaga e genérica. Posteriormente, o CFM regulamentou a matéria na resolução nº 2.227/2018, entretanto, esta foi revogada poucos dias após a sua publicação. Finalmente, em 05/05/2022, o CFM publicou a Resolução nº 2.314/2022 e reacendeu o debate sobre os desafios do atendimento remoto. Com a pandemia de Covid-19, novos desafios surgiram, e o distanciamento social fez com que aumentassem os atendimentos remotos, ainda que de forma relutante e contrariando as expectativas dos profissionais de saúde4. A utilização de smartphones para teleconsultas permite ao paciente "ver" o profissional que o atende, ainda que por vídeo, aproximando mais médicos e pacientes5. Cenário bastante diverso é o da automatização completa do atendimento de saúde. Isso porque se deve levar em conta as diferenças culturais de cada coletividade e as particularidades de cada paciente para garantir que sistemas de IA sejam utilizados de maneira ética e responsável na prestação de serviços de saúde. A inteligência artificial não deve substituir a atenção médica humana, mas sim complementá-la, possibilitando o acesso aos serviços de saúde em locais remotos e a otimização de recursos para atendimento mais ágil e eficiente. A definição de teletriagem, conforme estabelecida no já transcrito artigo 11 da Resolução n. 2.314/2022 do CFM, caracteriza-se como um ato médico que envolve a avaliação remota dos sintomas apresentados pelo paciente. Nesse contexto, a avaliação é conduzida por um médico, permitindo que a análise dos sintomas seja realizada à distância. O principal objetivo desse procedimento é direcionar o paciente para o tipo de assistência adequada, seja ela ambulatorial ou hospitalar, e identificar a necessidade de encaminhamento a um especialista. É essencial destacar que a teletriagem médica não deve ser confundida com uma consulta médica tradicional. Através desse processo, o médico realiza uma avaliação preliminar dos sintomas e da gravidade do caso, fornecendo uma impressão diagnóstica perfunctória. Portanto, é imperativo que o profissional médico ressalte que a avaliação realizada é uma orientação sobre o diagnóstico e a gravidade da situação. A autonomia do médico é um aspecto central nesse processo, permitindo-lhe tomar uma decisão preliminar quanto aos recursos médicos a serem empregados em prol do paciente. Ademais, no contexto da teletriagem médica, é fundamental que o estabelecimento de saúde ou sistema de saúde responsável pelo procedimento ofereça um sistema de regulação adequado para o encaminhamento dos pacientes que estão sob sua responsabilidade. Isso significa que, além da avaliação remota dos sintomas, o sistema deve garantir a efetivação das etapas subsequentes, como o encaminhamento para a assistência adequada e o direcionamento ao especialista quando necessário. Dito isso, mister anotar que a tutela da saúde apresenta contornos próprios e inegavelmente desafiadores no contexto da proteção de dados pessoais. Isso porque os dados relativos à saúde são considerados sensíveis pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - lei 13.709/2018 (art. 5º, inc. II), mas, embora haja base legal que lhes é especialmente direcionada (art. 11, II, "f", da LGPD), por vezes, será o consentimento a melhor opção para o seu tratamento6. Fato é que a telemedicina como um todo passou a contemplar a tendência de virtualização dos atendimentos de saúde, sendo robustecida pela automatização, por exemplo pela utilização de chatbots, que é inviável na teletriagem devido à exigência do Conselho Federal de Medicina de que a participação do médico - profissional humano -seja um componente fundamental desse processo. As razões para isso residem na imprescindibilidade da avaliação clínica criteriosa dos sintomas do paciente, a qual requer o julgamento clínico e a expertise que apenas um médico pode proporcionar. Os chatbots, por mais avançados que possam ser em termos de qualidade heurística, carecem da capacidade de compreender nuances complexas, considerar contextos individuais e tomar decisões baseadas em julgamentos médicos embasados e lastreados em conhecimento empírico e padrão de conduta ético. Logo, existem barreiras que devem ser consideradas, como a delimitação de deveres específicos e a responsabilização dos profissionais envolvidos, destacando a importância da confiança nas relações. A pertinência dos princípios da prevenção e precaução é importante para minimizar os riscos inerentes ou potenciais da telemedicina, pois todo "novo dano" acarreta suposições de aceitação social de novas tecnologias não testadas7. De outro lado, a aplicação de novas tecnologias tendentes à automatização de processos que dependem do processamento de grandes acervos de dados deve ser realizada com cuidado, considerando riscos de segurança cibernética e vulnerabilidades decorrente do implemento dessas novas tecnologias disruptivas8. A confiança nas relações é fundamental e deve ser considerada no desenvolvimento de novas tecnologias. O processamento de linguagem natural é uma habilidade cada vez mais requisitada para sistemas de atendimento automatizado, especialmente em telemedicina. No entanto, a compreensão do contexto de uma frase é um desafio para as máquinas, mesmo para aquelas que utilizam o método "Winograd Schema", desenvolvido na década de 1970. Assistentes pessoais como Siri, Cortana e Alexa operam com "tags", que são palavras-chave selecionadas pelo algoritmo para simplificar o processamento. No entanto, esse sistema não funciona para o "Winograd Schema", que depende de elementos como artigos e pronomes para deduzir o contexto9. Além disso, a riqueza semântica da língua portuguesa e a dicotomia entre gêneros podem tornar a tarefa mais viável em comparação com outros idiomas, como o inglês10. A participação humana (do médico) é indispensável para interpretar os dados fornecidos pelo paciente, compreender as informações nas entrelinhas e realizar avaliações mais aprofundadas quando necessário, pois a Medicina não se limita apenas à identificação de sintomas, mas também envolve a consideração de fatores psicossociais, histórico de saúde e outros elementos que podem não ser capturados adequadamente por sistemas automatizados como os chatbots. Além disso, a boa relação médico-paciente é essencial para estabelecer a fidúcia entre ambos e viabilizar orientações personalizadas que propiciem um ambiente de cuidado holístico, o que não é possível por um chatbot. Somente o médico, com experiência clínica e percepções sensoriais do contato com o paciente, poderá colher e analisar determinados detalhes. Isso representa uma barreira à delegação de certos atendimentos. Logo, embora a inteligência artificial explicável (Explainable AI, ou XAI) esteja em constante evolução, o médico ainda é indispensável para colher e analisar determinados detalhes da situação de saúde do paciente11. A doutrina estrangeira usa o termo "foreseeability" para descrever o elemento de previsibilidade em casos em que a teoria da culpa é aplicada, como na análise do comportamento negligente de um desenvolvedor de um sistema algorítmico. No entanto, já é reconhecido que é necessário ir além para atender à função preventiva da responsabilidade civil em abordagens nas quais o risco conduza à responsabilização objetiva. Portanto, quando se trabalha com algoritmos que são incapazes de assimilar o mundo em toda a sua complexidade, tornando-se propensos a erros, a parametrização de modelos-padrão pode ajudar a conciliar a responsabilidade civil com a nova realidade. Esses modelos-padrão são particularmente importantes devido ao potencial de que dados imprecisos e inadequados contaminem os resultados heurísticos. Isso oferece maior liberdade para o desenvolvimento de métricas autorreguladas para cada tipo de atividade, que podem ser comparadas para determinar a atuação em conformidade, com o risco equivalente aferido para o tipo de atividade algorítmica em questão. Logo, ainda que os chatbots sejam sistemas automatizados amplamente utilizados, seu processamento de linguagem natural ainda é limitado e pode levar a consequências jurídicas em caso de viés decisório na interação com o paciente, especialmente para fins de triagem preliminar12. Por isso, embora sejam úteis para a coleta de dados cadastrais e estruturação de respostas-padrão, não devem ser utilizados para atendimento médico, mesmo de anamnese. Além disso, a utilização desses sistemas para finalidades que pressupõem a aferição de circunstâncias casuísticas é inviável13, pois eles ainda não têm instrumental técnico suficiente para tomar decisões complexas. No futuro, caso esse cenário se modifique, talvez seja possível parametrizar deveres informados relativos ao desenvolvimento de software com o objetivo de sistematizar expectativas e consequências para o adequado implemento desses sistemas, até mesmo na teletriagem. Até lá, porém, a limitação imposta pelo CFM se revela zelosa e adequada, demandando boa curadoria de dados no antecedente (e em todo o processo algorítmico), que também deve ser auditável, para que danos não ocorram, no consequente, por enviesamento algorítmico. __________ 1 Conferir, por todos, SCHAEFER, Fernanda. Uso de healthbots para a triagem de pacientes em unidades públicas de saúde de urgência e emergência: pensar antes de implantar. In: EHRHARDT JR., Marcos; CATALAN, Marcos; NUNES, Cláudia Ribeiro Pereira (coord.). Inteligência artificial e relações privadas: relações existenciais e a proteção da pessoa humana. Belo Horizonte: Fórum, 2023, v. 2, p. 349-368. 2 Sobre o tema, conferir os estudos de: GOGIA, Shashi. Rationale, history, and basics of telehealth. In: GOGIA, Shashi (ed.). Fundamentals of telemedicine and telehealth. Londres: Academic Press/Elsevier, 2020, p. 11-34; YENGAR, Sriram. Mobile health (mHealth). In: GOGIA, Shashi (ed.). Fundamentals of telemedicine and telehealth. Londres: Academic Press/Elsevier, 2020, p. 277-294; JOHN, Oommen. Maintaining and sustaining a telehealth-based ecosystem. In: GOGIA, Shashi (ed.). Fundamentals of telemedicine and telehealth. Londres: Academic Press/Elsevier, 2020, p. 127-144. 3 FONG, Bernard; FONG, A. C. M.; LI, C. K. Telemedicine technologies: Information technologies in Medicine and Telehealth. Nova Jersey: John Wiley & Sons, 2011, p. 171-195. 4 SCHAEFER, Fernanda. Proteção de dados de saúde na sociedade de informação: a busca pelo equilíbrio entre privacidade e interesse social. Curitiba: Juruá, 2010, p. 17. 5 TOPOL, Eric. The patient will see you now: The future of Medicine is in your hands. Nova York: Basic Books, 2015, p. 3-14. 6 FRAJHOF, Isabella Z; MANGETH, Ana Lara. As bases legais para o tratamento de dados pessoais. In: MULHOLLAND, Caitlin (org.). A LGPD e o novo marco normativo no Brasil. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2020, p. 85 et seq. 7 LATIFI, Rifat; DOARN, Charles. Incorporation of telemedicine in disaster management: Beyond the Era of the Covid-19 Pandemic. In: LATIFI, Rifat; DOARN, Charles; MERRELL, Ronald (ed.). Telemedicine, telehealth and telepresence. Cham: Springer, 2021, p. 53. 8 CAVET, Caroline Amadori; SCHULMAN, Gabriel. As violações de dados pessoais na telemedicina: tecnologia, proteção e reparação ao paciente 4.0. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (coord.). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 145-174. 9 Cf. WINOGRAD, Terry. Understanding natural language. Cognitive Psychology, Londres, v. 3, n. 1, p. 1-191, 1972.. 10 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Telemedicina e inteligência artificial: breve panorama de seus principais desafios jurídicos. In: SCHAEFER, Fernanda; GLITZ, Frederico. (coord.). Telemedicina: desafios éticos e regulatórios. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 145-146. 11 NOGAROLI, Rafaella; NALIN, Paulo. Responsabilidade civil do médico na telemedicina durante a pandemia da Covid-19 no Brasil: a necessidade de um novo olhar para a aferição da culpa médica e da violação do dever de informação. In: PINHO, Anna (coord.). Discussões sobre direito na era digital. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2021, p. 682. Comentam: "(...) dada a complexidade do diagnóstico em consultas realizadas à distância, caso um litígio envolvendo discussão sobre erro médico em telemedicina venha a ser judicializado no Brasil, uma das maiores dificuldades para o magistrado será a análise do padrão diligente de conduta médica exigível no caso concreto". 12 GERKE, Sara. Health AI for good rather than evil? The need for a new regulatory framework for AI-based medical devices. Yale Journal of Health Policy, Law, and Ethics, New Haven, v. 20, n. 2, p. 433-513, 2021, p. 443-444. 13 PAGALLO, Ugo. The laws of robots: Crimes, contracts, and torts. Law, governance and technology series, v. 10. Cham/Heidelberg: Springer, 2013, p. 84.
Sistemas de IA e seus respectivos algoritmos influenciam uma grande parte das decisões públicas e privadas que afetam direta ou indiretamente nosso dia a dia. Algoritmos já são empregados para atividades tão variadas como o auxílio a diagnósticos médicos e a moderação da liberdade de expressão em redes sociais. Esses sistemas também influenciam decisões relevantes como a concessão de crédito, a avaliação de candidatos a emprego, a gestão de serviços estatais, como o acesso a benefícios sociais, o direcionamento da vigilância policial, o controle de fronteiras, e a administração da justiça, podendo afetar, inclusive, a privação de liberdade de indivíduos sujeitos à investigação criminal.  Embora as decisões, predições e recomendações dos algoritmos possam levar a uma maior eficiência e, por vezes, precisão, no desempenho das mais variadas atividades, a aplicação desses sistemas pode violar direitos individuais e coletivos, diante da inerente opacidade de determinados sistemas de IA, e seu potencial de discriminação de grupos já marginalizados socialmente. Tendo em vista os impactos sistêmicos que aplicações de IA e seus respectivos algoritmos podem gerar às relações sociais como um todo, mostra-se urgente o desenvolvimento de mecanismos regulatórios para que os riscos da inteligência artificial e da automatização sejam acessados e potencialmente mitigados, antes que essas tecnologias sejam implementadas e comercializadas. É neste sentido que mecanismos de prestação de contas de sistemas de IA têm sido propostos, sendo a avaliação de impacto algorítmico um destes instrumentos, conforme veremos em seguida. O que é a Avaliação de Impacto Algorítmico (AIA)? A avaliação de impacto algorítmico (AIA) é um instrumento que vem sendo cada vez mais recomendado por acadêmicos e formuladores de políticas públicas, no intuito de estimular uma reflexão sobre as consequências sociais e éticas dos sistemas de IA e promover uma aplicação segura e responsável dessa tecnologia. Embora ainda esteja em estágio inicial de formulação teórica e regulatória, a AIA vem sendo concebida como um instrumento essencial para avaliar previamente os riscos de sistemas algorítmicos aos direitos humanos e, assim, viabilizar uma prestação de contas por parte dos agentes responsáveis por seu desenvolvimento e sua implementação. Muito embora a AIA seja um instrumento regulatório recente, ela tem origem em processos de avaliação de impacto já desenvolvidos em outros campos, como a avaliação de impacto à proteção de dados e a avaliação de impacto ambiental, que também visam avaliar e mitigar, preventivamente, potenciais impactos negativos decorrentes da exploração de atividades de risco. É recomendável, portanto, que iniciativas de regulamentação e implementação prática da AIA possam aprender com os princípios, erros e acertos já verificados nessas áreas. Conforme enunciado por Selbst (2021), iniciativas de regulamentação da AIA devem ter dois objetivos principais: "(1) exigir que as empresas considerem os impactos sociais [de sistemas algorítmicos] antecipadamente e trabalhem para mitigá-los antes do desenvolvimento, e (2) criem documentação de decisões e testes que possam apoiar a aprendizagem de políticas futuras"1. No que se refere ao conteúdo da AIA, relatório desenvolvido pelo Instituto de pesquisa Data & Society (2021) esclarece que ela deve buscar responder três questões principais: "o que um sistema faz; quem pode fazer algo sobre o que o sistema faz; e quem deve tomar decisões sobre o que o sistema pode fazer"2. O objetivo da AIA é, portanto, prover transparência sobre o funcionamento e finalidades do sistema algorítmico, documentar os impactos e medidas de prevenção de danos, e identificar seus responsáveis, viabilizando posterior fiscalização pela autoridade competente e, desejavelmente, pela própria sociedade. Devido ao potencial da AIA em prevenir e mitigar ameaças futuras que sistemas algorítmicos possam causar aos direitos humanos, ela tem sido considerada como um elemento de governança essencial de um modelo de regulação de IA baseado em risco ("risk-based approach"), que vem sendo adotado por diversas jurisdições. A tendência, portanto, parece ser pela crescente inclusão da AIA, tanto em iniciativas regulatórias já em vigor, como é o caso da Directive on Automated Decision-Making (2019), do Canadá3, como em propostas ainda em discussão, como o AI Act, na União Europeia, e um dos projetos de lei (PL) brasileiro que tratam sobre o tema, o PL 2.338/2023, do qual trataremos a seguir.  O  PL 2.338 e o instrumento de avaliação de impacto algorítmico O PL 2.338/2023 é o resultado do trabalho da Comissão de Juristas responsável por subsidiar a elaboração de um substitutivo sobre inteligência artificial no Brasil (CJSUBIA), que foi constituída pelo Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, em fevereiro de 2022. A referida Comissão foi instituída para apresentar um substitutivo ao PL 21/2020, o primeiro projeto de lei no Brasil a propor um Marco Legal da Inteligência Artificial. Este PL, contudo, foi objeto de diversas críticas por parte da comunidade acadêmica e sociedade civil, dentre elas, sobre o seu texto majoritariamente principiológico, sem a definição de deveres e responsabilidades por parte dos fornecedores da tecnologia, e sem previsão de mecanismos fiscalizatórios, sancionatórios, coercitivos, e de governança. Diante da robusta proposta de substitutivo apresentada pela CJUSBIA, fruto do intenso trabalho da Comissão, o Senador Rodrigo Pacheco optou em converter o então substitutivo em um novo projeto de lei, que se tornou o PL 2.338/2023. O texto do referido PL pretendeu desmistificar o pretenso trade-off entre uma regulação que garante e protege direitos ou uma regulação que incentiva o desenvolvimento econômico e a inovação, a partir do estabelecimento de uma abordagem baseada em riscos e em direitos, por meio de regulação assimétrica. Isto é, conforme o nível de risco de um sistema de IA, maior será a carga obrigacional dos agentes regulados. O PL cria, portanto, dois níveis de risco de sistemas de IA: os de risco excessivo e de alto risco, reconhecendo também a existência de um terceiro grupo, de menor risco, não classificado nem como de risco alto nem como de risco excessivo. Dependendo da classificação do nível do risco, são definidas obrigações mais ou menos exigentes para cada um dos sistemas. Enquanto sistemas de risco excessivo são proibidos pelo PL, em consonância com o princípio da precaução, os sistemas de alto risco devem cumprir com obrigações de governança gerais (aplicáveis para todos os sistemas de IA, independentemente do risco) e específicas. Uma das obrigações específicas para estes sistemas de alto risco é justamente a avaliação de impacto algorítmico. Considerando as experiências internacionais em que se verifica o protagonismo da avaliação de impacto como ferramenta de governança e prestação de contas de sistemas de IA,4 o PL 2.338/2023 previu uma seção específica (Seção III do Capítulo IV) para sua procedimentalização mínima, destrinchada ao longo dos artigos 22 ao 26.O primeiro artigo sobre a AIA, o art. 22, estabelece que a sua realização será obrigatória para todos os sistemas que forem considerados de alto risco pela avaliação preliminar. Sobre este ponto é importante ressaltar a diferença entre a avaliação preliminar, indicada no PL em seu artigo 13, e a avaliação de impacto algorítmico prevista no art. 22 e seguintes. A avaliação preliminar se refere à análise prévia que deve ser feita pelo fornecedor antes de um sistema de IA ser colocado em mercado ou em utilização. Esta primeira avaliação visa apenas classificar o seu grau de risco, de acordo com as definições de IA de risco excessivo e alto risco previstas nos arts. 14 e 17, respectivamente, a fim de averiguar quais são as obrigações que deverão ser observadas pelo fornecedor. Como esta avaliação é, a princípio, uma atividade autorrealizada pelos próprios agentes regulados, o § 2º do referido artigo determina o registro e documentação da avaliação preliminar para fins de responsabilização e prestação de contas no caso de o sistema não ser classificado como de risco alto naquele momento. Inclusive, há a possibilidade de a autoridade competente determinar a reclassificação (§3º) e até a imposição de eventuais penalidades em caso de avaliação preliminar fraudulenta, incompleta ou inverídica (§4º). É por meio do compartilhamento da avaliação preliminar e, posteriormente, da AIA com a autoridade competente que esta tomará ciência sobre a existência de um sistema de alto risco (art. 22, parágrafo único). Assim, uma vez que o sistema de IA é enquadrado como de alto risco pela avaliação preliminar, surge a obrigação de elaboração da AIA, procedimentalizada no art. 24. O projeto prevê uma metodologia com, ao menos, quatro etapas, formada por: preparação, cognição do risco, mitigação dos riscos encontrados e monitoramento. O §1º elenca o conteúdo mínimo dessa avaliação, o que inclui uma explicação sobre a lógica de funcionamento do sistema; o registro dos riscos conhecidos e previsíveis à época em que o sistema foi desenvolvido, assim como os riscos que podem razoavelmente dele se esperar (em atenção ao princípio da precaução, reforçado no §2º, do art. 24); benefícios do sistema; probabilidade de consequências adversas (incluindo quantas pessoas poderiam ser afetadas) e gravidade destas consequências adversas. Como a AIA possui uma finalidade não apenas de avaliação, mas de prevenção de danos, o §1º determina que também sejam registradas as medidas de mitigação e testes adotados pelos agentes de inteligência artificial para prevenir riscos, especialmente àqueles relacionados a  "impactos discriminatórios".. Também devem ser registradas a realização de treinamento e ações de conscientização dos riscos associados ao sistema, bem como as medidas de transparência adotadas, no sentido de informar o público sobre esses riscos. Quando um sistema de alto risco gerar impactos irreversíveis ou de difícil reversão, a AIA deverá levar em consideração, também, as evidências incipientes, incompletas ou especulativas, em atenção ao princípio da precaução (§2º, do art. 24). Ou seja, é necessário um esforço adicional em elucubrar tais riscos, e indicar as medidas que foram e podem ser adotadas para mitigá-los. Não sendo possível eliminar ou mitigar de maneira substantiva os riscos identificados na AIA, o uso do sistema de IA será descontinuado (art. 21 § 2º). Caso seja identificado um risco inesperado a direitos de pessoas naturais de um sistema de IA já colocado no mercado, a autoridade competente e as pessoas afetadas deverão ser comunicadas (art. 24, §5º). No que se refere aos atores competentes para a condução da AIA, o projeto determina que ela deverá ser realizada por profissional ou equipe de profissionais que possuam conhecimentos técnicos, científicos e jurídicos, portanto, com perfil multidisciplinar, e com independência funcional (art. 23). A autoridade competente poderá regulamentar que a realização ou auditoria da AIA possa ser realizada por agentes externos ao fornecedor (art. 23, parágrafo único). É curioso que esta seja a única menção do PL sobre a possibilidade de realização de auditoria, considerando que esta tem sido uma medida recorrentemente defendida pela doutrina5 para realizar uma análise mais técnica de sistemas de IA, à luz dos princípios da transparência e prestação de contas. Apesar de o projeto de lei definir metodologia e conteúdo mínimo da AIA, alguns pontos ficam em aberto e dependerão de posterior definição pela autoridade competente, a ser designada pelo Poder Executivo (art. 32). Por exemplo, o §3º do art. 24 determina que a autoridade poderá estabelecer outros critérios e elementos a serem considerados na AIA, incluindo a participação de diferentes grupos sociais afetados, de acordo com o risco e porte econômico do fornecedor. Esse dispositivo chama atenção por duas questões principais: primeiro, a possibilidade da autoridade competente estabelecer obrigações adicionais na AIA para fornecedores de maior porte, aliviando a carga obrigacional dos de menor porte. Segundo, por levantar a necessidade de participação social nos processos de avaliação de impacto, o que, além, de ser uma exigência obrigatória em outras áreas, como na avaliação de impacto ambiental, vem sendo recomendada pela doutrina como uma forma de propiciar um controle social sobre esses sistemas e de permitir uma avaliação mais completa dos impactos, a partir de múltiplas perspectivas. No que tange às atribuições da autoridade competente, ela poderá não apenas estabelecer obrigações adicionais às já previstas no projeto, como também deverá regulamentar os procedimentos e requisitos para a elaboração da AIA (art. 32, VI, b), dentre eles, a periodicidade de atualização das avaliações de impacto (obrigação indicada no § 4º do art. 24 e reforçada pelo §1º do art. 25). Considerando que os sistemas de IA são complexos e com grande potencial evolutivo em curto prazo, é essencial que a AIA seja um processo iterativo contínuo, e realizado ao longo de todo o ciclo de vida dos sistemas, conforme determina o art. 25. De acordo com esse artigo, as atualizações periódicas são necessárias e devem contar com a participação pública, a partir de procedimento de consulta a partes interessadas, ainda que de maneira simplificada (§2º). Causa estranhamento, no entanto, o fato da participação ser exigida pelo projeto apenas na etapa de atualização da AIA, e não desde o início. Tal participação é essencial, especialmente quando o fornecedor do sistema for órgão ou ente do poder público, para que as avaliações tenham um caráter democrático, dotando o seu processo e resultado de legitimidade, permitindo a participação dos grupos potencialmente impactados, já que, em certos contextos, eles podem ser os mais adequados para relatar os  riscos reais do sistema. Ademais, dado o papel das avaliações de impacto enquanto ferramenta de prestação de contas, o PL 2.338 prevê a obrigatoriedade de publicação de um  conteúdo mínimo de suas conclusões, resguardados os segredos industrial e comercial (art. 26). Esta previsão é importante, pois aponta para a possibilidade de que os sistemas de IA de alto risco possam ser também avaliados e fiscalizados por toda a sociedade, que poderão acessar por meio da base de dados pública as informações sobre as IAs de alto risco e suas respectivas AIAs (art. 43). Contudo, a ressalva da proteção aos segredos industrial e comercial pode servir como uma barreira jurídica relevante para justificar que fornecedores deixem de compartilhar informações importantes sobre seus sistemas de IA, mantendo a caixa-preta fechada. A partir da análise realizada neste artigo, pudemos identificar os principais parâmetros indicados pelo PL 2338/2023 para a regulamentação da AIA no Brasil. No entanto, o projeto ainda possui um longo caminho legislativo a trilhar. Assim como ocorreu com outros projetos de lei que tratam de temas ligados à tecnologia, como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e o Marco Civil da Internet, é importante que a proposta ainda seja objeto de debates e consultas públicas para amadurecer o seu conteúdo, além de contemplar outras perspectivas sociais, técnicas e culturais. Tendo em vista a importância da AIA para uma governança precaucionária e responsável da IA, espera-se que o texto futuramente aprovado possa efetivamente institucionalizar esse instrumento, de maneira a garantir uma devida avaliação de riscos, prestação de contas e mitigação de danos por parte dos agentes de inteligência artificial. __________ 1 Tradução livre do original: "An AIA regulation has two main goals: (1) to require firms to consider social impacts early and work to mitigate them before development, and (2) to create documentation of decisions and testing that can support future policy-learning". SELBST, A. D. An Institutional View of Algorithmic Impact Assessments. Harvard Journal of Law & Technology, v. 35, n. 1, 2021. 2 MOSS, Emanuel et. al. Assembling Accountability: Algorithmic Impact Assessment for the Public Interest. Jul. 2021, p. 5. 3 Disponível aqui. 4 Comissão de Juristas responsável por subsidiar elaboração de substitutivo sobre inteligência artificial no Brasil  (CJSUBIA). Relatório Final. Senado Federal, dez. 2022. p. 11 e 12. 5 Ver por todos: PASQUALE, Frank. The Black Box Society. Cambridge: Harvard University Press, 2015.
As tragédias ambientais e humanitárias derivadas das barragens de mineração no Brasil, e especialmente em Minas Gerais, ficarão eternamente tracejadas na história, no Direito, na sociedade como um todo. Entretanto, o caráter dos desastres ambientais, que se sucedem e se colocam em um patamar múltiplo de risco, leva a um constante risco de gestão e análise. Este risco é justamente o esquecimento. O período de chuvas se aproxima, e a par dos desafios próprios do enfrentamento de vulnerabilidades sociais, técnicas, ambientais, deve-se relembrar e tematizar as vulnerabilidades jurídicas. As vulnerabilidades jurídicas são aquelas que contribuem para fragilidades sistêmicas que comprometem o processo de enfrentamento ao risco de desastres, seja em escala preventiva, seja quanto à resposta dos efeitos em si da ocorrência de situações de colapso ou risco de colapso de barragens de mineração. A sucessão de eventos de desastres, assim como de problemas político-sociais, ameaça de forma constante a densidade da discussão de fortalecimento em si de institutos jurídicos para se fazer frente aos desastres. Em outras palavras, ao se esquecer de continuar a refletir sobre o fortalecimento de institutos jurídicos em face do risco das barragens de mineração, o Brasil compromete negativamente situações que estão ligadas a vulnerabilidades jurídicas. Isso significa a fragilização de mecanismos normativos que contribuiriam seja para a prevenção, seja para a resposta aos desastres ligados a barragens de mineração. No ano de 2022, os Deputados Federais Rogério Correia, Helder Salomão e Padre João apresentaram o PL 2566. O PL visa alterar a lei 9.605/98, lastreando os recursos de multas ambientais decorrentes de desastres para com o próprio processo de resposta em face das situações de risco concretizado. A proposição sem dúvida fortalece o processo de gestão de risco e combate vulnerabilidade jurídica do sistema, a prever que a aplicação de no mínimo 90% (noventa por cento) de recursos oriundos de multa ambiental sejam destinados a fundo de aplicação na região atingida, sem prejuízo da obrigação de reparação integral. O projeto de lei foi apensado ao PL 6370, que trata das destinações gerais de multa ambiental, não tendo sido posto em tramitação posterior. Não há, pelo que se verifica, perspectiva de votação da salutar proposta. No ano de 2023, o Deputado Federal Pedro Aihara apresentou o PL 1425/23. O PL visa à adoção de medidas de impulso para que a gestão e análise de riscos, além de fiscalização, sejam efetivamente implementados em municípios que possuam barragens classificadas como de médio e alto risco ou de médio e alto dano potencial associado, ou mesmo ocupações em áreas de alto risco de desastres. Almeja-se que haja eficácia e contundência do Plano de Contingência de Proteção e Defesa Civil. A previsão fortalece a conjuntura de prevenção e gestão de risco, e, portanto, robustece o quadro jurídico de prevenção e controle de desastres. Entretanto, não obstante toda a relevância da previsão, o PL ainda aguarda designação de relatoria e andamentos na Comissão de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional. O resfriamento dos debates parlamentares, sem que sejam os projetos de lei em referência efetivamente levados à análise e votação, é preocupante em termos de redução de vulnerabilidades e contínua assimilação da tarefa protetiva em face da ocorrência de catástrofes. A Estratégia Internacional de Redução de Risco de Desastres - EIRD, elaborada no bojo da Organização das Nações Unidas, visa ao aumento da resiliência em face dos riscos além de fortalecer os planejamentos de redução e mitigação das vulnerabilidades. A configuração normativa brasileira, presente na Lei n. 12.608/12, prevê a gestão de risco com prevenção e mitigação de vulnerabilidades. O artigo 3º da lei, que rege a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil - PNPDEC, estabelece ações necessárias de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação em face dos riscos e da concretização dos desastres. A lei passou por revisão de regulamentação, por meio do decreto 11.219/22 e pelo recente decreto 11.655/23. Este último, datado de 23 de agosto, estabelece que a análise técnica dos requerimentos de transferência de recursos para a execução de ações de prevenção será realizada pela Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. Os parâmetros para execução da análise técnica são o enquadramento da proposta como ação de prevenção em área de risco de desastres; a avaliação da relevância das ameaças e das vulnerabilidades que indiquem o risco de desastres; e o custo global estimado para a execução da proposta. Sem dúvidas, o aprimoramento e previsões expressas de base de transferência de recursos financeiros para gestão de riscos, redução de vulnerabilidades e execução de obras e serviços voltados a prevenir ou mitigar os riscos de desastres é um ganho estrutural. Entretanto, é necessário o fortalecimento de bases jurídicas de gestão do risco e mitigação das conjunturas sistêmicas que contribuem para as situações ligadas à ocorrência de catástrofes, tanto antropogênicas quanto naturais, mas com contribuição humana em seus níveis de efeitos. A estratégia de gestão de riscos no Brasil em grande parte se liga a uma perspectiva financeira de aplicação de recursos. Evidentemente, esta é uma face relevante da gestão de risco. Entretanto, é necessário pensar e refletir sobre as vulnerabilidades jurídicas e culturais que contribuem para com os desastres, por vezes imprimindo mecanismos de desalinhamento entre o princípio do poluidor-pagador, em suas faces econômica e jurídica, e os fatores que contribuem com práticas de fragilização seja da prevenção, seja da reconstrução. Fortalecer os dois elos da gestão de risco significa redução das vulnerabilidades jurídicas em prol da eficiente contenção de catástrofes e seus efeitos. Tematizar a vulnerabilidade jurídica e focar estratégias legislativas para sua redução implica fortalecer políticas públicas nos diversos elos do ciclo dos desastres. No Brasil, o Relatório da 1ª Conferência Nacional de Defesa Civil e Assistência, realizada em 2010, indica uma dupla tipologia de vulnerabilidades. Fala-se em cultura de riscos de desastres e cultura de desastres. A cultura de desastres possui uma abordagem passiva, coliga-se a respostas em face do desastre ocorrido, ao atendimento das vítimas ou atingidos e a medidas de reconstrução. Após treze anos, ainda se mantém forte a cultura desastres no Brasil. É preciso superá-la com a cultura de riscos de desastres. Nesta última, adota-se uma visão amplificada, correlacionando causas e consequências, dimensões normativas e sustentação das políticas públicas em suas diversas aplicações em cada uma das fases da gestão do ciclo. O quadro referenciado pela existência de projetos de lei pendentes de apreciação demonstra a existência de relevantes proposições voltadas para a gestão de riscos e redução de vulnerabilidades, tanto técnicas quanto jurídicas. É necessário que proposições de fortalecimento da cultura de risco de desastres sejam efetivamente integradas ao ordenamento jurídico brasileiro. A análise e o planejamento em face de riscos de desastres devem prosseguir continuamente. O distanciamento de tempo do último desastre é um risco cultural. Risco cultural que remete ao potencial de esquecimento quanto a ameaças e potencialidades de dano. É necessário que Poder Executivo, Poder Legislativo e a própria sociedade mantenham a continuidade de reforço de gestão quanto aos potenciais de vulnerabilidade que se alinham à ocorrência de desastres. Reduzir as vulnerabilidades, seja qual for sua categoria, é reduzir o risco de concretização de um desastre. O Brasil não pode (de novo) se esquecer de suas barragens.
