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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Nelson Rosenvald, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri e Igor Mascarenhas
Em nível mundial, emergiu o fenômeno denominado de "bancarização", o qual sob pena da pessoa ser passível de determinados tipos de exclusão social, induz a todos, mesmo para atividades simples, necessitarem ter conta bancária para conseguirem auferir determinados direitos e/ou cumprir obrigações, tudo sem ter de carregar moeda em espécie, o que traz insegurança. Propagada no mercado sob o atraente argumento de propiciar o acesso das pessoas aos contratos bancários, podendo incluir movimentações monetárias por meio de conta, cartão de crédito ou outras modalidades e, em especial, para concessão específica de empréstimos (crédito para consumidores), o fato é que esse tipo de contrato se popularizou1. Entretanto, essas práticas incluem muitos riscos à proteção dos direitos destes destinatários finais dos serviços. Note-se que não são apenas aqueles decorrentes das instabilidades da economia brasileira (insegurança jurídica, volatilidade com inflação e mesmo eventuais imprevistos como desemprego, doença, etc.), mas também pela complexidade dos contratos bancários que, atualmente, costumam incluir aspectos digitais, independente da carência ou não de educação específica do consumidor para essa área. E esse cenário é agravado pelo fator de que os maiores fornecedores nesse segmento atuam em regime de oligopólio (os quatro maiores bancos2 dominam 59% do mercado de crédito3), sendo que não hesitam em usar seu marketshare e, principalmente, seu marketpower na busca de influenciarem a regulação em prol de seus interesses. Não é por acaso ou só por competência que o retrospecto demonstra que as instituições financeiras compõem o único setor que exibe polpudos lucros, tanto nos períodos em que o país prospera, quanto nos de crise. E, em específico, ao exercerem domínio desse mercado, os bancos "ditam" arbitrariamente muitas práticas e cláusulas contratuais que as manifestações judiciais costumam declarar abusivas; e não demonstram se preocupar; afinal podem facilmente elevar a taxa média de juros do mercado que é considerada lícita pelos tribunais e desta forma repassar a "conta" para os consumidores. Assim, a realidade mostra que embora o consumidor possa escolher com qual banco deseja contratar, considerando que as práticas adotadas por esses fornecedores costumam ser idênticas, a esse destinatário final do serviço só resta resignar-se. Sob pena de exclusão, a manifestação da vontade do consumidor apesar de ser um requisito essencial, acaba se limitando a emissão de um assentimento (e não um verdadeiro consentimento informado, livre e desimpedido de condicionamentos ou constrangimentos). Outro detalhe: tendo em vista que, normalmente, quem passa a ter conta em banco segue assim no longo prazo, pode-se classificar esses contratos como cativos de longa duração. Então, em meio a práticas lícitas e outras muito questionáveis, como os instrumentos contratuais não apresentam diferenças substanciais e os bancos não concedem espaço para verdadeira negociação de cláusulas, o consumidor fica na opção de, ou quedar-se alijado desse mercado ou aceitar as condições impostas na contratação formulada pelo banco. Nesse contexto, sobressai, então, a geral pressuposição de vulnerabilidade do consumidor4, a qual, no caso dos idosos, é agravada, ou seja, trata-se de hipervulnerabilidade. Como expressou Andressa Jarletti: "E a Carta Magna reconheceu também que algumas pessoas necessitam uma proteção ainda mais especial como a pessoas com deficiência, idosos, crianças e adolescentes, que podem ser considerados hipervulneráveis. A proteção especial estabelecida para estas pessoas pode ser compreendida pela nova concepção de sujeito na pós-modernidade, que acolhe as distintas subjetividades e individualidades, observando que 'o (in)diví(duo), aquele que não era divisível na modernidade, se dividiu', reconhecendo-se as diferenças e permitindo a proteção dos vulneráveis a partir de uma ressignificação da igualdade, material. A proteção dos idosos (pessoas com mais de 60 anos) foi prevista no art. 230 da Constituição Federal, com inspiração nos princípios constitucionais da solidariedade e proteção, sendo reforçada posteriormente pelo Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), que reconhece sua vulnerabilidade e o dever do Estado, da família, da sociedade e da comunidade em a satisfação de seus direitos. A proteção legal da vulnerabilidade do idoso 'faz nascer um direito subjetivo personalíssimo e indisponível ao envelhecimento sadio, ao qual reponde uma multiplicidade de direitos e deveres para assegurá-lo'"5. Enquanto toda uma geração avançava na idade, as relações de consumo entre bancos e consumidores idosos foram se transformando, principalmente com o ingresso da internet nesse cenário. Ocorre que enorme contingente destes destinatários finais dos serviços não teve condições de se adaptar a essa nova realidade, ainda mais quando os bancos em busca de cortar custos com agências e funcionários, passaram a manejar meios para que o idoso adira ao autoatendimento6. Observe-se que esse tipo de cliente não é nativo digital e não foi treinado para ser funcionário bancário, além do que, quando comete qualquer equívoco devido a essa falta de habilidade, o banco logo busca atribuir-lhe responsabilidade (a causa do evento). A par disso, os riscos aumentam quando o banco utilizando os meios de que dispõe altera elementos ou práticas do que acontece durante a prestação dessa espécie de serviço. E isso tem sido algo rotineiro. Impressiona que esse é o único segmento em que o fornecedor, sem contato ou manifestação da outra parte, na prática modifica aspectos do contrato. Por exemplo, quando, no momento em que quer, cria e passa a debitar alguma taxa antes mesmo de qualquer permissivo por parte do Banco Central do Brasil (que só age reativamente) ou adota ou retira alguma função do cartão entregue ao cliente. Ora, essa liberdade não é facultada para nenhum outro fornecedor. Não há permissivo legal para, na vigência do contrato com o consumidor idoso, sem sequer solicitar a aquiescência deste último (a "seu bel prazer"), o banco modificar determinadas práticas que influem no conteúdo e no desenrolar de fatos que estejam relacionados com a contratação. Cláusulas nesse sentido são flagrantemente abusivas. E nesse contexto, em especial quanto ao relacionamento do banco com idosos, cabe chamar à atenção para algumas situações específicas que comumente acontecem no mercado; e assim poder-se analisar aspectos da respectiva responsabilidade civil. Práticas envolvidadas nas contratações bancárias com consumidor idoso e consequências quanto à responsabilidade civil No mercado de contratações bancárias com consumidores idosos, o primeiro exemplo de situação que desejamos pontuar consiste no que ocorre quando o banco deseja atrair o cliente e se vale das mais diversas estratégias, inclusive com marketing direcionado e possibilidade da contratação acontecer pela via eletrônica. Por evidente, se presencialmente já podem surgir dificuldades para o idoso, tal se acentua quando são utilizados meios virtuais. Normalmente, então, esmaece a qualidade da informação, bem como, torna-se rotineiro o banco fornecedor não avaliar ou até desconsiderar o perfil desse tipo de contratante para bem desempenhar a tarefa de lhe prestar informação adequada (clara, concisa e precisa). Ou seja, que inclua conteúdo entendível pelo destinatário, acompanhado de advertências e aconselhamentos7. E se for firmada a contratação, assegurar que esta conte com as cautelas protetivas pertinentes8. Sabe-se que há casos de idosos que não conseguem sequer decorar uma senha (necessitando carregá-la consigo de forma escrita para movimentar a conta ou usar o cartão de crédito), mas o banco, agindo descompromissado com seu dever de boa-fé objetiva, não toma cautelas específicas quando o contrato envolve meio que seja total ou parcialmente digital9. Tanto não alerta para os riscos dessa modalidade, quanto não busca formas de mitigar essas características do outro contratante, a fim de protegê-lo de possíveis danos quando do exercício dos serviços objeto da contratação (por exemplo: estabelecendo atendimento apenas presencial ou com liberação de valores ou crédito somente com utilização de biometria). Já um segundo tipo de irregularidade que se deseja dar destaque reside na prática do banco em, sem qualquer comunicação ou participação do idoso, alterar o limite de crédito para mais ou para menos. Nesta oportunidade não abordaremos as situações sobejamente tratadas pela doutrina de quando é para menos, ou mesmo da preocupante questão do superendividamento do consumidor quando tal ocorre para mais. Sendo mais explícito/específico: trataremos dos riscos e eventuais danos há que fica submetido o consumidor idoso quando o banco (com interesse em que a pessoa use o limite, afinal os juros são sua maior fonte de ganho), sem consulta e descumprindo regra do Banco Central, aumenta o limite do crédito sem ao menos avisar a esse último. Então, o que poderia parecer uma benesse na verdade prejudica ao consumidor, se por exemplo, for assaltado sofrendo consequências mais gravosas em razão de algo que não provocou ou concordou (aumento do limite). Essa falta de adequação na contratação e, principalmente de alertas e aconselhamentos ao consumidor para as consequências do que pode acontecer no contrato, se constituem em vício de fornecimento do serviço. Françoise Peellaert assevera que: "Pelo dever de esclarecimento ou de informação estabelece-se uma imposição moral e jurídica de comunicar a outra parte todas as características e circunstâncias pendentes do negócio jurídico e, assim, do bem jurídico que é seu objeto, por ser imperativo de lealdade entre os contraentes"10. E faz parte dessa lealdade, que em nome de um ganho de escala, o banco não priorize a instituição de