terça-feira, 10 de outubro de 2023

Responsabilidade civil e perda do tempo

Diz-se que Sísifo teria sido o mais perspicaz dos seres humanos: para evitar a pena que lhe havia sido imposta por deuses, teria enganado a morte. Quando finalmente é por ela alcançado, retorna aos vivos trapaceando o deus dos mortos. Por fim, é desmascarado e condenado à realização eterna de trabalho exaustivo e sem sentido1. Dentre os mais variados significados que podemos encontrar nesta fábula, destaca-se, sempre, aquele que talvez seja o mais evidente: opor-se à finitude da vida é essencialmente uma ocupação inócua. Do ponto de vista ontológico, portanto, seria a certeza do fim que nos daria sentido à vida. Como que em novo desafio aos deuses, a civilização ocidental parece ter se imbuído da missão de não só buscar o prolongamento da existência física2, como de garantir a perpetuação de nosso rastro existencial individual. Nesta nova batalha sisifiana, nossa estratégia foi regulatória: delimitamos a morte3, como que para limitá-la e, quando ela finalmente nos abraça, impomo-la a vontade4. Valendo-nos de certo sincretismo, invocamos a antiga mitologia egípcia para firmar que apenas o esquecimento seria o verdadeiro fim5. Somos, afinal de contas, apenas seres humanos. Há, entretanto, um segundo aspecto a considerar: não se trata apenas do fim como ausência de recordação, mas também como checkout de nossa breve hospedagem. Embora saibamos, pelo menos por enquanto, que o tempo não é igual para todos6; reconhecemo-lo como inevitável e finito. E, embora devêssemos levá-lo como aqueles que gazeiam aula7, sem sequer olhar o relógio8, o enfrentamos com a coragem de sonâmbulos9. Talvez esta conclusão revele a esperança em nova promessa prometeica10, mas gosto de pensar que Sísifo talvez tenha mais uma vez logrado os deuses: enquanto é lembrado, vive, assim como burla o tempo enquanto rola a rocha. Sua finitude acabou. Sem esta mesma certeza, contudo, precisamos encarar uma lição póstuma: se "matamos o tempo; o tempo nos enterra"11. Daí porque o Ocidente parece ter adotado, quanto a este segundo aspecto, uma abordagem significativamente diferente: a valorização do tempo12. Esta premissa, contudo, não é apenas filosófica ou poética, mas também jurídica. Seus reflexos podem ser encontrados, por exemplo, nas noções de termo, prescrição, decadência, preclusão e duração do processo. Seria, então, o tempo traduzível como bem jurídico? Poderia ser tutelado em face daqueles terceiros que insistem em esbanjá-lo? Ocorre-me, contudo, que definir o tempo como tal, traria consequências relevantes: da ressignificação da mora à consagração de um potencial dano extrapatrimonial autônomo. Falar, então, em desperdício do tempo pode associar consequências sensíveis à tema que permeia muitas interfaces do Direito Privado. Para exemplificar, bastaria afirmar que o desrespeito à duração razoável do processo para além de violação a direito fundamental13, seria tomada como violação de direito de personalidade, com a constatação do dano in re ipsa14. A dúvida que permeia este ensaio não é completamente despropositada, portanto. Nem sua resposta é simples. Foi neste cenário que me interessou, especialmente, a recentíssima manifestação da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que reafirmava a aplicação de precedentes anteriores daquela mesma Corte no sentido de que não seria qualquer atraso suficiente a justificar o reconhecimento de violação a um direito de personalidade15. Era a discussão que, em alguma medida, já foi visitada pela doutrina e jurisprudência quando debateram a possibilidade de danos extrapatrimoniais a partir do inadimplemento. O caso, em si, envolvia, contudo, situação muito menos complexa: consumidor pretendia ver-se indenizado pelas dificuldades experimentadas com a liberação de imóvel que havia adquirido16. Para apreciar a questão, a Corte, como já havia feito em outros precedentes, invocou a chamada teoria do desvio produtivo do consumidor, para, ao final, distinguir o aborrecimento sentido pelo indivíduo da perda do tempo útil nas relações de consumo. Eis o ponto que me chamava a atenção: a aparente consideração de distintos "tempos"17. Seria o tempo útil conceito distinto do tempo cronológico, então? A chave da resposta estaria na forma como o STJ compreenderia e aplicaria a teoria do desvio produtivo. Daí porque passaria a ser necessária uma pesquisa18 mais ampla para que pudesse extrair qualquer conclusão. De início, constata-se que todos os poucos casos encontrados naquela Corte associam a aplicação da teoria do desvio produtivo a situações que descrevem como perda do "tempo útil". Ocorre que a chamada teoria do desvio produtivo trataria como o dano aquele que decorreria da atribuição maliciosa e danosa de dever/custo próprio do fornecedor ao consumidor: a assunção de deveres e custos operacionais para a solução de falha na prestação do serviço ou serviço que desviariam o consumidor de suas atividades diárias de modo a exonerar o fornecedor (que lucraria indireta e indevidamente com a situação)19. A rigor, portanto, a teoria do desvio produtivo não se refere, propriamente, a hipóteses de responsabilidade civil pela perda do tempo livre ou útil, mas à responsabilidade pelo desvio produtivo, ou seja, desequilíbrio obrigacional causado pela transferência dos 'custos' (em sentido amplo) do fornecedor ao consumidor. Haveria, neste contexto, salvo engano, mais uma análise de uma prática comercial abusiva, focada no desequilíbrio obrigacional, que propriamente a defesa de violação de um direito fundamental ao tempo. Em outros termos, para sua incidência pouco importaria se o consumidor empregasse suas férias ou horário de trabalho para solucionar a falha no serviço ou produto. Para que pudesse ter certeza de que este seria o contexto dos precedentes invocados é que a pesquisa passava de necessária a imprescindível. 1) O precedente inicial sobre o tema teria sido o Recurso Especial n° 1.634.85120 de relatoria da Min. Nancy Andrighi e que envolvia demanda coletiva acerca da interpretação do art. 18, §1°21 do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Nele acabou prevalecendo o entendimento de que não poderia o fornecedor impor ao consumidor o dever de encaminhamento do produto viciado à assistência técnica para que fosse consertado. Neste caso, a teoria do desvio produtivo surgiu como reforço argumentativo a justificar que, muitas vezes, o acesso à assistência técnica é, inclusive, prejudicado. A rigor, portanto, este recurso não abordaria a aplicação da teoria, nem a pretensão indenizatória pela perda do tempo. 2) No Recurso Especial n° 1.737.412-SE22 também de relatoria da Min. Nancy Andrighi, discutiu-se o desrespeito ao tempo máximo de atendimento do consumidor em agência bancária pela perspectiva do chamado dano moral coletivo. Neste caso constatou-se a viabilidade de "proteção à perda do tempo útil do consumidor (...), realizada sob a vertente coletiva, a qual, por possuir finalidades precípuas de sanção, inibição e reparação indireta, permite seja aplicada a teoria do desvio produtivo do consumidor e a responsabilidade civil pela perda do tempo." O fundamento desta pretensão 'indenizatória' seria a ofensa aos deveres anexos da boa-fé "com o nítido intuito de otimizar o lucro em prejuízo da qualidade do serviço". Neste caso, salvo melhor juízo, o bem jurídico tutelado teria sido a perda do tempo qualificada pela transferência dos custos operacionais pelo fornecedor (desvio produtivo) que permitiria o reconhecimento de caráter punitivo à atribuição da responsabilidade civil. 3) No Recurso Especial n° 1.406245-SP23 de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, por outro lado, a discussão envolvia o pedido indenizatório por aquilo que acabou identificado como "dissabores por não ter havido pronta resolução satisfatória, na esfera extrajudicial, obrigando o consumidor a lavrar boletim de ocorrência em repartição policial". Neste caso, a pretensão individual do consumidor acabou sendo afastada por não caracterizar lesão a direito de personalidade. 4) No Recurso Especial n° 1.929.288-TO24, novamente de relatoria da Min. Nancy Andrighi, reconheceu-se a aplicação da teoria do desvio produtivo, em análise sob a perspectiva coletiva, assim como a responsabilidade civil em sentido punitivo. O caso envolvia "a prestação inadequada dos serviços de atendimento em caixas eletrônicos por falta de numerário ou de terminais operantes não se justifica por eventual incremento das ocorrências de furtos ou roubos às agências bancárias ou por qualquer outro incremento da insegurança no desempenho da atividade empresarial, porquanto se trata de risco inerente à atividade desenvolvida pelas instituições financeiras, cujos custos não podem ser transferidos aos consumidores". Mais uma vez a perda do tempo útil surgia qualificada pela transferência de riscos. 5) Por fim, no Recurso Especial n° 2.017.194-SP25, mais uma vez de relatoria da Min. Nancy Andrighi, declara-se que a teoria do desvio produtivo aplicar-se-ia, exclusivamente, às relações de consumo uma vez que se fundaria na vulnerabilidade do consumidor, na violação de deveres associados ao produto e serviço, na violação do dever de informação e na proteção contra práticas abusivas. Além disso, deve-se destacar que o acórdão menciona, expressamente, o que denomina "dano temporal", afirmando que esta tese não estaria em análise, assim como não teria sido apontado no recurso fundamento normativo do Código Civil suficiente para apreciar o desvio produtivo por este viés. A esta altura, então, parecia possível concluir que o STJ não apreciou, ainda, o tema da perda do tempo (dano temporal) como potencial dano autônomo. O único momento em que o tema surge é como esclarecimento de sua exclusão e para advertir o potencial risco de seu reconhecimento (Recurso Especial n° 2.017.194-SP). Por outro lado, a menção dos julgados à perda do "tempo útil" permitiria concluir: 1. Não se aplicar, em princípio, à pretensão individual de consumidor. Nos dois casos analisados pela Terceira Turma (REsp n° 2.232.663-RJ e REsp n° 1.406245-SP), a necessidade de providências extrajudiciais para tentar viabilizar a solução do caso não teriam o condão de violar direito de personalidade. 2. Serviria, em princípio, para fundamentar a pretensão coletiva de tutela do consumidor (Recurso Especial n° 1.737.412-SE e Recurso Especial n° 1.929.288-TO), inclusive quanto ao caráter punitivo de condenação 'indenizatória'. 3. Tratar-se de situação qualificada muito mais como prática comercial abusiva e violação das obrigações decorrentes do princípio da boa-fé objetiva que de tutela de um bem jurídico tempo. É neste contexto, então, que se encaixa o unânime recurso à teoria do desvio produtivo naquela Corte. 4. O STJ não apreciou, ainda, o tema do desvio produtivo sob a perspectiva, exclusiva, de violação de dispositivo do Código Civil (Recurso Especial n° 2.017.194-SP), por isso, por enquanto, o tema é matéria exclusiva de tutela de consumo. Sob a perspectiva, então, do STJ poder-se-ia afirmar que, embora não exista ainda, propriamente, jurisprudência sobre o tema, não seria o tempo reconhecido como bem jurídico autônomo a justificar pretensão indenizatória pelo seu desperdício por terceiros. Este esboço, contudo, não reflete toda a complexidade da questão, nem traz uma resposta definitiva ao questionamento. Para esta conclusão, pareceu-me oportuna a realização de breve pesquisa junto ao E. Tribunal de Justiça de São Paulo. Dela constatou-se que, em tese, o tema já estaria sendo debatido em volume considerável (o verbete consta de 5013 ementas26) e para além das relações de consumo27. Além disso, nos acórdãos analisados foi unânime, nos estreitos limites da amostra, a associação da teoria do desvio produtivo ao exagerado desperdício, não qualificado, de tempo. A indenização correspondente passou, então a ser apreciada a partir do excesso ou anormalidade desta perda28. Como se percebe, trata-se de resposta menos restritiva à aplicação elaborada pelo STJ. No Recurso Especial n° 2.017.194-SP a Terceira Turma advertia que "eventual aplicação da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor exige cautela e parcimônia, sob pena de causar indesejada insegurança jurídica". O seu fundamento principal de aplicação (violação de deveres anexos e prática comercial abusiva), contudo, permite que a mesma solução seja aplicada aos consumidores por equiparação29. Precisamos, portanto, discutir o tema de forma mais aprofundada, sob pena de nos limitarmos a afirmar: "não tenhamos pressa, mas não percamos tempo"30. __________ 1 O leitor deve conhecer várias representações gráficas deste mito, em resumo trata-se do sujeito que rola enorme rocha morro acima, apenas para ver, sempre, frustrado seu objetivo final. O mito inspirou, ainda, o famoso livro de Albert Camus em que introduz a sua filosofia do absurdo. 2 A título de exemplo podemos destacar recentes estudos que classificam a "cura" ao envelhecimento celular como chave para o prolongamento indefinido da vida (YANG, Jae-Hyun; HAYANO, Motoshi; GRIFFIN, Patrick T.; PFENNING, Andreas R.; RAJMAN, Luis A.; SINCLAIR, David A. Sinclair. Loss of epigenetic information as a cause of mammalian aging, disponível aqui). Em defesa deste raciocínio, normalmente se indicam as pesquisas demográficas. No Brasil, por exemplo, ela teria quase dobrado em um século: de 33,7 anos (1900) para 77 anos (2021). 3 Vide, por exemplo, a Resolução CFM n° 2.173 de 2017, disponível aqui. 4 Nesta perspectiva a ampliação do escopo da autonomia privada, do contrato ao testamento e diretivas antecipadas, e a preocupação com a utilização da inteligência artificial para nossa própria recriação, seriam exemplos atuais. Diga-se, que recente utilização publicitária de falecida cantora chegou mesmo a motivar, no Brasil, a apresentação de Projeto de Lei que a regulasse (PLS n° 3592/2023, disponível aqui.). 5 Daí sua preocupação existencial com a perpetuação da memória do falecido, seja pela adoção de elaborados ritos funerários, a permanência do culto dos antepassados, a preservação do corpo e a construção de templos e túmulos com a preocupação de contar a existência daquela pessoa. Proferir o nome do morto, era dar-lhe existência. O desenvolvimento da escrita (neste caso a hieroglífica) parece ser, então, condição desta perpetuidade e, ainda neste sentido, Tutancâmon talvez seja o mais vivo de todos os antigos egípcios.  6 O leitor reconhecerá, em forma excessivamente simplista, o enunciado da Teoria da relatividade de Albert Einstein, segundo a qual o tempo é reconhecido como uma quarta dimensão do espaço-tempo sendo influenciado pela velocidade, espaço percorrido e, claro gravidade. Daí porque o tempo correria mais rápido na Terra que no Espaço. Interessante expressão visual destas conclusões pode ser vista no filme Interestelar disponível em streaming. 7 "A gente deve atravessar a vida como quem está gazeando a escola e não como quem vai para a escola." (QUINTANA, Mário. Caderno H. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2013). 8 "A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são seis horas! Quando se vê, já é sexta-feira! Quando se vê, já é natal. Quando se vê, já terminou o ano. Quando se vê perdemos o amor da nossa vida. Quando se vê passaram 50 anos! Agora é tarde demais para ser reprovado. Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio. Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas. Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo. E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo. Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz. A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará." (QUINTANA, Mário. Antologia poética. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2015). 9 "Vida e morte foram minhas, e eu fui monstruosa, minha coragem foi a de um sonâmbulo que simplesmente vai." (LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998). 10 Segundo a mitologia grega Prometeu, um dos Titãs, furtou o fogo divino para entregá-lo aos seres humanos. Serve de alegoria civilizatória, uma vez que teria sido o conhecimento que nos tornou diferentes do que éramos. Interessante notar que há um ponto de contato entre os dois mitos: Sísifo e Prometeu transgredem e, ao fazê-lo, buscam reinventar o mundo. 11 ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Penguin-Companhia, 2014. Capítulo CXIX. 12 Trata-se, é claro, de simplificação. Se seguirmos a trilha de Ost, falar-se-ia em inexistência do tempo por si, pois categoria social que é institucionalizada pelo Direito e, com ele, mantem relação dialética (OST, François. O tempo do direito. Bauru: Educs, 2005). 13 Art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação." 14 Esta aparentemente não é uma conclusão tão simples, conforme atestam as decisões mais recentes do Supremo Tribunal Federal, como, por exemplo, o Habeas Corpus em que se afirmou que a "razoável duração do processo não pode ser considerada de maneira isolada e descontextualizada das peculiaridades do caso concreto." (Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus n° 198396, Primeira Turma, Relator Min. Luís Roberto Barroso, julgamento em 17 de maio de 2021). 15 Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n° 2.232.663-RJ, Terceira Turma, Relator Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 18 de setembro de 2023. 16 Como o STJ não poderia analisar os fatos que ensejariam tal pretensão indenizatória, a decisão fazia referência à explicação contida no acórdão originalmente recorrido: o dano teria surgido do "fato do consumidor ser exposto à perda de tempo na tentativa de solucionar amigavelmente um problema de responsabilidade do fornecedor e apenas posteriormente descobrir que só obterá uma solução pela via judicial". 17 Para reconhecer o tempo como instituição social, ele o distingue de outras duas experiências humanas: o tempo como fenômeno físico (no contexto deste ensaio, o envelhecimento ou o avançar dos dias, semanas, meses, etc.) e o tempo com experiência individual (a sensação de longa duração, por exemplo, quando enfrentamos uma fila no supermercado, distinta daquela que talvez tenhamos se estivéssemos em lugar mais agradável). 18 Pesquisa realizada em 03/10/2023, sem limitação temporal e com os verbetes "desvio produtivo" (4 casos) e "perda de tempo" (1 caso). 19 DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: um panorama. Direito em movimento. Rio de Janeiro, v. 17, n.1, 1º semestre de 2019, p.15-31. 20 Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n° 1.634.851-RJ, Terceira Turma, Relatora Min. Nancy Andrighi, julgado em 12 de setembro de 2017. 21 Direito de o fornecedor consertar o produto viciado em até 30 dias. 22 Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n° 1.737.412-SE, Terceira Turma, Relatora Min. Nancy Andrighi, julgado em 05 de fevereiro de 2019. 23 Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n° 1.406.245-SP, Quarta Turma, Relator Min. Luis Felipe Salomão, julgamento em 24 de novembro de 2020. 24 Superior Tribunal de Justiça Recurso Especial n° 1.929.288-TO, Terceira Turma, Relatora Min. Nancy Andrighi, julgamento em 22 de fevereiro de 2022. 25 Superior Tribunal de Justiça Recurso Especial n° 2.017.194-SP, Terceira Turma, Relatora Min. Nancy Andrighi, julgamento em 25 de outubro de 2022. 26 A escolha deste Tribunal se deu em razão de dois fundamentos: ser o maior do país em volume de casos, bem como ser um dos dois mais relevantes para a discussão a partir dos casos julgados pelo STJ. A pesquisa conduzida no mesmo dia (03/10/2023) revelou 5013 casos que, de alguma forma, se referem a "desvio produtivo" (exclusivamente na ementa). Seria, portanto, impossível apreciá-los todos. Apenas nos dois primeiros dias de outubro de 2023 foram julgados 10 casos. São eles que adotei como amostra. 27 Como em recurso que tratava de pretensão individual envolvendo situação empresarial em que se reconheceu a aplicação da tese do desvio produtivo (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1065142-56.2022.8.26.0100, 33ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Sá Moreira de Oliveira, julgado em 1º de outubro de 2023). 28 Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1065142-56.2022.8.26.0100, 33ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Sá Moreira de Oliveira, julgado em 1º de outubro de 2023 (não teria havido "o dispêndio excessivo e anormal de tempo"); Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1000897-26.2023.8.26.0577, 28ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Ferreira da Cruz, julgado em 2 de outubro de 2023 (demora na execução obrigacional ultrapassou o limite do aceitável" que teria extrapolado "inocente inadimplemento contratual"); Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1014242-57.2022.8.26.0007, 26ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Carlos Dias Motta, julgado em 2 de outubro de 2023 (o autor "não demonstrou o dispêndio de tempo considerável na solução administrativa do impasse."); Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1024154-86.2022.8.26.0554, 26ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Carlos Dias Motta, julgado em 2 de outubro de 2023 (o autor "despendeu tempo excessivo na tentativa de solução extrajudicial do impasse", tendo recorrido ao Reclame Aqui e ao Procon antes do ajuizamento da ação); Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1002487-65.2022.8.26.0450, 14ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Luis Fernando Camargo de Barros Vidal, julgado em 2 de outubro de 2023 (a autora se viu obrigada a "percorrer percurso desnecessário para quitar a dívida"; Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1005014-57.2022.8.26.0072, 15ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Achile Alesina, julgado em 2 de outubro de 2023 (a autora se viu obrigada a "entrar em contato com os réus para tentativa de solução do problema e lavrar Boletim de Ocorrência"); Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1005546-37.2023.8.26.0576, 11ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Marino Neto, julgado em 2 de outubro de 2023 (não comprovada a "excessiva perda de tempo, para solução da controvérsia"); Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1002314-59.2022.8.26.0153, 24ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Márcio Teixeira Laranjo, julgado em 2 de outubro de 2023 (o consumidor não teria comprovado o "empenho de tempo desmedidamente excessivo, intolerável, pela requerente, na tentativa de solucionar o entrevero"); Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1005407-63.2023.8.26.0066, 34ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Issa Ahmed, julgado em 2 de outubro de 2023 (não se comprovou "ter desperdiçado quantidade desarrazoada de tempo para solução da celeuma") e Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n° 1010012-84.2022.8.26.0002, 34ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. Issa Ahmed, julgado em 2 de outubro de 2023 (a consumidora teve "desperdiçado seu tempo na tentativa de solucionar problemas gerados pelo próprio fornecedor"). 29 Art. 29. Para os fins deste Capítulo [CAPÍTULO V - Das Práticas Comerciais] e do seguinte [CAPÍTULO VI - Da Proteção Contratual/, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas." 30 SARAMAGO, José. A caverna. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
Recentemente eu identifiquei mais de -incríveis - trezentos acessos feitos, em sua maioria, por uma advogada a um processo judicial em que eu e minha sócia defendemos os interesses de 3 dos 4 médicos acusados por erro profissional. Intrigado da razão de tantos acessos, pesquisei no Google quem seria a advogada tão interessada nesta causa e fui surpreendido com seguinte autodescrição da advogada consultora: "atuo na maior lawtech do Brasil, vivendo a fronteira do Direito com a Tecnologia, na missão de conectar todos os cidadãos à justiça". Posteriormente, percebi que as petições relativas a este processo eram disponibilizadas por esta lawtech de forma onerosa, mediante a assinatura de planos. E mais, que os assinantes conseguem obter acesso não apenas à petição original, mas também à petição editável em word com a supressão dos nomes das partes para -  de acordo com a lawtech - promover o reforço argumentativo de suas próprias peças. Ou seja, advogados não integrantes do processo conseguem ter acesso às petições feitas de outros profissionais, remunerando a lawtech, e não há qualquer discussão acerca de eventual violação de direitos dos profissionais da advocacia responsáveis pela construção das peças. Como forma de afastar uma suposta responsabilidade na prática de auferir lucros com o trabalho intelectual de terceiros, a referida lawtech cita, em seu próprio site, a decisão do STJ de 2002 que estabelece que: Por seu caráter utilitário, a petição inicial somente estará protegida pela legislação sobre direito autoral se constituir criação literária, fato negado pelas instâncias ordinárias. Súmula 7/STJ. Recurso não conhecido. (REsp 351.358/DF, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 04/06/2002, DJ 16/09/2002, p. 192) O presente autor sabe que este é o posicionamento do STJ, porém há uma diferença significativa entre o julgado de 2002, quando não havia um sistema de informatização consolidado, e caso aqui discutido de apropriação das petições em escala e disponibilizada mediante remuneração para um terceiro. O julgado de 2002 considerava um contexto fático, histórico, tecnológico e finalístico distinto à realidade atual, visto que antes a busca era utilitarista. Ocorre que tal critério, sob a perspectiva da lawtech, é inexistente, posto que estas empresas usam as petições com o objetivo precípuo de aferir lucro. Não há, neste uso,  solidariedade ou atuação empática; há objetivo de enriquecimento, em larga escala. A verdade é que, ao comercializar peças processuais editáveis de terceiros, a lawtech promove verdadeira captura da atividade intelectual do profissional da advocacia, sistematiza tal entendimento e depois cobra para que outros juristas tenham acesso a tais documentos. Ressalte-se que as petições não estão excluídas da proteção jurídica ao direito autoral. O que houve, em dado momento histórico, foi a exclusão judicial desta proteção em análises casuísticas totalmente diferentes da situação em apreço. É importante, inclusive, notar que a própria reflexão sobre a natureza jurídica da petição judicial e a necessidade de proteção tem evoluído, conforme se observa de decisão da OAB/SP: TRABALHOS FORENSES - CÓPIA DE PETIÇÕES SEM AUTORIZAÇÃO - ANÁLISE EM TESE - INFRAÇÃO ÉTICA Advogado que copia petição de outrem, ipsis literis, sem indicação da fonte e sem autorização, ainda que tácita ou decorrente de comportamentos concludentes, comete a infração ética prevista no art. 34, V, do CED e afronta princípios imemoriais do direito e da moral, quais sejam: honeste vivere, alterum non laedere e suum cuique tribuere. A reprodução parcial, se desbordar os limites análogos aos do direito de citação, também pode, em tese, ensejar o cometimento de infração disciplinar. Precedentes da Primeira Turma: E-2.391/01, E-3.075/04 e E-3.137/2005. Proc. E-4.558/2015 - v.u., em 17/09/2015, do parecer e ementa do Rel. Dr. FÁBIO DE SOUZA RAMACCIOTTI - Rev. Dr. GUILHERME FLORINDO FIGUEIREDO - Presidente em exercício Dr. CLÁUDIO FELIPPE ZALAF Se, antes da virtualização dos processos judiciais, um jurista em consultar o processos patrocinados por outros advogados tinha se deslocar ao fórum, consultar cada uma das varas e fazer um trabalho braçal - uma vez que não desejava fazer o intelectual -, , agora, esta virtualização - tão benéficas às partes, aos profissionais da advocacia, aos membro do Ministério Público, aos serventuários e Magistrados - promove o favorecimento da indolência: todos estão a um click da petição alheia.  Neste contexto, o trabalho intelectual é do profissional da advocacia probo, mas os ganhos são capturados pelas lawtech. Uma socialização às avessas, afinal, sob a pretensa alegação de fomentar e dar robustez às petições elaboradas por seus clientes, as lawtechs disponibilizam de forma onerosa as petições editáveis elaboradas por terceiros. Ora, se as petições são disponibilizadas de forma editável, então não há uma função utilitária, visto que não se propõe a reforçar argumentos ou de consultar a argumentação desenvolvida pelo jurista expropriado. Em verdade, esta disponibilização facilita e permite  que uma peça jurídica - que, por vezes, representa um trabalho intelectual árduo, precedido de horas de estudo e pesquisas - seja simplesmente copiada por um terceiro. E mais, essa facilitação e permissão são feitas por uma lawtech que nada contribuiu para o desenvolvimento da tese e que, ao monetizar em cima do trabalho intelectual alheio, em nada contribui para o exercício ético da advocacia. É importante evidenciar, ainda, que o caso aqui discutido é distinto dos inúmeros bancos de petições disponibilizados gratuitamente por advogados ou mediante remuneração dos próprios autores das peças: enquanto neste o próprio autor da peça decide autonomamente vender seu trabalho intelectual, naquele, um terceiro se apropria do trabalho alheio e aufere ganhos com ele. Exemplificativamente, aceitar esta prática das lawtechs seria a mesma coisa que aceitar que um terceiro poderia "comprar" um banco de petições e depois revende-las a preço módico, tolhendo o próprio autor da peça de ser remunerado por ela. Diante disso, há a necessidade de repensar a natureza jurídica da petição jurídica, notadamente, para proteger o profissional da advocacia dos interesses meramente financistas das lawtechs. Está-se, portanto, diante da flagrante vulnerabilidade imposta pela tecnologia. E, neste contexto, é imperioso que se reconheça a necessidade de remuneração do produto do trabalho/estudo do profissional da advocacia pois, a despeito da advocacia não ser considerada atividade mercantil, os honorários possuem natureza alimentar. Saliente-se, ademais, que o trabalho do profissional da advocacia não pode ser considerado uma mera junção de ideias ou um conjunto de frases soltas. O próprio estatuto da OAB estabelece que: Art.  3º-A.  Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei. Parágrafo único. Considera-se notória especialização o profissional ou a sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato. Ou seja, de acordo com a norma deontológica da advocacia, o trabalho do advogado é técnico e singular, baseado em experiências, estudos, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica e outros requisitos relacionados. Por detrás de todas estas variáveis está o custo financeiro e o tempo de trabalho/vida, fatos ignorados quando uma lawtech simplesmente se apropria e cobra pelo acesso às referidas petições editáveis. Curioso notar que, recentemente, o STJ firmou posicionamento acerca da ilicitude da prática do clipping por desestimular a aquisição dos veículos de comunicação tradicionais (Informativo STJ nº 785, REsp 2.008.122-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, por maioria, julgado em 22/8/2023, DJe 28/8/2023). Analogamente, é possível estender tal entendimento para petições situação aqui analisada, pois a venda - por lawtechs -  de petições editáveis capturadas desestimula a contratação dos reais autores das obras; afinal, estar-se-ia diante de uma atuação parasitária dos usuários das lawtechs que oferecem este serviço pois estes, assim como os consumidores de clippings, objetivam receber um benefício em face do desestímulo do trabalho de outrem. De certa forma, tem-se, aqui, um comportamento típico de um free-rider, ou seja, um caroneiro que obtém ganhos não proporcionais a contribuição formalizada pelo efetivo autor da obra; pois,ois, em resumo, um jurista pode estabelecer que o valor da sua petição é de R$5.000,00 (cinco mil reais), enquanto o caroneiro pagará risíveis R$69,90 para um terceiro e obterá um benefício econômico desproporcional, antiético e imoral. Verifica-se, assim, que a aceitação de tal prática significaria aceitar que a proteção jurídica ao trabalho do advogado - profissional cuja função é, por expressa previsão constitucional,  indispensável à administração da justiça -, está condicionada à submissão destes profissionais ao arbítrio de empresas que se escondem atrás do mote da inovação para perpetuar uma prática milenar do capitalismo selvagem. Em conclusão: não se pretende, aqui, limitar a discussão jurídica ou defender a vedação de que advogados consultem petições de outros profissionais da advocacia. O que se pretende é o reconhecimento de que os contornos específicos trazidos pela exposição concatenada de fatos, doutrina, jurisprudência e do próprio uso da linguagem se traduzem como manifestação autoral cuja apropriação e venda por terceiros se mostra ilícita e caracterizam um enriquecimento sem causa. __________ *Agradeço ao professor Filipe Medon por ter compartilhado algumas de suas reflexões sobre o tema e contribuído, a partir dos debates, do desenvolvimento das ideias trazidas no presente texto.