rotinas gerais sem cuidar de proteger aqueles que, pela idade, possuem características diferentes. Pois bem, tanto no primeiro tipo de situação aqui descrita, quanto no segundo, quando da aferição da responsabilidade civil do banco, as citadas ocorrências que se ligam ao nexo causal, devem ser consideradas como fortuito interno por falhas que implicam em responsabilização do banco fornecedor. Em relações de consumo a responsabilidade civil é objetiva, mas, naturalmente, demanda análise do conjunto probatório e nas suas alegações, os bancos costumam tentar manejar em seu favor, o argumento de que em caso, por exemplo, de assalto ou furto de cartão de crédito, o acesso à senha por quem não consegue decorá-la se constitui em fato de terceiro ou de culpa exclusiva do consumidor. Ora, o fortuito interno representado pela conduta deficiente do fornecedor (modelo de contratação inadequada, casos de cartão com aproximação e, por exemplo, aumento não consentido de limite de crédito) constituíram a causa primária para que com o surgimento do crime - um fato que não é raro na realidade atual de insegurança - viesse em prejuízo do consumidor. Ou seja, considerada a hipervulnerabilidade do idoso, se o referido fornecedor não tomou as cautelas devidas e a modalidade de contratação (principalmente quando envolva total ou parcialmente meios virtuais) não assegura proteções que se compatibilizam com as características desse destinatário final do serviço, trata-se de fortuito interno e o banco deve ser responsabilizado. Note-se que existe para o fornecedor um dever de manter sua atuação permeada pela boa-fé objetiva, a qual precisa estar presente desde a aproximação para a contratação, devendo seguir no desenvolvimento desta e mesmo perdurar após o encerramento do contrato (período pós-contratual). O negócio jurídico de consumo entre o banco - poderoso fornecedor - e o consumidor idoso possui características próprias, com muitas especificidades que precisam ser consideradas para não resultar em desequilíbrio que prejudique o hipervulnerável e inclusive possa comprometer a função social do contrato. Contando com apoio em doutrina reconhecida, Ana Cláudia C. Z. M. do Amaral e Roberto Wagner Marquesi afirmam: "A atuação da boa-fé na relação contratual varia na inversa proporção do exercício da autonomia da vontade das partes, uma vez que, quanto maior o distanciamento socioeconômico entre os contratantes, menor será a livre atuação da autonomia da vontade delas, caso em que a presença da boa-fé objetiva deve se manifestar com ímpar intensidade, no intuito de minimizar o desequilíbrio concretamente existente (NALIM, 2001, p. 138). E a boa-fé, aqui, encontra correspondência com a ética, assim entendida como o comportamento que traduz o respeito à alteridade, é dizer, à figura da contraparte no contrato"11. Essa visão integra-se a concepção de contrato relacional. Como Ronaldo Porto Macedo12 expõe em doutrina que assim se descreve: atualmente, diante das exigências da pós-modernidade, esses contratos devem ser concebidos e praticados com fundamento na característica de serem acordos de solidariedade. Isto é, devem ser focados menos no aspecto exclusivo da noção de troca (fornecimento e pagamento) e mais sob o viés de instrumento de justa repartição dos ônus e benefícios que as partes vieram buscar na contratação13. Então, nos contratos bancários firmados com consumidor idoso impõe-se uma releitura direcionada a estarem em conformidade com os princípios constitucionais e, em específico, com os expressos no CDC. No sistema embasado na economia de mercado, certo é que há liberdade:  "Contudo, a autonomia privada não é um valor em si mesmo e, portanto, exige uma análise detida que permita compreender se o seu exercício está em conformidade com os preceitos presentes no ordenamento jurídico. A função social é certamente uma ruptura do modelo clássico de contratação. Pode-se afirmar que ela exprime o dever imposto às partes de perseguir, para além de seus interesses individuais, os interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se relacionam com o contrato ou são por ele atingidos14. Faz parte do processo civilizatório que o domínio da relação contratual atraia obrigações de cuidado e solidariedade para com o outro contratante; e destas derivem as respectivas responsabilidades para o fornecedor poderoso.  Conclusão Assim, é de se afirmar como importante que seja adotada a concepção de que nas situações que aqui foram explicitadas, tem-se caracterizado o denominado fortuito interno de responsabilidade do banco, posto que se a prestação do serviço fosse realizada seguindo os princípios preconizados pela legislação, o problema do risco e/ou dano, na sua origem, sequer teria elementos para surgir. Somente grave ação ou omissão do consumidor para suscitar uma responsabilidade concorrente, porém sem jamais ficar restrita a conclusão de tratar-se de culpa exclusiva deste ou de terceiro. Quando na fonte, na nascente, o banco descumprindo deveres, arquitetou a contratação em forma desvirtuada e/ou arbitrariamente sem consulta ao consumidor, realizou alterações nos serviços durante o andamento do contrato, deu ensejo a fortuito interno de sua responsabilidade. Ser consumidor é ser um cidadão-econômico15", que merece inclusão nessa condição. Entretanto, quando de contratos bancários com idoso (de adesão e cotidianamente contando com meios digitais), mais do que o acesso, esse hipervulnerável necessita ter asseguradas as proteções preconizadas pelos princípios constitucionais, com especial destaque para as estampadas no sistema de proteção ao consumidor. __________ 1 Esse fenômeno (da "bancarização") que nos EUA e na Europa já se encontra mais avançado, prenuncia que no Brasil a tendência é de aumento. Observe-se que segundo dados de 2017, já havia 86,5% dos brasileiros com contas bancárias. FONTE BCB. Acesso: 14/07/23. 2 Por questões de metodologia para adequar ao que ocorre no mercado internacional, esse tipo de aferição que antes considerava a participação dos cinco maiores bancos (que em 2021 detinham 81,4%) passou a considerar apenas os quatro maiores que, como o visto, somados alcançam quase 2/3 desse mercado. Fonte: O Globo. Acesso em 14/07/2023 as 17hs.  3 Disponível aqui. Acesso em: 13/07/2023 às 19:00hs. 4 "A noção de vulnerabilidade no direito associa-se à identificação de fraqueza ou debilidade de um dos sujeitos da relação jurídica em razão de determinadas condições ou qualidades que lhe são inerentes ou, ainda, de uma posição de força que pode ser identificada no outro sujeito da relação jurídica. Nesse sentido há possibilidade de sua identificação ou determinação a priori in abstracto, ou ao contrário, sua verificação a posteriori, in concreto, dependendo neste último caso da demonstração da situação de vulnerabilidade. A opção do legislador brasileiro como referimos, foi pelo estabelecimento de uma presunção de vulnerabilidade do consumidor, de modo que todos os consumidores sejam considerados vulneráveis, uma vez que a princípio não possuem o poder de direção da relação de consumo, estando expostos às práticas comerciais dos fornecedores de mercado". (MARQUES, Claudia; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 162) 5 Oliveira, Andressa Jarletti Gonçalves de. Defesa judicial do consumidor bancário, Curitiba/Pr.: Rede do Consumidor, 2014, p. 59/60. 6 Sob o argumento falacioso de propiciar acesso ao serviço bancário em qualquer hora e de qualquer lugar, acontece esse tipo de trabalho não remunerado, consistente em levar o cliente a gastar tempo e disposição para fazer tarefas que competiam aos funcionários do banco. Mas os riscos são muito grandes para os idosos. 7 "A obrigação de informação é desdobrada pelo art. 31 do CDC, em quatro categorias principais, imbricadas entre si: a) informação-conteúdo (= características intrínsecas do produto e serviço), b) informação-utilização (= como se usa o produto ou serviço), c) informação-preço (= custo, formas e condições de pagamento), e d) informação-advertência (= riscos do produto ou serviço). A obrigação de informação exige comportamento positivo, pois o CDC rejeita tanto a regra do caveat emptor como a subinformação, o que transmuda o silêncio total ou parcial do fornecedor em patologia repreensível, relevante apenas em desfavor do profissional, inclusive como oferta e publicidade enganosa por omissão". Veja-se: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n° 586.316/MG. Recorrente: Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Recorrido: Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação. Relator: Min. Herman Benjamin, 17 de abril de 2007. Disponível aqui. Acesso em: 01 maio 2022. 8 Cite-se: de que adianta induzir para o idoso ser agente de seu autoatendimento se este não sabe manejar as máquinas específicas e precisa se socorrer de funcionários ou terceiros, correndo os riscos que são de conhecimento comum conforme enormidade de casos divulgados na imprensa. 9 Note-se os riscos para um idoso quando seu cartão de crédito funciona por aproximação, sendo que os bancos não costumam fazer as devidas advertências e aconselhamentos para esse consumidor poder fruir o objetivo do serviço em segurança. 10 Peellaert, Françoise. A boa-fé objetiva aplicada aos negócios jurídicos processuais, Londrina/Paraná: Engenho das Letra, 2023, p.62, 11 Ética nos negócios jurídicos, Org. Clodomiro José Bannwart Júnior, Elve Miguel Cenci e Luiz Fernando Belinetti, Londrina/Pr.: Engenho das Letras, 2020, p. 63/64. 12 MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 123-124.  13 No mesmo sentido veja-se em: Princípio da solidariedade e a legitimação da responsabilidade civil objetiva: reflexões a partir do julgamento da adi nº 1.003/df, Revista IBERC, maio/ago. 2023, v.6, n. 2, p. 82-99. 14 Viola, Rafael. Risco e Causalidade (posição 8777, p. 419). Editora Foco. Edição do Kindle. 15 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime de relações contratuais, 8ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 21.