Tomamos como ponto de partida a noção mais comum de imputabilidade, no sentido de capacidade de compreender o caráter ilícito da conduta que se pratica.1 A imputabilidade, assim, é tratada como elemento subjetivo do ato ilícito, ao lado da culpa, enquanto a antijuridicidade, entendida como contrariedade ao direito, constitui o elemento objetivo do ilícito. A imputabilidade em nosso sistema é atrelada à capacidade jurídica de exercício, que pressupõe a presença de sanidade e de maturidade. Tanto é assim que o Código Civil de 1916 não previu a responsabilidade civil dos sujeitos incapazes, deixando sob a exclusiva e integral responsabilidade de seus pais, tutores e curadores a obrigação de reparar danos causados. Já o Código Civil de 2002, avançando, ainda que de um modo particular, sob a influência de sistemas estrangeiros, previu no artigo 928 a responsabilidade subsidiária dos incapazes, mitigada pela fixação equitativa da indenização como previsto no parágrafo único.2 A doutrina, ainda longe de pacificar o assunto, debruçou-se sobre a nova norma com o intuito de compreender a natureza dessa responsabilidade. Para alguns, seria uma imputação objetiva, por entender ser impossível se cogitar para um sujeito sem discernimento a prática de um ato ilícito culposo, justamente por faltar o elemento subjetivo deste.3 Para outros, seria esta responsabilidade subjetiva, fundada numa culpa objetiva4, que remete à análise do erro de conduta independentemente das condições do sujeito, bastando-lhe o desvio objetivo de padrões/standards gerais de comportamento socialmente esperados em dadas circunstâncias. Foca mais na conduta causadora do dano do que no seu autor. A inimputabilidade, assim, simplesmente deixaria de ser um elemento necessário para a configuração do ato ilícito e não obstaria a própria responsabilidade subjetiva, porque ainda fundada na culpa. Essa concepção, todavia, esbarra nos limites da normativa brasileira, que pressupõe a inimputabilidade como consequência da incapacidade e, justamente por isso, não atribui a obrigação de indenizar diretamente, em primeiro plano, ao sujeito com o status de incapaz, mas apenas subsidiariamente. Se a intenção fosse adotar a culpa objetiva, desatrelada em absoluto da imputabilidade para atribuição geral da obrigação de indenizar nos moldes do sistema francês, não teria justificativa a subsidiariedade da responsabilidade do incapaz.5 Enfim, para o que podemos chamar de terceira corrente, a responsabilidade dos incapazes seria essencialmente fundada na equidade, para justificar a atribuição, mesmo a um sujeito inimputável, da obrigação de reparar, função esta primária da responsabilidade civil, lastreada numa ponderação entre os interesses da vítima e do autor do dano quando este tiver condições patrimoniais de arcar com a indenização sem prejuízo do que lhe é necessário ou necessário para aqueles que dele dependem.6 Em qualquer das três perspectivas, a inimputabilidade aparece indissociavelmente ligada à incapacidade jurídica de exercício. Mas todas chegam ao mesmo lugar, conferindo maior peso à antijuridicidade, para reconhecer a responsabilidade civil subsidiária e com indenização equitativa dos sujeitos incapazes. Claramente a responsabilidade civil destacou-se da imputabilidade, mantida, entretanto, a noção comum, posta por nossa doutrina dominante e jurisprudência, de inimputabilidade como produto da incapacidade, exatamente porque nosso Código Civil não prevê a responsabilização primária dos sujeitos incapazes. Apartamo-nos do sistema francês7 e das jurisdições da common law8, que estabelecem a plena e direta responsabilidade civil dos incapazes, a partir de uma concepção de culpa desprovida de nuances subjetivas, ou seja, da chamada "culpa objetiva". Aproximamo-nos dos sistemas italiano e alemão9, que afastam a responsabilidade em primeiro plano dos sujeitos inimputáveis.10 Mas nestes últimos ordenamentos, porém, não há uma expressa vinculação da inimputabilidade à incapacidade. De uma forma mais veemente, dispõe o Código Civil de Portugal: "Art. 489. 1. Se o acto causador dos danos tiver sido praticado por pessoa não imputável, pode esta, por motivo de equidade, ser condenada a repará-los, total ou parcialmente, desde que não seja possível obter a devida reparação das pessoas a quem incumbe a sua vigilância. 2. A indemnização será, todavia, calculada por forma a não privar a pessoa não imputável dos alimentos necessários, conforme o seu estado e condição, nem dos meios indispensáveis para cumprir os seus deveres legais de alimentos". Não obstante a evidente aproximação com o parágrafo único do artigo 928 do Código Civil Brasileiro, o ordenamento português não se refere ao "incapaz", mas ao "não imputável". Cumpre-nos avaliar se atualmente ainda convém manter a inimputabilidade como reflexo automático da incapacidade no campo da ilicitude ou se cabe advogar uma fratura entre os dois conceitos e, havendo, qual seria sua repercussão e, ainda, se essa repercussão é congruente com a ordem constitucional vigente. Pois bem. Partindo primeiramente da literalidade da própria normativa aplicável, em nenhum momento o Código Civil de 2002 afirmou taxativamente que a pessoa incapaz jamais praticaria ato ilícito ou que seria sempre considerada inimputável. Sob uma perspectiva lógica inversa, tampouco afirmou categoricamente que a pessoa capaz deverá necessariamente sempre responder pelos danos por ela causados. O que se vê, em verdade, é que o código estabelece uma responsabilidade equitativa das pessoas incapazes em geral, implicitamente incluindo (a aí temos um problema) pessoas civilmente imputáveis, por reunirem condições de compreensão do caráter lesivo da conduta que praticam e, por conseguinte, de autodeterminação, em hipóteses que deveriam ser, pensando bem, direcionadas àqueles que efetivamente não tinham essas condições.  Abre-se, assim, margem para uma interpretação favorável à tutela das vítimas, algo que não é apenas conveniente, mas necessário, à luz do princípio constitucional da solidariedade que informa o instituto da responsabilidade civil. Ora, o mundo real comporta a existência de pessoas incapazes, porém civilmente imputáveis e, inversamente, de pessoas civilmente inimputáveis, todavia capazes. A pretendida fratura entre inimputabilidade e capacidade implica que um sujeito capaz pode ser inimputável e, um sujeito incapaz, imputável. Com efeito, a capacidade está no plano da possibilidade de agir juridicamente, do exercício de atos jurídicos, traduzindo um conceito mais estático, ainda que comporte modulação, considerando-se a proporcionalidade da renovada curatela à luz do Estatuto da Pessoa com Deficiência.11 A imputabilidade, por seu turno, associa-se a uma capacidade natural, traduzindo um conceito mais dinâmico e pontual, como real ou concreta aptidão para responder ao tempo do fato danoso, aptidão esta que pressupõe a compreensão do ato lesivo praticado e de suas possíveis consequências. Assim, pode-se afirmar que, em se tratando de sujeitos incapazes, sob curatela, o direito brasileiro denota uma presunção de ausência de condições de autodeterminação no campo do agir danosamente em áreas reservadas à atuação do curador, ou seja, uma presunção de inimputabilidade. Todavia, parece-nos possível romper tal presunção mediante a comprovação de que o autor do dano compreendia, ao tempo do ato, o caráter lesivo de sua conduta, tornando-se diretamente imputável. Ainda que se mostre remota, tem-se aí uma possibilidade de responsabilização solidária do curatelado e do curador, sendo a responsabilidade do primeiro subjetiva, fundada no ato ilícito do artigo 186 do Código Civil, e, a do segundo, objetiva, fundada no artigo 932, inciso II. Abrimos parênteses para lembrar da ressignificação da curatela a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que implica o reconhecimento de campos de maior ou menor autonomia e enseja a modulação da incapacidade jurídica de exercício, o que, na perspectiva funcional, volta-se essencialmente à proteção da própria pessoa curatelada, sobretudo no tocante aos seus interesses patrimoniais, na medida de sua real necessidade.12 Em decorrência disso, nos casos em que há curatela constituída, a pessoa curatelada é presumidamente inimputável por danos decorrentes dos atos que estiverem dentro do campo de atuação do curador, embora ressalvada sua responsabilidade subsidiária e a indenização equitativa do artigo 928. Por outro lado, é o curatelado presumidamente imputável em relação aos atos danosos que não estejam na esfera de atuação do curador.13 A responsabilidade objetiva do curador é, assim, circunscrita à sua zona de atuação nos termos da sentença constitutiva da curatela.14 Enfim, não tendo a pessoa restrição de sua capacidade de exercício, isto é, não estando sob curatela, há uma forçosa presunção de capacidade, inclusive para pessoas com deficiência psicossocial ou intelectual, à luz da Convenção da Organização das Nações Unidas de 2007, da Constituição Federal e do Estatuto da Pessoa com Deficiência, e, consequentemente, uma presunção de imputabilidade. Parece-nos igualmente possível, entretanto, a comprovação de que ao tempo do ato o sujeito não tinha condições de compreender o caráter lesivo de sua conduta, sendo concretamente inimputável, apesar de juridicamente capaz.  A conveniência de se dissociar a imputabilidade da capacidade evidencia-se novamente, neste ponto não apenas para ampliar a tutela das vítimas, mas, igualmente, para reconhecer a autonomia da própria pessoa causadora do dano, impondo-lhe as consequências de suas condutas e escolhas. Isso porque - é sempre importante lembrar - a responsabilidade reafirma a autonomia, valor constitucional. Noutro giro, reconhecer em concreto a inimputabilidade de um sujeito desprovido de condições de autodeterminação quando da prática da conduta danosa, para afastar-lhe o rótulo do ato ilícito e permitir-lhe a aplicação da indenização equitativa do parágrafo único do artigo 928, independentemente de seu status de sujeito juridicamente capaz, é uma medida de justiça. Em conclusão, a proposta é de repensarmos a imputabilidade de um modo dinâmico e sempre em concreto, consistente na reunião de condições de compreensão do caráter lesivo da conduta que se pratica e, por conseguinte, de autodeterminação, que conformam uma autonomia suficiente para que a pessoa seja diretamente responsável por suas próprias escolhas e atos. Afinal, é justamente essa autonomia, e não a capacidade, o que autoriza e justifica a responsabilidade civil. __________ 1 Segundo explicita Guido ALPA, em tradução livre, a imputabilidade "é a capacidade do agente de compreender, estar ciente do que está acontecendo e saber o que fazer, bem como de querer e decidir o comportamento a ser realizado (a chamada capacidade de entender e querer). Esta incapacidade isenta de responsabilidade no sentido de que na ausência de imputabilidade não há ilícito e, portanto, responsabilidade" (ALPA, Guido. La responsabilità civile. Parte generale. Milano: Utet, 2010, p. 147). 2 Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem. 3 Na linha de pensamento de CALIXTO, Marcelo Junqueira, A culpa na responsabilidade civil - estrutura e função, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 49-55, a responsabilidade civil do incapaz seria objetiva, partindo do argumento de que não se poderia imputar um erro de conduta à pessoa desprovida de maturidade ou sanidade. A imputabilidade estaria aí atrelada à culpabilidade e à capacidade. 4 MULHOLLAND, Caitlin, A responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual, in: MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.), Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas - Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de inclusão, Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 645-648, defende que a responsabilidade do incapaz é subjetiva, fundada, assim como a responsabilidade subjetiva das pessoas capazes, no ato ilícito por culpa objetiva, conferindo menor relevância aos aspectos psicológicos dos sujeitos e ao discernimento e maior ênfase no erro de conduta devido à não observância de certos padrões de comportamento, standards cada vez mais concretos, fragmentados e especializados, em lugar da comum abstração do padrão médio de diligência do bonus pater familias ou reasonable man. 5 Entendemos, de fato, que a análise da culpa nos dias atuais é mais objetiva do que subjetiva, o que é reforçado pelo fenômeno denominado de "fragmentação dos modelos de conduta". Tal, porém, não significa que o sistema brasileiro teria adotado o modelo da culpa objetiva desatrelada em absoluto da inimputabilidade. Não se questiona o cabimento da análise objetiva da culpa quando se trata da responsabilidade civil dos sujeitos capazes, que gozam de uma imputabilidade presumida, automática, cuja análise é prescindível e habitualmente ignorada. Porém, no tocante aos sujeitos incapazes, a lógica do sistema brasileiro é inversa, pois a normativa expressa nos artigos 932 e 928 do Código Civil impede a atribuição de responsabilidade em primeiro plano a tais sujeitos, diferentemente do que se verifica nos sistemas francês e inglês. Assim, é forçoso reconhecer que no Brasil, a não ser que tivéssemos uma reforma legislativa, para os sujeitos incapazes estabeleceu-se uma inimputabilidade presumida, automática, que afasta a configuração do ato ilícito, mas que, à vista da antijuridicidade, numa acepção mais ampla, do resultado da conduta, poderá comportar, excepcionalmente, a responsabilidade civil mediante a indenização equitativa do parágrafo único do artigo 928 do Código Civil.      6 Cf. NETTO, Felipe Braga, FARIAS, Cristiano Chaves de, e ROSENVALD, Nelson, Novo tratado de responsabilidade civil, 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2019, p. 730, que sustentam que a responsabilidade do incapaz seria uma espécie de responsabilidade patrimonial, porém subsidiária e mitigada, haja vista que "os menores não cometem ilícitos civis, em virtude de sua inimputabilidade. Podem, contudo, à luz da ordem jurídica vigente, ser civilmente responsáveis por determinados danos. Cabe sempre lembrar que ilicitude civil não se confunde com responsabilidade civil. A incapacidade civil produzirá duas ordens de efeito: (a) atrairá a responsabilidade objetiva dos pais, tutores ou curadores (CC, art. 932, I e II); (b) evidenciará sua própria responsabilidade patrimonial, porém subsidiária e mitigada (CC, art. 928, parágrafo único)". 7 O Código Civil Francês prevê a responsabilidade direta das pessoas incapazes: "Celui qui a causé un dommage à autrui alors qu'il était sous l'empire d'un trouble mental n'en est pas moins obligé à réparation" (artigo 414-3 criado pela lei 2007-308). 8 De acordo com o Restatement third of torts: liability for intentional harm to persons, "a deficiência mental não se leva em conta para se determinar se uma conduta é ou não negligente, a menos que o autor seja um menor" (§ 11, c, 2010). The American Law Institute, disponível em: https://www.ali.org/publications/show/torts-liability-physical-and-emotional-harm/, acesso em: 30 set. 2023. 9 Com efeito, o artigo 2046 do Código Italiano dispõe que "não responde pelas consequências do dano quem não tem capacidade de entender e querer no momento de cometê-lo, a menos que o estado de incapacidade derive de sua própria culpa". E, segundo o parágrafo 827 do BGB, "quem causa um dano a outra pessoa em estado de inconsciência ou sofrendo de uma perturbação mental que lhe impede o livre exercício da vontade, não é responsável por ele". 10 Não obstante declarem a irresponsabilidade da pessoa inimputável e a consequente responsabilidade de seus curadores (ou guardiões, quando menores), estes ordenamentos permitem ao juiz, em atenção à equidade e tendo em conta as circunstâncias concretas das partes, impor ao causador do dano uma excepcional responsabilidade, notadamente quando aqueles sejam insolventes. 11 Conforme o Artigo 84, § 3º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, "A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível". 12 Cf. ABREU, Célia Barbosa. A curatela sob medida: notas interdisciplinares sobre o Estatuto da Pessoa com Deficiência e o novo CPC. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas: Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016; ROSENVALD, Nelson. Curatela. Tratado de direito das famílias. 3. ed. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018; e ALMEIDA, Vitor. A capacidade civil das pessoas com deficiência e os perfis da curatela. Belo Horizonte: Fórum, 2019. 13 A propósito, cf. SALLES, Raquel Bellini de Oliveira. A responsabilidade civil das pessoas com deficiência e dos curadores após a Lei Brasileira de Inclusão. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2021. Disponível em: https://revistaiberc.responsabilidadecivil.org/iberc/article/view/157. Acesso em: 2 mar. 2021. 14 Nesse sentido, o Enunciado 662 da IX Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: "A responsabilidade civil indireta do curador pelos danos causados pelo curatelado está adstrita ao âmbito de incidência da curatela tal qual fixado na sentença de interdição, considerando o art. 85, caput e §1º, da lei 13.146/2015".
O desfecho da relação médico-paciente nos tribunais após a recusa terapêutica (ainda que por paciente civilmente capaz e competente) é uma realidade, e a instabilidade das decisões judiciais sobre o assunto levam à insegurança jurídica para a atuação prática do profissional de saúde, pois, acatando ou não a recusa terapêutica, o médico pode estar sob a mira da responsabilização ética, cível e até criminal. Há um panorama legal e deontológico posto que fornece diretrizes (algumas passíveis de críticas) sobre a possibilidade de o médico respeitar ou não a recusa terapêutica manifestada pelo paciente e sua consequente responsabilização. Entretanto, a tais normas são dadas diferentes interpretações que levam a decisões judiciais substancialmente divergentes, gerando insegurança jurídica e falta de tranquilidade à atuação do profissional frente a uma recusa terapêutica. Falar sobre responsabilidade médica na recusa terapêutica demanda delimitar quando a atuação médica deixa de ser uma conduta exigível e se torna passível de responsabilização. Na prática, nem sempre esse liame é bem definido. O exercício da medicina impõe aos profissionais da saúde o dever de tomar decisões, que podem se dar tanto em situações eletivas quanto no contexto de situações extremas, onde há risco iminente de morte. E a possibilidade de responsabilização civil do médico é uma preocupação. Por isso, o presente artigo pretende se debruçar sobre as seguintes questões: o médico que descumpre a recusa terapêutica, manifestada pelo paciente de forma livre e esclarecida, deve ser civilmente responsabilizado? E, ainda: o médico que cumpre a recusa terapêutica, manifestada pelo paciente de forma livre e esclarecida, deve ser civilmente responsabilizado? Em caso positivo, as excludentes de ilicitude civil se aplicariam? Para perquirir esse objetivo, foi realizado um estudo teórico-dogmático, que utiliza o método da revisão bibliográfica e legislativa. O panorama legislativo e deontológico de proteção ao direito do paciente de recusar tratamento médico é analisado a partir do fundamento constitucional do direito à liberdade, previsto no art. 5º, caput e incisos I e II, da CR/88. Além da Constituição da República, outras leis ordinárias trataram de assegurar a autonomia das pessoas em relação às suas escolhas médicas. É o caso do Código Civil que, em seu art. 15 determina que "ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida (sic), a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica".1 A interpretação e a aplicação do referido art. 15 podem ser problemáticas. O artigo, desacompanhado de uma leitura constitucional do direito à liberdade e da não hierarquização de direitos, leva à compreensão equivocada de que, não havendo risco de morte, as pessoas podem ser constrangidas a submeter-se a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica; o que não corresponderia ao exercício da liberdade fundamental do paciente que versa sobre a própria saúde ou o próprio corpo. Vale a pena lembrar que saúde não é considerada mais um dado aprioristicamente construído e universalmente aplicável a todos. Antes, o conceito de saúde como "um completo estado de bem-estar físico, mental e social"2 afasta o ideal de que ela é apenas a ausência de afecções ou doenças; o completo estado de bem-estar perpassa, antes de tudo, pela construção da pessoalidade,3  no exercício da autodeterminação do conteúdo do conceito de vida boa e vida digna. A priorização da vida em detrimento de qualquer outro direito fundamental não privilegia o pluralismo existencial que pressupõe a diversidade como possibilidade da igualdade.4 Desse modo, torna-se inconcebível admitir a imposição de qualquer tratamento ou intervenção médica de maneira forçada a pacientes competentes para a tomada de decisões médicas. No âmbito deontológico, o Conselho Federal de Medicina, desde a edição de 1988 de seu Código de Ética Médica veda a prática da realização de procedimentos médicos sem o consentimento livre e esclarecido do paciente, entretanto, sempre excepcionou os casos de iminente perigo de morte.5 Em decorrência de uma necessidade de regulamentação específica sobre o tema, o Conselho Federal de Medicina decidiu editar a Resolução n. 2.232, que foi publicada em 16 de setembro de 2019, que estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente. A referida Resolução, mais uma vez, prevê que a recusa terapêutica é um direito do paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente, a ser respeitado pelo médico, entretanto, deixa claro que tal direito se limita "à terapêutica proposta em tratamento eletivo".6 Nas situações em que não é possível colher o consentimento livre e esclarecido do paciente (por exemplo, se este encontra-se em grave sofrimento ou desacordado), justifica-se a intervenção médica na ausência da colheita de seu consentimento. Entretanto, há situações excepcionais que são desprivilegiadas pela norma, tais como, a possibilidade dessa recusa ter sido manifestada em momento anterior, em diretivas antecipadas de vontade (DAV), portada pelo paciente no momento do atendimento. A discussão acerca da recusa de tratamento médico motivada por questões religiosas já bateu às portas do Supremo Tribunal Federal que reconheceu repercussão geral no Tema 1069.7 Entretanto, o Recurso Extraordinário  1.212.272/AL, que deu origem ao Tema 1069 sob repercussão geral, ainda se encontra pendente de julgamento permanecendo, até o presente momento, inalterada a situação de insegurança jurídica a respeito do tratamento que o Poder Judiciário concederá aos casos de recusa de tratamento médico.8 Enquanto a discussão a respeito do direito à recusa terapêutica não é sedimentada, observa-se nos tribunais brasileiros decisões díspares em casos similares: ora reconhecendo o direito do paciente à recusa terapêutica, ora negando-lhe esse direito9. E, nesse cenário de instabilidade jurídica, o profissional médico teme acatar a recusa do paciente e, também, teme o contrário em razão de sua possível responsabilização. Há fundamentos para se defender ambas as possibilidades de responsabilização civil do médico - este acatando ou rejeitando a recusa do paciente. Essa pode ser a justificativa pela qual há decisões tão díspares no poder judiciário de casos semelhantes sobre a possibilidade de recusa terapêutica. Entretanto, defende-se que a jurisprudência não pode estabelecer, aprioristicamente, hierarquia de direitos tal como a superioridade da vida em sua dimensão puramente biológica, em relação à vida enquanto construção biográfica. Há que se considerar que a vida não tem apenas uma dimensão biológica, mas também biográfica que deve ser respeitada. No âmbito de um Estado Democrático, o pluralismo existencial abre espaço para as mais variadas possibilidades de manifestações de vida e dos valores que determinam a concepção de vida boa de cada um, inclusive para o fim da pessoalidade. Nesse sentido, ser pessoa é ser livre para assumir a titularidade das coordenadas de uma pessoalidade construída com os outros. "Todo ser humano tem liberdade para ser pessoa na medida em que pode construir a sua pessoalidade".10 Assim, ainda que a consequência do exercício da autonomia do paciente, consistente em sua manifestação pela recusa do tratamento, seja sua morte, desde que essa manifestação de vontade tenha se dado por paciente competente (e não apenas civilmente capaz), de forma livre e esclarecida, não há como desconsiderar ou anular essa vontade manifestada. Nesse caso, a escolha pela possibilidade do resultado 'morte' terá sido aceita de forma consentida pelo paciente, no exercício de seu poder de autodeterminação, conforme os parâmetros de dignidade que o paciente elegeu para si. Dessa forma, conclui-se que o desrespeito à recusa terapêutica manifestada pelo paciente competente, após ter sido devidamente esclarecido dos riscos e possíveis consequências de sua decisão, é a única possibilidade capaz de ensejar a responsabilização civil da instituição e/ou do profissional que a desrespeita, quando aliada à conduta ilícita (consistente na execução do procedimento ao qual o paciente se recusou e que viola o direito à sua integridade física e moral; o direito de não ser submetido contra a sua vontade a intervenção médica; o direito ao próprio corpo; o direito à sua liberdade de autodeterminação), for verificada a existência de um dano (ainda que de ordem moral ou existencial), ao paciente ou, por ricochete, a seus legitimados (com fundamento nos arts. 186 e 927, do Código Civil). Lado outro, o cumprimento da recusa terapêutica manifestada pelo paciente está respaldado na vontade desse, em uma relação dialógica de gestão compartilhada dos riscos entre paciente e médico.11  Dessa forma, ainda que o resultado da escolha do paciente seja uma lesão grave ou mesmo a morte, não haveria abertura para a responsabilização do médico e/ou do hospital. Na ordem prática, importa dizer que é necessário ao médico que colha essa recusa do paciente de forma cautelosa, registrando em prontuário e, se possível, na presença de testemunhas, a fim de utilizar tais registros como provas em eventual tentativa posterior de responsabilização civil. E, não se olvide que, caso o médico não se sinta confortável em atuar, respeitando a recusa terapêutica, ele tem assegurado, nos limites das normas deontológicas e legais, a objeção de consciência. Concluindo pela possibilidade de responsabilização civil do médico em caso de desrespeito à recusa terapêutica manifestada por paciente competente (conforme acima fundamentado), passa-se a analisar as excludentes de ilicitude previstas no Código Civil e sua (in) aplicabilidade no caso. Preceitua o art. 188 do CC/02 quais são as possibilidades de exclusão da ilicitude do ato praticado pelo agente, sendo elas: os atos praticados em legítima defesa, os atos praticados no exercício regular de um direito reconhecido e os atos praticados a fim de remover perigo iminente.12 Em que pese não estar expresso na lei civil, Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto,13 lembram que o ato praticado em estrito cumprimento de um dever legal também tem sua ilicitude afastada. Entretanto, entende-se que não se aplica nenhuma das hipóteses de exclusão de ilicitude do ato praticado pelo médico, na medida em que: a) Não se trata de ato de legítima defesa; b) A realização de tratamento médico, ainda que tenha o objetivo de livrar o paciente do risco de morte, não é um direito reconhecido ao médico (agente), mas sim um dever profissional. Esse dever profissional, no entanto, não pode suprimir a autonomia do paciente se esse decide, de forma livre e esclarecida, sobre a rejeição à terapêutica proposta. Ambas as situações (direito e dever) não se confundem e, por isso, não podem criar exceção que autorize um abuso do médico em suas atribuições profissionais; c) a autorização de lesão à pessoa a fim de remover perigo iminente, igualmente não se aplica, tendo em vista que o único legitimado no caso, a dizer se há lesão é o paciente. A ideia da morte como um perigo iminente e um dano a ser afastado, sem considerar a vontade do paciente, deve ser desconstruída pois, conforme visto anteriormente, a concepção de saúde e de vida boa só pode ser representada a partir de uma perspectiva pessoal e única de cada indivíduo; d) Não há nenhuma norma legal que determine como atribuição do médico salvar a vida do paciente, a despeito de sua vontade de dar continuidade ou aderir à terapêutica proposta. Não se pode admitir uma interpretação do art. 15 do Código Civil como uma autorização legal para o desrespeito à autonomia do paciente. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica, com ou sem risco de morte. Sobretudo quando se tratar de paciente que manifesta sua vontade de forma livre e esclarecida, sendo competente, lúcido, orientado. O contrário disso é flagrante violação dos direitos da personalidade do paciente, constituindo-se, portanto, ilícito indenizável. Logo, nenhuma das hipóteses serviria de fundamento para afastar a ilicitude do ato médico que, agindo contra a vontade manifestada pelo paciente competente, impõe-lhe tratamento que expressamente rejeitou. __________ *Texto elaborado com base no artigo intitulado "Responsabilidade civil do médico, recusa terapêutica e as excludentes de ilicitude civil", no prelo para publicação.    **O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. 1 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível aqui. Acesso em: 12 ago. 2023. 2 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Nações Unidas Brasil: Saúde mental depende de bem-estar físico e social, diz OMS em dia mundial. 10 out. 2016. Disponível aqui. Acesso em: 13 ago. 2023. 3 Pessoalidade é entendida como "a qualidade de ser pessoal" e "a possibilidade do indivíduo humano construir uma identidade, isto é, um horizonte dentro do qual ele é capaz de, livremente, tomar uma posição, e assim agir, ser responsável pela sua ação e buscar ser reconhecido por meio dela, em um universo intersubjetivo em que identidades se entrelaçam e processualmente se constituem e reconstituem". SÁ, Maria de Fátima Freire de. MOUREIRA, Diogo Luna. Autonomia e Morte Digna. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2022. p. 51-52. 4 SÁ, Maria de Fátima Freire de. MOUREIRA, Diogo Luna. Autonomia e Morte Digna. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2022. p. 54. 5 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Código de Ética Médica. Rio de Janeiro, CFM: [1988]. Disponível aqui. Acesso em: 13 ago. 2023. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 2.232 de 16 de setembro de 2019.  Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente.  Brasília, DF: CFM, [2019]. Disponível aqui. Acesso em: 13 ago. 2023. 6 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Código de Ética Médica. Rio de Janeiro, CFM: [1988]. Disponível aqui. Acesso em: 13 ago. 2023. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 2.232 de 16 de setembro de 2019.  Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente.  Brasília, DF: CFM, [2019]. Disponível aqui. Acesso em: 13 ago. 2023. 7 Tema: 1069: Título: DIREITO DE AUTODETERMINAÇÃO DOS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ DE SUBMETEREM-SE A TRATAMENTO MÉDICO REALIZADO SEM TRANSFUSÃO DE SANGUE, EM RAZÃO DA SUA CONSCIÊNCIA RELIGIOSA. Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 1º, inciso III; 5º, caput e incisos II, VI e VIII; e 196 da Constituição Federal, o direito de autodeterminação dos testemunhas de Jeová de submeterem-se a tratamento médico realizado sem transfusão de sangue, em razão da sua consciência religiosa. 8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário 1212272/AL RG. 1. Recurso extraordinário. 2. Direito Administrativo 3. Direito de autodeterminação confessional dos testemunhas de Jeová em submeter-se a tratamento médico realizado sem transfusão de sangue. Matéria constitucional. Tema 1069. 4. Repercussão geral reconhecida. Recorrente: Malvina Lúcia Vicente da Silva. Recorrido: União Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes, 23 abr. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 16 ago. 2023. 9 A título de exemplo, indicamos a leitura das decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais nos processos n. 1.0000.23.180081-4/001, n. 5156428-49.2019.8.13.0024 e n. 5022018-83.2021.8.13.0024  que diziam respeito à recusa de tratamento por pacientes capazes e conscientes, ambos motivados por questões religiosas, que tiveram desfechos totalmente diferentes, apesar da similitude das situações em julgamento. 10 SÁ, Maria de Fátima Freire de. MOUREIRA, Diogo Luna. Autonomia e Morte Digna. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2022. p. 59. 11 SÁ, Maria de Fátima Freire de. MOUREIRA, Diogo Luna. Responsabilidade Civil do Médico: análises de casos a partir dos princípios normativos que justificam a formação do consentimento discursivo. In: OMMATI, José Emílio Medauar. SILVEIRA, Renato Marcuci Barbosa da. Teoria Crítica do Direito na perspectiva do Direito Privado. Belo Horizonte: Conhecimento, 2019. Coleção Teoria Crítica do Direito. v. 7. 12 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível aqui. Acesso em: 12 ago. 2023. 13 FARIAS, Cristiano Chaves de. BRAGA NETTO, Felipe. ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil - volume único. 4ª ed. rev. ampl. atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019. p. 608.
Sempre que um fato público repercute na mídia, tem-se uma excelente oportunidade para revisitar alguns temas, e, neste momento, rever algumas visões sobre a responsabilidade civil. Nesse caso, justificável novamente debater a responsabilidade civil do condutor de veículo por atropelamento de pedestre. Trata-se de um tema complexo que envolve diversos aspectos legais, sociais e morais - e alguns prejulgamentos. Se por um lado, quem dirige deve fazê-lo com cuidado, por outro lado, é lugar comum a exigência de cautela por parte do pedestre. Esse assunto ganha novos relevos em razão da comoção causada pelo atropelamento do ator Kayky Brito. Em primeiro lugar, cumpre lembrar que o veículo a motor, automóvel, é um gerador natural de riscos. Veloz, dinâmico e metálico, é meio de conforto, segurança e desenvolvimento, mas também pode originar perigosos desdobramentos, acidentes com danos graves e óbito dos envolvidos. Não sem razão, o Código de Trânsito Brasileiro, em seu artigo 29, parágrafo segundo, estabelece que os condutores de veículos devem respeitar a prioridade dos pedestres nas faixas de travessia e sempre cuidar destes: "respeitadas as normas de circulação e conduta estabelecidas neste artigo, em ordem decrescente, os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres." A responsabilidade de quem dirige é a mesma de quem se utiliza de qualquer bem que, por sua natureza, gere riscos. Para que a responsabilidade civil do condutor seja configurada em casos como estes, é necessário que sejam atendidos os seguintes requisitos: o condutor deve ter agido de forma a causar o atropelamento do pedestre. Deve haver um dano efetivo causado ao pedestre, seja ele de ordem moral ou patrimonial. Os danos podem variar desde lesões físicas graves até danos psicológicos decorrentes do acidente. Ademais, deve existir uma relação direta entre a conduta do condutor e o dano causado ao pedestre. Em outras palavras, o atropelamento deve ser uma consequência direta da ação ou omissão do condutor. Uma vez configurada a responsabilidade civil do condutor, ele é obrigado a reparar os danos causados ao pedestre. Isso pode incluir o pagamento de despesas médicas, indenização por danos morais, ressarcimento por danos materiais (como avarias em objetos pessoais) e outros prejuízos decorrentes do atropelamento. Porém, unindo-se a circunstância especial com o pensamento geral, neste contexto, é usual a opinião doutrinária de que existe presunção da culpa em caso de abalroamento de pedestre, valendo citar o mais detalhado livro brasileiro sobre a matéria, Acidentes de Trânsito, Responsabilidade e Reparação, de Arnaldo Rizzardo: "Torna-se perfeitamente previsível que, em um momento ou em outro, alguém, imprudentemente ou com pressa, cometa algum desatino e ingresse na pista de rolamento. Por isso, coloca-se sempre o motorista em grau maior de responsabilidade pelos eventos que podem ocorrer envolvendo pedestres. Sua culpa é presumida."1 Deste modo, é necessário verificar a questão relativa ao atendimento de um dever objetivo de cuidado (culpa objetivada), no caso concreto, que veio a resultar em um atropelamento de pedestre, origem da mencionada presunção.2 Se em razão do mencionado dispositivo do CTB existe um dever de cuidado, este gera um standard de conduta a delimitar o que não é e o que é conduta culposa. O condutor de veículo, motorista, deve sempre ter cautela e cuidar de não abalroar. Mas será que há casos e casos? Da leitura dos veículos de imprensa,3 temos que o ator foi atropelado cerca de quatro horas da manhã, fora da faixa de pedestres, por veículo que trafegava em velocidade alta, porém dentro da faixa legalmente permitida. O motorista não estava alcoolizado, e trabalha com aplicativos de transporte. Aparentemente, pelas imagens, é possível verificar que o ator não atravessou de modo cauteloso. No entanto, é exatamente em casos nos quais, nas palavras de Rizzardo, um (possível) descuido do pedestre deve ser motivo redobrado para a cautela do motorista, especialmente de madrugada, em via ao lado da praia, que sempre tem pessoas e nunca está completamente vazia, a qualquer hora do dia ou da noite, no Rio de Janeiro. Nesta ordem de ideias não há no caso nada que afaste a presunção de culpa do motorista, que deveria ter sido mais cauteloso, visto que trafegava com baixa visibilidade, de madrugada, em local com pessoas. Há julgados a amparar tal visão, como por exemplo este, do Superior Tribunal de Justiça: "RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO EM RAZÃO DE ACIDENTE DE TRÂNSITO. CONDUÇÃO DE MOTOCICLETA SOB ESTADO DE EMBRIAGUEZ. ATROPELAMENTO EM LOCAL COM BAIXA LUMINOSIDADE. INSTRUÇÃO PROBATÓRIA INCONCLUSIVA SE A VÍTIMA ENCONTRAVA-SE NA CALÇADA OU À MARGEM DA CALÇADA, AO BORDO DA PISTA DE ROLAMENTO. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. 1. Em relação à responsabilidade civil por acidente de trânsito, consigna-se haver verdadeira interlocução entre o regramento posto no Código Civil e as normas que regem o comportamento de todos os agentes que atuam no trânsito, prescritas no Código de Trânsito Brasileiro. A responsabilidade extracontratual advinda do acidente de trânsito pressupõe, em regra, nos termos do art. 186 do Código Civil, uma conduta culposa que, a um só tempo, viola direito alheio e causa ao titular do direito vilipendiado prejuízos, de ordem material ou moral. E, para o específico propósito de se identificar a conduta imprudente, negligente ou inábil dos agentes que atuam no trânsito, revela-se indispensável analisar quais são os comportamentos esperados  e mesmo impostos  àqueles, estabelecidos nas normas de trânsito, especificadas no CTB. 2. A inobservância das normas de trânsito pode repercutir na responsabilização civil do infrator, a caracterizar a culpa presumida do infrator, se tal comportamento representar, objetivamente, o comprometimento da segurança do trânsito na produção do evento danoso em exame; ou seja, se tal conduta, contrária às regras de trânsito, revela-se idônea a causar o acidente, no caso concreto, hipótese em que, diante da inversão do ônus probatório operado, caberá ao transgressor comprovar a ocorrência de alguma excludente do nexo da causalidade, tal como a culpa ou fato exclusivo da vítima, a culpa ou fato exclusivo de terceiro, o caso fortuito ou a força maior. 3. Na hipótese, o ora insurgente, na ocasião do acidente em comento, em local de pouca luminosidade, ao conduzir sua motocicleta em estado de embriaguez (o teste de alcoolemia acusou o resultado de 0,97 mg/l - noventa e sete miligramas de álcool por litro de ar) atropelou a demandante. Não se pôde apurar, com precisão, a partir das provas produzidas nos autos, se a vítima se encontrava na calçada ou à margem, próxima da pista. 3.1 É indiscutível que a condução de veículo em estado de embriaguez, por si, representa o descumprimento do dever de cuidado e de segurança no trânsito, na medida em que o consumo de álcool compromete as faculdades psicomotoras, com significativa diminuição dos reflexos; enseja a perda de autocrítica, o que faz com que o condutor subestime os riscos ou os ignore completamente; promove alterações na percepção da realidade; enseja déficit de atenção; afeta os processos sensoriais; prejudica o julgamento e o tempo das tomadas de decisão; entre outros efeitos que inviabilizam a condução de veículo automotor de forma segura, trazendo riscos, não apenas a si, mas, também aos demais agentes que atuam no trânsito, notadamente aos pedestres, que, por determinação legal ( § 2º do art. 29 do CTB), merece maior proteção e cuidado dos demais. 3.2 No caso dos autos, afigura-se, pois, inarredável a conclusão de que a conduta do demandado de conduzir sua motocicleta em estado de embriaguez, contrária às normas jurídicas de trânsito, revela-se absolutamente idônea à produção do evento danoso em exame, consistente no atropelamento da vítima que se encontrava ou na calçada ou à margem, ao bordo da pista de rolamento, em local e horário de baixa luminosidade, após a realização de acentuada curva. Em tal circunstância, o condutor tem, contra si, a presunção relativa de culpa, a ensejar a inversão do ônus probatório. Caberia, assim, ao transgressor da norma jurídica comprovar a sua tese de culpa exclusiva da vítima, incumbência em relação à qual não obteve êxito. 4. Recurso especial improvido." (STJ - REsp: 1749954 RO 2018/0065354-5, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 26/02/2019, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/03/2019) Verifica-se que a baixa luminosidade foi usada como motivo para que houvesse responsabilização e, ainda, que foi considerada incidente a mencionada presunção de culpa. O standard é esse: dirigir para não abalroar. Há casos nos quais a culpa exclusiva da vítima pode romper o nexo de causalidade? Por exemplo, atropelamentos ocorridos em vias nas quais a circulação de pedestres é proibida, ou ainda em casos de travessias de vias nas quais logo acima existe passarela ou, logo abaixo, uma passagem subterrânea. Nada disso ocorreu na Avenida Lúcio Costa, Barra da Tijuca, ao tempo do atropelamento do aludido ator. Já houve julgados em tribunais brasileiros entendendo que deve ser responsabilizado quem tinha melhor oportunidade de evitar o acidente, e se entendeu que a oportunidade era do pedestre.4 Já houve até caso, curioso, aliás, no qual a pedestre foi condenada a indenizar, visto que constatou-se sua culpa exclusiva.5 Contudo, estes casos incomuns não devem nos desviar da visão, essa sim histórica e usual, do dever de direção defensiva, que deve acima de tudo respeitar o pedestre. O caso do ator, tão repercutido pela mídia, tem causado comentários que imputam ao referido desídia ou descuido, quase que como se tivesse se deixado atropelar, e foi mesmo matéria de debate em sala de aula em nossas aulas do LLM em Direito Civil e Processo Civil da Escola de Direito da FGV - Rio de Janeiro, o que ensejou este pequeno texto, no qual quis trazer ao lume, novamente, o fato básico que o dever de cuidado recai sobre o motorista. Neste momento inicial, não parece haver litígio entre o condutor e a família, que reconhece que este ter socorrido o atropelado foi fundamental para a sua sobrevivência. Possivelmente sequer teremos ajuizamento de ação de indenizar, de parte a parte. De qualquer modo, o caso nos serve, como dito de início, como boa oportunidade para revisitar estes pressupostos e, respondendo a pergunta inicial, não há nada de excepcional neste caso que justifique o afastamento da presunção de culpa do condutor, ou demais elementos que o responsabilizem. __________ 1 São Paulo: Gen, 12ª Ed, p. 164. 2 No mesmo sentido, Rosenvald, Farias e Braga Netto, Novo Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 1.437. 3 Disponível aqui. 4 "Ação de indenização decorrente de acidente de trânsito - Sentença de improcedência - Apelo do autor - Atropelamento de transeunte que tentou atravessar pista de rolamento destinada ao tráfego de veículos leves e de grande porte. Inegável, pelo que se tem nos autos, que a causa imediata ou direta, e que preponderou para a ocorrência do acidente, foi a conduta da vítima, que, de inopino, tentou atravessar via em local e momento inapropriado. Portanto, a vítima, e não o condutor do ônibus, como o autor quis fazer parecer crer, tinha a melhor oportunidade de evitar o acidente e, em linha de desdobramento causal, induvidoso que o causou, por adotar conduta por demais imprudente - Ausência de provas quanto à culpabilidade do condutor do veículo - Culpa exclusiva da vítima que exclui a responsabilidade dos réus de indenizar - Recurso do autor improvido. " (TJ-SP - AC: 10510103820158260100 SP 1051010-38.2015.8.26.0100, Relator: Neto Barbosa Ferreira, Data de Julgamento: 16/02/2022, 29ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 16/02/2022) 5 0314977-31.2017.8.24.0018, Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Dano indireto e contrato

A imediatidade, como elemento do dano, possui íntima conexão com o nexo causal, pois os prejuízos indenizáveis são aqueles que decorrem direta e imediatamente do fato gerador (art. 403, CC). Estabelecida a indenizabilidade dos prejuízos que forem consequência direta e imediata do evento danoso, passa-se a discutir a extensão da obrigação de indenizar no que concerne a outros prejuízos mediatos ou indiretos. Busca-se estabelecer um limite para os prejuízos indenizáveis, pois uma aplicação irrestrita do princípio da reparação integral poderia gerar uma situação absurda. A necessidade de fixação de limites fica bastante clara quando se analisam os danos indiretos ou mediatos, também chamados de prejuízos reflexos ou por ricochete.1 Deveras, sempre ressaltamos a tensão entre o princípio da reparação integral mediante a proteção jurídica dos bens do lesado, em oposição à necessidade de tutelar a liberdade de atuação do lesante, que merece harmonização não apenas na seleção de quais são os danos ressarcíveis e o seu valor, mas também o número dos titulares à compensação. A final, a vida em comunidade seria inviável se todos os prejuízos econômicos oriundos de contatos sociais fossem suscetíveis de indenização. Se a segurança jurídica clama pelo brocardo "the loss lies where it falls", a regra geral é que apenas são reparáveis os danos causados ao titular dos bens imediatamente atingidos pelo fato danoso, e não os de terceiros. Porém, como já se reconheceu em outro sistema, essa é uma asserção cuja concretização prática transporta especiais dificuldades. Por um lado, as que decorrem da natural imprevisibilidade do fato ilícito que não permite delimitar com facilidade os sujeitos que podem vir a situar-se em cada um dos polos da relação obrigacional; por outro as dificuldades atinentes à variabilidade das situações geradoras da responsabilidade aquiliana que impede a antecipação segura da natureza ou da amplitude das consequências danosas que lhes podem ser imputadas.2 No dano indireto, reflexo, ou por ricochete, ocorre um prejuízo em virtude de um dano sofrido por outrem. O evento não apenas atinge a vítima direta, mas, reflexamente, os interesses de outra pessoa. Daí a expressão ricochete, que significa o dano sofrido inicialmente por um, que acaba por repercutir em outro, pelo fato de haver alguma ligação entre este e aquele. De outro modo, PETEFFI DA SILVA conceitua o dano indireto ou reflexo como prejuízo observado em relação triangular, iniciando-se pelo agente que prejudica uma vítima direta e que também resulta em um segundo dano, próprio e autônomo, verificado na esfera jurídica da vítima reflexa ou por ricochete.3 Por consequência, a lesão de uma pessoa comporta um potencial de afetação de bens jurídicos encabeçados por outras pessoas. Ou seja, uma lesão simultânea de posições jurídicas de várias pessoas aparece em primeira linha como ato consubstanciador de violação dos direitos da personalidade de uma delas (lesado direto). Contudo, tal violação pode ser acompanhada da violação de posições jurídicas de outras pessoas (lesados indiretos) em virtude do nexo juridicamente relevante que entre elas exista. No entanto, em virtude da proeminência do ataque ao bem jurídico pessoal daquele que sofre a lesão corporal, a violação dessas outras posições nem sempre mereceu destaque.4 Em uma perspectiva clássica e atomizada da responsabilidade contratual, a legitimidade para a invocação dos efeitos derivados do contrato é circunscrita às pessoas dos contraentes, como corolário da eficácia relativa ou da relatividade dos contratos. A síntese dessa compreensão se encontra nas regras relativas ao descumprimento contratual em sentido amplo, nos artigos 389 a 420 do Código Civil. Em princípio, por mais que da inexecução resultem danos para terceiros à relação obrigacional, estes estariam de mãos atadas, exceto nas hipóteses de obrigações impostas por normas imperativas ou razões de ordem pública, sendo uma das mais notórias a possibilidade de o consumidor lesado demandar contra fornecedores com os quais não pactuou diretamente.5 Dentre os titulares de deveres de proteção, incluem-se terceiros - estranhos à relação obrigacional - que estão expostos aos riscos de danos pessoais ou patrimoniais oriundos da execução de um determinado contrato. Seriam os "contratos com eficácia de proteção para terceiros", em que caberia ao terceiro, vítima, a percepção de uma indenização, não em razão de uma violação de algum dever de prestar advindo da relatividade contratual (pois este seria específico das partes), mas em virtude de ter sido ofendido em sua integridade psicofísica ou econômica, o que desencadeia a pretensão de reparação de danos, com fundamento no descumprimento de deveres laterais pelas  partes, consistentes na inobservância do necessário cuidado e proteção perante a sociedade que os circunda. Ao permitir que a responsabilidade civil englobe terceiros lesados pelo descumprimento de uma obrigação assumida no âmbito de um contrato de cuja formação não participaram, devemos assumir que o princípio pelo qual os efeitos do contrato só se produzem inter partes deverá ser interpretado de forma que, no conceito de "oponibilidade obrigacional", incluam-se pessoas que não consentiram na formação do negócio jurídico, mas que estão sujeitas a ser por ele afetadas, precisamente no que se refere à sua função social. A flexibilização do princípio da relatividade dos efeitos contratuais, propicia uma nova etapa de desenvolvimento teórico e prático de danos reflexos. As temáticas do "terceiro ofendido" e do "terceiro ofensor" foram exaustivamente referidas no capítulo alusivo à responsabilidade contratual. Danos indiretos irrompem em ambas as manifestações do princípio da função social dos contratos. No que tange ao terceiro ofendido, o devedor é o causador do dano e a vítima indireta é estranha à relação contratual. Isto ocorre cotidianamente quando a vítima falece em virtude de um erro médico, traduzido como inadimplemento do contrato de prestação de serviços médicos, estendendo-se à outras hipóteses de tutela externa do crédito. No tocante ao terceiro ofensor, no qual alguém estranho ao vínculo, causa o inadimplemento de contrato entre vítima direta e vítima indireta, também há espaço para desenvolvimento dos danos reflexos em situações onde a vítima indireta sofre prejuízos em decorrência do inadimplemento, motivado por ação ou omissão de terceiro, de um contrato que possuía com a vítima direta.6 Aqui, em linha complementar, indagamos se no espaço de autonomia privada que lhes é inerente em contratos simétricos, as partes podem pactuar pela exclusão do ressarcimento do "dano indireto", mediante cláusulas de limitação de responsabilidade, no bojo de relações civis e empresariais. Com PINTO MONTEIRO, em que medida esse dano é acessível ao acordo das partes? A final, tratar do problema da validade das cláusulas de responsabilidade civil requer indagar se ela poderá ser objeto de convenções antecipadas quando as pessoas que receiam poder a sua atividade vir a ser fonte de danos acordar previamente com os presumíveis lesados a disciplina de sua eventual responsabilidade.7 No horizonte brasileiro, examinando os três incisos do art. 421-A,8 a autonomia privada viabiliza que, em contratos paritários interempresariais e intercivis, os contratantes envidem uma gestão de riscos, precavendo-se contra eventuais vicissitudes ao longo do iter obrigacional, estabelecendo a equação econômica que fundamenta a correspectividade do contrato. A Lei n. 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica) revigorou a autodeterminação em termos de primazia de soluções consensuais em detrimento da heteronomia judicial, valorizando a alocação de riscos. Seguindo a noção de Enzo Roppo do contrato como vestimenta das operações econômicas, o art. 421-A captura um redimensionamento do sentido de contrato, que não mais se exaure no negócio jurídico bilateral que lhe deu origem, convertendo-se em uma "atividade contratual", realidade em permanente construção. Assim, é lícito às partes a delimitação consensual das esferas de responsabilidade para que possam se precaver contra eventuais vicissitudes. O contrato passa a ser tido como um instrumento jurídico posto à disposição das partes para a alocação de riscos economicamente previsíveis, para hoje e para o futuro. Com a gestão de riscos, as partes convertem a causa abstrata do contrato em uma causa concreta. Assim, mal ou bem gerido, o risco superveniente não ensejará intervenção externa sobre o que se convencionou. Diversamente da causa abstrata, consiste a causa concreta no objetivo prático visado pelas partes quando da celebração do negócio jurídico, sendo esse um fim a que se dirige dado negócio jurídico específico. Esse fim é imantado pelo que se pode denominar de função econômica do contrato, ou seja, quais os contributos econômicos que as partes razoavelmente podem esperar como advindos da relação negocial celebrada. A definição desse fim econômico prático que integra a causa concreta é correlata ao exercício da liberdade econômica. Se estivermos diante de bem jurídico de índole meramente privada e natureza disponível, o lesado poderá dispor de um eventual montante indenizatório. Isso significa que, se por um lado há vedação de convenções limitativas ou exoneratórias de responsabilidade por culpa grave e dolo, lado outro, pode haver restrição voluntária a indenização de danos indiretos inter partes. A determinação ex ante dos danos indenizáveis reduz os custos de transação ex post associados a dificuldade de qualificação e quantificação dos danos para litígios, somando incentivos ao cumprimento das obrigações pelas partes. Entretanto, se assumimos o conceito de dano indireto, como sinônimo de dano reflexo ou dano por ricochete, o contexto jurídico muda de figura. A final, na apuração da legitimidade de terceiros pleitearem indenização por danos causados em uma relação da qual não fazem parte, não faria sentido as partes delimitarem cláusula de exoneração de responsabilidade para danos indiretos, permanecendo resguardado o terceiro lesado pelo dano indireto, posto amparado na responsabilidade extracontratual. Ora, quando se cogita da exclusão de responsabilidade perante terceiros pelo dano indireto, não visualizamos lesão à direito de crédito pregresso, porém relação jurídica derivada da violação de um dever geral de abstenção, quadrante infenso à autonomia privada. __________ 1 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 174-175. 2 GERALDES, Antônio Santos Abrantes. Temas da responsabilidade civil, Indemnização dos danos reflexos, Coimbra: Almedina, 2007. v. II, p. 15. 3 SILVA, Rafael Peteffi da. Sistema de justiça, função social do contrato e a indenização do dano reflexo ou por ricochete. Unisul de Fato e de Direito: Revista Jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina, Santa Catarina, ano III, n. 5, p. 58-59, jul.-dez. 2012. 4 PEDRO, Rute Teixeira. Os danos não patrimoniais (dito) indiretos: uma reflexão ratione personae sobre a sua ressarcibilidade. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; MUNIZ, Francisco (coord.). Responsabilidade civil: cinquenta anos em Portugal, quinze anos no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 216. 5 Art. 18 CDC: "Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas". 6 Paradigmática neste sentido a decisão da 4.ª turma do STJ, Recurso Especial 753.512/RJ, como relator para o acórdão o Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 2 de março de 2010, reconhecendo-se, por maioria de votos, indenização por danos patrimoniais reflexos à empresa de promoções artísticas que, diante do extravio das bagagens do maestro por ela contratado, foi obrigada a remarcar as datas do espetáculo e devolver o valor dos ingressos. Ressaltou-se o fato de que a responsabilidade própria das relações de consumo, prevista no art. 17 do CDC, poderia estar presente no contrato de transporte entre o maestro e a companhia área (dano direto), mas não havia relação entre a última e a empresa de promoções de eventos. 7 MONTEIRO, Antonio Pinto. Dano e acordo das partes. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; MUNIZ, Francisco. Responsabilidade civil: 50 anos em Portugal e 15 anos no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 22. 8 Art. 421-A CC: "Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada".
O Direito, de uma forma geral, evolui em movimentos pendulares e, dificilmente, estagna, como, na verdade, não poderia ser diferente. A vida é dinâmica e a sociedade está em constante movimento e o que se espera é que o Direito acompanhe essa cinesia. Importante frisar que essa evolução do Direito se dá não apenas por inovações legislativas, mas especialmente a partir de sua interpretação e aplicação. Isso porque, o estudo e a concretização do Direito se dão em um contexto social, político e econômico. Assim, é estabelecido entre a realidade social e a realidade normativa uma ligação de tal ordem que "a transformação da realidade social em qualquer dos seus aspectos significa a transformação da realidade normativa e vice-versa"1. Essa necessária e justificável dinamicidade do Direito, ao que parece, encontra terreno fértil no campo da responsabilidade civil. Especificamente no ordenamento jurídico brasileiro, é possível identificar duas fases bem demarcadas nessa evolução e uma possível terceira fase em curso. Em sua primeira fase, o instituto possuía uma função eminentemente sancionatória e moralizante, evidenciada especialmente pela adoção da culpa como fator principal de imputabilidade e a responsabilidade subjetiva como regra. Já em uma segunda fase, após um "giro conceitual"2, resultante da incidência da axiologia constitucional, especialmente dos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social, inicia-se uma nova fase cuja função primordial é a reparatória. Essa segunda fase é evidenciada pela opção do constituinte em consagrar, como direito fundamental, o princípio da reparação integral dos danos (art.5º, X, CF/1988) e, em sede infraconstitucional, pela adoção do risco como outro fator de imputabilidade da responsabilidade civil, positivado como cláusula geral no Código Civil de 2002, além de ser o principal fator de imputabilidade no sistema de responsabilidade civil nas relações de consumo. Em síntese, a vítima passa a ser a protagonista do sistema de responsabilidade civil. A preocupação central, sob a ótica da função reparatória, desloca-se do ofensor e da sua conduta imoral e culposa para a vítima e o dano injustamente sofrido.  Cabe destacar que, em uma perspectiva constitucionalizada, o fundamento da teoria do risco é o princípio da solidariedade social3. Trata-se de fundamento constitucional para a desculpabilização da responsabilidade civil, à medida que o objetivo principal do instituto não é mais o de se buscar um culpado, mas sim o de proteger e amparar a vítima de um dano injusto. Ou seja, ultrapassada a concepção de reparação-sanção, o fundamento ético-jurídico da responsabilidade é reorientado pelo valor solidarista de proteção daquele que sofreu um dano injusto.  Seja como for, desde as presunções de culpa à adoção do risco enquanto fator de imputabilidade, todos os expedientes adotados figuraram como importantes instrumentos a favor da reparação da vítima. A responsabilidade objetiva, que no início era tratado como uma exceção, tornou-se a regra considerando o quantitativo das hipóteses abarcadas. Nesse sentido, afirma-se que o primeiro movimento pendular foi o da culpa em direção ao risco e, com isso, da função primordialmente sancionatória para a função eminentemente reparatória da responsabilidade civil. Ademais, em um contexto geral, o movimento da culpa ao risco é um nítido reflexo e reposta à revolução tecnológica. As consequências da revolução industrial impactaram diretamente a forma de produção econômica e a produção dos então denominados acidentes, responsáveis pela concretização de riscos. Como resposta, no âmbito da responsabilidade civil, a objetivação da reponsabilidade expressou a superação da temida prova diabólica da culpa, que recaía sobre a vítima que, não raras vezes, permanecia irresarcida em razão da impossibilidade de provar a culpa do lesante. No entanto, na contemporaneidade, o pêndulo parece estar iniciando um movimento reverso, indicando uma possível terceira fase em curso, evidenciada pelas novas hipóteses de responsabilidade subjetiva. Certamente, não se afirma um retorno à sua feição anterior, a primeira fase. Mas, a culpa e a responsabilidade subjetiva retornam ao cenário com algum destaque. E, por mais paradoxal que possa ser, esse retorno está ocorrendo novamente em razão de uma nova revolução tecnológica, a da era digital. Não se afirma com isso que o risco, enquanto fator de imputabilidade da responsabilidade civil, foi abandonado. Mas, em atenção às recentes leis que regulam relações impactadas por essa nova tecnologia, é possível verificar uma certa tendência, ou ao menos, propostas legais que não podem ser minimizadas, voltadas à adoção de culpa, enquanto fator de imputabilidade, para hipóteses relativas à transformação digital e tecnológica4. Trata-se de situações que, sob os olhares de poucas décadas atrás seriam qualificadas como sendo de risco, atraindo, por derradeiro, a responsabilidade objetiva. Consequentemente, há de se questionar qual é, na atualidade, a função primordial da responsabilidade civil ou, ainda, se a responsabilidade civil passa a assumir múltiplas funções. Dito de outra forma, se o pêndulo inicia uma trajetória regressiva, seria razoável supor a permanência da função reparatória como primordial ou seria o momento de afirmar um perfil multifuncional para a responsabilidade civil? Como já destacado em doutrina, "diante das demandas de sociedades complexas, plurais e altamente tecnológicas marcadas pela incerteza e desumanização inerentes, torna-se evidente e necessária a superação do caráter monofuncional da responsabilidade civil"5. A rigor, além das funções punitiva ou sancionatória e reparatória, já referidas, evidencia-se uma terceira função para a responsabilidade civil, a função precaucional,6 atuando na inibição de atividades potencialmente danosas e/ou no condicionamento de tais atividades à observância de certos procedimentos visando a prevenção dos danos7.   Em uma sociedade de risco8, a função precaucional e preventiva da responsabilidade civil se mostra essencial e pode ser compreendida até mesmo como um reflexo necessário da própria mudança na percepção do risco o que, invariavelmente, alcança a responsabilidade civil. Isso porque, na contemporaneidade, a própria noção de risco é reformulada e dissociada da noção de perigo, sendo apreendida como decorrência de uma decisão9. Sendo assim, o dano decorrente de um risco também será aquele associado a uma decisão, de sorte que o impasse da sociedade contemporânea diz respeito à distribuição de riscos e a atribuição de responsabilidades pelos danos decorrentes das decisões tomadas. Nessa perspectiva, é possível concluir que as discussões sobre o risco e a responsabilidade por seus efeitos passam a ser políticas. E, como já referido, algumas inovações legislativas recentes que regulam relações impactadas por novas tecnologias adotaram a culpa enquanto fator de imputabilidade. Certamente que, dada a primazia do texto constitucional, tais opções não visam o abandono ou minimização da função reparatória da responsabilidade civil10, mas indicam a necessidade do reconhecimento de plúrimas funções para o instituto.   __________ 1 Perlingieri, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil-constitucional. 3. ed., rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.2. 2 Gomes, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In: Di Francesco, José Roberto Pacheco (org.). Estudos em homenagem ao Professor Silvio Rodrigues. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 291-302. 3 Nesse sentido: "Já para o chamado direito civil-constitucional, como se sabe, não pode haver norma jurídica que não seja interpretada à luz da Constituição e que não se coadune com seus princípios fundamentais. Caberá, então, buscar o fundamento ético-jurídico na Constituição da República e lá será fácil identificar o princípio que dá foros de constitucionalidade, generalidade e eticidade à responsabilidade objetiva em todas as hipóteses em que ela se manifesta: é o princípio da solidariedade social". (Bodin de Moraes, Maria Celina. Risco, solidariedade e responsabilidade objetiva. In Tepedino, Gustavo e Fachin, Luiz Edson (coord). O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas - Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 866). 4 Como exemplo, pode-se citar o modelo de responsabilidade civil instituído pelo Marco Civil da Internet (lei 12.965/14). Soma-se ainda a controvertida divergência quanto ao regime adotado na responsabilidade civil no caso de violação à Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n. 13.709/18 ou LGPD), se objetiva, subjetiva (ver: ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Disponível aqui. Acesso em: 15.09.2023) ou até mesmo responsabilidade proativa (ver: BODIN DE MORAES, Maria Celina. LGPD:  um novo regime de responsabilização civil dito "proativo". Editorial à Civilistica.com. Rio de Janeiro: a. 8, n. 3, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 15.09.2023). Visualiza-se também controvérsias em legislações que sequer foram aprovadas. A exemplo do Projeto de Lei (PL) n. 2338/23 que visa instituir um Marco Legal da Inteligência Artificial (IA). 5 ROSENVALD, Nelson., CLEMENTE, Graziella. A multifuncionalidade da responsabilidade civil no contexto das novas tecnologias genéticas. Disponível aqui. Acesso em: 15.09.2023). 6 NELSON ROSENVALD. As Funções da Responsabilidade Civil A Reparação e a Pena Civil (Portuguese Edition). Editora Saraiva. Edição do Kindle. 7 NELSON ROSENVALD. As Funções da Responsabilidade Civil A Reparação e a Pena Civil (Portuguese Edition). Editora Saraiva. Edição do Kindle. 8 A partir de um debate travado no campo da sociologia e orientado para a tentativa de descrever as características mais marcantes da sociedade contemporânea, alguns autores identificaram no risco e na sensação generalizada de insegurança, o traço mais ressaltado da sociedade atual. (Ver: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony e LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997) 9 Acerca da noção de risco na obra de Niklas Luhmann, Anthony Giddens afirma que a mesma "se originou com a compreensão de que resultados inesperados podem ser uma conseqüência de nossas próprias atividades ou decisões, ao invés de exprimirem significados ocultos da natureza ou intenções inefáveis da Deidade". Em seguida, conclui  pelo acerto na distinção entre os conceitos, aduzindo que a discriminação entre risco e perigo "surge, essencialmente, de uma compreensão do fato de que a maioria das contingências que afetam a atividade humana são humanamente criadas" (GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991, p. 38 e 39).  10 Sobre a função reparatória da responsabilidade civil, ver: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. civilistica.com, v. 7, n. 1, p. 1-25, 5 maio 2018.