Identificação do problema As relações comerciais e sociais que se desenvolvem hoje dentro de uma realidade jurídica globalizada faz surgir uma problemática relevante: a inconsistência do tratamento ofertado pelas sociedades anônimas de capital aberto perante seus sócios em um contexto internacional. As companhias abertas, enquanto entidades com personalidade jurídica própria, possuem obrigações inalienáveis em relação aos seus sócios que, quando ignoradas ou descumpridas, resultam na responsabilização da companhia, cuja magnitude pode variar de acordo com a jurisdição competente, e é justamente aqui que a problemática ganha contornos preocupantes. A governança corporativa prescreve que os sócios de uma mesma companhia devem ser tratados de forma igualitária. O que se tem observado, no entanto, é a disparidade na forma como os diferentes Estados nacionais tratam a responsabilidade civil das companhias abertas, a desrespeitar o primado do tratamento equânime entre acionistas. Em outras palavras, sócios de diferentes nacionalidades podem encontrar desigualdades de tratamento em caso de conflito. Dentre as principais razões para esse problema estão a ausência de regulação em âmbito internacional, a constante flexibilização e desrespeito a cláusulas arbitrais, instrumentos que deveriam servir para assegurar previsibilidade e segurança jurídica, além da costumeira falta de transparência por parte das próprias companhias abertas. A responsabilização civil das companhias abertas sob o prisma internacional torna-se, portanto, um tema de análise urgente e complexo. Exige-se uma avaliação aprofundada e criteriosa, com o objetivo de identificar e propor soluções para os desafios decorrentes das disparidades verificadas nesse ambiente. Governança corporativa e o tratamento equânime entre acionistas A Governança Corporativa, caracterizada pela sua versatilidade conceitual, pode ser definida através da tríade princípios-regras-ações, que concede um entendimento holístico ao instituto, pelo qual os princípios constituem a estrutura basilar que subsidia a elaboração das regras, as quais, subsequentemente, orientam as ações a serem executadas1. Quatro princípios são considerados fundamentais e estão presentes em diversos instrumentos, tanto públicos quanto privados, desde a Sarbanes-Oxley Act ao Código das melhores práticas do IBGC - Instituto Brasileiro de Governança Corporativa2, são elas a transparência, a equidade no tratamento de acionistas, a prestação de contas confiável e a responsabilidade corporativa. A governança ganha papel relevante, sobretudo atualmente, vez que a regulamentação do mercado, em sua trajetória de democratização e universalização, tem carregado consigo um substrato de inovações normativas e adaptações culturais, dentre as quais se destaca o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, processo que representa uma expressiva alteração no paradigma jurídico, ao incorporar e refletir os princípios e direitos fundamentais expressos na Constituição nos diversos ramos do direito privado. Esta constitucionalização tem desempenhado um papel crucial na consolidação de um ambiente corporativo mais igualitário e transparente. Ao infiltrar-se na matriz das regulações tradicionalmente privadas, os princípios constitucionais têm a capacidade de influenciar e moldar as normas e regulamentações internas das corporações, promovendo uma harmonização entre os direitos e deveres dos diversos atores envolvidos no mundo corporativo. A par disso, a equidade entre os acionistas é elemento essencial que permeia todas as dimensões do direito corporativo e pilar indissociável da governança corporativa. A observância a esse princípio contribui para a manutenção da integridade e da justiça no ambiente corporativo, gerando confiança entre os acionistas e, por conseguinte, estabilidade no mercado financeiro. Tratar de forma equânime os acionistas implica garantir que todos eles, independentemente da quantidade de ações que possuam, sejam respeitados em seus direitos e obrigações. É assegurar que todas as decisões tomadas pela gestão da empresa levem em consideração o bem-estar de todos os seus acionistas, sem favorecer indevidamente um grupo em detrimento de outro, qualquer que seja a classe ou nacionalidade dos sócios. Essa equidade deve ser visível e palpável em todas as ações e decisões corporativas, desde a distribuição de dividendos até a divulgação de informações relevantes à empresa. O problema no cenário global e a necessidade de uniformização Em um mundo cada vez mais globalizado, sobretudo nas estruturas de mercados, torna-se mais complexa a garantia dos princípios da governança corporativa. No cerne dessa complexidade, a ilustrar a problemática, tem-se o caso da Petrobrás e todos os desdobramentos societários fruto dos escândalos envolvendo a operação Lava-Jato, que fornece um campo fértil para a discussão dos desafios inerentes a garantia de tratamento igualitário entre os acionistas na perspectiva multinacional. Com uma multiplicidade de demandas judiciais e arbitrais sendo conduzidas simultaneamente em diversos Estados, muitas delas confidenciais, percebe-se que a ideia de equidade e transparência se mostra esquiva, a escancarar a realidade de que estamos diante de uma violação sistemática dos pilares da governança corporativa. Não há regras uniformes sobre a vinculação dos acionistas à cláusula compromissória e transparência sobre o procedimento arbitral, tampouco coordenação sobre a aplicação das diferentes legislações nacionais no tratamento oferecido ao tema. Esta lacuna regulatória tem resultado em decisões, a bem dizer, heterodoxas, como a proferida pela Corte de Rotterdam, que recorreu ao critério de proficiência em português para determinar quem estaria submetido à arbitragem perante a CAM da B3. Tal situação demonstra uma desconformidade de tratamento que é flagrantemente inaceitável. Ao mesmo tempo em que acionistas brasileiros amargam anos a espera de uma reparação pelos danos sofridos, os titulares das mesmas ações adquiridas nos Estados Unidos já foram alcançados por acordo de responsabilidade e reparação civil, e os de outros lugares do mundo recebem tratamento condescendente oferecido pelo tribunal holandês. Essa situação real demonstra que, longe de ser um mero debate doutrinário, a questão do tratamento igualitário dos acionistas necessita de transformações práticas e tangíveis no mundo corporativo. Imperativo notar que o movimento em direção a uma maior democratização das relações intrassociais não pode ser contido por meros entraves jurídicos. Como bem aponta Fábio Ulhoa Coelho, "as relações societárias equilibradas não se acomodam mais na vetusta fórmula que associa exclusivamente o tamanho do risco do aporte realizado no capital social"3. Não se pode mais considerar apenas a participação acionária como fator determinante no tratamento dos acionistas. Sob o impulso da governança corporativa e das reivindicações dos minoritários, é possível perceber mudanças nas legislações e regulações privadas sobre o tema que visam promover um ambiente mais democrático e inclusivo nas relações societárias, porém, ainda insuficientes e carentes de coordenação global. Conclusão A despeito dos avanços obtidos pela democratização das relações societárias e pela emergente constitucionalização do Direito Civil, persistem desafios significativos na efetiva garantia do tratamento equânime entre acionistas, transparência e responsabilidade corporativa. É evidente que a governança, com seus princípios de transparência, equidade, prestação de contas confiável e responsabilidade corporativa, desempenha um papel fundamental nesse cenário. Entretanto, sua efetividade é limitada em face à ausência de coordenação e uniformização global das regras e princípios corporativos. O caso da Petrobrás ilustra de forma contundente a complexidade desta problemática, evidenciando que as disparidades no tratamento dos acionistas não são mero fruto de uma análise doutrinária, mas realidades tangíveis que impactam diretamente a confiança e a estabilidade do mercado financeiro. Portanto, a necessidade de uma abordagem global e uniformizada para a responsabilização civil das companhias abertas é urgente. Torna-se imperativo um maior esforço de coordenação entre os diferentes estados nacionais, visando a implementação de regulamentações harmonizadas e a construção de um ambiente corporativo verdadeiramente democrático e equânime. __________ 1 Na construção da base teórica, utilizam-se as concepções de governança projetadas por: RIBEIRO, Henrique César Melo. Corporate governance versus corporate governance: an international review: uma análise comparativa da produção acadêmica do tema governança corporativa, UFSC, Florianópolis, v. 11, n. 23, p. 95-116, maio/ago. 2014; BOZEC, R. US Market Integration and Corporate Governance Practices: evidence from Canadian companies. Corporate Governance: An International Review, v. 15, n. 4, p. 535-545, 2007;  JESOVER, Fianna; KIRKPATRICK, Grant. The Revised OECD Principles of corporate governance and their relevance to non-OECD countries. Corporate Governance: An International Review, v. 13, n. 2, p. 127-136, 2005;  BAUWHEDE, H. V.; WILLEKENS, M. Disclosure on corporate governance in the European Union. Corporate Governance: An International Review, v. 16, n. 2, p. 101-115, 2008;  CORMIER, Denis et al. Corporate governance and information asymmetry between managers and investors. Corporate Governance, v. 10, n. 5, p. 574-589, 2010;  WILLIAMSON, Oliver E. The Mechanisms of Governance. Nova York: Oxford University Press, 1996;  MONKS, Robert A. G.; MINOW, Nell. Corporate Governance. United States: John Wiley e Sons, 2011. 2 INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA. Código das melhores práticas de governança corporativa. São Paulo: IBGC, 2015. 3 COELHO, Fábio Ulhoa. "Democratização" das Relações entre Acionistas. In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; AZEVEDO, Luis André N. de Moura (org.). Poder de Controle e Outros Temas de Direito Societário e Mercado de Capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 46-55.