"É bem verdade que, de certo modo, a Responsabilidade Civil talvez seja o instituto jurídico que mais se redefine a partir das mudanças sociais. O estudo [...] não evolui apenas através da acumulação de conhecimentos, mas também incorporando novos modos de percepção" (Farias; Rosenvald; Braga Neto, 2019, p. 25) Resenha Mistanásia traduz o contexto de exclusão social, ocasionando mortes de forma miserável, precoce e lenta de pessoas vulneradas, que dependem do atendimento de saúde pública. As mortes mistanásicas decorrem da situação de abandono social. Categorizando-as como danos existenciais, a obrigação de reparar o dano por parte do Poder Público, por meio dos entes federados, mostra-se indiscutível, pois os danos morais configurados devem ser reparados. As mortes recorrentes denunciam a precarização da saúde, a insuficiência de leitos hospitalares e o deficitário atendimento oferecido ao cidadão, enfim, a caótica condição dos hospitais e postos de atenção básica à saúde. Embora as verbas destinadas a este segmento da administração sejam expressivas, por diversas causas, não chegam às pessoas em situação de pobreza. Se, em virtude de comando constitucional do art. 6º e 196, o Poder Público tem o dever de promover saúde pública de qualidade e não o faz, incumbe-lhe criar mecanismos assecuratórios da efetividade do direito à reparação civil, objetivando a devida e justa compensação à morte em nível social de pessoas vulneradas, vítimas das mazelas da saúde pública, cabendo a nós, acreditarmos em um futuro melhor e nesse sentido fazer a nossa parte.  Introdução  A Mistanásia não é um fenômeno novo, deste momento, mas uma realidade que se tornou tão comum, que a violência em suas frequentes manifestações, nos grandes centros urbanos, em nada diferem das cenas da ficção. A morte indigna, em péssimas condições, com intermináveis agruras sempre me inquietou. No Brasil, as pessoas morrem muito mal e, talvez por esse motivo temam tanto o momento da morte, pois sabem que um dia, terão de enfrentá-la, pois ela virá, implacável, fria e desumana para a maioria. Por esse motivo, tenho estudado este fenômeno há mais de sete anos e, a cada dia, a situação se agrava; chegamos a perceber certa tendência à perpetuação, caso não sejam implementadas urgentes políticas públicas no sentido de resgatar a dignidade da população vulnerada. A propósito, quando utilizamos a expressão pessoas vulneradas, referimo-nos àquelas expostas a risco, pois o conceito etimológico da expressão vulnerabilidade significa expostas a risco, conforme leciona Amatriain (2017). Este artigo corresponde a um novo aspecto da pesquisa, pelo qual situamos na esfera dos novos danos as mortes decorrentes das más condições de saúde da população brasileira vulnerada. Assim, ao deitar luzes sobre a natureza dessas mortes, podemos enquadrá-las como lesão a direitos existenciais antes não apreciados na fina percepção desta especial categoria. Por isso, as mortes por causas sociais, às quais denominamos mistanásicas, estão albergadas nos danos existenciais, uma vez que decorrentes do descumprimento, pelo Poder Público, do dever de promover saúde de qualidade à população vulnerada.  Para situar a expressão no contexto da Bioética, Ricci, explica a Mistanásia como substantivo e mistanásica, como adjetivo, ou seja, é a morte adjetivada, pois a expressão mistanásica tem conotação ética, não natural nem normal, portanto, adjetivada (precoce e evitável), que produz transformações pessoais e sociais, enfatizando que no Brasil a desigualdade social expõe um exército de pessoas vulneradas a situações de risco (Ricci, 2015). Este exército se refere às centenas de milhares de brasileiros que morrem anualmente em razão de fome, miséria, desigualdade, falta de infraestrutura, violência nos centros urbanos e no trânsito, precarização no atendimento de saúde, dentre outras causas que se amoldam ao conceito de morte mistanásica.  Para efeitos do presente estudo, basta-nos compreender as mortes mistanásicas como aquelas caracterizadas pela ocorrência da Mistanásia em suas diversas manifestações. Não menos importante, torna-se categorizar Mistanásia na esfera dos novos danos, que são aqueles direitos clássicos, já existentes, mas que alcançou recente reconhecimento como prejuízo aos direitos existenciais, entendidos como aqueles inerentes à dignidade da pessoa humana. Uma vez albergadas nessa importante categoria de prerrogativas, as mortes mistanásicas passam a gozar de tutela com absoluta primazia, que impõe respeito erga omnes. Pois bem, nesse contexto, a tutela dos direitos existenciais exige observância e passa a atribuir reparação civil às violações referentes a essa espécie de dano. A noção de reparar o dano se inspira na observância do dever jurídico segundo o qual não devemos causar mal a ninguém, traduzido pela expressão latina neminem laedere. Nessa linha de ideias, a responsabilidade civil passa a desempenhar importante papel na proteção dessa classe de direitos, preconizando reparação à vítima pelo dano sofrido, tendo em vista, basicamente três funções, segundo os eminentes juristas Farias; Rosenvald; Braga Neto (2019, p. 61 e segs): a função punitiva (que condena o autor pela prática ilícita e lesiva); a reparatória (que visa recompor o ofendido quanto à sua perda); e precaucional (que visa desestimular o agente de cometer novos ilícitos). Então, no caso especifico da saúde, se identificados o ato ilícito (conduta antijurídica), o dano (prejuízo ao paciente) e o nexo de causalidade (liame entre a prática da conduta e o dano), teremos preenchido a tábua de pressupostos configuradores da responsabilidade civil, devendo o agente reparar o dano experimentado pelo paciente. Este é o desenho da responsabilidade civil no âmbito das mortes mistanásicas, cabendo ao Poder Público, nos limites de sua atuação, suportar o ônus advindo da reparação dos danos que os agentes públicos, nessa qualidade, causaram a terceiro (paciente) durante o atendimento, tratamento ou procedimento. Mistanásia: conceito, contornos e correlação com direitos existenciais Mistanásia é um neologismo cunhado na literatura bioética brasileira em substituição à clássica expressão "eutanásia social" que, na doutrina bioética internacional designa a morte em massa de pessoas vulneráveis. A necessidade de cunhar uma nova expressão se justificou pelo fato de que "eutanásia social" não corresponde à noção de mortes miseráveis, pois o prefixo "eu" é indicativo de "boa", sendo que a morte em nível social nada tem de boa: antes é indigna, em condições sub-humanas, lenta, precoce e ocorre sem que a pessoa seja capaz de completar o ciclo vital, então, por esse motivo a expressão não é apta a retratar a realidade das mortes mistanásicas. Alguns atribuem a autoria desta expressão que traduz o conceito de mortes indignas e miseráveis sob a nova designação a Marcio Fabri dos Anjos, ouros, a Leonard Martin, ao final da década de 1980. O conceito etimológico então seria uma derivação do vocábulo grego thanatus (morte) + mys (rato), significando morte como um rato, morte miserável, com dor e aflição. Estudando a Mistanásia, elaborei um conceito amplo e semanticamente aberto com o objetivo de abarcar as variadas hipóteses nas quais o fenômeno se manifesta: Mistanásia é a morte prematura, evitável, lenta e indigna de pessoas socialmente excluídas, em consequência da banalização da vida humana, devido a causas diversas que vão desde o abandono social e doenças a outros riscos naturais ou provocados a que estão expostas as pessoas vulneradas" (Cabral, 2020, p. 27). No mesmo sentido, "A morte miserável põe em xeque a dignidade do indivíduo em seu direito de viver e de morrer sem sofrimentos adicionais" (Santos et al., 2020, p. 2). Isso porque a Mistanásia em variadas formas de ocorrência, descortina uma realidade nefasta, qual seja, um número elevado de óbitos de pessoas da população brasileira de forma indigna, miserável, angustiante, que morrem em razão de pobreza, fome, miséria, tráfico de entorpecentes, feminicídio, violência doméstica e familiar, por diversas formas de violência urbana, falta de infraestrutura, saneamento básico, dificuldades quanto ao acesso à saúde, dentre outras situações degradantes. Essas pessoas (sobre)vivem à margem do sistema de atendimento público de saúde, por motivos tais como: não conseguem chegar aos postos de atenção básica, ou conseguem ser atendidas, mas vêm a óbito por falta de aparelhamento, de recursos humanos ou negligência, enfim, situações nas quais percebemos a marginalização. A consagração da dignidade como valor maior da CF, logo no art. 1º, como fundamento da República Federativa do Brasl, demonstra sua precedência não apenas topográfica, mas interpretativa, dotando-o de preferência em relação a qualquer outro princípio (Rosenvald, 2007): "A dignidade atuaria como cláusula aberta, legitimando a construção de direitos não expressos na Lei Maior, mas com ela compatíveis em razão de sua linha axiológica e principiológica" (Rosenvald, 2007, p. 51). Significa atribuir primazia à dignidade em relação aos demais princípios, convertendo-a em fio condutor das relações neste Estado Democrático. Assim, os direitos albergados no bojo da cláusula geral da dignidade da pessoa humana passam a gozar de tutela nunca antes verificada, com a correspondente reparação quando violada em quaisquer de suas manifestações. Por esse motivo, a Mistanásia e suas diferentes formas de ocorrência integram a órbita dos denominados novos direitos. Tratam-se de direitos de personalidade já existentes e consagrados, cuja violação não ensejava responsabilização civil, e só mais recentemente lhe foram conferidos o reconhecimento do dano decorrente da violação e o consectário lógico da responsabilidade civil: a reparação (Schreiber, 2013). Novos então não são os direitos, mas o reconhecimento dos danos e a consequência  natural, a responsabilidade civil. Nessa linha de intelecção, a Mistanásia não é um fenômeno recente, assim como os demais novos danos não o são, entretanto, até bem pouco tempo, a tutela dos direitos existenciais não era tão reconhecida, nem enfática a reparabilidade, pois foi ao conferir status de valor à dignidade da pessoa humana, que a responsabilidade civil alcançou a observância dos preceitos constitucionais e a efetividade da tutela dos direitos existenciais de forma imperativa (Schreiber, 2013).  Nesta perspectiva, a relação de direitos existenciais se amplia de forma desmesurada e, ao adotarmos a tese da personalidade como valor, tentar enumerar as novas espécies de danos, será uma tentativa falha, pois sempre haverá novas hipóteses (Bodin de Moraes, 2009). Conforme se amplia e se diversifica a cada dia, crescem as situações merecedoras de tutela desses direitos. As mortes mistanásicas no âmbito da saúde pública brasileira  A Mistanásia é uma realidade já emoldurada na periferia dos grandes centros, de forma que deixou de ser uma excepcionalidade para se converter em cruel rotina: A violência se tornou costumeira e até banal: as trágicas mortes que aconteciam na tela da TV extrapolam aquele universo distante e agora se avizinham, trazendo essa realidade para cada vez mais próximo de cada brasileiro. As extensas filas nos atendimentos de saúde, com pessoas morrendo nos corredores dos hospitais dos grandes centros urbanos ou à porta deles sem atendimento começa a se reproduzir de forma mais nítida nas cidades de médio porte (Cabral, 2020b, p. 24). À vista desses fatos, percebemos, em evidentes matizes, a forma como a Mistanásia tem assolado a população vulnerada e a necessidade, até mesmo urgência de adoção de políticas públicas a fim de operar uma transformação profunda e efetiva na realidade social brasileira, pois o maior bem jurídico violado tem sido a dignidade humana e o direito à saúde, como uma das principais prerrogativas da pessoa no que diz respeito à vida digna, por isso, o direito constitucional outorgado pelos arts. 6º e 196 da CF é de inegável magnitude e de obrigatória observância. Nesse viés, se, por um lado, o direito à saúde foi incorporado às garantias do cidadão brasileiro por força de comando constitucional, por outro, nasce um dever para a Administração Pública, que consiste na prestação positiva de promover saúde adequada à população, conforme disposição ipsis litteris: "A saúde é direito de todos e dever do Estado" (Brasil, CF, art. 196, 1988). Do descumprimento dessa garantia constitucional que causa lesão à população, nasce, para o Poder Público a obrigação de reparar o dano. A despeito da enorme soma de numerário destinada à saúde pública pelo Governo Federal, os recursos ainda são insuficientes. Santos et al., (2020) explicam que "No Brasil, investimos menos de 4% do PIB em saúde pública nos últimos anos, o que ocasionou importantes deficiências no sistema de saúde e aumento de desigualdades sociais". É realmente uma parcela pequena em face de tantas dificuldades enfrentadas. No mesmo sentido: O Brasil perdeu, nos últimos dez anos, mais de 41 mil leitos hospitalares no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2008, o total de leitos na rede pública era de 344.573. Em 2018, o total chegava a 303.185. [...] Os dados informam queda dos leitos em 22 estados e 18 capitais. A Região Sudeste apresentou a maior redução de leitos, com o fechamento de quase 21,5 mil em oito anos (LABOISSIÈRE, 2018). Os recursos não alcançam usuários das extremidades, que seriam os primeiros destinatários dos serviços públicos de saúde, pois são muitos os que se encontram excluídos do sistema: as pessoas que não conseguem uma vaga no leito de um hospital, as que esperam mais de um ano para o exercício do direito à determinada cirurgia, as que aguardam na fila para um exame oneroso há dez meses, as residentes em locais de difícil acesso e que continuam à margem do atendimento de saúde e das condições dignas de vida. A realidade revela uma crescente precarização no setor da saúde pública, revelando a ocorrência da Mistanásia de forma exponencial, com estatísticas estarrecedoras, a exemplo dos casos levados à análise pelo Poder Judiciário no que explicito abaixo, conforme registro na obra acerca da Mistanásia (Cabral, 2023): responsabilidade civil do hospital municipal decorrente da morte de paciente, pela comprovação de nexo causal entre a conduta culposa e o dano moral e pensão mensal vitalícia dos dependentes da vítima; ação de indenização por dano moral pela morte do filho devido à falha de diagnóstico de dengue hemorrágica e demora na internação em hospital estadual, constatando-se responsabilidade objetiva do Estado, por dano moral configurado; prestação de serviços médicos em que o deslocamento de paciente por UTI móvel demorou (três horas de espera) no encaminhamento do transporte, provocando a morte do paciente; paciente morre após esperar por atendimento, nos fundos do posto de saúde: uma vez demonstrado o nexo de causalidade, omissão e falha no atendimento; direito à saúde e dever do Estado, foi reconhecida a solidariedade entre os entes federativos quanto ao fornecimento de medicamentos de alto custo; ação civil pública, ajuizada pelo MP do Rio Grande do Sul, em razão de esgotos a céu aberto, consistente em obrigação de fazer a instalação da rede de esgoto já projetada, por violação ao art. 45 da lei n. 11.445/2007; estupro de vulnerável em circunstâncias desfavoráveis, em que houve aproveitamento da situação de miséria; falecimento de filho, aos 11 anos, pois o paciente ingressou em hospital da União Federal para transfusão de sangue e, contaminado pelo vírus HIV, veio a óbito, cabendo obrigação de reparar o dano; o autor foi contaminado com o vírus HIV nas dependências do Centro Previdenciário durante internação para tratamento de dengue, por falha do enfermeiro durante o procedimento, ao reutilizar utensílio descartável (seringa e agulha usadas anteriormente em doente com HIV), tendo o relatório de inspeção da Vigilância Sanitária da Secretaria de Estado de Saúde realizada na instituição, um ano e meio depois do ocorrido com o autor, constatada a continuidade da prática de reutilização de materiais descartáveis. Percebemos nas situações citadas de forma exemplificativa, a seriedade dos direitos existenciais violados, havendo ainda tantas outras de semelhante teor. A ementa, o Tribunal e os dados de cada um dos mencionados julgados foram devidamente indicados na obra "Mistanásia: vidas banalizadas, mortes miseráveis" (Cabral, 2023). Observamos a existência de vários aspectos caracterizadores da morte mistanásica: vulnerabilidade, deficiência ou carência no serviço médico-hospitalar; morte sem atendimento nos fundos do posto de saúde; excessiva espera para deslocamento; falhas no diagnóstico levando a pessoa a óbito; paciente em estado grave conduzido sem as devidas cautelas; direito à saúde descumprido pelo Ente Público; estado de miséria e exclusão social; falta de infraestrutura (tratamento de água e esgotos); contaminação por material descartável reutilizado em hospitais e consequente óbito. Trata-se de uma realidade que precisa se tornar alvo de sérias, urgentes e eficazes políticas públicas, objetivando minimizar a ocorrência das mortes mistanásicas, a fim de podermos voltar a preconizar a dignidade e passarmos à implementação da humanização da medicina e do atendimento. A responsabilidade civil por mortes mistanásicas Pudemos observar que certos casos acima deflagram a atuação do Poder Judiciário (mediante provocação das partes legitimadas) para compelir a Administração Pública ao cumprimento do dever de promover saúde (art. 196 da CF): foi assim  em relação aos medicamentos onerosos que o cidadão não pôde custear e com a obrigação de fazer a instalação das redes de esgoto que já estavam previamente planejadas mas não se efetivavam e, em muitas outras hipóteses, decisão judicial liminar para realização de exames, procedimentos e cirurgias de pessoas com risco de morte na enorme fila de espera do Sistema Único de Saúde (SUS). Se por um lado, o teor dos julgados expostos demonstram a necessidade de atuação do Poder Judiciário para o acesso a medicamentos, atendimentos e intervenções nos hospitais para efetivar o direito à saúde, por outro, há decisões no sentido de reparar o dano experimentado pelos pacientes que foram a óbito vitimados pela omissão, o erro no diagnóstico, as falhas no atendimento, a morte por abandono, a negligência e outras espécies de prejuízos aos direitos existenciais, constituindo-se lesões morais do bem jurídico maior: a dignidade da pessoa humana, seguido do direito à vida, que por determinação constitucional é um direito inviolável. Então, ante as considerações deste breve estudo a respeito da obrigação de reparar o dano, torna-se indispensável a coexistência de três pressupostos configuradores da responsabilidade civil objetiva, que diz respeito à Administração Pública, aos hospitais e postos de atendimento (927 e segs do CC e art. 14, caput, da Lei n. 8.078, de 1990, o CDC)): ato ilícito (que é a conduta contrária à lei, que causa o prejuízo ou dano a terceira pessoa); dano (prejuízo experimentado por terceira pessoa, o paciente, que pode ser material ou moral) e o nexo de causalidade (que é o liame entre o ato ilícito e o dano, sendo indispensável que o dano tenha decorrido diretamente do ato ilícito praticado). No caso da responsabilidade civil dos agentes de saúde, como médico e demais profissionais da área, a responsabilidade civil será subjetiva, somando-se a esses três elementos anteriores (ato ilícito, dano e nexo causal), a culpa (os profissionais da saúde somente serão obrigados a reparar o dano se agirem  com culpa, por força do art. 186 do CC e do art. 14, § 4º da lei 8.078, de 1990, o CDC: "§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa"). Comprovada a culpa, eles responderão; em não havendo prova da culpa, resta à instituição hospitalar (ou congêneres) a obrigação de reparar o dano experimentado pelo paciente, eis que a responsabilidade civil objetiva o impõe. Pois bem, a partir dessa compreensão, todas as vezes que os hospitais e demais unidades de atendimento vinculadas a um ente federativo (União, Estados ou Municípios), por meio de seus agentes, praticam ato ilícito, nasce para a Administração Pública a obrigação de reparar o dano (essa obrigação subsiste em relação aos hospitais particulares, entretanto, eles não estão inclusos como objeto desta pesquisa). Se a Administração Pública é responsável pelos serviços de saúde oferecidos por meio dessas instituições, ela será obrigada a arcar com a reparação civil, conforme vimos na síntese dos julgados. À guisa de remate, uma vez demonstrada a importância dos direitos existenciais violados pela Mistanásia e a consequente obrigação de reparar o dano na seara dos novos direitos e novos danos, concluímos pela necessidade da correspondente reparação civil todas as vezes que os pacientes forem vitimados por lesão aos direitos existenciais. Nesse caso, deverão buscar, primeiramente, em seara administrativa, a composição de conflitos e, em face de não haver conciliação, buscarem a via judicial para ajuizar a competente ação de reparação civil em face do ente público legitimado para figurar no polo passivo da demanda. Conclusões  As mortes mistanásicas se caracterizam como novos danos na seara da responsabilidade civil, uma vez que a partir da valorização dos direitos existenciais, as lesões à dignidade da pessoa humana passam a compor um universo de direitos de primazia absoluta, os existenciais, decorrentes da dignidade da pessoa humana em todas as suas manifestações. A realidade é tão degradante, que se tornou conhecida pela doutrina bioética como morte em nível social, coletivo, em número tão elevado de pessoas cujas vidas são banalizadas, que levou Pessini a atribuir a esse fenômeno, a expressão "silencioso holocausto" (Pessini et al, 2015). Nessa esteira, mais de valores do que de direitos propriamente ditos, as mortes mistanásicas, reconhecidas como dano existencial, passam a merecer especial tutela, devendo o Poder Público, em cumprimento da função social, criar mecanismos capazes de garantir e assegurar a efetividade do direito, promovendo a responsabilização civil, a fim de que a imensa camada de pessoas vulneradas, obtenham a reparação que lhes cabe, em face do dano por elas experimentado, pois quanto a eles, jamais serão alcançados os objetivos da reparação civil, a restitutio in integrum (restituição integral do dano, de forma a restabelecer o equilíbrio ao ofendido), tampouco o status quo ante (que visa restituir ao ofendido o estado anterior à ocorrência da lesão). Trata-se de lesão passível de reparação, da espécie compensação, que visa tão somente atenuar os efeitos do dano, pois a rigor, é irreparável, por força da natureza intangível do bem jurídico violado, qual seja, vidas humanas. Precisamos crer em dias melhores, em um futuro promissor, no qual o volume de mortes mistanásicas se torne fato do passado, pois está nas mãos de nossa geração a possibilidade de acolhermos as obrigações como nossas e, como agentes transformadores, buscarmos viabilizar os valores e princípios da Lei Maior. E, aos que enquadram este sonho na categoria de utopia, concluo com a sabedoria de Pessini (2023, p. 20): "Então para que serve a Utopia? Podemos nos perguntar com Eduardo Galeano, e ele nos diz que 'a utopia está no horizonte. Caminho dois passos, e ela se distancia dois passos e o horizonte se afasta mais dez passos adiante'. Então para que serve a utopia, a não ser para caminhar? Então, caminhemos com esperança!" Ao que acrescento: e com muita fé! Referências  AMATRIAIN, Roberto Cataldi. Introducción a la bioética del siglo XXI. Buenos Aires: Hygea, 2017. BRASIL. CRFB, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível aqui. 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Recentemente, houve ampla repercussão de comercial veiculado em rede nacional de televisão, o qual uniu virtualmente - com o emprego de recursos de inteligência artificial -, Elis Regina, falecida em 1982 e sua filha Maria Rita. No vídeo, cada cantora dirige uma Kombi, a primeira um modelo dos anos 1970 na versão clássica carburante representando a mãe e sua época e a segunda dos anos atuais, representando a filha e a nova geração do automóvel, em versão elétrica. "Como nossos pais" foi a música base escolhida para, cantada em dueto artificial por mãe e filha, exprimir que a passagem dos anos não seria capaz de modificar o modus vivendi e que certos elementos (como os carros) adquiririam perenidade.   O comercial exemplifica que, na contemporaneidade, o uso de recursos técnicos que permitem a manipulação de imagens e voz de forma realista (notadamente deep fakes) tornam grises os limites entre o real e o virtual. Se antes isso se restringia aos detentores de bons e caros mecanismos (notadamente a indústria cinematográfica), atualmente a disseminação tecnológica permite que isso seja feito em profusão nos mais amplos meios. O falecimento não mais impede a criação de novas imagens da pessoa, permitindo inclusive uma "carreira pós morte". Nesse contexto, adquire relevância o estudo da interface entre os direitos de personalidade e o desenvolvimento tecnológico, bem como a proteção jurídica do legado imaterial da pessoa. O tema envolve inúmeros debates, notadamente (sob o enfoque jurídico) quanto a legitimidade para disposição do uso da imagem1 de pessoa falecida e a eventual consequência que poderia advir desse emprego. O exemplo do comercial será utilizado como pano de fundo para este texto, que contempla uma avaliação hipotética de situações que, ao menos teoricamente, poderiam ensejar responsabilização civil e, nesse âmbito, o questionamento seria dirigido aos seguintes tópicos: (1) haveria alguma pretensão indenizatória (civil individual) a ser exercida? (2) Se positiva a resposta, quem seria legitimado a postulá-la? Para a averiguação da ocorrência de responsabilidade na criação de deep fake e uso desautorizado de imagem, é essencial apurar quem poderia ser juridicamente atingido pela conduta lesiva (a "vítima"), qual seria o evento lesivo e consequente dano enlaçado por um nexo causal. Nesse caso, é possível apontar que alguns dos familiares poderiam ser legitimados a reclamar pelo uso indevido de imagem caso o comercial tivesse sido veiculado sem o devido assentimento de quem fosse apto a permitir a exploração e a manipulação da imagem. O evento lesivo seria o uso não consentido da imagem ou em desacordo com o que pudesse ter sido autorizado e o dano poderia ser de duas ordens, quais sejam, o patrimonial (o preço da imagem no mercado ou o lucro da intervenção) e o extrapatrimonial (a violação da autodeterminação daquele que teria o poder de dispor da imagem e do direito de personalidade). O estudo do direito de imagem envolve as chamadas teoria dualista e a monista. A dualista, típica do common law, desdobra o direito à imagem em right to privacy e rigth to publicity, ambos autônomos entre si, o primeiro reputando a imagem como uma das expressões intangíveis da privacidade (dela derivada, não independente) e tutelando valores pessoais da personalidade nessa esfera, e o segundo, tratando da dimensão patrimonial da imagem, passível de exploração econômica. A monista (que é a adotada no direito brasileiro), atribui ao titular do direito não somente a possibilidade de defesa em face de ingerências alheias indevidas, como também o poder de disposição, com a viabilidade de obtenção de benefícios advindos da sua exploração econômica, aliando ao referido direito dimensões patrimoniais e extrapatrimoniais. O resguardo ao direito de imagem é objeto do artigo 20 do Código Civil brasileiro (CC). A proteção póstuma se consolida processualmente na atribuição de legitimidade ao cônjuge ou colateral (até o quarto grau), para exigir a cessação de ameaça ou lesão a direito de personalidade ou indenização por violação ao mencionado direito (conforme dispõe o parágrafo único dos artigos 12 e 20 do CC). O uso desautorizado de imagem, no Brasil, pode ensejar uma obrigação de indenizar, independentemente do propósito de obtenção de lucro e a proteção ocorre em vida ou após a morte. Assim, a averiguação da possibilidade ou não de uso da imagem alheia passa pelo exame de seu contexto (importância fundamental ou secundária do uso), a finalidade do uso da imagem (econômica ou altruísta - mas essa relevância se dá notadamente para arbitramento de eventual indenização), as circunstâncias em que a imagem foi obtida e em que foi veiculada (acidentais ou propositais), o objetivo da divulgação (de atingir negativamente a honra ou de preservar ou elevar a reputação da pessoa cuja imagem está sendo utilizada), o meio e o tempo de divulgação; a veracidade e a integridade da imagem e de outros elementos de informação que possam ser considerados relevantes em cada caso concreto2. A voz também recebe proteção equivalente a que é concedida à imagem3, a qual representa a identificação pessoal4, por ser a "assinatura" da fonação, caracterizada pelo som com características particulares que um indivíduo produz (cada voz tem a sua ressonância, projeção, qualidade, velocidade e ritmo), sendo certo que essa singularidade permite e cria uma associação imediata entre voz e pessoa5. O direito de imagem (incluindo a voz, como dito) expressa-se em duas vertentes, a primeira representando a autodeterminação pessoal quanto a exploração (reprodução, difusão ou publicação), que justifica as legitimas decisões pessoais, e a segunda manifestando-se como direito de defesa, para que outros não o explorem desautorizadamente6. O CC prevê que a "existência da pessoa natural termina com a morte" (artigo 6º). Mas, ainda que a pessoa falecida possa ser sujeito de relações jurídicas - pois fim da vida lhe retira a personalidade jurídica em sentido subjetivo -, resistem à morte os seus legítimos interesses jurídicos provenientes dos direitos de personalidade, os quais transcendem ao falecimento, subsistem, produzem efeitos jurídicos e podem influenciar e causar ingerências voluntárias ou involuntárias no curso social7. A sequência da produção de alguns efeitos jurídicos póstumos demonstra que não ocorre a extinção da personalidade em sentido objetivo (constituída pelos atributos pessoais essenciais), mas, sim, há a sua projeção "para além da vida do seu titular"8. O exercício de alguns direitos póstumos se dá com outra titularidade e com características específicas (por isso, constitui-se como uma titularidade extraordinária), porquanto as legítimas pretensões relacionadas aos direitos de personalidade da pessoa falecida (notadamente de defesa, de inibição, de mitigação do dano ou de indenização por danos) podem ser exercidas pelo "cônjuge supérstite, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau" (artigo 12, caput e parágrafo único do CC), conquanto não se desconheça a crítica feita à regra, que não refere o companheiro e que limita os legitimados extraordinários ao rol de herdeiros.  Quanto ao fundamento dessa titularidade extraordinária, alguns autores sustentam que ela teria sua gênese em teorias sobre deveres jurídicos gerais, outros que afirmam a ideia de uma personalidade jurídica parcial pós-morte. Há, ainda, teorias que vinculam esse interesse aos próprios afetados diretamente por condutas atentatórias à memória do falecido ou que consideram os herdeiros ou legatários fiduciários dos direitos de personalidade do extinto9. Sustenta-se que a tese mais adequada é a que encontra o fundamento na titularidade dos herdeiros ou sucessores em relação a exploração de determinados atributos da pessoa falecida reside na sucessão por "aquisição derivada translativa mortis causa de direitos pessoais"10. Quanto ao uso de imagem, nome e voz, seus usos dependem de autorização, com algumas exceções (por exemplo, se for necessária à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, nos termos do artigo 20 do CC, por escopo científico, didático ou cultural), proteção essa que se estende à imagem de pessoa falecida11. A legitimação tanto para consentir com o uso de imagem de pessoa falecida quanto para postular indenização em caso de uso pós-morte indevido é atribuída, conforme o caso: (a) a quem for definido em testamento, (b) a quem for o titular de tal direito em razão de negócio jurídico regular, (c) ou a quem for legitimado por lei. O CC protege a imagem, o nome e a voz quanto ao uso por terceiros, mas nada dispõe sobre o uso por aqueles que ficam responsáveis pela administração desses direitos, no lugar do falecido. Pressupõe-se que, por uma questão de razoabilidade e boa-fé, aqueles que sucedem ao falecido, perenizando-o de certa forma, biológica ou juridicamente, tratarão de tais atributos com as cautelas admissíveis. Mas é necessário também pensar o que pode ser feito quando isso não acontece. Por precaução, convém que providências sejam tomadas ainda em vida pelo titular, pois a lei é silente e o falecido não tem mais ingerência efetiva sobre os fatos post mortem, dentre os quais o eventual uso desarrazoado ou abusivo. Nesse caso, haveria uma situação inusitada, na qual o "abusador", por autorizar a exploração econômica da imagem e voz, seria a mesma pessoa a quem a lei atribui legitimidade para frear situações de uso irregular, caracterizando conflito de interesses. Há limites naturais, por parte do titular, para preventivamente restringir as pretensões de futuros sucessores, em razão da perda de força efetiva de ação pós-morte, por determinação legal ou por manifestação de vontade do falecido, mas a manifestação prévia e escrita de vontade para reduzir o espectro de disposição daqueles que se tornaram "guardiões" de tais direitos ou das manifestações de tais direitos, é instrumento adequado a frear pretensões egoístas e distanciadas das legítimas intenções de seu titular, que pode consignar em que termos o uso de seus atributos de personalidade pode se materializar. A necessidade se acentua quando a imagem, a voz e o nome estão cercados de interesse pela notoriedade, pois sua importância se amplia na mesma medida da cobiça. Quem deseja preservar qualidades humanas positivas inerentes (inatas ou formadas no curso da vida) que constituem a sua própria honra do risco de serem trocadas por dinheiro, sem maiores cautelas, deve adotar uma postura ativa preventiva. Eventual ambição dos sucessores, aliada à ânsia curiosa da sociedade, pode se tornar uma armadilha cujo resultado tende a ser nefasto à pessoa falecida, trazendo a necessidade de que o titular do direito de imagem evite que esse atributo seja maculado por interesses meramente egoístas, ilegítimos ou distanciados de si, após o seu falecimento. Isso somente confirma o acerto do visionário ator Robin Williams, que, há aproximadamente uma década, por Living Trust, restringiu o uso da própria imagem após a morte12, em medida que representa conduta preventiva de danos. Tal fato ressalta a relevância da análise dos atos de disposição para o pós-morte nessa dimensão, relativa aos atributos pessoais, com índole extrapatrimonial direta e patrimonial indireta, porque permite duas abordagens relevantes: a primeira é a possibilidade de manter, na pessoa do titular, a disposição sobre o uso de sua imagem no período pós-morte, excluindo da seara do herdeiro essa prerrogativa e a segunda demonstra que o direito sucessório não tem conotação puramente material, servindo não apenas para tratar de questões relacionadas ao patrimônio, porque abre espaço para o tratamento de interesses de cunho existencial ou imaterial, evitando disposições indevidas de imagem. No entanto, isso não elimina o questionamento antes posto, no sentido de que falta especificar quem teria legitimidade para agir na defesa da vontade do extinto, caso o herdeiro não atenda às restrições de uso de imagem estabelecidas pelo falecido em vida, e a quem reverteria eventual indenização. __________ * Texto elaborado com base no artigo intitulado "Avanços tecnológicos e proteção post mortem dos direitos de personalidade por meio do testamento" publicado originalmente na Revista Fórum de Direito Civil. RFDC n. 10. Ano 4, set.-dez./2015. 1 A expressão "imagem" é empregada em sentido amplo, abrangendo a representação visual pessoal, estática ou dinâmica, atual ou passada, hígida ou alterada, total ou parcial (independentemente da técnica de captação utilizada), sendo também passível de emprego quando se quer afirmar a proteção ao desenho ou figura assemelhada (tal como os robôs referidos no precedente do common law Wendt v. Host Intern. Inc.). A imagem é protegida pela Constituição Federal (CF), em seu artigo 5º, incisos V e X, os quais reconhecem a inviolabilidade da imagem pessoal e asseguram a possibilidade de postulação de indenização caso a mesma seja violada. 2 O exposto representa uma visão que é essencialmente personalista no que se relaciona aos direitos de imagem, nome e voz. Não se desconhecem, porém, as análises alternativas que são feitas sobre o assunto, e que tratam de uma possível restrição ao viés cultural popular coletivo por parte de quem explora direitos de publicidade, especialmente quando envolvem pessoas públicas. (MADOW, Michael. Private Ownership of Public Image: Popular Culture and Publicity Rights 81 Calif. L. Rev. 125, 178-238 1993, p. 205-215). 3 O artigo 90, § 2º, da lei 9.610/1998 protege explicitamente a imagem e voz do artista intérprete ou executante ("§ 2º A proteção aos artistas intérpretes ou executantes estende-se à reprodução da voz e imagem, quando associadas às suas atuações"), e o artigo 5º, XXVIII da CF estabelece a necessidade de proteção ("nos termos da lei"), da imagem e voz humanas, "inclusive nas atividades desportivas". 4 CIFUENTES, Carlos. Derechos personalíssimos. 3. ed. Buenos Aires: Astrea, 2008. p. 557-558; BRÜGGEMEIER, Gert, et. al. Personality rigths in European tort law. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 245). No direito brasileiro, Szaniawski (SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 222) afirma que é possível encontrar, na jurisprudência, decisões de "outorga de tutela à própria voz de alguém, além do direito à própria imagem, estando assegurados, entre nós, a proteção de ambas aas manifestações da personalidade humana pela jurisprudência e pela doutrina". 5 A proteção jurídica abrange a voz profissional ou amadora, cantada ou falada, mas, na  jurisprudência californiana, o termo "voz" se aplica somente à voz real de uma pessoa, não protegendo os imitadores [conforme o precedente Midler v. Ford, 849 F.2d 460, 463 (9 Cir. 1988)]. No entanto, o right of publicity se aplica à proteção da voz da pessoa imitada, se a voz do imitador evocar a voz do imitado. Em Midler v. Ford afirmou-se que a voz seria tão distinta e pessoal como um rosto, apresentando-se como um dos modos mais palpáveis ??em que a identidade se manifesta: "um amigo é imediatamente conhecido por algumas palavras ao telefone" [Midler v. Ford, 849 F.2d 460, 463 (9th Cir. 1988)], disponível aqui. Esse caso trata da contratação de uma cantora que fez a imitação da voz da cantora Bette Midler, na música "Do You Want To Dance", em um comercial da Ford Motor Company, veiculado nos Estados Unidos da América em 1985]. Veja-se que não foi usado o nome ou a imagem de Midler, mas sim uma voz similar, fazendo com que as pessoas se confundissem. O fato de o público crer que a música era efetivamente cantada por Midler, foi entendido como uma conduta geradora de dano à cantora cuja voz foi imitada. 6 SILVA, Andréa Barroso. Direito à imagem: o delírio da redoma protetora. In: MIRANDA, Jorge, et. al. (org.). Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2012. p. 283. 7 SOUZA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p. 189, 193 e 194). Referido autor não menciona interesses juridicamente relevantes relacionados a pessoa falecida, ele menciona que a pessoa falecida teria personalidade física e moral como "bem jurídico", como "objeto dos direitos de personalidade". O cuidado que se deve ter com esse pensamento é o de reduzir os direitos de personalidade e suas expressões a um mero patrimonialismo que se vincula à expressão "bem jurídico".  8 SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 25. 9 Vide, por todos SOUZA (1995. p. 364) e, quanto às divergências em relação a titularidade do direito violado, veja-se BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 132-136. 10 SOUZA, 1995. p. 367. Esse também parece ser o caminho trilhado pela jurisprudência brasileira, revelando-se interessante a perspectiva do Resp. n. 268.660, que trata da atuação da mãe na defesa da imagem e memória da filha (agindo em defesa "alheia"), ao mesmo tempo em que admite uma pretensão que seria da mãe, pelo dano moral próprio decorrente do uso indevido da imagem (agindo em razão de um interesse próprio): CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. REEXAME DE PROVA. DIVERGÊNCIA. DANOS MORAIS E MATERIAIS. DIREITO À IMAGEM. SUCESSÃO. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. HONORÁRIOS. 1. Os direitos da personalidade, de que o direito à imagem é um deles, guardam como principal característica a sua intransmissibilidade. Nem por isso, contudo, deixa de merecer proteção a imagem de quem falece, como se fosse coisa de ninguém, porque ela permanece perenemente lembrada nas memórias, como bem imortal que se prolonga para muito além da vida, estando até acima desta, como sentenciou Ariosto. Daí porque não se pode subtrair da mãe o direito de defender a imagem de sua falecida filha, pois são os pais aqueles que, em linha de normalidade, mais se desvanecem com a exaltação feita à memória e à imagem de falecida filha, como são os que mais se abatem e se deprimem por qualquer agressão que possa lhes trazer mácula. Ademais, a imagem de pessoa famosa projeta efeitos econômicos para além de sua morte, pelo que os seus sucessores passam a ter, por direito próprio, legitimidade para postularem indenização em juízo. [...]. STJ. 4ª Turma. Recurso Especial n. 268660 / RJ. Relator Ministro César Asfor Rocha. J. em 21/11/2000. DJ 19/02/2001, p. 179. RSTJ, vol. 142, p. 378. RT, v. 789, p. 201. Em sentido contrário ao ora exposto preleciona SZANIAWSKI (2005. p. 221). 11 "Le droit à l'image persiste après le décès de la personne représentée, [.]". (MASSON, Jean-Pol. Le droit à l'image. In: RENCHON, Jean-Louis. Les droits de la personnalité. Bruxelles: Bruylant, 2009. p. 243). 12 No caso do ator mencionado, houve tutela dos denominados rigths of publicity. O ator utilizou a via do living trust para manter a sua imagem a salvo de exploração publicitária, incluindo a impossibilidade de uso de sua imagem (estática ou dinâmica), nome, voz e assinatura por um período de vinte e cinco anos, a contar da sua morte. Disponível aqui. A limitação pode considerar questões de tempo, espaço/território, finalidade, objeto, meio, etc. Estão fora dos limites de disponibilidade aqueles casos em que o uso da imagem, da voz e do nome não estiverem contidos na esfera de autodeterminação pessoal juridicamente aceitável, pois a circunscrição dos direitos de personalidade, nesse ponto, não é distinta daquela que se poderia traçar em vida (v. SOUZA, 1995, p. 196). Por isso, não se permite o ato de disposição pós-morte que, por exemplo, venha a tentar restringir a veiculação de imagens relativas a um acontecimento histórico, ou de interesse público relevante, havendo também restrição relativa a própria incompatibilidade entre a natureza do tipo de direito de personalidade em questão e os próprios pressupostos dessa espécie, tal como ocorre com o direito à vida. Devem ser respeitados os negócios jurídicos válidos firmados em vida pelo titular, ou mesmo expressões de criação que tenham caído em domínio público.
Resumo: Discute-se o uso inovador da biometria facial em eventos esportivos, com foco nas recentes implementações exigidas pela Lei Geral do Esporte (lei 14.597/2023). Explora-se como a substituição de métodos tradicionais de ingresso por sistemas de reconhecimento facial tem impactado a eficiência e segurança dos eventos, em cotejo com as exigências da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (lei 13.709/2018) para o tratamento de dados pessoais sensíveis e quanto aos regramentos de responsabilidade civil definidos. No mais, o artigo aborda as preocupações éticas relacionadas à privacidade e ao uso indevido de dados biométricos.  A crescente integração de tecnologias emergentes de reconhecimento facial em diferentes setores tem estimulado discussões a respeito de seus benefícios e dilemas éticos1. No contexto dos eventos esportivos, a adoção da biometria facial como meio de acesso a estádios tem demonstrado vantagens significativas, incluindo agilização do processo de entrada e combate ao cambismo. No entanto, essa mudança não vem sem questionamentos sobre a proteção de dados pessoais e a utilização responsável de dados biométricos2. Recentemente promulgada, a lei 14.597, de 14 de junho de 2023 (Lei Geral do Esporte - LGE), visa aprimorar e regular diversos aspectos relacionados à organização e administração de eventos esportivos. Um dos pontos tratados na lei diz respeito à obrigatoriedade de implementação de sistemas de controle e fiscalização do acesso do público a arenas esportivas com capacidade para mais de 20.000 pessoas. Tal monitoramento deve incluir o uso de tecnologias de imagens para a supervisão das catracas, bem como a adoção de identificação biométrica dos espectadores por técnica de reconhecimento facial (art. 148). Ademais, o texto também prevê a obrigatoriedade da implementação de centrais técnicas de informações com a infraestrutura necessária para viabilizar a supervisão por imagem do público presente e a realização do cadastramento biométrico dos espectadores. Sabe-se que dados biométricos são considerados dados pessoais sensíveis3 pelo artigo 5º, inciso II, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD (lei 13.709/2018)4, de modo que toda operação de tratamento (que envolve, por exemplo, a coleta, o processamento e o armazenamento) deve se embasar em alguma das hipóteses ("bases legais") do artigo 11 da lei, com a proteção do livre desenvolvimento da personalidade e do princípio da não discriminação, pois, "além de se realizar uma proteção mais ampla dos dados sensíveis, tal proteção também deverá ser observada nos casos em que houver tratamento sensível de dados pessoais"5, a denotar regime que se coaduna com o entendimento firmado no Enunciado 690, aprovado por ocasião da IX Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, em maio de 2022, com os seguintes dizeres: "a proteção ampliada conferida pela LGPD aos dados sensíveis deverá ser também aplicada aos casos em que houver tratamento sensível de dados pessoais, tal como observado no §1º do art. 11 da LGPD". Havendo previsão expressa na Lei Geral do Esporte para a operação de tratamento de dados pessoais sensíveis pela coleta de biometria facial em estádios, é inegável a licitude da atividade, com lastro no cumprimento de obrigação legal (art. 11, II, "a", da LGPD). Eventual excesso, contudo, poderá acarretar eventual responsabilização (art. 42 da LGPD) e sanção administrativa (art. 52 da LGPD) aos controladores, que, no caso, são a organização esportiva diretamente responsável pela realização do evento esportivo e seus dirigentes (art. 149 da LGE). Embora o debate sobre a segurança nas arenas esportivas não seja novo, fato é que, três semanas depois da promulgação da nova lei, um fatídico óbito reacendeu as discussões em torno da responsabilização civil por atos de violência em estádios. A tragédia ocorreu enquanto Gabriela Anelli Marchiano, de 23 anos, aguardava na fila para entrar no Allianz Parque, estádio da Sociedade Esportiva Palmeiras, em São Paulo/SP. Um confronto entre torcedores de torcidas organizadas do time local e do Clube de Regatas do Flamengo eclodiu, levando à intervenção da polícia militar com o uso de gás de pimenta para conter a situação. Durante a briga, Gabriela foi atingida no pescoço por estilhaços de uma garrafa de vidro, resultando em ferimentos graves e, apesar de ter sido levada para o hospital e de ter passado por tentativas de reanimação, infelizmente, não sobreviveu. A confusão teve início nas cercanias do portão "A" do estádio, quando torcedores do Palmeiras perceberam a presença de torcedores flamenguistas6. Diante disso, os torcedores palmeirenses começaram a perseguir os torcedores rivais com a intenção de agredi-los. A ação da Polícia Militar, que utilizou gás de pimenta, acabou afetando não apenas os torcedores, mas também os jogadores em campo, resultando em interrupções na partida. A morte trágica de Gabriela Anelli e os eventos que a cercam suscitam questões cruciais sobre a segurança em eventos esportivos e a atuação das forças de segurança. A Polícia Civil, por meio da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), efetuou a prisão de um suspeito após utilizar imagens capturadas por uma emissora de televisão e pelo sistema de reconhecimento facial do Allianz Parque7, implementado em conformidade com a nova exigência do artigo 148 da Lei Geral do Esporte. O software utilizado no local8 foi desenvolvido por uma startup brasileira e é operado por sistemas algorítmicos que processam imagens a ponto de identificar até 80 pontos do rosto humano para obter alta precisão, mas jamais de modo infalível. Isso porque, via de regra, o reconhecimento facial é realizado por técnicas sofisticadas de captura de imagens em tempo real, com processamento algorítmico para a extração de recursos faciais relevantes e comparação com bancos de dados de rostos conhecidos (a denotar a razão peal qual a LGE determina a existência de infraestrutura para cadastramento prévio dos torcedores que ingressam nas dependências do estádio), mas, ainda assim, é possível que haja falhas. A título exemplificativo, pode-se categorizar as técnicas mais comuns de reconhecimento facial em quatro grandes grupos: (i) métodos baseados em características, pelos quais são extraídos traços do rosto, como olhos, nariz, boca etc. para comparação com um conjunto de características conhecidas a partir de métodos como Eigenfaces e Fisherfaces9; (ii) métodos baseados em modelos 3D, que utilizam informações tridimensionais do rosto para realizar o reconhecimento facial, com resultados mais robustos em relação a variações de pose e iluminação10, sendo geralmente baseados em Modelos Deformáveis de Superfície (SDM) e nos Volumetric Hierarchical Density-Adaptive Models (VHDAM); (iii) métodos baseados em aprendizado de máquina (machine learning), pelos quais se emprega algoritmos para treinar um modelo que pode identificar e reconhecer rostos a partir de Redes Neurais Convolucionais11 (CNNs) e Support Vector Machines (SVMs); (iv) métodos baseados em deep learning12, que se valem de redes neurais profundas para analisar representações faciais complexas e realizar o reconhecimento facial por modelos como FaceNet13 e as Multi-task Cascaded Convolutional Networks (MTCNN). A despeito da sofisticação técnica desses métodos, trata-se de situação preocupante, como anota Eduardo Tomasevicius Filho, pois "os algoritmos de inteligência artificial voltados ao reconhecimento facial trabalham com mecanismos de semelhança e não de exatidão, posto que se precisa encontrar a resposta com a máxima rapidez possível. Devido às experiências anteriores acumuladas pelo uso contínuo do software, no sentido de eliminarem-se as "pistas" erradas, chega-se ao resultado correto"14. No entanto, a questão da segurança dos dados permanece duvidosa, especialmente com a incerteza sobre os níveis de segurança informacional adotados para cumprimento dos deveres estabelecidos nos artigos 46 e 49 da LGPD, uma vez que, "devido ao fato de que algoritmos de inteligência artificial não são dotados da sensibilidade humana, decorrente das inteligências múltiplas, é possível a ocorrência de aprendizados equivocados a partir de dados mal coletados ou mal interpretados, gerando análises preconceituosas ou equivocadas, as quais podem levar a severas limitações de liberdades da pessoa e violações por danos patrimoniais e extrapatrimoniais, configurando violações ao direito à honra"15. Além disso, a utilização de outras tecnologias - como drones e scanners 3D - para a reconstituição do incidente destaca a importância de métodos investigativos modernos para esclarecer os detalhes dos acontecimentos16. Isso porque, inegavelmente, a triste ocorrência levanta preocupações sobre a violência associada a torcidas organizadas e a necessidade de medidas que promovam a segurança e o bem-estar dos torcedores nos estádios. No mais, convém registrar que a LGE define as condições de acesso e permanência dos espectadores no recinto esportivo, independentemente da modalidade de ingresso utilizada e, dentre as diversas condições especificadas, o inciso XII do artigo 158 estabelece a obrigatoriedade do cadastro no sistema de controle biométrico previsto no artigo 148 para espectadores com idade superior a 16 anos. Além disso, o parágrafo único do artigo 158 estipula que o descumprimento das condições estabelecidas no mencionado artigo implicará a impossibilidade de acesso do espectador ao local do evento esportivo ou, caso já esteja presente, o seu afastamento imediato do recinto. Esse cadastro é fundamental para assegurar a identificação e autenticação dos indivíduos presentes no evento esportivo e tem clara conotação de reforço da segurança e do controle do ambiente, mas a que custo? Não há dúvidas de que o impedimento de acesso do torcedor restringe seu direito social ao lazer (art. 6º, caput, CF) e limita o exercício de sua autodeterminação informativa (art. 2º, II, LGPD) em prol da almejada segurança. O §5º do artigo 178 estabelece uma disposição importante relacionada às torcidas organizadas17, pois prevê de forma categoria a responsabilidade civil objetiva e solidária pelos danos causados por qualquer um de seus associados ou membros no local do evento esportivo, em seus arredores ou no trajeto de ida e volta para o evento. Além disso, o §6º reforça o dever de reparação do dano estabelecido no parágrafo anterior, pois indica, explicitamente, que a responsabilidade pelo dano não recai somente sobre a torcida organizada, mas também sobre seus dirigentes e membros, solidariamente e com o próprio patrimônio. Em conclusão, a exigência do fornecimento da biometria facial nos eventos esportivos representa uma significativa transformação no acesso e na segurança desses ambientes. Enquanto seus benefícios são inegáveis, as implicações éticas e jurídicas não podem ser subestimadas. A busca pelo equilíbrio entre a otimização da experiência do torcedor e a proteção de sua privacidade exige uma abordagem cuidadosa e ponderada18, sustentada por normas regulatórias sólidas e práticas transparentes de gerenciamento de dados. A contínua discussão e a análise crítica dessas questões são essenciais para garantir que a adoção de tecnologias emergentes ocorra de maneira ética e responsável, e, nesse aspecto, o rigor das previsões da LGE em matéria de responsabilidade civil - que vai além das organizações responsáveis pelo evento e atinge diretamente dirigentes, torcidas organizadas e os membros dessas - revela a clara intenção de coibir a violência. Será importante acompanhar o processo de adequação de outras organizações esportivas que possuem arenas e ginásios com a capacidade mínima exigida a fim de que se possa aferir a conformidade com a LGE e com a LGPD, que devem convergir para a propagação de uma cultura de prevenção de ilícitos e para a mitigação de danos. __________ 1 No Brasil, por exemplo, tem-se em tramitação os Projetos de Lei 12/2015, 9736/2018, 11140/2018 e 4612/2019 - apenas para citas alguns. 2 OLIVEIRA, Samuel Rodrigues de. Sorria, você está sendo filmado! Repensando direitos na era do reconhecimento facial. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 105-113. 3 Segundo Chiara de Teffé e Mario Viola: "Os dados sensíveis necessitam mais do que nunca de uma tutela diferenciada e especial, de forma a se evitar que informações dessa natureza sejam vazadas, usadas indevidamente, comercializadas ou sirvam para embasar preconceitos e discriminações ilícitas em relação ao titular. Todavia, a mera proibição do tratamento de dados sensíveis é inviável, pois, em alguns momentos, o uso de tais dados será legítimo e necessário, além do que existem determinados organismos cuja própria razão de ser estaria comprometida caso não pudessem obter informações desse gênero, como, por exemplo, algumas entidades de caráter político, religioso ou filosófico". TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; VIOLA, Mario. Tratamento de dados pessoais na LGPD: estudo sobre as bases legais. Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 9, n. 1, 2020. p. 37. 4 Prevê a LGPD: "Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se: (...) II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural". Por tratar-se de norma que influenciou diretamente a LGPD brasileira, é sempre conveniente a transcrição de conceitos específicos do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados da União Europeia (Regulamento 2016/679/EU), e, sobre o tema, os europeus cuidaram de estabelecer definição específica para "dados biométricos" no artigo 4º, item 14, do RGPD: "dados pessoais resultantes de um tratamento técnico específico relativo às características físicas, fisiológicas ou comportamentais de uma pessoa singular que permitam ou confirmem a identificação única dessa pessoa singular, nomeadamente imagens faciais ou dados dactiloscópicos". 5 TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Dados pessoais sensíveis: qualificação, tratamento e boas práticas. Indaiatuba: Foco, 2022. p. 39. 6 STABILE, Arthur. Palmeirense ferida em confusão de torcedores foi socorrida por ambulância do estádio e teve duas paradas cardíacas. G1, 10 jul. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023. 7 ESPN. Como imagens da ESPN e sistema de reconhecimento facial do Allianz foram decisivos para prender suspeito de matar Gabriella Anelli. ESPN.com.br - Redação, 25 jul. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023. 8 CAPELO, Rodrigo. Reconhecimento facial no estádio do Palmeiras abre debate sobre benefícios e perda de privacidade. Globo Esporte, 17 jan. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023. 9 WECHSLER, Harry. Reliable face recognition methods: system design, implementation and evaluation. Cham: Springer, 2006, passim. 10 PROESMANS, Marc; VAN GOOL, Luc. Getting facial features and gestures in 3D. In: WECHSLER, Harry; PHILLIPS, P. Jonathon; SOULIÉ, Françoise Fogelman et al (Ed.). Face recognition: from theory to applications. Cham: Springer, 1998, p. 287-309. 11 LAWRENCE, Steve; GILES, C. Lee; TSOI, Ah Chung; BACK, Andrew D. Face recognition: a convolutional neural-network approach. In: IEEE Transactions on Neural Networks, [S.l], v. 8, n. 1, p. 98-113, jan. 1997. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023. 12 ROSEBROCK, Adrian. Face recognition with OpenCV, Python, and deep learning. PYimagesearch, 18 jun. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023. 13 SCHROFF, Florian; KALENICHENKO, Dmitry; PHILBIN, James. FaceNet: A Unified Embedding for Face Recognition and Clustering. In: Proceedings of the IEEE Computer Society Conference on Computer Vision and Pattern Recognition 2015. Boston, MA, USA, 7-12 jun. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023. 14 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Reconhecimento facial e lesões aos direitos da personalidade. In: BARBOSA, Mafalda Miranda et al. (coord.). Direito digital e inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 136. 15 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Reconhecimento facial e lesões aos direitos da personalidade. In: BARBOSA, Mafalda Miranda et al. (coord.). Direito digital e inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 136-137. 16 MAGATTI, Ricardo. Polícia reconstitui morte de Gabriela Anelli, com drones e scanners 3D, e ouve novas testemunhas. Terra, 18 jul. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 28 ago. 2023. 17 O §2º do mesmo dispositivo traz o conceito de "torcida organizada": "(...) §2º Considera-se torcida organizada, para os efeitos desta Lei, a pessoa jurídica de direito privado ou existente de fato que se organiza para fins lícitos, especialmente torcer por organização esportiva de qualquer natureza ou modalidade". 18 A esse respeito, permanece atual a lúcida ponderação de David Lyon: "(...) the reality is that 'privacy' often remains a privilege. Expressed within data protection law it stands as a necessary minimum requirement, but that hardly touches the deeper problem. Today's surveillance is carried out not only by government but also by large corporations, not only within the nation-state but in networks that transcend humanly created boundaries". LYON, David. The electronic eye: the rise of surveillance society. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994, p. 195.
Embora corra o risco da redundância, a atual tratativa da privacidade e suas implicações possui conexão direta com a enorme expressão da virtualização das relações jurídicas. Uma parte significativa dos contratos migrou para plataformas digitais, onde o "aceite" está à curta distância de um clique, a um toque na tela ou a uma identificação facial. O reconhecimento de firmas desaparecerá logo mais, sendo substituído totalmente por assinaturas digitais. A burocrática ida ao banco, as cansativas filas de supermercado, de embarque, dos atendimentos a serviços públicos tendem a desaparecer. As relações sociais, dentre elas se colocam as relações de trabalho, entre amigos e até mesmo familiares, em sua maioria, estão mediadas por plataformas que utilizam nas suas performances complexas aplicações de inteligência artificial. O comércio mudou, o consumo mudou, a mercadoria mudou. E com isso, as visões de poder, de democracia, de relação entre pessoas e entre povos também se transfiguraram significativamente. Por medidas de segurança, as câmeras se multiplicam por todos os lados, dentro e fora de casa. Mais do que isso, as câmeras acompanham as pessoas a todo tempo por utilização de smartphones, os quais passam quase a ser extensão do próprio corpo. Obviamente que este movimento se acentuou, nos últimos anos, em razão das medidas de isolamento impostas pelas condições sanitárias advindas com a pandemia da COVID-19. Mas não é apenas isso, a praticidade e a "garantia de segurança" prometidas por tais mecanismos tecnológicos faz com que o consumo dos mesmos seja infinitamente mais célere e desproporcional comparativamente à discussão sobre as possíveis consequências que os envolve. As empresas (e por que não organismos governamentais?) vendem a ideia de que, quando o indivíduo se depara com as "políticas de privacidade", está entre escolher ser "bem servido" ou "mal servido". Como se o significado de privacidade se restringisse a ter uma melhor ou pior experiência de consumo. Sobre esse aspecto, será mesmo confiável que a recusa promovida por uma pessoa seja acatada por quem está do outro lado, seja ela inteligência humana ou artificial? As inúmeras publicidades direcionadas parecem desmentir o tal sigilo de informações e compartilhamento de dados. Está fora de questão duvidar do benefício que as novas tecnologias propiciam à proteção ao meio ambiente, aos avanços da medicina, ao bem-estar das pessoas, ao crescimento da sociedade. Por outro lado, em tempos de cliques, prints, encaminhamentos de mensagens, ataques promovidos por ransomwares etc., a vida privada encontra-se sob enorme risco, o que leva à necessidade de medidas de sustentabilidade e protetivas desse direito fundamental. Será que há espaço para a discussão sobre relativização ou diminuição do papel da privacidade? Ou quem sabe uma releitura da sua função enquanto direito fundamental? A resposta passa longe do aniquilamento desse direito ou até mesmo de sua diminuição. Conforme o pensamento de Giovanni Buttarelli¹, a privacidade deve ser compreendida não apenas como um direito individual, mas também como uma garantia da democracia. Segundo o autor: "os dados pessoais podem e devem ser utilizados de acordo com os interesses públicos, com os interesses gerais do Estado e da sociedade, porém não para vantagem de pequenos grupos ou individuais."² Em interessante retrato do movimento social, o Gabinete Oficial do Governo Japonês aponta que, após passar pela sociedade da caça (sociedade 1.0); sociedade agrícola (sociedade 2.0), sociedade industrial (sociedade 3.0) e sociedade da informação (sociedade 4.0), foi proposta, no 5º Plano Básico de Ciência e Tecnologia (2016), a sociedade 5.0, pautada na centralidade do ser humano, "que equilibra o avanço econômico com a resolução de problemas sociais por um sistema que integra altamente o ciberespaço e o espaço físico."³ O passo adiante nesse avanço de ideias é a concepção da sociedade do bem-estar, denominada como sociedade 6.0, a qual tem como pilar: uma sociedade ética, inclusiva e sustentável através da inovação e transformação digital", resultando em uma Sociedade Socialmente Sustentável e Responsável.4 Alcançar este estágio de desenvolvimento, no entanto, perpassa a discussão de como os tribunais brasileiros enfrentam e enfrentarão o grande desafio de reparar eventuais danos provenientes de violação da privacidade, ocasionados por incidentes cibernéticos, ainda que provenientes de atividades lícitas. Paradigmas como o da permissão de publicação de biografias não autorizadas não parecem ser os melhores conselheiros. Em que se cristaliza o pensamento: publica e depois se repara eventuais danos. O caminho mais equitativo da responsabilidade civil é aquele que acentua as suas funções preventivas e precaucionais, especialmente em preservação de princípios como a dignidade. Por outro lado, tratar de privacidade em rede traz um tortuoso caminho em delinear os danos provenientes da violação desse direito. Mais do que isso, surgem diversos outros questionamentos como a extensão dos danos; quantas e quais pessoas teriam seus dados expostos; possíveis responsáveis por violações. Em que pese a dificuldade na formulação de respostas, violações ao caro direito fundamental à privacidade não podem padecer de responsabilização. Para que não ocorra como outrora, em que, jurisprudencialmente, embora se reconhecesse a existência de danos morais, eles não eram reparados pela dificuldade da prova. Um caminho alvissareiro para tentar conter novos incidentes e trazer uma resposta à sociedade é o bom uso das tutelas coletivas, já que, como dito, a preservação da privacidade não resguarda apenas a esfera de um indivíduo, mas também protege a coletividade e, consequentemente, ampara a segurança democrática. __________ 1 BUTTARELLI, Giovanni. Privacy 2030: Una nuova visione per l'Europa. IAAP (International Association of Privacy Professionals). Publicado 18 set 2020. Disponível aqui. Acesso em 05 mai 2023. 2 Tradução livre de: I dati personali possono e devono essere utilizzati per l'interesse pubblico, per gli interessi generali dello stato e della società anziché a vantaggio di singoli gruppi o individui. 3 Tradução livre de "that balances economic advancement with the resolution of social problems by a system that highly integrates cyberspace and physical space". Gabinete Oficial do Governo do Japão. Society 5.0. Disponível aqui. Acesso em 05 mai 2023. 4 ZIZEK , Simona Sarotar; MULEJ, Matjaz; POTOCNIK Amna. The Sustainable Socially Responsible Society: Well-Being Society 6.0. In Sustainability 2021, 13, 9186. Disponível aqui. Acesso em 05 mai 2023.
Recentemente foi promovido o I Congresso Carioca de Responsabilidade Civil em parceria entre o IBERC e o MP/RJ. Naquela oportunidade, como não poderia deixar de ser, o primeiro painel do dia tinha como objeto o debate acerca dos riscos em nossa sociedade ao tratar da "Responsabilidade Civil e Gestão de Riscos". Como se tem percebido ao longo das últimas décadas, o risco tem tomado conta do debate no âmbito da reparação dos danos, contaminando a análise dos chamados filtros da responsabilidade. Não é sem razão que este tema já foi objeto de inúmeras colunas neste espaço1 e é atualmente ponto central do debate da regulação das atividades perigosas. Diga-se, a propósito, que o principal debate que se coloca no mundo atualmente diz respeito à regulação dos sistemas de inteligência artificial (IA), cujos riscos são desconhecidos. Yuval Noah Harari em recente artigo para o The Economist2 nos alerta que, nos últimos anos, as ferramentas de IA ameaçam a sobrevivência da civilização em uma direção inesperada: a IA ganhou uma extraordinária habilidade de manipular e gerar a linguagem, seja com palavras, sons ou imagens. Mais uma vez, os ditos riscos3. Tratado sob diversas perspectivas e áreas do saber e, muito embora o campo das ciências jurídicas tradicionalmente se valha do tratamento estatístico/matemático e econômico do risco, esta problemática vem acrescida de outras importantes áreas do saber, notadamente, da sociologia, antropologia, psicologia, filosofia e ciências políticas4. Podemos tratar o risco, então, a partir das perspectivas tecno-científicas, definindo o risco como produto das probabilidades, muito utilizado no campo do seguro, ou a partir das perspectivas socioculturais, que se valem dos contextos social e cultural em que o risco é entendido, vivido, concretizado e negociado5. Como lidar com esses riscos? E de quais riscos está se tratando? O risco sempre esteve presente na humanidade, mas a mudança no tratamento dele é o que define os tempos modernos6. A partir do final do século XIX e início do século XX, o tema do risco ganha espaço, também, na cultura jurídica, culminando, no final do século retrasado, no debate acerca da responsabilidade pelo risco. Contudo, como afirmado anteriormente7, os modelos de risco até então presentes nas ciências jurídicas mantêm um viés claramente ligado à noção de industrialização, profundamente enraizada ao final do século XIX e início do século XX. Seja o risco criado, proveito, profissional, administrativo ou integral, todos eles caminham na mesma direção: reconhecer o fenômeno da industrialização nos séculos antecedentes e, portanto, imputar a responsabilidade a quem desenvolve uma atividade perigosa. Contudo, elas não fornecem instrumentos que permitam ao magistrado identificar com segurança jurídica o que efetivamente é o risco inerente a uma atividade considerada tecnicamente perigosa e quais fatos estão inseridos no "risco da atividade". Podemos trazer alguns exemplos atuais da dificuldade de identificação do risco que compõe o círculo da atividade: em 2019 o TJ/MG condenou a Walmart em razão de uma consumidora, vítima de phishing (uso de site fraudulento, por terceiros, que imitava o site da Walmart), que adquiriu uma TV de um site que não era da empresa, mediante anúncio proveniente de um e-mail, mas cujo produto nunca foi entregue à consumidora. Na sentença de primeira instância foi constatado que a parte autora foi vítima de fraude, e, mesmo assim, a empresa ré foi condenada pois, segundo os "print's" das páginas, a consumidora adquiriu o produto em site que aparentava ser da parte ré, já que o site fraudulento usava a logomarca da ré, aparentando veracidade. O Tribunal, na apelação, alegou, dentre outros fatores, que (i) já havia notícias que fraudadores se valiam do site falso da empresa e nada foi feito pela Walmart, (ii) esta não manteve vigilância constante na internet para identificar o uso indevido de sua marca por meio de profissionais da área de tecnologia da informação e que, portanto, (iii) assumiu o risco de ter o seu nome usado nessas negociações fraudulentas no mundo virtual8. Em outra situação, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu que o roubo por arma de fogo em estacionamento de lanchonete estaria fora do risco da empresa (fortuito externo)9, mas um ano depois, em caso análogo, entendeu que o assalto no drive-thru do estacionamento configura fortuito interno e, portanto, inserido no risco10. E o caso mais polêmico de todos? Prática de ato libidinoso contra passageira no interior de trem ou ônibus. É sabido que o tema foi objeto de julgamento pela Segunda Seção do STJ, na busca de uniformização de jurisprudência. Em 2021, no julgamento EAREsp 1.513.560/SP11, o STJ decidiu que o referido ato libidinoso no interior de vagão de trem metropolitano é fortuito externo por não guardar conexão com a atividade de transporte. Pois bem, o ponto é de que risco estamos falando? O que é o risco e como ele deve ser encarado pelas ciências jurídicas e qual o seu papel diante das novas tecnologias? Trata-se de tema espinhoso e de difícil conceituação12, não havendo unanimidade entre os autores na medida em que o risco é tratado a partir das mais variadas acepções e dentro das mais distintas áreas do saber, o que apenas torna mais difícil o trabalho do operador do direito na busca pela definição de uma teoria adequada para os tempos atuais. Ponto importante a ser compreendido é que a nova configuração social, especialmente a partir do final do século passado trouxe à luz a ideia de que a sociedade não tem mais como evitar o risco, mas apenas escolher quais riscos assumir13. Como lembra Menezes Cordeiro, "o progresso industrial conduziu a um aumento quantitativo e qualitativo do risco"14. A noção de risco permeia a ideia de ações possíveis e tomadas de decisão. O que se pretende é antecipar contingências futuras e, assim, adotar a melhor ação possível a fim de reduzir perigos15. Dessa forma, os riscos são eventos futuros que podem ocorrer, e que ameaçam a todos nós. O risco é, portanto, a antecipação da catástrofe e o propósito de sua investigação é, justamente, a sua redução. Contudo, uma vez que ele tenha ocorrido, será necessário identificar a quem compete suportá-lo. Não se deve tratar o risco como um fato exclusivamente objetivo do mundo, independente do homem16. É certo que existem fatos aceitos como reais. É o exemplo da queda de um avião, da existência do câncer, de mortes prematuras de pessoas expostas a altos níveis de radiação etc. No entanto, se aceitamos que esses fatos não decorrem de causas mágicas, divinas ou cósmicas, mas, de causas específicas, é porque esses riscos decorrem da nossa compreensão e da construção do conhecimento a partir do mundo socialmente existente. Ou seja, o risco não existe independentemente do conhecimento humano, mas ele só é verificado e compreendido a partir da perspectiva humana. Logo, a construção social e a percepção cultural influenciam decisivamente o conteúdo do risco. A forma como o risco é encarado, percebido e experimentado deve ser considerado em sua análise. O risco não é um fato puro, desprovido de uma análise social; ele é reconhecido e discutido no meio social. Dito diversamente, os riscos são reais, embora permaneçam construções sociais. Nesse sentido, pode-se afirmar que a assunção do risco com a consequente tomada de decisão decorre, também, de uma relação de confiança. Aquele que assume um determinado risco o faz baseado na sua percepção dos riscos quanto à tomada de decisão e na confiança despertada a partir do conhecimento científico construído na sociedade, e, também, da percepção cultural e social decorrente de experiências passadas, dos meios de comunicação, das instituições e de outras fontes variadas. A confiança acaba por se tornar elemento decisivo nas sociedades contemporâneas. O desenvolvimento tecnológico potencializou o desempenho de atividades perigosas, cujos processos são continuamente invisíveis e não transparentes aos sujeitos17 (ao menos àqueles que potencialmente suportarão os riscos). E a crença depositada no conhecimento técnico, assim como naquele colhido da experiência humana não técnica influencia a tomada de decisão, o que demonstra que o problema do risco é, também, um problema de confiança, pois esta última é o motor que permite a formação de um juízo adequado à tomada de decisão dentro de padrões legitimamente esperados dos riscos18. Assim a construção de um conceito de risco deve levar em consideração que: (i) existem determinados fatos no mundo que são objetivos, ainda que a relação de causa e efeito seja dotada de incerteza, mas cuja (ii) identificação, reconhecimento, entendimento, mensuração e tratamento são limitados pelas restrições sociais e cognitivas, e (iii) o reconhecimento de que a partir dessa tomada de decisão vigora uma incerteza relativa e perene a alguma característica do mundo que afeta a realidade humana existente. Diante do que foi exposto até então, é de se propor uma noção, para fins de imputação de responsabilidade civil. Nesse ponto, propõe-se que o risco da atividade seja compreendido como uma situação ou um evento legitimamente esperado, atribuível a uma decisão humana, comissiva ou omissiva, em que um interesse juridicamente protegido se encontra sujeito a uma lesão potencial, mas cujo resultado concreto é incerto.19 Este conceito tem uma premissa evidentemente realista, pois reconhece que o risco é real, ele é um fato dado no mundo que resulta da pressuposição de que algum resultado é possível, mas não predeterminado, o que demonstra inegavelmente a incerteza que circunda a noção de risco. Este ponto é relevante, pois expressa o entendimento de que o risco existe ainda que não seja possível percebê-lo com o conhecimento humano produzido ao tempo da tomada de decisão. Mas, ao mesmo tempo, identifica o risco a partir da construção social, pois exige, para a atribuição do dever de indenizar, que a situação seja legitimamente esperada, isto é, que seja apreendida e reconhecida no meio social como uma causa possível da tomada de decisão consistente na exploração da atividade perigosa. Isto permite que, futuramente, haja alterações na compreensão do risco, que não é estático, mas, antes, mutável e em constante transformação. Realmente, a noção de normalidade se altera à medida que despontam novos conhecimentos, o que permite uma revisão dos conceitos envolvendo os riscos de uma determinada atividade. Por fim, estabelece que o problema do risco só se coloca no campo da responsabilidade civil quando algum interesse juridicamente relevante está sujeito a alguma lesão real ou potencial, o que atrairá a incidência do dever de reparar. Parece que a proposta aqui formulada é suficientemente abrangente e maleável de modo a abarcar os mais diversos tipos de risco, sem engessamento do poder judiciário, a ponto de permitir sua adequação às mais variadas situações que existem ou venham a existir futuramente. Mas é delimitado o suficiente para permitir a construção de critérios científicos que permitam afastar eventual fato ou evento da esfera jurídica do tomador da decisão de modo que não exista qualquer obrigação de indenizar. Evidentemente que a proposta não é definitiva e não é capaz, por si só, de solucionar todos os casos como uma regra matemática. Contudo, ela traz contornos para construção de uma delimitação do risco de uma atividade, pois, afinal, nem tudo pode ser considerado risco da atividade.   Em conclusão, é importante destacar que o desenvolvimento tecnológico é imprescindível. Toda inovação traz uma série de riscos a reboque, mas, como afirma Anthony Giddens, se pretendemos ser uma sociedade inovadora, dotada de uma economia dinâmica, torna-se elemento nuclear a assunção de riscos. E, nesse ponto, é preciso ser ousado, em vez de cauteloso no apoio à inovação científica e outros meios de mudança, trazendo o debate dos riscos à arena política de modo mais direto20. __________ 1 Confira-se, por exemplo, "O risco na contemporaneidade: por um debate renovado sobre a caracterização das atividades perigosas", disponível aqui, "Considerações sobre a responsabilidade civil do Estado por danos ao meio ambiente", disponível aqui, "Revisitando o conceito de risco no CDC", "Programa de compliance e a mitigação de riscos no âmbito jurídico: a aplicação efetiva para a exclusão de responsabilidade civil", disponível aqui, "Responsabilidade de algoritmo de IA pelos fundamentos de autoaprendizagem", disponível aqui, "Personalidade, responsabilidade e classificação dos riscos na Inteligência Artificial e na robótica", disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 No caso dos sistemas de IA, o PL 233/2023, que dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial, dedica um capítulo exclusivo para análise e gerenciamento dos riscos, nos arts. 13 a 18, Capítulo III. 4 Sobre o tema do risco, cf. VIOLA, Rafael. Risco e causalidade. Indaiatuba: Editora Foco, 2023. 5 LUPTON, Deborah. Risk. 2nd ed. London: Routledge, 2013, p. 27. 6 Bernstein, Peter L. Against the Gods: The Remarkable Story of Risk. New York: John Wiley & Sons Inc., 1998. (Locais do Kindle 152-154). Wiley. Edição do Kindle. 7 VIOLA, Rafael. O risco na contemporaneidade: por um debate renovado sobre a caracterização das atividades perigosas. Disponível aqui. 8 Apelação Cível nº 1.0000.19.020810-8/001. Numeração única 5000016-77.2017.8.13.0342, Des. Rel. Evandro Lopes da Costa Teixeira, 17ª Câmara Cível, julg. 08.08.2019. 9 REsp 1.431.606-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. Acd. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, por maioria, julgado em 15.08.2017. 10 REsp 1.450.434-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, por unanimidade, julgado em 18.09.2018. 11 EAREsp n. 1.513.560/SP, relator Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 9/6/2021, DJe de 25/6/2021. 12 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. Atualizador Gustavo Tepedino. 10 ed. rev. atual. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 369. 13 KAPLAN, Stanley et GARRICK, B. John. On the quantitative definition of risk. In: Risk analysis. Vol. I, nº 1, 1981, p. 11. 14 CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Tratado de direito civil. X - direito das obrigações, garantias. Coimbra: Almedina, 2017, p. 82. 15 ROSA, Eugene A., et al. The risk society revisited. Social theory and governance. Philadelphia: Temple University Press, 2014, p. 2. 16 VIOLA, Rafael. Risco e causalidade. Indaiatuba: Editora Foco, 2023, p. 50. 17 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 44. 18 O ordenamento jurídico brasileiro, em diversas oportunidades, reconhece a relevância da confiança quando trata do risco. São exemplos disso, os arts. 12§ 1º e 14. § 1º, ambos do CDC e o art. 44, da LGPD, quando ressaltam os riscos legitimamente esperados. 19 VIOLA, Rafael. Risco e causalidade. Indaiatuba: Editora Foco, 2023, p. 67. 20 Giddens, Anthony. Runaway World (p. 35). Profile Books. Edição do Kindle.