Por conta das privatizações, verificadas no país na última década do século XX, quando se concedeu uma série de serviços públicos à iniciativa privada, entendeu-se necessária a criação de agências reguladoras, que tratariam da relação entre o Poder Público - o poder concedente -, a concessionária e os usuários. Cabe a essas agências, como seu nome indica, coordenar o setor, estabelecendo regras e, eventualmente, punindo as concessionárias que falharem na prestação dos serviços a que se obrigaram.  O surgimento das agências reguladoras encontra-se atrelado a importantes mudanças, como a flexibilização dos monopólios estatais, admitindo uma nova dinâmica da economia, decorrentes, sobretudo, da alteração do paradigma econômico nacional1, que se afastou da concepção do Welfare State para se aproximar de um Estado Regulador.2 Com a concessão de serviços públicos à iniciativa privada, criaram-se, gradualmente, essas agências. Embora não as tenha previsto de forma expressa, o constituinte originário deu indícios de que entidades nos moldes das agências reguladoras seriam estabelecidas diante do teor do artigo 174 da Constituição Federal de 1988.3 Veja-se, por exemplo, que a Emenda Constitucional ("EC") nº 08/1995 alterou o artigo 21, XI, da Constituição Federal, a fim de determinar a criação de órgão regulador voltado para o setor de telecomunicações, a ANATEL.4 A EC nº 09/1995, por sua vez, modificou o artigo 177, § 2º, III, da Constituição, instituindo órgão regulador do setor do petróleo e gás natural, a ANP.5 Não obstante o regime jurídico das agências seja similar ao das demais autarquias,6 aquelas entidades gozam de uma característica específica relevante, que permite o exercício das suas funções de maneira mais eficiente. Trata-se do regime de autonomia reforçada,7 por meio do qual é assegurada a equidistância da agência em relação ao poder concedente. Nas palavras de Alexandre Santos de Aragão, "não é qualquer autonomia que caracteriza as agências reguladoras, mas apenas aquela reforçada, sobretudo pela vedação de exoneração ad nutum dos seus dirigentes".8 A Lei Federal nº 13.848/2019, conhecida como a "Lei das Agências Reguladoras", positivou o regime de autonomia reforçada das agências reguladoras no ordenamento jurídico brasileiro, dispondo, inclusive, sobre as suas características, quais sejam: o poder normativo técnico; a autonomia decisória; a autonomia econômico-financeira; e a independência político-administrativa.9 Em suma, a adoção de um modus operandi técnico confere maior segurança jurídica ao setor regulado. Como apontou o Ministro Luís Roberto Barroso, não há como olvidar que "as agências reguladoras tornaram-se peças fundamentais no ambicioso projeto nacional de melhoria da qualidade dos serviços públicos e de sua universalização, integrando ao consumo, à cidadania e à vida civilizada enormes contingentes mantidos à margem do progresso material".10 Como contrapartida da concessão de maior autonomia, surge, por conseguinte, uma fundamental responsabilidade quanto ao dever das agências de regulamentar e coordenar o setor para o qual foram concebidas, sob pena de prejudicar o poder concedente, as concessionárias e, sobretudo, os usuários. As agências reguladoras incorrem em omissão quando deixam de exercer o poder normativo que lhes é atribuído ou, alternativamente, nas hipóteses em que demoram, de forma exagerada, a deliberar sobre matérias sujeitas a processo administrativo.11 Essa omissão deve ser analisada à luz do silêncio administrativo, fenômeno descrito por Celso Antônio Bandeira de Mello como aquele que ocorre "se a Administração não se pronuncia quando deve fazê-lo, seja porque foi provocada por administrado que postula interesse próprio, seja porque um órgão tem de pronunciar-se para fins de controle de ato de outro órgão".12 Embora o ordenamento jurídico brasileiro preveja mecanismos aptos a sanar tais omissões regulatórias e evitar a ocorrência do silêncio administrativo,13 eventual inércia das agências reguladoras podem acarretar danos ao Estado, às concessionárias e aos usuários do serviço público. A omissão das agências reguladoras pode ensejar a judicialização do tema, pela iniciativa da parte lesada com a inércia. Conquanto seja imprescindível à manutenção do Estado de Direito,14 a atuação jurisdicional acerca das controvérsias administrativas traz consigo a problemática da substituição das decisões das agências reguladoras pelo Poder Judiciário. Os riscos daí advindos são intuitivos. Com efeito, a ingerência do Judiciário pode prejudicar a função regulatória e o planejamento setorial, bem como gerar distorções nas esferas econômica e social, sobretudo porque, conforme leciona Sérgio Guerra, "[o] ato regulatório se fundamenta em critérios metajurídicos",15 que quase sempre extrapolam a competência técnica do magistrado.16 Nesse particular, Patrícia Sampaio e Alexandre Schiller explicam que "[a] substituição das agências pelos tribunais tem o condão de gerar uma série de consequências para os setores regulados, a começar pela perda de confiança e credibilidade nas agências reguladoras, avançando até a perda de harmonia e de equilíbrio do sistema, o que pode prejudicar a implementação das políticas públicas, gerando efeitos perversos para o mercado e para a sociedade."17 Por outro lado, a indesejada inércia, por vezes, torna necessária a intervenção do Judiciário, até mesmo de forma liminar, sob pena do agravamento do dano ilegal (ou mesmo de perecimento de direito). Avalia-se, nesses casos, qual seria o mal menor: a ingerência do Judiciário ou a permanência da omissão. Embora se possa discutir o grau de intervenção do Judiciário na esfera das decisões administrativas, não se questiona que o dano, comprovado o nexo causal entre a indevida omissão da agencia e a consequência, deve ser reparado.  "Tout le dommage, mais rien que le dommage".18 Como se sabe, vigora em nosso ordenamento jurídico o princípio da reparação integral. Qualquer pessoa, física ou jurídica, faz jus à tutela jurisdicional, a fim de obter a reparação por todos os danos ilícitos eventualmente sofridos em razão de atos - comissivos ou omissivos - cometidos por outrem, na medida de sua extensão.19-20 O artigo 37, § 6°, da Constituição Federal estabelece a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado, prestadoras de serviço público, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.21 No mesmo sentido, o artigo 43 do Código Civil estabelece que "as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo." Não há dúvidas de que os danos causados pelas agências reguladoras aos usuários em virtude de seus atos omissivos devem ser indenizados. Cumpre destacar, contudo, haver divergência jurisprudencial e doutrinária sobre a natureza da responsabilidade - se objetiva ou subjetiva. Nelson Nery Jr. e Rosa Nery se posicionam no sentido de reconhecer a responsabilidade objetiva.22 De outro lado, a Professora Marya Sylvia Zanella Di Pietro, acompanhada por Celso Antônio Bandeira de Mello23 e pela doutrina majoritária,24 entende que, "enquanto no caso de atos comissivos a responsabilidade incide nas hipóteses de atos lícitos ou ilícitos, a omissão tem que ser ilícita para acarretar a responsabilidade do Estado. Por essa razão, acolhemos a lição daqueles que aceitam a tese da responsabilidade subjetiva nos casos de omissão do Poder Público".25 Nas palavras de Rodrigo Santos Neves, "[d]iante de uma omissão do Estado, em especial de uma agência reguladora que cause danos a terceiros, deve-se provar que: a) houve o dano injusto; b) culpa da pessoa jurídica; e c) o nexo causal entre a omissão culposa e o dano".26 Esse elemento subjetivo da culpa pode ser aferido a partir da demonstração da falta do serviço (como, v.g., a ausência de fiscalização sobre a concessionária); da realização irregular do serviço (mau funcionamento); ou da realização atrasada do serviço. Em outras palavras, a omissão deve ser reprovável para que seja apta a gerar a responsabilidade civil da agência reguladora.27 Ao longo dos anos, os tribunais endereçaram o tema de forma não linear. Por vezes, entendeu-se que condutas omissivas das agências reguladoras culminariam em responsabilidade civil objetiva.28 Por outro lado, parte dos tribunais entendiam que a responsabilidade do Poder Público em razão de omissão era verificada mediante caracterização de culpa, ou seja, subjetiva.29 De outro lado, em 30.03.16, o Supremo Tribunal Federal, interpretando o art. 37, §6º, da Constituição, em sede de repercussão geral, concluiu que, "configurado o nexo de causalidade entre o dano sofrido pelo particular e a omissão do Poder Público em impedir a sua ocorrência - quando tinha a obrigação legal específica de fazê-lo - surge a obrigação de indenizar, independentemente de prova da culpa na conduta administrativa".30 Nesse sentido, restou sedimentado o entendimento de que a responsabilidade da administração pública, na hipótese em que o facere esteja consagrado como dever e a Administração Pública o transgrida, é objetiva e, portanto, independe da aferição de culpa.31 Convém, por oportuno, ressaltar que as agências reguladoras possuem personalidade jurídica e patrimônio próprios e, nessa medida, capacidade para se fazerem representar em juízo e responder por lesões causadas a terceiros. Assim, verificado um dano decorrente da omissão de determinada agência reguladora, cabe à parte lesada ajuizar ação indenizatória, de obrigação de fazer ou de não fazer diretamente contra a autarquia.32 Outro ponto relevante a ser abordado no âmbito deste tema consiste na aplicação do Código de Defesa do Consumidor ("CDC") nas ações movidas pelos consumidores em razão de danos incorridos em razão de ilícitos praticados pelas agências reguladoras.33 De fato, o CDC busca tutelar os direitos relativos à proteção ao usuário de serviço público decorrentes das permissões e concessões concedidas pelo Estado, sendo certo que o seu artigo 22 dispõe que os órgãos públicos e suas empresas, concessionárias e permissionárias são obrigados a fornecer serviços de qualidade, adequados, eficientes e seguros. Logo, o CDC se aplica de forma subsidiária aos serviços públicos, naquilo em que não for incompatível com a lei especial. A atuação regular das agências reguladoras é imprescindível ao bom funcionamento dos serviços de interesse público, administrados, em sua grande maioria, por entes privados. Na eventualidade dessas autarquias de caráter especial quedarem omissas em suas obrigações de coordenar o setor, subsistirá, além da eventual necessidade de intervenção do Judiciário - substituindo proativamente a agência para sanar a omissão -, a obrigação de indenizar os danos decorrentes dessa inércia, independentemente de outras responsabilidades verificadas na relação. Referências bibliográficas  ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 3. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2013. BARROSO, Luís Roberto. Agências Reguladoras. Constituição, Transformações do Estado e Legitimidade Democrática. In: BINENBOJM, Gustavo [coord.]. Agências Reguladoras e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 417. CAMARGO, Sabino Lamego de. Agências Reguladoras e Fato do Príncipe. In: Doutrinas Essenciais de Direito Empresarial, vol. 4, p. 191-204, Dez./2010. DI PIETRO, Marya Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32ª Edição. Rio de Janeiro. Ed. Forense, p. 829/834. EFING, Antônio Carlos. Agências Reguladoras e a Proteção do Consumidor Brasileiro. Curitiba. Ed. Juruá, 2009, p. 31 GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 273. JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa. 4. Responsabilidade da agência por atos omissivos - 22. Responsabilidade civil das agências reguladoras In: JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa. Responsabilidade civil - Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2010. JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito das Agências Reguladoras Independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 46). JOURDAIN, Patrice. Les principes de la responsabilité civile. 8e éd. Paris: Dalloz, 2010. Tradução livre: "todo o dano, mas nada mais que o dano!" NEVES, Rodrigo Santos. Responsabilidade civil das agências reguladoras. In: Revista dos Tribunais, ano 91, vol. 803, p. 741, setembro de 2002. SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro e SCHILLER, Alexandre Ortigão Sampaio Buarque. Revisão Judicial da Omissão das Agências Reguladoras no Dever de Decidir: uma Pesquisa Empírica. RDU, Porto Alegre, Volume 15, n. 83, 2018, 72-101, set-out 2018. SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Revisão crítica da responsabilidade extracontratual do Estado no direito brasileiro. In: Revista de Doutrina da 4ª Região, n. 3, 24 out. 2004. TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República - Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 859. VALDÉS, Daisy de Asper. Responsabilidade civil do Estado e as Agências Reguladoras. In:  Revista de informação legislativa, v. 40, n. 159, p. 181-192, jul./set., 2003. WILLEMAN, Flávio de Araújo. SOUTO, Marcos Juruena Villela [coord.] Responsabilidade Civil das Agências Reguladoras. Coleção Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. __________ 1 "Todavia, com o surgimento do Estado Regulador - decorrência do insucesso do Estado do Bem-Estar Social - necessário se fez repensar o modelo de Administração Pública brasileiro, situação que culminou com o aperfeiçoamento do modelo burocrático e a sua conseqüente 'evolução' para o modelo gerencial de Administração Pública." (WILLEMAN, Flávio de Araújo. SOUTO, Marcos Juruena Villela [coord.] Responsabilidade Civil das Agências Reguladoras. Coleção Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005). 2 Sobre o Estado regulador, Marçal Justen Filho leciona que "é, antes de tudo, uma organização institucional que se relaciona às concepções do Estado de Direito. Essa figura pressupõe não apenas o monopólio do Direito por parte do Estado, mas também a submissão deste àquele. Para compreender o Estado regulador, é necessário reconhecer a supremacia da ordem jurídica sobre a atuação política." (Direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 46). 3 "Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado." 4 "Art. 21. Compete à União: [.] XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; [...]"  5 "§ 1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei.  § 2º A lei a que se refere o § 1º disporá sobre: [...] III - a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União;" 6 "Pela necessidade de as entidades reguladoras serem titulares de interesses públicos, as Agências Reguladoras brasileiras têm natureza jurídica de autarquia especial, integrante da administração indireta do ente político titular da competência descentralizada." (WILLEMAN, Flávio de Araújo. SOUTO, Marcos Juruena Villela [coord.] Responsabilidade Civil das Agências Reguladoras. Coleção Direito Regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 66) 7 "Essa autonomia reforçada constitui em verdade o núcleo das agências reguladoras independentes e é um plus ontológico que se agrega ao conceito tradicional de descentralização/autonomia, ou seja, o grau de razoável e efetiva autonomia outorgada a um órgão ou entidade para desenvolver suas atribuições e para que tenham um desemprenho mais ágil e eficiente, autonomia esta que rompe decisivamente a hierarquia." (CAMARGO, Sabino Lamego de. Agências Reguladoras e Fato do Príncipe. In: Doutrinas Essenciais de Direito Empresarial, vol. 4, p. 191-204, Dez./2010.) 8 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 3. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2013. 9 Art. 3º A natureza especial conferida à agência reguladora é caracterizada pela ausência de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira e pela investidura a termo de seus dirigentes e estabilidade durante os mandatos, bem como pelas demais disposições constantes desta Lei ou de leis específicas voltadas à sua implementação. 10 BARROSO, Luís Roberto. Agências Reguladoras. Constituição, Transformações do Estado e Legitimidade Democrática. In: BINENBOJM, Gustavo [coord.]. Agências Reguladoras e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 11 SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro e SCHILLER, Alexandre Ortigão Sampaio Buarque. Revisão Judicial da Omissão das Agências Reguladoras no Dever de Decidir: uma Pesquisa Empírica. RDU, Porto Alegre, Volume 15, n. 83, 2018, 72-101, set-out 2018. 12 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 417. 13 Como exemplo, pode-se mencionar o inciso IX do artigo 3º da Lei Federal nº 13.874/2019, que instituiu a obrigação de a Administração Pública informar o prazo máximo para a análise de pedidos no âmbito de processos administrativos ou quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica, sob pena de caracterização de aprovação tácita. 14 Artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal. 15 GUERRA, Sérgio. Controle judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 273. 16 "Os conflitos entre uma indústria poluidora, uma outra indústria que usa a água poluída lançada no rio e os vizinhos que também consomem, quer-se que eles sejam julgados por quem entenda do assunto. Não alguém que entenda de Direito apenas (isto é, das técnicas de produção e hermenêutica normativa), mas que entenda do problema específico: quem saiba das dificuldades para compor harmonicamente o conflito, consiga dar a solução mais harmoniosa por equidade, baseando-se em critérios técnicos, etc." (SUNFIELD, Carlos Ari. Serviços públicos e regulação estatal. In: Direito administrativo econômico. Carlos Ari Sunfield [org.]. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 30) 17 SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro e SCHILLER, Alexandre Ortigão Sampaio Buarque. Op. Cit., p. 84. 18 JOURDAIN, Patrice. Les principes de la responsabilité civile. 8e éd. Paris: Dalloz, 2010. Tradução livre: "todo o dano, mas nada mais que o dano!" 19 "Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano." 20 "A nova codificação vem, assim, consagrar a idéia que doutrina e jurisprudência brasileiras já imputavam à responsabilidade civil por meio do chamado princípio da reparação integral do dano. A idéia consiste em atribuir ampla proteção à vítima, empregando-se todos os esforços para fazê-la retornar ao status quo anterior ao prejuízo." (TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República - Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 859) 21 "Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [.] § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa." 22 JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa. 4. Responsabilidade da agência por atos omissivos - 22. Responsabilidade civil das agências reguladoras. In: JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa. Responsabilidade civil - Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2010. 23 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 447. 24 "Todavia, na responsabilidade do Estado por atos omissivos, a situação é diferente. A omissão somente é relevante, quando um órgão ou agente público tem o dever jurídico de agir e não o faz. Nos atos omissivos imputados ao Estado, haverá responsabilidade quando ocorrer uma falha no dever jurídico de agir dos agentes ou órgãos estatais. Ou seja, somente haverá responsabilidade extracontratual do Estado na hipótese de uma atuação omissiva ilícita da administração pública. Portanto, a ilicitude é um dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado, devendo-se apenas estabelecer uma distinção entre atos omissivos e comissivos em que ela terá maior ou menos relevância." (SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Revisão crítica da responsabilidade extracontratual do Estado no direito brasileiro. In: Revista de Doutrina da 4ª Região, n. 3, 24 out. 2004) 25 DI PIETRO, Marya Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32ª Edição. Rio de Janeiro. Ed. Forense, p. 829/834. 26 "Para a caracterização do elemento subjetivo (da culpa) será necessário, tão somente, demonstrar: a) a falta do serviço; b) a realização irregular do serviço (mau funcionamento); ou c) que o serviço foi realizado, mas com atraso - que provocou o dano. A omissão deve ser reprovável, ao que estivesse dentro das possibilidades de se fazer, mas não foi feito." (NEVES, Rodrigo Santos. Responsabilidade civil das agências reguladoras. In: Revista dos Tribunais, ano 91, vol. 803, p. 741, setembro de 2002). 27 "Se, por exemplo, a Anatel - responsável pela regulação dos serviços de telecomunicações - deixa o seu dever legal de proteger a livre concorrência e, por isso, uma determinada concessionária pratica abusos no mercado, impondo preços às outras concessionárias e aos consumidores, sendo configurado abuso do poder econômico, poderia a concessionária prejudicada ajuizar ação indenizatória em face da Anatel pelos danos causados à concessionária, provenientes do descumprimento do dever legal de a agência preservar a livre concorrência? A resposta a esta indagação nos parece positiva. Uma vez comprovado que o ato de imposição de preço de tarifas não ocorreria se houvesse uma efetiva e justificável fiscalização da agência, o nexo de causalidade estaria demonstrado, assim como a conduta culposa, pela falta do serviço. É evidente que caberá ação regressiva da agência em face da concessionária que causou diretamente o dano e contra o responsável pela fiscalização, não realizada." (NEVES, Rodrigo Santos. Op. cit.., p. 741) 28 "Agravo regimental em recurso extraordinário. 2. Responsabilidade objetiva prevista no art. 37, § 6º, da Constituição Federal abrange também os atos omissivos do Poder Público. Precedentes. 3. Impossibilidade de reexame do conjunto fático-probatório. Enunciado 279 da Súmula do STF. 4. Ausência de argumentos suficientes para infirmar a decisão recorrida. 5. Agravo regimental a que se nega provimento." (STF, RE 677.283 AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe de 08.05.12 - grifou-se) 29 "Responsabilidade civil do Estado - Falta do serviço - Corretora de valores mobiliários liquidada extrajudicialmente - Os investidores clientes de corretora de valores mobiliários liquidada extrajudicialmente não têm direito a indenização por omissão da fiscalização a ser exercida pela CVM, pelo Bacen, ou pela Bolsa de Valores em que opera, quando essa empresa praticou fraudes e apresentou balanço irregular. A responsabilidade do Estado, em casos de omissão de serviço de fiscalização, deve ser demonstrada com os requisitos do nexo de causalidade e da culpa" (TRF4, AC nº 95.04.520.94-4 - RS - 3.ª T. - Rel. Juiz Marcelo de Nardi - DJU 05.05.99, p. 408 - grifou-se)." 30 STF, RE nº 841.526/RS, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário, j. 30.03.16. 31 "A responsabilidade civil estatal, segundo a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, § 6º, subsume-se à teoria do risco administrativo, tanto para as condutas estatais comissivas quanto paras as omissivas, posto rejeitada a teoria do risco integral." (STF, RE nº 841.526/RS, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário, j. 30.03.16) 32 VALDÉS, Daisy de Asper. Responsabilidade civil do Estado e as Agências Reguladoras. In: Revista de informação legislativa, v. 40, n. 159, p. 181-192, jul./set., 2003. 33 "Foi no contexto de valorização da regulação (que deixa as atividades econômicas fundamentalmente a cargo da iniciativa privada impondo-lhe padrões desejáveis de qualidade no fornecimento de produtos e serviços) que se editou a Lei 8.078/90, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor. A normatização das relações de consumo compõe o novo plexo de regulação moderna na economia, referindo-se a todo o mercado de consumo e atuando concomitantemente à regulação específica levada a cabo em cada setor pela respectiva agência reguladora." (EFING, Antônio Carlos. Agências Reguladoras e a Proteção do Consumidor Brasileiro. Curitiba. Ed. Juruá, 2009, p. 31).