Há uma frase comumente utilizada no discurso popular e que, ante a sua preciosidade afirmativa, convém ser o ponto de partida desta abordagem: "o dinheiro não compra tudo". Sempre que mencionada, é bem provável que esta afirmação considere que nem tudo na vida se resume a bens materiais, passíveis de precificação e, portanto, de compra e venda. Isto porque, ante um possível "consenso social" de que o importante, na vida, não são as "coisas" e sim os bens intangíveis, a conclusão por maior valoração ao que é imaterial se posiciona num grau de significados sensíveis à dignidade humana, tais como a felicidade, o amor, a presença de alguém, o tempo e a confiança. Também pode-se incluir, nesta conjuntura, a "vida social" e uma "reputação profissional" solidamente construída, gerando a possível percepção de uma ótima credibilidade que, no entanto, se questionada de forma amplamente acusativa em uma conjuntura de prejulgamento depreciativo, pode se fragilizar abruptamente, ensejando um contexto imediato de morte social do sujeito. Pode-se dizer que uma reputação profissional começa a ser construída desde o primeiro dia de um estudante na graduação. A postura adotada perante colegas e professores, as notas que alcança, as atividades extracurriculares que participa, os estágios que realiza, entre tantos outros parâmetros, já começam a ser indicadores, ao longo do tempo, de uma notoriedade profissional interessante. Nos dicionários brasileiros, é possível encontrar definições do termo "reputação" como "fama, opinião pública, favorável ou desfavorável"1, e "conceito em que uma pessoa é tida; bom ou mau nome."2. Neste sentido, é possível afirmar-se que se trata de uma definição abstrata, da ordem da opinião, dependente da percepção individual e subjetiva, no entanto, também apta a alargar-se a uma compreensão coletiva e potencialmente objetiva, na medida em que incluída em um propósito de divulgação ampla, que pretende a perfazer em concreta. Para isso, bastaria ser apresentada ao mundo social como verdade através de longo e frequente alcance, ainda que obtida por um julgamento antecipado, ilegítimo à esfera judicial. Assim, tal como a frase popular inicialmente trazida neste texto, pode-se refletir outra, atualmente também comumente utilizada, que é: "uma mentira dita mil vezes torna-se verdade", famosa afirmação de Joseph Goebbels, ex-ministro da propaganda na Alemanha Nazista e que explica o atual fenômeno das "fakes News". A história de vida de um sujeito, neste sentido, é capaz de seguir uma linearidade de fatos enriquecidos por impressões causadas por suas condutas percebidas especificamente pelo meio social em que se insere, que podem ser valoradas, positivamente, em uma crescente. Contudo, pode também ser valorada negativamente, em um decréscimo abrupto, rápido e cruel, bastando uma manchete pública frequente, ausente de qualquer devido processo legal, apta a eliminar a carreira e a vida de um profissional. Na tentativa de aproximar o leitor à reflexão que se propõe, utiliza-se como exemplo o caso de um cirurgião pediátrico do estado do Piauí, cuja informação veiculada, em matéria jornalística, de modo deturpado e acusativo a respeito de um terrível evento adverso, no entanto, sem culpa, terminou por causar severa consequência. No início do mês de julho, no Brasil, houve uma grande mobilização por parte de entidades da classe médica, após a notícia de que esse cirurgião pediatra foi encontrado morto, por provável suicídio, pouco tempo após seu nome e foto terem sido veiculados amplamente, pela imprensa, com a seguinte manchete: "Médico é indiciado por morte de criança de 6 anos no Hospital Unimed em Teresina" e massiva acusação, em meios de comunicação diversos, pela instituição investigadora. Tratava-se de uma complicação descrita previamente em literatura médica, possível, embora obviamente indesejada, não proveniente de erro médico, decorrida durante a implantação de um cateter para tratamento de uma infecção que acometia a paciente, que cursava com insuficiência renal. E ainda que não se possa afirmar haver imediata relação de causa e efeito entre a veiculação da notícia e a morte do médico, necessário se faz refletir sobre como os meios de comunicação são capazes de ensejar prejulgamentos sociais, especialmente quando incluem nome e imagem do profissional, provocando severa angústia, embaraço e desespero ao acusado, à revelia de qualquer direito à sua prévia argumentação de defesa.  Neste caso em específico, a divulgação ampla nas redes sociais e televisivas afirmavam o discurso repetido pelos investigadores, alegando, sem o direito ao contraditório e ampla defesa, que o médico não teria utilizado adequadamente as técnicas de perfuração durante a aplicação do cateter, o que teria incorrido, por conseguinte, em suposta "imperícia" - esta que significa desconhecimento ou inobservância ao que preceituam as normas técnicas. De acordo com a resolução 2.330/23, do Conselho Federal de Medicina, para que um cirurgião pediátrico desenvolva a sua formação, no Brasil, são necessários seis anos de graduação em medicina, somados a mais três anos de estudos árduos em Residência em Cirurgia Geral, e a mais três anos de especialização em Cirurgia Pediátrica. De outro modo, poderiam também ser necessários, para além dos seis anos de graduação em medicina, se submeter à uma severa prova de títulos perante uma entidade especializada após, no mínimo, doze anos de atuação prática-profissional na área da Cirurgia Pediátrica. Conclui-se, portanto, que todo cirurgião pediátrico tem, no mínimo, doze ou dezoito anos de estudo e formação profissional, o que implica em uma reflexão sobre a sincera redução da possibilidade de cometimento de ato imperito. Trata-se, de todo o modo, de profissional que dedicou significativo tempo de estudo, que atendeu um razoável número de pacientes, que realizou um considerável número de procedimentos cirúrgicos, enfim, de um profissional que cumpriu todos os requisitos que o seu Conselho Profissional determina para o exercício legal da profissão de modo ultra especializado. No mínimo, há que se avaliar um necessário cuidado prévio à acusação de erro por atecnia, considerando a ocorrência de dano por questões alheias à adequada prática médica especializada. No exercício da medicina, ainda que a expectativa social construa um imaginário de modo diverso, por vezes é inevitável a ocorrência de complicações mesmo que condutas peritas, prudentes e diligentes tenham sido realizadas, excluindo-se, portanto, qualquer ponto de vista de exatidão matemática à sua prática. Ou seja, ao prestar cuidados à saúde de um corpo humano em sua perspectiva biológica e psicossocial, mesmo com o uso de todas as recomendações técnicas, ainda que seja observada a mais recente e atualizada literatura científica ou que o procedimento tenha sido realizado pelo melhor e mais renomado profissional da medicina, é possível a ocorrência de agravos indesejados não provenientes de culpa. De todo o modo, mesmo tratando-se de um contexto que, ao final, seja comprovadamente culposo, há que se refletir sobre o meio adequado de análise, produção de provas e aplicação razoável de possível condenação, o que destoa de qualquer julgamento fulminante social. Neste sentido, antevendo-se aos argumentos críticos inversos a esta análise que se apresenta, cumpre esclarecer: não se busca justificar ou defender eventual ocorrência de erro médico, mas sinalizar que, tanto é possível ter-se um dano não proveniente de erro, quanto que, mesmo havendo possível ocorrência, é necessária cautela e responsabilidade caso se pretenda noticiar investigação em curso, respeitando-se, inclusive, o princípio da inocência até prova em contrário. Embora a liberdade de imprensa seja imprescindível e indispensável ao exercício democrático do direito de informação à sociedade, não se trata de meio apto a tornar rarefeito o direito constitucional ao contraditório e ampla defesa, ou mesmo o direito à privacidade, que assegura a preservação de dados individuais e da honra, atributos intrinsecamente ligados à reputação profissional. Considerando que a imprensa é formadora de opinião, há que se avaliar a responsabilidade de quem informa fatos aos meios de comunicação, sob os seus pontos de vista, bem como o modo como estes meios prosseguirão com as suas transmissões à sociedade, considerando as repercussões possíveis. Parte-se, assim, do pressuposto de um dever de informar revestido de dever de esclarecimento de forma clara e honesta, especialmente quando o tema noticiado envolve uma análise eminentemente técnica, como é o caso da ocorrência ou não de erro médico. Na perspectiva do Direito Médico, o dano noticiado como proveniente de "erro médico", se analisado com critério e técnica, pode tanto ser real e efetivo, como, de outro modo, ausente de culpa, tal como uma "iatrogenia", um "acidente imprevisível", um "resultado incontrolável" ou, ainda, o que a doutrina reconhece como "erro escusável". A Iatrogenia é um ato não punível, caracterizada por dano inculpável, no corpo ou na saúde do paciente, consequente de uma aplicação terapêutica, isenta de responsabilidade profissional. A título de exemplo, pode-se citar a cicatriz que se converte em queloide, um processo de cicatrização exacerbada ocorrida após o corte em um procedimento cirúrgico.3 Por sua vez, o acidente imprevisível é aquele ato que provoca dano à integridade do paciente em razão de um acontecimento imprevisível e inevitável, tal como a ocorrência de um terremoto durante a realização de uma cirurgia de grande porte.  Por seu turno, o resultado incontrolável é o que ocorre em razão das limitações da própria ciência, isto é, independe da capacidade do profissional. O óbito em razão de doenças que ainda não tem cura, por exemplo. Por fim, pode-se citar o erro escusável, que se apresenta como ato que provoca dano, ainda que tenha sido praticado com perícia, prudência e diligência. Este último pode ser compreendido à luz do que usualmente se chama de álea terapêutica, isto é, da falibilidade da própria Medicina. Sendo assim, pode-se concluir que, além das notícias acusativas veiculadas não esclarecerem do que se trata um erro médico real e efetivo, também não apresentam outras possibilidades de ocorrências danosas, plausíveis à prática médica e sem culpa profissional. Diversos são os estudiosos da responsabilidade civil médica que alertam que nem toda complicação pode ser interpretada como um erro médico, sendo o principal deles o Ilmo. Professor Genival Veloso de França, que assevera:  [...] nem todo resultado adverso na assistência à saúde individual ou coletiva é sinônimo de erro médico. A partir dessa premissa, deve-se começar a desfazer o preconceito que existe em torno dos resultados atípicos e indesejados na relação profissional entre médico e paciente. Os órgãos formadores de opinião poderiam contribuir muito em fazer avançar a sociedade denunciando as péssimas condições assistenciais e a desorganização dos serviços de saúde em nosso país. Exige-se muito dos médicos, mesmo sabendo que sua ciência é inexata e que sua obrigação é de meios e não de resultados. Ainda que a vida seja um bem imensurável, a supervalorização desta ciência não encontrou uma fórmula mágica e infalível. Por isso não se pode concordar com a alegação de que todo resultado infeliz e indesejável seja um erro médico.4  A publicização acusativa irrefletida e desarrazoada de complicações médicas não errôneas, portanto, é capaz de gerar danos incalculáveis. Tal como afirmado em artigo publicado junto ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, é possível considerar-se, já há algum tempo no Brasil, a existência de um fenômeno intitulado "medicina-espetáculo". O autor reflete, ao se referir, neste trecho, ao meio televisivo:  Em outro canal é apresentado um caso de "erro médico". Pouco importa qual foi o fator determinante: imperícia médica, evento adverso, hiper-sensibilidade do paciente ou, talvez, a fatalidade. Não existe efetivamente nenhum interesse sério em nenhuma dessas questões. O tema é abordado com exemplar vulgaridade além de superficialidade e malícia impecáveis.5 [...]  Afinal, para que serve a Medicina-espetáculo? Promove a educação do povo? Induz a melhores hábitos de saúde? Melhora o conhecimento do corpo humano e suas debilidades? Prestigia a Medicina brasileira? Oferece aos aflitos e aos doentes uma luz, um caminho, talvez uma nova chance? A resposta, já sabida é não! Nos moldes em que vem sendo feita e apresentada, a Medicina-espetáculo é, salvo honrosas exceções, um frívolo insulto aos médicos e à inteligência do nosso povo.6  E arremata:  Não é o fim da Medicina-espetáculo que é ora sugerida: o que se propõe é a revisão do tema e uma tomada de consciência da relevância que o espetáculo pode encerrar em si mesmo.  Trata-se de um contexto de sérias repercussões, sendo importante uma revisão social sobre a forma de veiculação de fatos relativos à saúde. Mediante ampla punição social, a opinião pública desconhece, a título de exemplo, que ser "indiciado" por um delegado, não implica, necessariamente, em ser considerado "culpado" por um juiz. Contudo, fulmina sumariamente a reputação de um profissional médico indiciado, deturpando-se os cenários. Neste rumo, e ponderando que a veiculação de notícias acusando ocorrência de erro médico contém forte conceito apelativo, é possível também considerar-se a ocorrência da possível mercantilização de situações existenciais7. Diferente da opinião pública, aos juristas é devido considerar, no caso referido acima, que o cirurgião pediátrico não deveria ser considerado culpado "até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"8, por força do art. 5º, inciso LVII. Do mesmo modo, por força do art. 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aos juristas também é cediço que "todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa."9 Neste sentido, faz-se importante refletir sobre a responsabilização de acusadores e meios de comunicação quando divulgadores ampla e inadvertidamente de notícias de suposto erro médico de modo acusativo, sensacionalista e descompromissado com a apuração das circunstâncias e pontos de vista. Necessário, pois, nestes casos, considerar o pleito de profissionais médicos ou seus familiares por reparação dos danos causados, sobretudo em ofensa à honra. Afinal, é interessante socialmente buscar-se o benefício do esclarecimento ou o malefício da desconfiança sobre a medicina? Trata-se de uma reflexão necessária, atual e premente. ____________ 1 "reputação", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2023, disponível em https://dicionario.priberam.org/reputa%C3%A7%C3%A3o. 2 "reputação", in Michaelis [em linha], 2023, disponível em https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=reputa%C3%A7%C3%A3o 3 ARAÚJO, Ana Thereza Meirelles, BARBOSA, Amanda Souza, Dano iatrogênico e erro médico: delineamento dos parâmetros para aferição da responsabilidade, Revista Thesis Juris, São Paulo, 2017 4 FRANÇA, Genival Veloso de.Direito médico. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p.207 5 MORAES FILHO, Joaquim Prado Pinto de. A MEDICINA COMO ESPETÁCULO. REVISTA SER MÉDICO. Edição 28, 2004. Disponível em https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=146 6 https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=146 7 DANTAS BISNETO, Cícero. A reparação adequada de danos extrapatrimoniais individuais: alcance e limites das formas não pecuniárias de reparação. 2019. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/28690. Acesso em: 27 jul. 2023. 8 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm 9 Unesco. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf
Wittgenstein já escreveu que "os limites de minha linguagem significam os limites do meu mundo"1. De fato, o desenvolvimento de aplicações voltadas ao processamento de linguagem natural sempre foi um desafio, pois algoritmos capazes de "compreender" solicitações e demandas humanas com a sensibilidade que somente um outro humano consegue internalizar é algo que encanta, há décadas, pesquisadores de todo o planeta. Entretanto, até o momento atual, nunca se conseguiu desenvolver um programa sofisticado o suficiente para cumprir tal objetivo. Há quem se reporte à nomenclatura Artificial General Intelligence (AGI) para descrever o hipotético fenômeno transformador da singularidade tecnológica - em que tal propósito será alcançado -, especialmente a partir da pujança de técnicas mais avançadas, como o aprendizado profundo (deep learning), que fomenta sistemas ditos "generativos", porquanto baseados em redes neurais recorrentes (recurrent neural networks, ou RNNs) ou em transformers (modelos de linguagem de larga escala com aplicação no processamento de linguagem natural), o que torna essa realidade mais instigante, especialmente na análise de suas consequências, que são muitas - algumas empolgantes e desafiadoras - ao mesmo tempo que seus riscos representam grandes percalços para a Ciência do Direito. O que não se pode negar é que a mudança de paradigma2 vislumbrada desde o início deste novo período tem um substrato essencial: a informação. Tudo muda com Alan Turing e a famosa problematização (Entscheidungsproblem)3 que inspiraria suas investigações posteriores, a partir das quais buscava investigar o potencial de uma máquina para processar informações a ponto de gerar respostas da mesma forma que um humano o faria4. Em síntese, esperava-se que o processamento imbatível dos microprocessadores permitisse à máquina, eventualmente, se "emancipar" e, de fato, emular o comportamento humano. O que Turing não esperava era que os conceitos exatos e herméticos da matemática seriam incapazes de, no teste, permitir às máquinas ludibriar, mentir e dissimular, o que tornava fácil a detecção de respostas humanas em comparação às das máquinas. Não obstante, sistemas contemporâneos de inteligência artificial, com destaque para o Generative Pre-Trained Transformer (GPT), já se demonstraram capazes de superar o "Teste de Turing" (e muitos outros testes similares, como o Winograd Schema5) e até mesmo exames realizados por humanos, a exemplo de exames para o exercício de profissões como a de médico ou de advogado, nos Estados Unidos da América6. Se a informática marcou um novo estágio de poder computacional e de desenvolvimento de hardware, o acúmulo informacional foi o responsável por 'alimentar' esses novos equipamentos e fomentar o avanço de estruturas informacionais a partir do software. Nesse contexto, a solução para o Entscheidungsproblem passaria, necessariamente, pelo enfrentamento das principais objeções à proposta de que máquinas podem 'pensar'. Mais do que um teste, era preciso que se tornasse viável o que Turing batizou de "jogo da imitação"7: um cenário no qual determinada máquina se tornasse capaz de enganar um terço de seus interlocutores, fazendo-os acreditar que se trataria de um ser humano8. Estaria tal máquina 'pensando'? Esse único questionamento desencadeou diversas teorizações acerca da superação das diferenças entre humanos e máquinas (human-machine divide)9 e dos dilemas de desenvolvimento e evolução da inteligência artificial10. É possível dizer que, no atual estado da técnica, ainda não é factível a conclusão de que um algoritmo possa se tornar 'inteligente'11. Nos dizeres de Howard Gardner, "pode-se concluir que a habilidade lógico-matemática não é um sistema tão "puro" ou "autônomo" como outros revisados ??aqui, e talvez deva contar não como uma única inteligência, mas como algum tipo de inteligência supra ou mais geral"12. O exemplo do ChatGPT - que nada mais é que uma ferramenta comercial oferecida pela OpenAI para o processamento de comandos de texto (prompts) que acionam o modelo de linguagem de larga escala transformador - é apenas uma singela demonstração dos resultados que se pode atingir com a maturação de sistemas capazes de "se desenvolver", com rapidez, pela evolução propiciada pelo machine learning a partir de quantidades colossais de dados. Nesse cenário, o conhecimento da Ciência de Dados se torna relevantíssimo, pois é nesse campo multidisciplinar que se concentra o estudo de todos os aspectos dos dados, desde sua geração até seu processamento para convertê-los em uma fonte valiosa de conhecimento13 e de fomento à análise preditiva, que utiliza técnicas estatísticas14 e de aprendizado de máquina (machine learning) para "prever" resultados15. Isso pode ser útil em diversos contextos, tais como a análise de dados históricos, o mapeamento de decisões judiciais pretéritas para identificar padrões e estimar a probabilidade de sucesso de um caso, ou mesmo a análise de texto jurídico. De modo geral, com a Ciência de Dados, é possível extrair informações significativas de grandes volumes de textos jurídicos, como leis, regulamentos, contratos, pareceres e decisões judiciais e a análise desses conteúdos pode propiciar a identificação de tendências, a análise e interpretação de determinados termos legais e até mesmo a automatização de tarefas. No campo do Direito, tanto os analistas de dados quanto os cientistas de dados desempenham papéis importantes na análise e interpretação de dados jurídicos, permitindo uma compreensão mais profunda de questões complexas, avaliação de resultados e apoio à tomada de decisões fundamentadas. Noutras palavras, profissionais do Direito inseridos na complexa sociedade da informação que atingiu seu apogeu em pleno século XXI não costumam desenvolver tais competências e habilidades, ao menos não tradicionalmente16. Desse modo, almejando indicar algumas habilidades17 necessárias para o futuro18, pondera-se a necessidade de transparência e, desejavelmente, explicabilidade para que possa assimilar parâmetros extraídos da heurística computacional e das inferências causais de modelos de linguagem. Tais são conceitos relevantes para o Direito, pois ajudam a compreender e justificar decisões de forma mais transparente e fundamentada19. A transparência, pelo fato de explicitar a utilização de determinado conjunto de dados ou de uma técnica específica de processamento. E, de modo geral, a explicabilidade pelo fato de se referir à capacidade de "entender" e explicar como um modelo ou algoritmo de tomada de decisão chega a determinadas conclusões20. No Direito, a explicabilidade é essencial, pois os sistemas jurídicos são baseados no princípio da justificação. Assim, ao aplicar técnicas de Ciência de Dados, é importante que os resultados e as decisões geradas sejam compreensíveis e possam ser explicados de forma clara e acessível, tanto para os profissionais do Direito quanto para os cidadãos envolvidos no processo. É de se notar, nesse sentido, que transparência e explicabilidade (art. 3º, VI) são dois dos vários princípios definidos no texto do substitutivo da Comissão de Juristas responsável por subsidiar elaboração de substitutivo sobre IA (CJSUBIA)21, que realizou diversas reuniões e audiências públicas nos trabalhos de elaboração do substitutivo, que foi apresentado em dezembro de 2022 e inspirou o texto final do PL 2.338/2322. Se os algoritmos não são capazes de "pensar", mas são suficientemente avançados para tomar decisões "resultantes de uma combinação de inputs de programação não originária"23, ao menos uma leitura ampliativa do conceito de 'responsabilidade' poderá nortear a solução de problemas como "a opacidade decisória, a falta de explicação quanto aos critérios utilizados e a herança de inputs viciados, enviesados e preconceituosos, o que culmina na produção de discriminações injustificadas"24. Enfim, não se tem respostas definitivas para todos os desafios inaugurados pela profusão do acesso aos transformers (e outros modelos de linguagem de larga escala, como o ChatGPT), e o tema ainda suscitará muitos questionamentos, mas o avanço rumo à consagração da função precaucional da responsabilidade civil parece ser realmente necessário para a compatibilização do desenvolvimento tecnológico - galopante e irrefreável - com a necessária proteção aos direitos fundamentais (e a máxima prevenção dos vieses algorítmicos), especialmente a partir da proliferação de uma cultura de accountability. _____________ 1WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. 2. ed. Londres: Routledge Classics, 2001, p. 68, tradução livre. No original: "The limits of my language mean the limits of my world". 2 Thomas Kuhn empregou a expressão paradigma no seguinte sentido: "um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma". O termo paradigma, nesta pesquisa, ganha conotação mais ampliada, não só no sentido de uma comunidade científica ou de determinada época, mas diz respeito às diversas mutações do pensamento ocidental. KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 221. 3 Friedrich Kittler, se reportando ao "Teste de Turing" e ao poder da informação, destaca o seguinte: "Only in Turing's paper On Computable Numbers with an Application to the Entscheidungsproblem there existed a machine with unbounded resources in space and time, with infinite supply of raw paper and no constraints on computation speed. All physically feasible machines, in contrast, are limited by these parameters in their very code. The inability of Microsoft DOS to tell more than the first eight letters of a file name such as WordPerfect gives just a trivial or obsolete illustration of a problem that has provoked not only the ever-growing incompatibilities between the different generations of eight-bit, sixteen-bit and thirty-two-bit microprocessors, but also a near impossibility of digitizing the body of real numbers formerly known as nature". KITTLER, Friedrich. There is no software. CTHEORY.net. 18 out. 1995. Disponível em: http://www.ctheory.net/articles.aspx?id=74. Acesso em: 16 ago. 2023. 4 TURING, Alan M. Computing machinery and intelligence. Mind, n. 236, 433-460, out. 1950. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1093/mind/LIX.236.433. Acesso em: 16 ago. 2023. 5 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Breves reflexões sobre os impactos jurídicos do algoritmo GPT-3. In: BARBOSA, Mafalda Miranda et al (coord.). Direito digital e inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 521-524. 6 VARANASI, Lakshmi. AI models like ChatGPT and GPT-4 are acing everything from the bar exam to AP Biology. Here's a list of difficult exams both AI versions have passed. Business Insider, 25 jun. 2023. Disponível em: https://www.businessinsider.com/list-here-are-the-exams-chatgpt-has-passed-so-far-2023-1 Acesso em: 16 ago. 2023. 7 TURING, Alan M. Computing machinery and intelligence. Mind, Oxford, n. 236, p. 433-460, out. 1950, p. 25. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1093/mind/LIX.236.433 Acesso em: 16 ago. 2023. 8 Cf. HARNAD, Stevan. The Annotation Game: on Turing (1950), on computing, machinery and intelligence. In: EPSTEIN, Robert; PETERS, Grace (ed.). Parsing the Turing Test: philosophical and methodological issues in the quest for the thinking computer. Cham: Springer, 2008. 9 WARWICK, Kevin. The disappearing human-machine divide. In: ROMPORTL, Jan; ZACKOVA, Eva; KELEMEN, Jozef (ed.). Beyond Artificial Intelligence: the disappearing human-machine divide. Cham: Springer, 2015, p. 9. 10 FLASINSKI, Mariusz. Introduction to Artificial Intelligence. Cham: Springer, 2016, p. 3-13. 11 KAPLAN, Jerry. Humans need not apply: a guide to wealth and work in the Age of Artificial Intelligence. New Haven: Yale University Press, 2015, p. 3-16. 12 GARDNER, Howard. Frames of mind: the theory of multiple intelligences. Nova York: Basic Books, 2011, p. 168, tradução livre. No original: "(...) one could conclude that logical-mathematical ability is not as "pure" or "autonomous" a system as others reviewed here, and perhaps should count not as a single intelligence but as some kind of supra- or more general intelligence." 13 OHM, Paul; DOGAN, Stacey; BESTAVROS, Azer; SELLARS, Andy. Bridging the Computer Science-Law Divide. Boston: Boston University Press, 2022, p. 24.  14 CLEVELAND, William S. Data Science: An Action Plan for Expanding the Technical Areas of the Field of Statistics. International Statistical Review, Oxford, v. 69, n. 1, p. 21-26, 2001, p. 22. 15 DOMINGOS, Pedro. The master algorithm: how the quest for the ultimate learning machine will remake our world. Nova York: Basic Books, 2015, p. 6. 16 SUSSKIND, Richard. Transforming the law: essays on technology, justice and the legal marketplace. Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 170. 17 LEHR, David; OHM, Paul. Playing with the Data: What Legal Scholars Should Learn about Machine Learning. U.C. Davis Law Review, Davis, v. 51, p. 653-717, 2017. 18 SUSSKIND, Richard; SUSSKIND, Daniel. The future of professions: how technology will transform the work of human experts. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 29. Anotam: "(...) the most efficient future lies with machines and human beings working together. Human beings will always have value to add as collaborators with machines". 19 KAMINSKI, Margot E. Understanding Transparency in Algorithmic Accountability. In: BARFIELD, Woodrow (ed.). The Cambridge Handbook of the Law of Algorithms. Cambridge: Cambridge University Press, 2021, p. 121. 20 PARENTONI, Leonardo. What should we reasonably expect from artificial intelligence? Il Diritto degli Affari, Florença, v. XII, n. 2, p. maio/ago., 2022, p. 195-196. O autor informa a distinção conceitual, mas detalha a proximidade entre os dois termos: "Although the notions of transparency and explainability are technically different, this section addresses them altogether since they are intimately connected. Roughly speaking, they mean that a human user is able to understand why an AI system generated a certain output and explain it to an ordinary user of that system. Transparency is undoubtedly a fundamental value provided in numerous legal standards, for both the public and the private sectors, worldwide. It is of paramount importance and should be respected according to the provisions of each legal system. Therefore, the bigger the transparency, the better". 21 BRASIL. Senado Federal. Atividade Legislativa. Comissão de Juristas responsável por subsidiar elaboração de substitutivo sobre IA (CJSUBIA). Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2504 Acesso em: 16 ago. 2023. 22 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 2.338, de 2023. Dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233 Acesso em: 16 ago. 2023. 23 FERREIRA, Ana Elisabete. Responsabilidade civil extracontratual por danos causados por robôs autônomos: breves reflexões. Revista Portuguesa do Dano Corporal, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, n. 27, p. 39-63, dez, 2016, p. 44. 24 MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e responsabilidade civil: autonomia, riscos e solidariedade. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 408.
Em nível mundial, emergiu o fenômeno denominado de "bancarização", o qual sob pena da pessoa ser passível de determinados tipos de exclusão social, induz a todos, mesmo para atividades simples, necessitarem ter conta bancária para conseguirem auferir determinados direitos e/ou cumprir obrigações, tudo sem ter de carregar moeda em espécie, o que traz insegurança. Propagada no mercado sob o atraente argumento de propiciar o acesso das pessoas aos contratos bancários, podendo incluir movimentações monetárias por meio de conta, cartão de crédito ou outras modalidades e, em especial, para concessão específica de empréstimos (crédito para consumidores), o fato é que esse tipo de contrato se popularizou1. Entretanto, essas práticas incluem muitos riscos à proteção dos direitos destes destinatários finais dos serviços. Note-se que não são apenas aqueles decorrentes das instabilidades da economia brasileira (insegurança jurídica, volatilidade com inflação e mesmo eventuais imprevistos como desemprego, doença, etc.), mas também pela complexidade dos contratos bancários que, atualmente, costumam incluir aspectos digitais, independente da carência ou não de educação específica do consumidor para essa área. E esse cenário é agravado pelo fator de que os maiores fornecedores nesse segmento atuam em regime de oligopólio (os quatro maiores bancos2 dominam 59% do mercado de crédito3), sendo que não hesitam em usar seu marketshare e, principalmente, seu marketpower na busca de influenciarem a regulação em prol de seus interesses. Não é por acaso ou só por competência que o retrospecto demonstra que as instituições financeiras compõem o único setor que exibe polpudos lucros, tanto nos períodos em que o país prospera, quanto nos de crise. E, em específico, ao exercerem domínio desse mercado, os bancos "ditam" arbitrariamente muitas práticas e cláusulas contratuais que as manifestações judiciais costumam declarar abusivas; e não demonstram se preocupar; afinal podem facilmente elevar a taxa média de juros do mercado que é considerada lícita pelos tribunais e desta forma repassar a "conta" para os consumidores. Assim, a realidade mostra que embora o consumidor possa escolher com qual banco deseja contratar, considerando que as práticas adotadas por esses fornecedores costumam ser idênticas, a esse destinatário final do serviço só resta resignar-se. Sob pena de exclusão, a manifestação da vontade do consumidor apesar de ser um requisito essencial, acaba se limitando a emissão de um assentimento (e não um verdadeiro consentimento informado, livre e desimpedido de condicionamentos ou constrangimentos). Outro detalhe: tendo em vista que, normalmente, quem passa a ter conta em banco segue assim no longo prazo, pode-se classificar esses contratos como cativos de longa duração. Então, em meio a práticas lícitas e outras muito questionáveis, como os instrumentos contratuais não apresentam diferenças substanciais e os bancos não concedem espaço para verdadeira negociação de cláusulas, o consumidor fica na opção de, ou quedar-se alijado desse mercado ou aceitar as condições impostas na contratação formulada pelo banco. Nesse contexto, sobressai, então, a geral pressuposição de vulnerabilidade do consumidor4, a qual, no caso dos idosos, é agravada, ou seja, trata-se de hipervulnerabilidade. Como expressou Andressa Jarletti: "E a Carta Magna reconheceu também que algumas pessoas necessitam uma proteção ainda mais especial como a pessoas com deficiência, idosos, crianças e adolescentes, que podem ser considerados hipervulneráveis. A proteção especial estabelecida para estas pessoas pode ser compreendida pela nova concepção de sujeito na pós-modernidade, que acolhe as distintas subjetividades e individualidades, observando que 'o (in)diví(duo), aquele que não era divisível na modernidade, se dividiu', reconhecendo-se as diferenças e permitindo a proteção dos vulneráveis a partir de uma ressignificação da igualdade, material. A proteção dos idosos (pessoas com mais de 60 anos) foi prevista no art. 230 da Constituição Federal, com inspiração nos princípios constitucionais da solidariedade e proteção, sendo reforçada posteriormente pelo Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), que reconhece sua vulnerabilidade e o dever do Estado, da família, da sociedade e da comunidade em a satisfação de seus direitos. A proteção legal da vulnerabilidade do idoso 'faz nascer um direito subjetivo personalíssimo e indisponível ao envelhecimento sadio, ao qual reponde uma multiplicidade de direitos e deveres para assegurá-lo'"5. Enquanto toda uma geração avançava na idade, as relações de consumo entre bancos e consumidores idosos foram se transformando, principalmente com o ingresso da internet nesse cenário. Ocorre que enorme contingente destes destinatários finais dos serviços não teve condições de se adaptar a essa nova realidade, ainda mais quando os bancos em busca de cortar custos com agências e funcionários, passaram a manejar meios para que o idoso adira ao autoatendimento6. Observe-se que esse tipo de cliente não é nativo digital e não foi treinado para ser funcionário bancário, além do que, quando comete qualquer equívoco devido a essa falta de habilidade, o banco logo busca atribuir-lhe responsabilidade (a causa do evento). A par disso, os riscos aumentam quando o banco utilizando os meios de que dispõe altera elementos ou práticas do que acontece durante a prestação dessa espécie de serviço. E isso tem sido algo rotineiro. Impressiona que esse é o único segmento em que o fornecedor, sem contato ou manifestação da outra parte, na prática modifica aspectos do contrato. Por exemplo, quando, no momento em que quer, cria e passa a debitar alguma taxa antes mesmo de qualquer permissivo por parte do Banco Central do Brasil (que só age reativamente) ou adota ou retira alguma função do cartão entregue ao cliente. Ora, essa liberdade não é facultada para nenhum outro fornecedor. Não há permissivo legal para, na vigência do contrato com o consumidor idoso, sem sequer solicitar a aquiescência deste último (a "seu bel prazer"), o banco modificar determinadas práticas que influem no conteúdo e no desenrolar de fatos que estejam relacionados com a contratação. Cláusulas nesse sentido são flagrantemente abusivas. E nesse contexto, em especial quanto ao relacionamento do banco com idosos, cabe chamar à atenção para algumas situações específicas que comumente acontecem no mercado; e assim poder-se analisar aspectos da respectiva responsabilidade civil. Práticas envolvidadas nas contratações bancárias com consumidor idoso e consequências quanto à responsabilidade civil No mercado de contratações bancárias com consumidores idosos, o primeiro exemplo de situação que desejamos pontuar consiste no que ocorre quando o banco deseja atrair o cliente e se vale das mais diversas estratégias, inclusive com marketing direcionado e possibilidade da contratação acontecer pela via eletrônica. Por evidente, se presencialmente já podem surgir dificuldades para o idoso, tal se acentua quando são utilizados meios virtuais. Normalmente, então, esmaece a qualidade da informação, bem como, torna-se rotineiro o banco fornecedor não avaliar ou até desconsiderar o perfil desse tipo de contratante para bem desempenhar a tarefa de lhe prestar informação adequada (clara, concisa e precisa). Ou seja, que inclua conteúdo entendível pelo destinatário, acompanhado de advertências e aconselhamentos7. E se for firmada a contratação, assegurar que esta conte com as cautelas protetivas pertinentes8. Sabe-se que há casos de idosos que não conseguem sequer decorar uma senha (necessitando carregá-la consigo de forma escrita para movimentar a conta ou usar o cartão de crédito), mas o banco, agindo descompromissado com seu dever de boa-fé objetiva, não toma cautelas específicas quando o contrato envolve meio que seja total ou parcialmente digital9. Tanto não alerta para os riscos dessa modalidade, quanto não busca formas de mitigar essas características do outro contratante, a fim de protegê-lo de possíveis danos quando do exercício dos serviços objeto da contratação (por exemplo: estabelecendo atendimento apenas presencial ou com liberação de valores ou crédito somente com utilização de biometria). Já um segundo tipo de irregularidade que se deseja dar destaque reside na prática do banco em, sem qualquer comunicação ou participação do idoso, alterar o limite de crédito para mais ou para menos. Nesta oportunidade não abordaremos as situações sobejamente tratadas pela doutrina de quando é para menos, ou mesmo da preocupante questão do superendividamento do consumidor quando tal ocorre para mais. Sendo mais explícito/específico: trataremos dos riscos e eventuais danos há que fica submetido o consumidor idoso quando o banco (com interesse em que a pessoa use o limite, afinal os juros são sua maior fonte de ganho), sem consulta e descumprindo regra do Banco Central, aumenta o limite do crédito sem ao menos avisar a esse último. Então, o que poderia parecer uma benesse na verdade prejudica ao consumidor, se por exemplo, for assaltado sofrendo consequências mais gravosas em razão de algo que não provocou ou concordou (aumento do limite). Essa falta de adequação na contratação e, principalmente de alertas e aconselhamentos ao consumidor para as consequências do que pode acontecer no contrato, se constituem em vício de fornecimento do serviço. Françoise Peellaert assevera que: "Pelo dever de esclarecimento ou de informação estabelece-se uma imposição moral e jurídica de comunicar a outra parte todas as características e circunstâncias pendentes do negócio jurídico e, assim, do bem jurídico que é seu objeto, por ser imperativo de lealdade entre os contraentes"10. E faz parte dessa lealdade, que em nome de um ganho de escala, o banco não priorize a instituição de rotinas gerais sem cuidar de proteger aqueles que, pela idade, possuem características diferentes. Pois bem, tanto no primeiro tipo de situação aqui descrita, quanto no segundo, quando da aferição da responsabilidade civil do banco, as citadas ocorrências que se ligam ao nexo causal, devem ser consideradas como fortuito interno por falhas que implicam em responsabilização do banco fornecedor. Em relações de consumo a responsabilidade civil é objetiva, mas, naturalmente, demanda análise do conjunto probatório e nas suas alegações, os bancos costumam tentar manejar em seu favor, o argumento de que em caso, por exemplo, de assalto ou furto de cartão de crédito, o acesso à senha por quem não consegue decorá-la se constitui em fato de terceiro ou de culpa exclusiva do consumidor. Ora, o fortuito interno representado pela conduta deficiente do fornecedor (modelo de contratação inadequada, casos de cartão com aproximação e, por exemplo, aumento não consentido de limite de crédito) constituíram a causa primária para que com o surgimento do crime - um fato que não é raro na realidade atual de insegurança - viesse em prejuízo do consumidor. Ou seja, considerada a hipervulnerabilidade do idoso, se o referido fornecedor não tomou as cautelas devidas e a modalidade de contratação (principalmente quando envolva total ou parcialmente meios virtuais) não assegura proteções que se compatibilizam com as características desse destinatário final do serviço, trata-se de fortuito interno e o banco deve ser responsabilizado. Note-se que existe para o fornecedor um dever de manter sua atuação permeada pela boa-fé objetiva, a qual precisa estar presente desde a aproximação para a contratação, devendo seguir no desenvolvimento desta e mesmo perdurar após o encerramento do contrato (período pós-contratual). O negócio jurídico de consumo entre o banco - poderoso fornecedor - e o consumidor idoso possui características próprias, com muitas especificidades que precisam ser consideradas para não resultar em desequilíbrio que prejudique o hipervulnerável e inclusive possa comprometer a função social do contrato. Contando com apoio em doutrina reconhecida, Ana Cláudia C. Z. M. do Amaral e Roberto Wagner Marquesi afirmam: "A atuação da boa-fé na relação contratual varia na inversa proporção do exercício da autonomia da vontade das partes, uma vez que, quanto maior o distanciamento socioeconômico entre os contratantes, menor será a livre atuação da autonomia da vontade delas, caso em que a presença da boa-fé objetiva deve se manifestar com ímpar intensidade, no intuito de minimizar o desequilíbrio concretamente existente (NALIM, 2001, p. 138). E a boa-fé, aqui, encontra correspondência com a ética, assim entendida como o comportamento que traduz o respeito à alteridade, é dizer, à figura da contraparte no contrato"11. Essa visão integra-se a concepção de contrato relacional. Como Ronaldo Porto Macedo12 expõe em doutrina que assim se descreve: atualmente, diante das exigências da pós-modernidade, esses contratos devem ser concebidos e praticados com fundamento na característica de serem acordos de solidariedade. Isto é, devem ser focados menos no aspecto exclusivo da noção de troca (fornecimento e pagamento) e mais sob o viés de instrumento de justa repartição dos ônus e benefícios que as partes vieram buscar na contratação13. Então, nos contratos bancários firmados com consumidor idoso impõe-se uma releitura direcionada a estarem em conformidade com os princípios constitucionais e, em específico, com os expressos no CDC. No sistema embasado na economia de mercado, certo é que há liberdade:  "Contudo, a autonomia privada não é um valor em si mesmo e, portanto, exige uma análise detida que permita compreender se o seu exercício está em conformidade com os preceitos presentes no ordenamento jurídico. A função social é certamente uma ruptura do modelo clássico de contratação. Pode-se afirmar que ela exprime o dever imposto às partes de perseguir, para além de seus interesses individuais, os interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se relacionam com o contrato ou são por ele atingidos14. Faz parte do processo civilizatório que o domínio da relação contratual atraia obrigações de cuidado e solidariedade para com o outro contratante; e destas derivem as respectivas responsabilidades para o fornecedor poderoso.  Conclusão Assim, é de se afirmar como importante que seja adotada a concepção de que nas situações que aqui foram explicitadas, tem-se caracterizado o denominado fortuito interno de responsabilidade do banco, posto que se a prestação do serviço fosse realizada seguindo os princípios preconizados pela legislação, o problema do risco e/ou dano, na sua origem, sequer teria elementos para surgir. Somente grave ação ou omissão do consumidor para suscitar uma responsabilidade concorrente, porém sem jamais ficar restrita a conclusão de tratar-se de culpa exclusiva deste ou de terceiro. Quando na fonte, na nascente, o banco descumprindo deveres, arquitetou a contratação em forma desvirtuada e/ou arbitrariamente sem consulta ao consumidor, realizou alterações nos serviços durante o andamento do contrato, deu ensejo a fortuito interno de sua responsabilidade. Ser consumidor é ser um cidadão-econômico15", que merece inclusão nessa condição. Entretanto, quando de contratos bancários com idoso (de adesão e cotidianamente contando com meios digitais), mais do que o acesso, esse hipervulnerável necessita ter asseguradas as proteções preconizadas pelos princípios constitucionais, com especial destaque para as estampadas no sistema de proteção ao consumidor. __________ 1 Esse fenômeno (da "bancarização") que nos EUA e na Europa já se encontra mais avançado, prenuncia que no Brasil a tendência é de aumento. Observe-se que segundo dados de 2017, já havia 86,5% dos brasileiros com contas bancárias. FONTE BCB. Acesso: 14/07/23. 2 Por questões de metodologia para adequar ao que ocorre no mercado internacional, esse tipo de aferição que antes considerava a participação dos cinco maiores bancos (que em 2021 detinham 81,4%) passou a considerar apenas os quatro maiores que, como o visto, somados alcançam quase 2/3 desse mercado. Fonte: O Globo. Acesso em 14/07/2023 as 17hs.  3 Disponível aqui. Acesso em: 13/07/2023 às 19:00hs. 4 "A noção de vulnerabilidade no direito associa-se à identificação de fraqueza ou debilidade de um dos sujeitos da relação jurídica em razão de determinadas condições ou qualidades que lhe são inerentes ou, ainda, de uma posição de força que pode ser identificada no outro sujeito da relação jurídica. Nesse sentido há possibilidade de sua identificação ou determinação a priori in abstracto, ou ao contrário, sua verificação a posteriori, in concreto, dependendo neste último caso da demonstração da situação de vulnerabilidade. A opção do legislador brasileiro como referimos, foi pelo estabelecimento de uma presunção de vulnerabilidade do consumidor, de modo que todos os consumidores sejam considerados vulneráveis, uma vez que a princípio não possuem o poder de direção da relação de consumo, estando expostos às práticas comerciais dos fornecedores de mercado". (MARQUES, Claudia; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 162) 5 Oliveira, Andressa Jarletti Gonçalves de. Defesa judicial do consumidor bancário, Curitiba/Pr.: Rede do Consumidor, 2014, p. 59/60. 6 Sob o argumento falacioso de propiciar acesso ao serviço bancário em qualquer hora e de qualquer lugar, acontece esse tipo de trabalho não remunerado, consistente em levar o cliente a gastar tempo e disposição para fazer tarefas que competiam aos funcionários do banco. Mas os riscos são muito grandes para os idosos. 7 "A obrigação de informação é desdobrada pelo art. 31 do CDC, em quatro categorias principais, imbricadas entre si: a) informação-conteúdo (= características intrínsecas do produto e serviço), b) informação-utilização (= como se usa o produto ou serviço), c) informação-preço (= custo, formas e condições de pagamento), e d) informação-advertência (= riscos do produto ou serviço). A obrigação de informação exige comportamento positivo, pois o CDC rejeita tanto a regra do caveat emptor como a subinformação, o que transmuda o silêncio total ou parcial do fornecedor em patologia repreensível, relevante apenas em desfavor do profissional, inclusive como oferta e publicidade enganosa por omissão". Veja-se: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n° 586.316/MG. Recorrente: Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Recorrido: Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação. Relator: Min. Herman Benjamin, 17 de abril de 2007. Disponível aqui. Acesso em: 01 maio 2022. 8 Cite-se: de que adianta induzir para o idoso ser agente de seu autoatendimento se este não sabe manejar as máquinas específicas e precisa se socorrer de funcionários ou terceiros, correndo os riscos que são de conhecimento comum conforme enormidade de casos divulgados na imprensa. 9 Note-se os riscos para um idoso quando seu cartão de crédito funciona por aproximação, sendo que os bancos não costumam fazer as devidas advertências e aconselhamentos para esse consumidor poder fruir o objetivo do serviço em segurança. 10 Peellaert, Françoise. A boa-fé objetiva aplicada aos negócios jurídicos processuais, Londrina/Paraná: Engenho das Letra, 2023, p.62, 11 Ética nos negócios jurídicos, Org. Clodomiro José Bannwart Júnior, Elve Miguel Cenci e Luiz Fernando Belinetti, Londrina/Pr.: Engenho das Letras, 2020, p. 63/64. 12 MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 123-124.  13 No mesmo sentido veja-se em: Princípio da solidariedade e a legitimação da responsabilidade civil objetiva: reflexões a partir do julgamento da adi nº 1.003/df, Revista IBERC, maio/ago. 2023, v.6, n. 2, p. 82-99. 14 Viola, Rafael. Risco e Causalidade (posição 8777, p. 419). Editora Foco. Edição do Kindle. 15 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime de relações contratuais, 8ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 21.
Identificação do problema As relações comerciais e sociais que se desenvolvem hoje dentro de uma realidade jurídica globalizada faz surgir uma problemática relevante: a inconsistência do tratamento ofertado pelas sociedades anônimas de capital aberto perante seus sócios em um contexto internacional. As companhias abertas, enquanto entidades com personalidade jurídica própria, possuem obrigações inalienáveis em relação aos seus sócios que, quando ignoradas ou descumpridas, resultam na responsabilização da companhia, cuja magnitude pode variar de acordo com a jurisdição competente, e é justamente aqui que a problemática ganha contornos preocupantes. A governança corporativa prescreve que os sócios de uma mesma companhia devem ser tratados de forma igualitária. O que se tem observado, no entanto, é a disparidade na forma como os diferentes Estados nacionais tratam a responsabilidade civil das companhias abertas, a desrespeitar o primado do tratamento equânime entre acionistas. Em outras palavras, sócios de diferentes nacionalidades podem encontrar desigualdades de tratamento em caso de conflito. Dentre as principais razões para esse problema estão a ausência de regulação em âmbito internacional, a constante flexibilização e desrespeito a cláusulas arbitrais, instrumentos que deveriam servir para assegurar previsibilidade e segurança jurídica, além da costumeira falta de transparência por parte das próprias companhias abertas. A responsabilização civil das companhias abertas sob o prisma internacional torna-se, portanto, um tema de análise urgente e complexo. Exige-se uma avaliação aprofundada e criteriosa, com o objetivo de identificar e propor soluções para os desafios decorrentes das disparidades verificadas nesse ambiente. Governança corporativa e o tratamento equânime entre acionistas A Governança Corporativa, caracterizada pela sua versatilidade conceitual, pode ser definida através da tríade princípios-regras-ações, que concede um entendimento holístico ao instituto, pelo qual os princípios constituem a estrutura basilar que subsidia a elaboração das regras, as quais, subsequentemente, orientam as ações a serem executadas1. Quatro princípios são considerados fundamentais e estão presentes em diversos instrumentos, tanto públicos quanto privados, desde a Sarbanes-Oxley Act ao Código das melhores práticas do IBGC - Instituto Brasileiro de Governança Corporativa2, são elas a transparência, a equidade no tratamento de acionistas, a prestação de contas confiável e a responsabilidade corporativa. A governança ganha papel relevante, sobretudo atualmente, vez que a regulamentação do mercado, em sua trajetória de democratização e universalização, tem carregado consigo um substrato de inovações normativas e adaptações culturais, dentre as quais se destaca o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, processo que representa uma expressiva alteração no paradigma jurídico, ao incorporar e refletir os princípios e direitos fundamentais expressos na Constituição nos diversos ramos do direito privado. Esta constitucionalização tem desempenhado um papel crucial na consolidação de um ambiente corporativo mais igualitário e transparente. Ao infiltrar-se na matriz das regulações tradicionalmente privadas, os princípios constitucionais têm a capacidade de influenciar e moldar as normas e regulamentações internas das corporações, promovendo uma harmonização entre os direitos e deveres dos diversos atores envolvidos no mundo corporativo. A par disso, a equidade entre os acionistas é elemento essencial que permeia todas as dimensões do direito corporativo e pilar indissociável da governança corporativa. A observância a esse princípio contribui para a manutenção da integridade e da justiça no ambiente corporativo, gerando confiança entre os acionistas e, por conseguinte, estabilidade no mercado financeiro. Tratar de forma equânime os acionistas implica garantir que todos eles, independentemente da quantidade de ações que possuam, sejam respeitados em seus direitos e obrigações. É assegurar que todas as decisões tomadas pela gestão da empresa levem em consideração o bem-estar de todos os seus acionistas, sem favorecer indevidamente um grupo em detrimento de outro, qualquer que seja a classe ou nacionalidade dos sócios. Essa equidade deve ser visível e palpável em todas as ações e decisões corporativas, desde a distribuição de dividendos até a divulgação de informações relevantes à empresa. O problema no cenário global e a necessidade de uniformização Em um mundo cada vez mais globalizado, sobretudo nas estruturas de mercados, torna-se mais complexa a garantia dos princípios da governança corporativa. No cerne dessa complexidade, a ilustrar a problemática, tem-se o caso da Petrobrás e todos os desdobramentos societários fruto dos escândalos envolvendo a operação Lava-Jato, que fornece um campo fértil para a discussão dos desafios inerentes a garantia de tratamento igualitário entre os acionistas na perspectiva multinacional. Com uma multiplicidade de demandas judiciais e arbitrais sendo conduzidas simultaneamente em diversos Estados, muitas delas confidenciais, percebe-se que a ideia de equidade e transparência se mostra esquiva, a escancarar a realidade de que estamos diante de uma violação sistemática dos pilares da governança corporativa. Não há regras uniformes sobre a vinculação dos acionistas à cláusula compromissória e transparência sobre o procedimento arbitral, tampouco coordenação sobre a aplicação das diferentes legislações nacionais no tratamento oferecido ao tema. Esta lacuna regulatória tem resultado em decisões, a bem dizer, heterodoxas, como a proferida pela Corte de Rotterdam, que recorreu ao critério de proficiência em português para determinar quem estaria submetido à arbitragem perante a CAM da B3. Tal situação demonstra uma desconformidade de tratamento que é flagrantemente inaceitável. Ao mesmo tempo em que acionistas brasileiros amargam anos a espera de uma reparação pelos danos sofridos, os titulares das mesmas ações adquiridas nos Estados Unidos já foram alcançados por acordo de responsabilidade e reparação civil, e os de outros lugares do mundo recebem tratamento condescendente oferecido pelo tribunal holandês. Essa situação real demonstra que, longe de ser um mero debate doutrinário, a questão do tratamento igualitário dos acionistas necessita de transformações práticas e tangíveis no mundo corporativo. Imperativo notar que o movimento em direção a uma maior democratização das relações intrassociais não pode ser contido por meros entraves jurídicos. Como bem aponta Fábio Ulhoa Coelho, "as relações societárias equilibradas não se acomodam mais na vetusta fórmula que associa exclusivamente o tamanho do risco do aporte realizado no capital social"3. Não se pode mais considerar apenas a participação acionária como fator determinante no tratamento dos acionistas. Sob o impulso da governança corporativa e das reivindicações dos minoritários, é possível perceber mudanças nas legislações e regulações privadas sobre o tema que visam promover um ambiente mais democrático e inclusivo nas relações societárias, porém, ainda insuficientes e carentes de coordenação global. Conclusão A despeito dos avanços obtidos pela democratização das relações societárias e pela emergente constitucionalização do Direito Civil, persistem desafios significativos na efetiva garantia do tratamento equânime entre acionistas, transparência e responsabilidade corporativa. É evidente que a governança, com seus princípios de transparência, equidade, prestação de contas confiável e responsabilidade corporativa, desempenha um papel fundamental nesse cenário. Entretanto, sua efetividade é limitada em face à ausência de coordenação e uniformização global das regras e princípios corporativos. O caso da Petrobrás ilustra de forma contundente a complexidade desta problemática, evidenciando que as disparidades no tratamento dos acionistas não são mero fruto de uma análise doutrinária, mas realidades tangíveis que impactam diretamente a confiança e a estabilidade do mercado financeiro. Portanto, a necessidade de uma abordagem global e uniformizada para a responsabilização civil das companhias abertas é urgente. Torna-se imperativo um maior esforço de coordenação entre os diferentes estados nacionais, visando a implementação de regulamentações harmonizadas e a construção de um ambiente corporativo verdadeiramente democrático e equânime. __________ 1 Na construção da base teórica, utilizam-se as concepções de governança projetadas por: RIBEIRO, Henrique César Melo. Corporate governance versus corporate governance: an international review: uma análise comparativa da produção acadêmica do tema governança corporativa, UFSC, Florianópolis, v. 11, n. 23, p. 95-116, maio/ago. 2014; BOZEC, R. US Market Integration and Corporate Governance Practices: evidence from Canadian companies. Corporate Governance: An International Review, v. 15, n. 4, p. 535-545, 2007;  JESOVER, Fianna; KIRKPATRICK, Grant. The Revised OECD Principles of corporate governance and their relevance to non-OECD countries. Corporate Governance: An International Review, v. 13, n. 2, p. 127-136, 2005;  BAUWHEDE, H. V.; WILLEKENS, M. Disclosure on corporate governance in the European Union. Corporate Governance: An International Review, v. 16, n. 2, p. 101-115, 2008;  CORMIER, Denis et al. Corporate governance and information asymmetry between managers and investors. Corporate Governance, v. 10, n. 5, p. 574-589, 2010;  WILLIAMSON, Oliver E. The Mechanisms of Governance. Nova York: Oxford University Press, 1996;  MONKS, Robert A. G.; MINOW, Nell. Corporate Governance. United States: John Wiley e Sons, 2011. 2 INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA. Código das melhores práticas de governança corporativa. São Paulo: IBGC, 2015. 3 COELHO, Fábio Ulhoa. "Democratização" das Relações entre Acionistas. In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; AZEVEDO, Luis André N. de Moura (org.). Poder de Controle e Outros Temas de Direito Societário e Mercado de Capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 46-55.
Por conta das privatizações, verificadas no país na última década do século XX, quando se concedeu uma série de serviços públicos à iniciativa privada, entendeu-se necessária a criação de agências reguladoras, que tratariam da relação entre o Poder Público - o poder concedente -, a concessionária e os usuários. Cabe a essas agências, como seu nome indica, coordenar o setor, estabelecendo regras e, eventualmente, punindo as concessionárias que falharem na prestação dos serviços a que se obrigaram.  O surgimento das agências reguladoras encontra-se atrelado a importantes mudanças, como a flexibilização dos monopólios estatais, admitindo uma nova dinâmica da economia, decorrentes, sobretudo, da alteração do paradigma econômico nacional1, que se afastou da concepção do Welfare State para se aproximar de um Estado Regulador.2 Com a concessão de serviços públicos à iniciativa privada, criaram-se, gradualmente, essas agências. Embora não as tenha previsto de forma expressa, o constituinte originário deu indícios de que entidades nos moldes das agências reguladoras seriam estabelecidas diante do teor do artigo 174 da Constituição Federal de 1988.3 Veja-se, por exemplo, que a Emenda Constitucional ("EC") nº 08/1995 alterou o artigo 21, XI, da Constituição Federal, a fim de determinar a criação de órgão regulador voltado para o setor de telecomunicações, a ANATEL.4 A EC nº 09/1995, por sua vez, modificou o artigo 177, § 2º, III, da Constituição, instituindo órgão regulador do setor do petróleo e gás natural, a ANP.5 Não obstante o regime jurídico das agências seja similar ao das demais autarquias,6 aquelas entidades gozam de uma característica específica relevante, que permite o exercício das suas funções de maneira mais eficiente. Trata-se do regime de autonomia reforçada,7 por meio do qual é assegurada a equidistância da agência em relação ao poder concedente. Nas palavras de Alexandre Santos de Aragão, "não é qualquer autonomia que caracteriza as agências reguladoras, mas apenas aquela reforçada, sobretudo pela vedação de exoneração ad nutum dos seus dirigentes".8 A Lei Federal nº 13.848/2019, conhecida como a "Lei das Agências Reguladoras", positivou o regime de autonomia reforçada das agências reguladoras no ordenamento jurídico brasileiro, dispondo, inclusive, sobre as suas características, quais sejam: o poder normativo técnico; a autonomia decisória; a autonomia econômico-financeira; e a independência político-administrativa.9 Em suma, a adoção de um modus operandi técnico confere maior segurança jurídica ao setor regulado. Como apontou o Ministro Luís Roberto Barroso, não há como olvidar que "as agências reguladoras tornaram-se peças fundamentais no ambicioso projeto nacional de melhoria da qualidade dos serviços públicos e de sua universalização, integrando ao consumo, à cidadania e à vida civilizada enormes contingentes mantidos à margem do progresso material".10 Como contrapartida da concessão de maior autonomia, surge, por conseguinte, uma fundamental responsabilidade quanto ao dever das agências de regulamentar e coordenar o setor para o qual foram concebidas, sob pena de prejudicar o poder concedente, as concessionárias e, sobretudo, os usuários. As agências reguladoras incorrem em omissão quando deixam de exercer o poder normativo que lhes é atribuído ou, alternativamente, nas hipóteses em que demoram, de forma exagerada, a deliberar sobre matérias sujeitas a processo administrativo.11 Essa omissão deve ser analisada à luz do silêncio administrativo, fenômeno descrito por Celso Antônio Bandeira de Mello como aquele que ocorre "se a Administração não se pronuncia quando deve fazê-lo, seja porque foi provocada por administrado que postula interesse próprio, seja porque um órgão tem de pronunciar-se para fins de controle de ato de outro órgão".12 Embora o ordenamento jurídico brasileiro preveja mecanismos aptos a sanar tais omissões regulatórias e evitar a ocorrência do silêncio administrativo,13 eventual inércia das agências reguladoras podem acarretar danos ao Estado, às concessionárias e aos usuários do serviço público. A omissão das agências reguladoras pode ensejar a judicialização do tema, pela iniciativa da parte lesada com a inércia. Conquanto seja imprescindível à manutenção do Estado de Direito,14 a atuação jurisdicional acerca das controvérsias administrativas traz consigo a problemática da substituição das decisões das agências reguladoras pelo Poder Judiciário. Os riscos daí advindos são intuitivos. Com efeito, a ingerência do Judiciário pode prejudicar a função regulatória e o planejamento setorial, bem como gerar distorções nas esferas econômica e social, sobretudo porque, conforme leciona Sérgio Guerra, "[o] ato regulatório se fundamenta em critérios metajurídicos",15 que quase sempre extrapolam a competência técnica do magistrado.16 Nesse particular, Patrícia Sampaio e Alexandre Schiller explicam que "[a] substituição das agências pelos tribunais tem o condão de gerar uma série de consequências para os setores regulados, a começar pela perda de confiança e credibilidade nas agências reguladoras, avançando até a perda de harmonia e de equilíbrio do sistema, o que pode prejudicar a implementação das políticas públicas, gerando efeitos perversos para o mercado e para a sociedade."17 Por outro lado, a indesejada inércia, por vezes, torna necessária a intervenção do Judiciário, até mesmo de forma liminar, sob pena do agravamento do dano ilegal (ou mesmo de perecimento de direito). Avalia-se, nesses casos, qual seria o mal menor: a ingerência do Judiciário ou a permanência da omissão. Embora se possa discutir o grau de intervenção do Judiciário na esfera das decisões administrativas, não se questiona que o dano, comprovado o nexo causal entre a indevida omissão da agencia e a consequência, deve ser reparado.  "Tout le dommage, mais rien que le dommage".18 Como se sabe, vigora em nosso ordenamento jurídico o princípio da reparação integral. Qualquer pessoa, física ou jurídica, faz jus à tutela jurisdicional, a fim de obter a reparação por todos os danos ilícitos eventualmente sofridos em razão de atos - comissivos ou omissivos - cometidos por outrem, na medida de sua extensão.19-20 O artigo 37, § 6°, da Constituição Federal estabelece a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado, prestadoras de serviço público, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.21 No mesmo sentido, o artigo 43 do Código Civil estabelece que "as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo." Não há dúvidas de que os danos causados pelas agências reguladoras aos usuários em virtude de seus atos omissivos devem ser indenizados. Cumpre destacar, contudo, haver divergência jurisprudencial e doutrinária sobre a natureza da responsabilidade - se objetiva ou subjetiva. Nelson Nery Jr. e Rosa Nery se posicionam no sentido de reconhecer a responsabilidade objetiva.22 De outro lado, a Professora Marya Sylvia Zanella Di Pietro, acompanhada por Celso Antônio Bandeira de Mello23 e pela doutrina majoritária,24 entende que, "enquanto no caso de atos comissivos a responsabilidade incide nas hipóteses de atos lícitos ou ilícitos, a omissão tem que ser ilícita para acarretar a responsabilidade do Estado. Por essa razão, acolhemos a lição daqueles que aceitam a tese da responsabilidade subjetiva nos casos de omissão do Poder Público".25 Nas palavras de Rodrigo Santos Neves, "[d]iante de uma omissão do Estado, em especial de uma agência reguladora que cause danos a terceiros, deve-se provar que: a) houve o dano injusto; b) culpa da pessoa jurídica; e c) o nexo causal entre a omissão culposa e o dano".26 Esse elemento subjetivo da culpa pode ser aferido a partir da demonstração da falta do serviço (como, v.g., a ausência de fiscalização sobre a concessionária); da realização irregular do serviço (mau funcionamento); ou da realização atrasada do serviço. Em outras palavras, a omissão deve ser reprovável para que seja apta a gerar a responsabilidade civil da agência reguladora.27 Ao longo dos anos, os tribunais endereçaram o tema de forma não linear. Por vezes, entendeu-se que condutas omissivas das agências reguladoras culminariam em responsabilidade civil objetiva.28 Por outro lado, parte dos tribunais entendiam que a responsabilidade do Poder Público em razão de omissão era verificada mediante caracterização de culpa, ou seja, subjetiva.29 De outro lado, em 30.03.16, o Supremo Tribunal Federal, interpretando o art. 37, §6º, da Constituição, em sede de repercussão geral, concluiu que, "configurado o nexo de causalidade entre o dano sofrido pelo particular e a omissão do Poder Público em impedir a sua ocorrência - quando tinha a obrigação legal específica de fazê-lo - surge a obrigação de indenizar, independentemente de prova da culpa na conduta administrativa".30 Nesse sentido, restou sedimentado o entendimento de que a responsabilidade da administração pública, na hipótese em que o facere esteja consagrado como dever e a Administração Pública o transgrida, é objetiva e, portanto, independe da aferição de culpa.31 Convém, por oportuno, ressaltar que as agências reguladoras possuem personalidade jurídica e patrimônio próprios e, nessa medida, capacidade para se fazerem representar em juízo e responder por lesões causadas a terceiros. Assim, verificado um dano decorrente da omissão de determinada agência reguladora, cabe à parte lesada ajuizar ação indenizatória, de obrigação de fazer ou de não fazer diretamente contra a autarquia.32 Outro ponto relevante a ser abordado no âmbito deste tema consiste na aplicação do Código de Defesa do Consumidor ("CDC") nas ações movidas pelos consumidores em razão de danos incorridos em razão de ilícitos praticados pelas agências reguladoras.33 De fato, o CDC busca tutelar os direitos relativos à proteção ao usuário de serviço público decorrentes das permissões e concessões concedidas pelo Estado, sendo certo que o seu artigo 22 dispõe que os órgãos públicos e suas empresas, concessionárias e permissionárias são obrigados a fornecer serviços de qualidade, adequados, eficientes e seguros. Logo, o CDC se aplica de forma subsidiária aos serviços públicos, naquilo em que não for incompatível com a lei especial. A atuação regular das agências reguladoras é imprescindível ao bom funcionamento dos serviços de interesse público, administrados, em sua grande maioria, por entes privados. Na eventualidade dessas autarquias de caráter especial quedarem omissas em suas obrigações de coordenar o setor, subsistirá, além da eventual necessidade de intervenção do Judiciário - substituindo proativamente a agência para sanar a omissão -, a obrigação de indenizar os danos decorrentes dessa inércia, independentemente de outras responsabilidades verificadas na relação. Referências bibliográficas  ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 3. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2013. BARROSO, Luís Roberto. Agências Reguladoras. Constituição, Transformações do Estado e Legitimidade Democrática. In: BINENBOJM, Gustavo [coord.]. Agências Reguladoras e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. 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Paris: Dalloz, 2010. Tradução livre: "todo o dano, mas nada mais que o dano!" NEVES, Rodrigo Santos. Responsabilidade civil das agências reguladoras. In: Revista dos Tribunais, ano 91, vol. 803, p. 741, setembro de 2002. SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro e SCHILLER, Alexandre Ortigão Sampaio Buarque. Revisão Judicial da Omissão das Agências Reguladoras no Dever de Decidir: uma Pesquisa Empírica. RDU, Porto Alegre, Volume 15, n. 83, 2018, 72-101, set-out 2018. SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Revisão crítica da responsabilidade extracontratual do Estado no direito brasileiro. In: Revista de Doutrina da 4ª Região, n. 3, 24 out. 2004. TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República - Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 859. VALDÉS, Daisy de Asper. Responsabilidade civil do Estado e as Agências Reguladoras. In:  Revista de informação legislativa, v. 40, n. 159, p. 181-192, jul./set., 2003. WILLEMAN, Flávio de Araújo. SOUTO, Marcos Juruena Villela [coord.] Responsabilidade Civil das Agências Reguladoras. Coleção Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. __________ 1 "Todavia, com o surgimento do Estado Regulador - decorrência do insucesso do Estado do Bem-Estar Social - necessário se fez repensar o modelo de Administração Pública brasileiro, situação que culminou com o aperfeiçoamento do modelo burocrático e a sua conseqüente 'evolução' para o modelo gerencial de Administração Pública." (WILLEMAN, Flávio de Araújo. SOUTO, Marcos Juruena Villela [coord.] Responsabilidade Civil das Agências Reguladoras. Coleção Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005). 2 Sobre o Estado regulador, Marçal Justen Filho leciona que "é, antes de tudo, uma organização institucional que se relaciona às concepções do Estado de Direito. Essa figura pressupõe não apenas o monopólio do Direito por parte do Estado, mas também a submissão deste àquele. Para compreender o Estado regulador, é necessário reconhecer a supremacia da ordem jurídica sobre a atuação política." (Direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 46). 3 "Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado." 4 "Art. 21. Compete à União: [.] XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; [...]"  5 "§ 1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei.  § 2º A lei a que se refere o § 1º disporá sobre: [...] III - a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União;" 6 "Pela necessidade de as entidades reguladoras serem titulares de interesses públicos, as Agências Reguladoras brasileiras têm natureza jurídica de autarquia especial, integrante da administração indireta do ente político titular da competência descentralizada." (WILLEMAN, Flávio de Araújo. SOUTO, Marcos Juruena Villela [coord.] Responsabilidade Civil das Agências Reguladoras. Coleção Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 66) 7 "Essa autonomia reforçada constitui em verdade o núcleo das agências reguladoras independentes e é um plus ontológico que se agrega ao conceito tradicional de descentralização/autonomia, ou seja, o grau de razoável e efetiva autonomia outorgada a um órgão ou entidade para desenvolver suas atribuições e para que tenham um desemprenho mais ágil e eficiente, autonomia esta que rompe decisivamente a hierarquia." (CAMARGO, Sabino Lamego de. Agências Reguladoras e Fato do Príncipe. In: Doutrinas Essenciais de Direito Empresarial, vol. 4, p. 191-204, Dez./2010.) 8 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 3. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2013. 9 Art. 3º A natureza especial conferida à agência reguladora é caracterizada pela ausência de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira e pela investidura a termo de seus dirigentes e estabilidade durante os mandatos, bem como pelas demais disposições constantes desta Lei ou de leis específicas voltadas à sua implementação. 10 BARROSO, Luís Roberto. Agências Reguladoras. Constituição, Transformações do Estado e Legitimidade Democrática. In: BINENBOJM, Gustavo [coord.]. Agências Reguladoras e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 11 SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro e SCHILLER, Alexandre Ortigão Sampaio Buarque. Revisão Judicial da Omissão das Agências Reguladoras no Dever de Decidir: uma Pesquisa Empírica. RDU, Porto Alegre, Volume 15, n. 83, 2018, 72-101, set-out 2018. 12 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 417. 13 Como exemplo, pode-se mencionar o inciso IX do artigo 3º da Lei Federal nº 13.874/2019, que instituiu a obrigação de a Administração Pública informar o prazo máximo para a análise de pedidos no âmbito de processos administrativos ou quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica, sob pena de caracterização de aprovação tácita. 14 Artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal. 15 GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 273. 16 "Os conflitos entre uma indústria poluidora, uma outra indústria que usa a água poluída lançada no rio e os vizinhos que também consomem, quer-se que eles sejam julgados por quem entenda do assunto. Não alguém que entenda de Direito apenas (isto é, das técnicas de produção e hermenêutica normativa), mas que entenda do problema específico: quem saiba das dificuldades para compor harmonicamente o conflito, consiga dar a solução mais harmoniosa por equidade, baseando-se em critérios técnicos, etc." (SUNFIELD, Carlos Ari. Serviços públicos e regulação estatal. In: Direito administrativo econômico. Carlos Ari Sunfield [org.]. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 30) 17 SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro e SCHILLER, Alexandre Ortigão Sampaio Buarque. Op. Cit., p. 84. 18 JOURDAIN, Patrice. Les principes de la responsabilité civile. 8e éd. Paris: Dalloz, 2010. Tradução livre: "todo o dano, mas nada mais que o dano!" 19 "Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano." 20 "A nova codificação vem, assim, consagrar a idéia que doutrina e jurisprudência brasileiras já imputavam à responsabilidade civil por meio do chamado princípio da reparação integral do dano. A idéia consiste em atribuir ampla proteção à vítima, empregando-se todos os esforços para fazê-la retornar ao status quo anterior ao prejuízo." (TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República - Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 859) 21 "Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [.] § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa." 22 JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa. 4. Responsabilidade da agência por atos omissivos - 22. Responsabilidade civil das agências reguladoras. In: JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa. Responsabilidade civil - Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2010. 23 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 447. 24 "Todavia, na responsabilidade do Estado por atos omissivos, a situação é diferente. A omissão somente é relevante, quando um órgão ou agente público tem o dever jurídico de agir e não o faz. Nos atos omissivos imputados ao Estado, haverá responsabilidade quando ocorrer uma falha no dever jurídico de agir dos agentes ou órgãos estatais. Ou seja, somente haverá responsabilidade extracontratual do Estado na hipótese de uma atuação omissiva ilícita da administração pública. Portanto, a ilicitude é um dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado, devendo-se apenas estabelecer uma distinção entre atos omissivos e comissivos em que ela terá maior ou menos relevância." (SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Revisão crítica da responsabilidade extracontratual do Estado no direito brasileiro. In: Revista de Doutrina da 4ª Região, n. 3, 24 out. 2004) 25 DI PIETRO, Marya Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32ª Edição. Rio de Janeiro. Ed. Forense, p. 829/834. 26 "Para a caracterização do elemento subjetivo (da culpa) será necessário, tão somente, demonstrar: a) a falta do serviço; b) a realização irregular do serviço (mau funcionamento); ou c) que o serviço foi realizado, mas com atraso - que provocou o dano. A omissão deve ser reprovável, ao que estivesse dentro das possibilidades de se fazer, mas não foi feito." (NEVES, Rodrigo Santos. Responsabilidade civil das agências reguladoras. In: Revista dos Tribunais, ano 91, vol. 803, p. 741, setembro de 2002). 27 "Se, por exemplo, a Anatel - responsável pela regulação dos serviços de telecomunicações - deixa o seu dever legal de proteger a livre concorrência e, por isso, uma determinada concessionária pratica abusos no mercado, impondo preços às outras concessionárias e aos consumidores, sendo configurado abuso do poder econômico, poderia a concessionária prejudicada ajuizar ação indenizatória em face da Anatel pelos danos causados à concessionária, provenientes do descumprimento do dever legal de a agência preservar a livre concorrência? A resposta a esta indagação nos parece positiva. Uma vez comprovado que o ato de imposição de preço de tarifas não ocorreria se houvesse uma efetiva e justificável fiscalização da agência, o nexo de causalidade estaria demonstrado, assim como a conduta culposa, pela falta do serviço. É evidente que caberá ação regressiva da agência em face da concessionária que causou diretamente o dano e contra o responsável pela fiscalização, não realizada." (NEVES, Rodrigo Santos. Op. cit.., p. 741) 28 "Agravo regimental em recurso extraordinário. 2. Responsabilidade objetiva prevista no art. 37, § 6º, da Constituição Federal abrange também os atos omissivos do Poder Público. Precedentes. 3. Impossibilidade de reexame do conjunto fático-probatório. Enunciado 279 da Súmula do STF. 4. Ausência de argumentos suficientes para infirmar a decisão recorrida. 5. Agravo regimental a que se nega provimento." (STF, RE 677.283 AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe de 08.05.12 - grifou-se) 29 "Responsabilidade civil do Estado - Falta do serviço - Corretora de valores mobiliários liquidada extrajudicialmente - Os investidores clientes de corretora de valores mobiliários liquidada extrajudicialmente não têm direito a indenização por omissão da fiscalização a ser exercida pela CVM, pelo Bacen, ou pela Bolsa de Valores em que opera, quando essa empresa praticou fraudes e apresentou balanço irregular. A responsabilidade do Estado, em casos de omissão de serviço de fiscalização, deve ser demonstrada com os requisitos do nexo de causalidade e da culpa" (TRF4, AC nº 95.04.520.94-4 - RS - 3.ª T. - Rel. Juiz Marcelo de Nardi - DJU 05.05.99, p. 408 - grifou-se)." 30 STF, RE nº 841.526/RS, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário, j. 30.03.16. 31 "A responsabilidade civil estatal, segundo a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, § 6º, subsume-se à teoria do risco administrativo, tanto para as condutas estatais comissivas quanto paras as omissivas, posto rejeitada a teoria do risco integral." (STF, RE nº 841.526/RS, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário, j. 30.03.16) 32 VALDÉS, Daisy de Asper. Responsabilidade civil do Estado e as Agências Reguladoras. In: Revista de informação legislativa, v. 40, n. 159, p. 181-192, jul./set., 2003. 33 "Foi no contexto de valorização da regulação (que deixa as atividades econômicas fundamentalmente a cargo da iniciativa privada impondo-lhe padrões desejáveis de qualidade no fornecimento de produtos e serviços) que se editou a Lei 8.078/90, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor. A normatização das relações de consumo compõe o novo plexo de regulação moderna na economia, referindo-se a todo o mercado de consumo e atuando concomitantemente à regulação específica levada a cabo em cada setor pela respectiva agência reguladora." (EFING, Antônio Carlos. Agências Reguladoras e a Proteção do Consumidor Brasileiro. Curitiba. Ed. Juruá, 2009, p. 31).