Introdução  Ao pesquisarmos sobre o número de usuários de redes sociais no Brasil, a pesquisa revela as dez redes sociais mais utilizadas, com dados medidos em fevereiro de 2023.1 Sobre os dados trazidos, as máximas de experiência nos mostram que as redes são utilizadas com os mais variados objetivos: grupos de família, de amigos, publicidade de produtos e serviços; educação, como alguns poucos exemplos. Em momento anterior analisamos algumas decisões que discutiram a ocorrência de danos extrapatrimoniais com fundamento na denominada infidelidade virtual.2Daquele momento em diante evoluímos, estudamos mais profundamente a questão e, através destas breves linhas, indagamos: como efetivamente se caracterizaria o descumprimento do dever de fidelidade recíproca? Imagine o estudioso do tema as seguintes hipóteses: 1) a esposa flagrou seu marido tendo relações sexuais com outra pessoa; 2) A esposa ficou sabendo por uma amiga que viu seu marido em um restaurante, com outra pessoa, trocando olhares carinhosos, por vezes, de mãos dadas; 3) A esposa viu, por uma rede social, trocas de mensagens entre seu marido e uma pessoa, com o teor do diálogo revelando uma paixão, por exemplo. Como ficariam tais hipóteses à luz do suporte fático do descumprimento do dever de fidelidade recíproca previsto pelo Código Civil e, em especial, tais fatos ocorrendo em ambiente virtual? E mais: imaginemos que o juiz tenha julgado procedente o pedido de condenação por danos imateriais, pois, na sua convicção, caracterizada a infidelidade virtual. O réu, por sua vez, não se contentando com o resultado da ação, agora, perante Desembargadores em determinado Tribunal de Justiça de nosso país, pergunta ao magistrado através de seu advogado, advogada: "Como poderia alguém ser condenado à reparação danos imateriais tendo por base uma causa de pedir (infidelidade virtual) que sequer existe em nosso ordenamento, enquanto fato jurídico? Convidamos então o estudioso para tais reflexões, que serão enfrentadas a partir de agora.            Ilícito e o suporte fático e dever de fidelidade recíproca  Ato ilícito, segundo o entendimento de Sérgio Cavalieri Filho, resulta de uma conduta voluntária, violando determinado dever jurídico, devendo a culpa estar comprovada caso se trate de responsabilidade subjetiva.3 Pontes de Miranda, por sua vez, sobre o suporte fático da norma, ensina que:  A regra jurídica é sempre uma proposição, escrita ou não escrita, em que se diz: "Se ocorrem a, b e c (ou se ocorrem b e c, ou se ocorrem a e b, ou se ocorre a, ou se ocorre b), acontece d. A esses elementos chamam-se elementos fáticos. Se, todos estão juntos, ou se aparece o único que se exigia, o todo fático é como que carimbado pela regra jurídica. A esse todo deu-se o nome de suporte fático.4  O Código Civil prevê sobre o dever de fidelidade recíproca entre os cônjuges,5 dever que, segundo as lições de Paulo Lôbo: "A fidelidade recíproca sempre foi entendida como impedimento  de relações sexuais com terceiros".6 Nelson Rosenvald e Felipe Btaga Netto, por sua vez e refletindo sobre o tema, observam que aquele dever:  [...] participa da comunhão plena de vida formada pelo casamento - embora, é certo, o conceito de fidelidade posa variar de acordo com o casal, de seus valores, de seu modo de vida, de acordo com a história que construíram juntos".7  Por outro lado, o Código Civil, expressamente, nada refere sobre conseqüências de sua eventual violação. Mas há ainda outra situação relacionada com a infidelidade e que aguardaria o desfecho sobre o entendimento acerca da aceitação, ou não, da infidelidade virtual. Vamos imaginar a hipótese de o marido doar um bem à pessoa que vem se relacionando virtualmente. A esposa poderia pleitear a anulação com fundamento na regra do art. 550,8 do Código Civil?  Conclusão  Novos fatos, mas velhos Códigos; velhos, não em um sentido de ofensa ou desprestígio, mas tão somente por força do decurso do tempo. Contudo, a dignidade da pessoa humana em termos de sua proteção dá novos ares às interpretações fazendo com que a legislação mantenha-se atualizada. Atualmente, o dever de fidelidade recíproca, segundo leciona Paulo Lôbo, "[...] confinou-se ao plano da consciência moral, uma vez que destituído de conseqüências jurídicas".9 Talvez a responsabilidade civil, na atualidade e até com uma nova tendência na questão do dano extrapatrimonial envolvendo o ambiente virtual e o descumprimento do dever de fidelidade recíproca (naquele ambiente) comece a dar novos contornos aos meios em que a infidelidade venha a se caracaterizar. Meios enquanto antigos fatos (infidelidade) justamente como é o ambiente virtual. Afinal de contas, quando Miguel Rele nos ensina sobre as mais variadas acepções da palavra Direito, remete-nos o jurista à teoria tridimensional do Direito, ou seja, o Direito na seguinte análise: "[...] um aspecto normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e um aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça)".10 Sobre a indagação antes feita pelo réu em suas razões de sustentação oral, talvez a resposta do Tribunal para manter a condenação viria, também, com base no venire contra factum proprium. Afinal, objetivamente, mostrou pelo seu comportamento a intenção em estar com pessoa diversa a do seu casamento, mesmo na forma virtual. Contudo, alega a infidelidade na virtualidade como fato não jurídico, portanto, não enquadrado como violação ao dever de fidelidade recíproca previsto pelo Código Civil. Por isso também ressaltamos o título destas linhas na parte que apresenta a seguinte expressão e a pergunta: muda-se o meio, mas subsiste o suporte fático e a possibilidade de dano? Parece-nos que a resposta, pelo andar do comportamento dos integrantes da sociedade também no sentido de uma nova manifestação das relações entre casais passa pela virtualidade, sendo que o Direito, por sua vez, deve ficar atento à eventual responsabilidade civil como uma nova forma de violação de antigos deveres conforme aqui alertamos e defendemos. Referências ALMEIDA, Felipe Cunha de. Responsabilidade civil no direito de família: angústias e aflições nas relações familiares. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020. BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DF, 01 jan. 2002. Disponível aqui. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DF, 05 outubro de 1988. Disponível aqui. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2014. LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. v. 5. 9 ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti de. Tratado das ações: tomo 1. 1 ed. ALVES, Vilson Rodrigues. (atual). Campinas: Bookseller, 1998. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Código civil comentado: artigo por artigo. 1 ed. Salvador Juspodivm, 2020. __________ 1  Ranking: as redes sociais mais usadas no Brasil e no mundo em 2023, com insights, ferramentas e materiais: 1. WhatsApp (169 mi); 2. YouTube (142 mi); 3. Instagram (113 mi); 4. Facebook; (109 mi); 5. TikTok (82 mi); 6. LinkedIn (63 mi); 7. Messenger (62 mi); 8. Kwai (48 mi); 9. Pinterest (28 mi); 10. Twitter (24 mi). In: Resultados Digitais. Disponível aqui. Acesso em: 28 jun. 2023. 2 ALMEIDA, Felipe Cunha de. Responsabilidade civil no direito de família: angústias e aflições nas relações familiares. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020, p. 148-152. 3 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 25. 4 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti de. Tratado das ações: tomo 1. 1 ed. ALVES, Vilson Rodrigues. (atual). Campinas: Bookseller, 1998, p. 21. 5 Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca; 6 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. v. 5. 9 ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019, p. 137. 7 ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Código civil comentado: artigo por artigo. 1 ed. Salvador Juspodivm, 2020, p. 1.609. 8 Art. 550. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal. 9 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. v. 5. 9 ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2019, p. 138. 10 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 65.  
As correlações entre as normas de Direito Ambiental e as normas pertinentes a searas regulatórias setoriais, tal como relativas à energia, às águas, às telecomunicações e à radiodifusão possuem zonas de encontro, mas também limites de delimitação. As zonas de encontro e os limites de delimitação possuem conexão direta e expressa para com as competências constitucionais. A justificativa de vinculação indireta em cadeias ilimitadas de reflexo das normas setoriais ou regulatórias em bens ambientais não legitima a atuação da competência legislativa ambiental. O panorama acarreta consequências diretas em termos de responsabilidade civil ambiental. O Supremo Tribunal Federal veio a julgar a matéria em recente decisão, proferida na ADI 7.321/AL. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Supremo firmou que é inconstitucional norma estadual que institui a obrigatoriedade de licenciamento ambiental para a instalação de Rede de Transmissão de Sistemas de Telefonia e de Estações de Rádio Base (ERBs) e Equipamentos de Telefonia sem fio em seu território local. No caso, a lei 6.787/2006, do Estado de Alagoas, alterada pela lei 7.625/14, foi reconhecida não como uma norma de regulação ambiental propriamente dita, mas sim como uma norma de direito regulatório de caráter setorial. A linha assumida pelo Supremo está também presente nos julgados proferidos em ADPF 732; ADI 5.575; ADI 5.569 e ADI 3.110. Segundo o Supremo, "ainda que sob a justificativa de proteger, defender e conservar o meio ambiente local e seus recursos naturais, a lei estadual impugnada, ao criar uma obrigação às empresas prestadoras de serviços de telecomunicações e estipular critérios para a instalação de infraestruturas a ele relacionadas, invadiu a competência da União para dispor sobre a matéria e interferiu diretamente na relação contratual formalizada entre o Poder concedente e as concessionárias". Em fato, a competência ambiental é competência concorrente, prevista no artigo 24, incisos VI, VII e VIII, ao passo que a competência regulatória quanto a energia, águas, informática, telecomunicações e radiodifusão é competência privativa, prevista no artigo 22, inciso IV, ambos da Constituição da República. Embora a União edite normas gerais e os Estados e Distrito Federal editem normas específicas em matéria ambiental, a competência regulatória setorial é privativa da União. Não pode o ente federativo estadual passar a exercer atividade normativa regulatória setorial sob a roupagem de reflexo indireto em bem ambiental. Caracteriza-se aqui verdadeira invasão de competência. O efeito sobre a responsabilidade civil é de implicação clara. Violações de concessionária de serviço público ou de atores de mercado como um todo em termos de legislação regulatória setorial não se caracterizam como infrações ambientais, afastando a responsabilidade administrativa, civil ou mesmo penal em termos de Direito Ambiental. Em consequência, se determinada pessoa jurídica viola normas regulatórias setoriais, o fato não legitima a lavratura de autos de infração ambiental e menos ainda a dedução de ações reparatórias ao argumento de responsabilidade objetiva pela teoria do risco integral por existência de potencial degradação ambiental. Estabelece-se assim um filtro prévio na análise de violação normativa que será determinante para a adequação do marco regulatório em infrações cíveis ou administrativas. Exemplificativamente, se a matéria envolve o marco regulatório de geração energética previsto na lei 9.074/95 e na lei 9.427/96, tal como no caso de especificação de finalidades do aproveitamento ou da implantação de usinas, não cabe a qualquer órgão ambiental atuar para imputação de responsabilidades no caso de violações legais, infralegais ou contratuais, seja de que espécie for. A relevância e o caráter interdisciplinar do Direito Ambiental não significam que ramos jurídicos cujos bens possuem multiplicidade regulatória ficarão absorvidos pela dinâmica regulatória da responsabilidade civil, administrativa e penal ambientais. É necessário delimitar os âmbitos de aplicação e exercício de competência. As legislações estaduais que passam a exercer normatização regulatória em matéria de energia ou telecomunicações, ao argumento de implicação indireta progressiva coligada a bens ambientais, revelam-se como inconstitucionais, pois invadem competências federais privativas. Além disso, em caso de violações normativas vinculadas a normas regulatórias setoriais, não se tem legitimidade de aplicação de autos de infração ambientais e menos ainda de ações civis públicas para reparação de danos ambientais. A solidez do Direito Ambiental depende de sua densificação em âmbito próprio, sem se transformar em mecanismo de regulação universal das relações jurídicas econômico-sociais.
O direito a proteção aos dados pessoais é um direito que abrange e dialoga com a privacidade1, mas, vai além2 e se relaciona com as próprias instituições democráticas3, por isso, tem proteção jurídica específica, inclusive constitucionalmente garantida como direito fundamental4. Na seara do direito privado, a sua proteção traz em si a necessária preocupação para com a prevenção dentro da responsabilidade por danos. É que em um caso de incidente de segurança ou vazamento de dados pessoais não há a possibilidade de retornar ao status quo5, ou seja, de recolher os dados que foram acessados por terceiros, sem a devida autorização. Equipara-se ao conto da fofoca. Neste conto, para punir um cidadão que gostava de espalhar fofocas da vida dos demais, o sacerdote da aldeia determinou que o cidadão subisse na torre da igreja, que era o ponto mais alto da cidade e levasse consigo um travesseiro de penas de ganso. Deste local, ele deveria abrir a fronha e deixar que as penas se espalhassem pela cidade. Feito isso, o cidadão retornou e o sacerdote solicitou então que ele recolhesse todas as penas que foram espalhadas e as colocasse de volta ao travesseiro. Ao tentar executar a tarefa, o indivíduo reclamou e afirmou que era impossível recolher todas as penas de ganso que foram espalhadas, pois o vento as levou para lugares distantes e que não saberia onde procurá-las. Portanto, seria impossível recuperá-las6. E da mesma forma são os dados. Após um vazamento, não há como saber quem ou quantas pessoas os acessaram. Também, não é possível ter o controle de que serão apagados ou não serão compartilhados para outras pessoas. Por isso, fala-se em prejuízos incomensuráveis7. O vazamento de dados em si se tornou uma preocupação mais evidente para os estudiosos do tema com a publicação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018). Imaginava-se e especulava-se que haveria um incentivo para que a sociedade se preocupasse mais com os dados pessoais, próprios e de terceiros, desde o seu manuseamento até a implementação de procedimentos de segurança para evitar ou rapidamente agir quando do vazamento destes dados8. Neste período da vacatio legis, que durou efetivamente até 2020, foram adotadas medidas para responsabilizar, ao menos civilmente, as empresas que permitiam que os seus dados fossem acessados sem o consentimento do titular. Foi o que ocorreu na Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, por meio da Comissão de Proteção de Dados Pessoais, em face do Banco Inter. Neste caso, após a instauração de inquérito civil público, constatou-se que, em razão de um incidente de segurança, houve o vazamento dos dados de mais de cem mil correntistas deste banco digital, por meio de um arquivo de 40 GB (quarenta gigabytes) criptografado e por isso, foi requerido o valor de R$ 10.000.0000,00 (dez milhões de reais) a título de danos morais coletivos. Durante o trâmite do processo, o Banco realizou acordo no valor de R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais), por meio do qual R$ 1.000.000,00 (um milhão) foi destinado a políticas públicas de combates aos crimes cibernéticos e R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) para instituições de caridade9. Outros casos de vazamentos foram investigados pela mesma comissão do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, com altos valores em danos morais10. Mas, nas cortes especiais, percebe-se um caminho inverso e uma interpretação menos rigorosa para defesa e efetiva proteção dos dados pessoais, o que pode ser verificado no que diz respeito aos valores das indenizações e, especialmente, nas ações individuais11. A preocupação para com os valores de reparação, especialmente diante do infundado receio de criação de uma suposta indústria de dano moral12, por muitas vezes fomenta a análise do custo-benefício pelo ofensor13. Surge, então, a pergunta, o que fazer para uma reparação que realmente impeça, isto é, tenha o caráter punitivo e preventivo e não seja mero fomentador da lesão ao direito a proteção dos dados pessoais? Uma possível solução seria a reparação por danos transindividuais, pois para estes casos não se aplicaria a preocupação para com o enriquecimento indevido da vítima14. Assim, há a necessidade em estudar a possível aplicação do dano moral transindividual15 para o caso de tratamento de dados, especificamente o seu vazamento. No que diz respeito ao dano moral para este sujeito coletivo, uma das possíveis restrições era pensar este tipo de dano como reparação apenas da dor ou sofrimento de uma pessoa identificada16, contudo, esta não é a posição atual que cada mais está desvinculada deste conceito pessoal e subjetivo de mágoa17. A percepção de se tratar de um dano considerado imaterial, isto é, sem características patrimoniais que "pressupõe a frustração de uma utilidade extrapatrimonial tutelada pelo direito"18, permite uma indenização/reparação coletiva. O dano moral transindividual está vinculado com a injustiça do dano, isto é, com a gravidade da ilicitude configurada que atinge bens de uma coletividade. Configura-se quando há lesão "a valores fundamentais da sociedade e se essa vulneração ocorrer de forma injusta e intolerável"19, assim como vinculado a uma ilicitude inescusável "de modo a não trivializar, banalizar a configuração do aludido dano moral coletivo"20. Portanto, se não houver lesão a valores considerados como fundamentais da sociedade ou que tenham sido decorrentes de forma injusta e intolerável, afastado será o dano moral coletivo21. Com isso, volta-se ao questionamento, para o caso de proteção de dados pessoais, pode-se tratar deste tipo de dano? Para isso, parte-se do pressuposto que a responsabilidade civil não pressupõe "a consumação de um suporte fático rigidamente previsto em um tipo legal"22 e a tutela de direitos " deixou uma órbita individual, a fim de alcançar um aspecto coletivo"23. Portanto, presume-se a possibilidade de tutela da lesão pelo viés da coletividade quando se está diante de um bem jurídico da coletividade. Fato que ocorre no caso do direito em questão. Isto porque é direito fundamental, previsto constitucionalmente no art. 5º, LXXIX, da Constituição Federal24, o que significa que a sua lesão pode ser considerada como uma ofensa a valores fundamentais de uma sociedade como um todo. Ainda, para o caso dos dados pessoais, o artigo 42 da LGPD25 prevê que o tratamento de dados pessoais possa ocasionar dano coletivo. Por isso, entende-se que estariam superados eventuais óbices para a sua configuração como dano moral transindividual, a partir deste contexto da relevância para a coletividade. Por outro lado, no que diz respeito a gravidade da ilicitude para sua configuração, apesar do Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar caso sobre vazamento de dados, ter mencionado que se trata de "falha indesejável"26, é preciso que seja compreendida como conduta repudiada. A expressão utilizada não foi no sentido de analisar a ilicitude em si, mas sim a sua reprovabilidade e por isso, não contenha os melhores signos para a compreensão do significado desejado em caso de danos transindividuais. É que é imprescindível que se tenha um ambiente seguro e controlado27, para evitar incidentes de segurança28, assim como sejam adotadas medidas adequadas para quando da sua ocorrência com o intuito de minimizar os danos29, de acordo com a própria legislação e, portanto, qualquer conduta contrária significa ofensa literal a legislação, isto é, grave a ponto de ser considerada como ilicitude intolerável.  O último ponto a ser analisado é que o dano moral é in re ipsa e para o vazamento de dados, o mesmo julgado acima mencionado que poderia ter minimizado a ilicitude afastou o dano moral presumido30. Mas, no caso da presunção para o dano coletivo essa será diversa do dano individual. É que no coletivo, o dano decorre da violação do direito transindividual em discussão, "sendo o fato, por si mesmo, passível de avaliação objetiva quanto a ter ou não aptidão para caracterizar o prejuízo moral coletivo, este sim nitidamente subjetivo e insindicável."31 Assim, entende-se que é possível falar em dano moral transindividual para os casos de vazamentos de dados e essa indenização teria a possibilidade de permitir a prevenção e punição necessária para evitar que novos casos ocorram, uma vez que não é possível simplesmente retornar ao status quo, quando se fala em dados pessoais. E a reparação desse dano para além da função sancionatória, contém em si "o fulcro preventivo que desestimula o ofensor a reiterar a prática de ilícitos metaindividuais, bem como o aspecto pedagógico, de alerta a potenciais lesantes que se proponham à prática do mesmo comportamento reprovável"32. Pontos essenciais para casos como o vazamento de dados pessoais. __________ 1 BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 98. 2 A proteção de dados pessoais tem um diálogo constante com a privacidade, "da qual é uma espécie de herdeira, atualizando-a e impondo características próprias. Mediante a proteção de dados pessoais, garantias a princípio relacionadas com a privacidade passam a ser vistas em uma ótica mais abrangente, pela qual outros interesses devem ser considerados, abrangendo as diversas formas de controle tornadas possíveis com o tratamento de dados pessoais." (DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei geral de proteção de dados. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 173). 3 FRAZÃO, Ana. Objetivos e alcance da Lei Geral de Proteção de Dados. In Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito brasileiro. Ana Frazão, Gustavo Tepedino, Milena Donato Oliva [coord.]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 100. 4 "Art. 5º. (...) LXXIX - é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais." (BRASIL. Constituição Federal. Disponível aqui. Acesso em 20 de jun. de 2023). 5 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações: introdução à responsabilidade civil. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. v.1. p.436. 6 GONDIM, Glenda Gonçalves. A responsabilidade sem dano: da lógica reparatório à lógica inibitória. Tese de doutorado apresentada no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná. Disponível aqui. Acesso em 20 de jun. de 2023.  7 Pode-se tratar como "dano enorme", ou seja, uma lesão excepcional que atinge uma coletividade. Para este tipo de dano, consideram-se como requisitos: "a) que se trate de danos de proporções catastróficas que causem considerável clamor social; b) que tenham causalidade múltipla, difusa ou indeterminada; c) que se relacionem ao modo de vida moderna" (SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba: Juruá, 2018, p. 204). 8 CARIOCA NETO, Miguel. FREITAS, Ana Carla Pinheiro. HOLANDA, Marcus Mauricius. Os impactos da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no caso do Banco Inter S/A. Scientia Iuris. Londrina, v. 26, n. 1, p. 43-55, mar. 2022, p. 48. 9 Banco Inter: acordo destinará R$ 1,5 milhão para caridade e combate a crimes cibernéticos. Disponível aqui. Acesso em 20 de jun. de 2023. 10 MPDFT e Netshoes firmam acordo para pagamento de danos morais após vazamento de dados. Disponível aqui. Acesso em 20 de jun. de 2023. Vazamento de dados leva MPDFT a ajuizar ação contra grupo que explora criptomoedas. Disponível aqui. Acesso em 20 de jun. de 2023. 11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.758.799/MG (2017/0006521-9). Relatora Ministra Nancy Andrighi. Terceira Turma. Julgado em 12 de novembro de 2019, DJe 19 de novembro de 2019. 12 Sobre a indústria do dano moral, "(...) Embora a preocupação seja válida, sob o ponto de vista científico, o certo é que, no Brasil ao menos, sua importância não pode ser exacerbada, já que, na maior parte dos casos, o resultado das ações de danos morais é frustrante que efetivamente enriquecedor." (SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 192) 13 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013. p.16-17. 14 VENTURI, Elton. VENTURI, Thaís G. Pascoaloto. O dano moral em suas dimensões coletiva e acidentalmente coletiva. In Dano moral coletivo. Nelson Rosenvald. Felipe Teixeira Neto. [Org.]. Indaiatuba, SP: Editora Foco, p. 397-421, 2018, p. 406-407. 15 Para este presente estudo utiliza-se a nomenclatura do dano moral transindividual como aquele que possa abranger todos os direitos coletivos, tanto difusos, quanto coletivos e individuais homogêneos. 16 Em acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial no 598.281, foi considerada a impossibilidade de aplicar dano moral coletivo para a ideia de transindividualidade, por entender que o dano moral seria um dano relacionado com a dor e o sofrimento. Este acórdão foi alvo de diversas críticas. Neste sentido: "A decisão é criticável em sua associação do dano moral com a dor e o sofrimento, mas o julgamento, longe de revelar oposição à tutela dos interesses supraindividuais, demonstra uma crescente sensibilidade do Poder Judiciário para a distinção entre os interesses puramente individuais e aqueles que transcendem o indivíduo" (SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2012. p.88-89). 17 ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Responsabilidade Civil.4. ed. rev. atual. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 297. 18 TEIXEIRA NETO, Felipe. Ainda sobre o conceito de dano moral coletivo. In Dano moral coletivo. Nelson Rosenvald. Felipe Teixeira Neto. [Org.]. Indaiatuba, SP: Editora Foco, p. 29-51, 2018, p. 44. 19 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.643.365/RS. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 05 de junho de 2018. Diário da Justiça eletrônico em 07 de junho de 2018. 20 Superior Tribunal de Justiça. Embargos em Recurso Especial n.º 1.342.846/RS. Corte Especial. Relator Ministro Raul Araújo. Julgamento em 16 de junho de 2021. Diário da Justiça eletrônico de 03 de agosto de 2021. 21 Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial n.º 1.962.771/SP. Primeira Turma. Relator Ministro Gurgel de Faria. Julgamento em 08 de maio de 2023. Diário da Justiça eletrônico de 19 de maio de 2023. 22 TEIXEIRA NETO, Felipe. Ainda sobre o conceito de dano moral coletivo. In Dano moral coletivo. Nelson Rosenvald. Felipe Teixeira Neto. [Org.]. Indaiatuba, SP: Editora Foco, p. 29-51, 2018, p. 37. 23 LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade civil: de um direito de danos a um direito das condutas lesivas. Atlas: São Paulo, 2012. p.11. 24 BRASIL. Constituição Federal. Disponível aqui. Acesso em 20 de jun. de 2023. 25 "Art. 42. O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo." (BRASIL. Lei n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Disponível aqui. Acesso em 22 de jun. de 2023).  26 Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial n.º 2.130.619/SP. Segunda Turma. Relator Ministro Francisco Falcão. Julgamento em 07 de março de 2023. Diário da Justiça eletrônico de 10 de março de 2023. 27 Art. 52, § 1º, VIII, da LGPD. "Art. 52. Os agentes de tratamento de dados, em razão das infrações cometidas às normas previstas nesta Lei, ficam sujeitos às seguintes sanções administrativas aplicáveis pela autoridade nacional: (...) § 1º As sanções serão aplicadas após procedimento administrativo que possibilite a oportunidade da ampla defesa, de forma gradativa, isolada ou cumulativa, de acordo com as peculiaridades do caso concreto e considerados os seguintes parâmetros e critérios: (...) VIII - a adoção reiterada e demonstrada de mecanismos e procedimentos internos capazes de minimizar o dano, voltados ao tratamento seguro e adequado de dados, em consonância com o disposto no inciso II do § 2º do art. 48 desta Lei;" (BRASIL. Lei n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Disponível aqui. Acesso em 22 de jun. de 2023) 28 Art. 46, caput, da LGPD. "Art. 46. Os agentes de tratamento devem adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito." 29 Art. 48. § 1º, VI, da LGPD. "Art. 48. O controlador deverá comunicar à autoridade nacional e ao titular a ocorrência de incidente de segurança que possa acarretar risco ou dano relevante aos titulares. § 1º A comunicação será feita em prazo razoável, conforme definido pela autoridade nacional, e deverá mencionar, no mínimo: (...) VI - as medidas que foram ou que serão adotadas para reverter ou mitigar os efeitos do prejuízo. 30 Apesar da terminologia utilizada no julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça é preciso ressaltar que dano moral presumido e dano moral in re ipsa são diferentes. Sobre o tema ler: SOARES, Flaviana Rampazzo. Dano presumido e dano in re ipsa - distinções necessárias. Revista IBERC. v. 6, n. 1, p. IV-X, jan./abr.2023. 31 Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n.º 1.330.516/RN. Quarta Turma. Relator Ministro Raul Araújo. Julgamento em 17 de abril de 2023. Diário da Justiça eletrônico de 03 de maio de 2023. 32 ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2021, p. 520.
Nas palavras da escritora nigeriana Chimamanda Adichie, "o poder é a habilidade de não apenas contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva"1. Com esta frase se inicia a série documental "O caso Escola Base", lançada este mês, revisitando o caso histórico, ocorrido na década de 90, em que diversos erros por parte da polícia e da imprensa arruinaram as vidas dos donos da Escola Base, na Aclimação, em São Paulo. Não obstante as severas acusações de pedofilia imputadas aos acusados e o consequente linchamento a que foram submetidos perante a opinião pública, descobriu-se, ao final das investigações, que eles eram inocentes.2 Revisitar esse caso histórico nos convida a revisitar o próprio papel da imprensa e os deveres a serem observados pelos jornalistas em sua atividade, cuja inobservância pode acarretar responsabilidade civil. Não se questiona, por óbvio, o importantíssimo papel desempenhado pela imprensa no Estado Democrático de Direito.3 No presente artigo, pretende-se examinar apenas a responsabilidade civil em decorrência dos excessos praticados no exercício da atividade jornalística, à luz dos parâmetros que vêm sendo delineados pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em julgados proferidos nos últimos anos a respeito da matéria. Segundo o STJ, há três standards de conduta a serem observados no exercício da atividade jornalística. Trata-se dos deveres de veracidade, pertinência e cuidado, cuja inobservância poderá ensejar responsabilidade civil, na hipótese de ofensa a direitos da personalidade de terceiros.4 Se, por um lado, seria temerário limitar o exercício legítimo da liberdade de expressão apenas à divulgação de informações tidas como irrefutáveis - o que poderia inibir injustificadamente a livre circulação de ideias, tão cara à democracia5 -, por outro lado, parece não só razoável como também necessário exigir, daquele que divulgar determinada informação, o dever de diligência na sua apuração (providência usualmente conhecida como fact-checking). Nesse sentido, em precedente proferido este ano, envolvendo a divulgação de notícia que imputava ao ofendido a possível prática de nepotismo, o STJ entendeu que o dever de cuidado impõe a prévia checagem das informações que vierem a ser divulgadas a respeito de outrem: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. (...) SINDICATO DOS SERVIDORES DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL QUE, APÓS FAZER REPRESENTAÇÃO PERANTE O CNJ, A RESPEITO DA OCORRÊNCIA DE POSSÍVEL NEPOTISMO, VEICULA A DENÚNCIA EM REVISTA. MUNUS PÚBLICO QUE DEVE SER EXERCIDO COM RESPONSABILIDADE. INOBSERVÂNCIA, NO CASO, DO DEVER DE APURAÇÃO MÍNIMA QUANTO À VEROSSIMILHANÇA DOS FATOS QUE LHE SÃO INFORMADOS, SOBRETUDO QUANDO SE TRATAM DE PROVIDÊNCIAS ABSOLUTAMENTE SIMPLES E QUE SE ENCONTRAM AO SEU ALCANCE, AGRAVADA PELA VEICULAÇÃO DE TAIS FATOS EM PERIÓDICO DE CONSIDERÁVEL CIRCULAÇÃO. RECURSO IMPROVIDO. 1. Sem descurar do indiscutível dever do Sindicato de levar ao conhecimento do CNJ qualquer fato supostamente ilícito de que tenha notícia, atrelado a esse munus, a ser exercido de modo responsável, está o dever de apuração mínima quanto à verossimilhança dos fatos que lhe são informados, sobretudo quando se tratam de providências absolutamente simples e que se encontram ao seu alcance, agravada pela veiculação de tais fatos em periódico de considerável circulação. 2. Mais do que a simples denúncia/requerimento feita ao CNJ para apurar um possível nepotismo - o que, em si, estaria dentro de suas atribuições -, o Sindicato fez publicar a correlata notícia em seu periódico de considerável circulação (nada menos do que dezoito mil exemplares), dando conta de que o Desembargador ali mencionado (cujo nome, embora omitido na matéria, seria, por evidente, internamente, de todos que trabalham no Tribunal de Justiça conhecido), como autoridade pública, permitia que a dita funcionária, embora remunerada pelo cargo comissionado, simplesmente não trabalhasse, apenas comparecendo de quinze em quinze dias. Tratou-se, como se verifica, de veiculação de notícia que não apenas atribuiu ao magistrado a incidência em nepotismo - de indiscutível gravidade -, mas também lhe imputou, claramente, crime contra a Administração Pública (de prevaricação, no mínimo). 3. Da publicação no periódico não constou, como seria de rigor - e aqui reside o dever inobservado pelo Sindicato de checar, minimamente, a verossimilhança de tais fatos, os quais estavam dentro, indiscutivelmente, do seu pleno alcance -, a relevante informação de que a indigitada funcionária faz parte do quadro de servidores efetivos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o que, como é de sabença, dá-se por meio da aprovação em concurso público. Cuida-se, em tese, de funcionária capacitada para o desempenho do cargo, na medida em que a Lei de regência reserva um percentual mínimo para que funcionários do Quadro efetivo do Tribunal exerçam o cargo comissionado em questão, tendo assessorado, inclusive, por longo período, outros magistrados. Não se tratou, pois, de uma nomeação de pessoa estranha ao quadro do Tribunal de Justiça, com fins exclusivamente pessoais e espúrios, como a matéria pretendeu evidenciar. 3.1 Também não se veiculou qualquer informação na "matéria jornalística" em exame, de autoria e de responsabilidade do Sindicato, de que a aludida funcionária assessorava o Desembargador desde de 2007, quando ainda era juiz, em primeira instância. Ainda assim, fez constar, em termos peremptórios, que o Desembargador mantinha união estável com a irmã de sua funcionária - afirmação deveras temerária, e reproduzida na representação, a considerar os requisitos fáticos necessários à configuração dessa entidade familiar no Direito de Família -, a despeito de se tratar de fato, na ocasião, que ainda seria objeto de apuração pelo CNJ. 4. Embora a apuração devesse ficar a cargo do CNJ, a matéria jornalística em comento, de autoria e de responsabilidade do Sindicato, exacerbando, por completo, do compromisso de simplesmente informar a ocorrência da denúncia feita, fez constar que o referido Desembargador permitia que a sua funcionária - pela matéria, em termos peremptórios, sua cunhada - recebia dos cofres públicos o salário, sem trabalhar, comparecendo no gabinete de quinze a quinze dias. Veja-se, a esse propósito, que uma diligência mínima levada a efeito pelo Sindicato poderia checar a frequência e a assiduidade dessa funcionária, providência que, embora de simples consecução, não foi levada a efeito pelo Sindicato como seria de rigor, sobretudo quando optou por divulgar (e até de fazer constar da denúncia ao CNJ) detalhes que não guardam verossimilhança mínima. 6. A partir do quadro fático insculpido na origem - imutável na presente instância especial -, tem-se que o proceder levado a efeito pelo Sindicato desbordou, por completo, do exercício responsável de seu direito de representação e, principalmente, de publicação de fatos (objetos, na ocasião, ainda, de apuração) que, sem guardar verossimilhança mínima, mereceriam maiores cuidados por parte de quem resolve divulgá-los, avançando, indevidamente, na honra dos autores, passível de ressarcimento. 7. Recurso especial improvido.6 Ademais, no presente ano, o STJ também teve a oportunidade de julgar o caso dos "palhaços do Linha Direta", no qual o programa de televisão, além de narrar determinada denúncia de crimes sexuais feita pelo Ministério Público à época, exibiu uma dramatização do ocorrido por atores profissionais. Conquanto as investigações penais ainda estivessem em curso à época, o programa teria sugerido, de forma peremptória, que os acusados teriam efetivamente praticado os crimes que lhes eram imputados. Muito embora, posteriormente, os acusados tenham sido definitivamente absolvidos na esfera penal, sua imagem na sociedade já havia sido fatalmente maculada.7 Nesse caso, a controvérsia submetida ao STJ dizia respeito à quantificação da indenização pelos danos morais suportados pelos acusados, que tiveram sua imagem injustamente atrelada à prática de crimes sexuais em rede nacional. Ao julgar a controvérsia, a Corte parece ter levado em consideração, em especial, o dever de cuidado no exercício da liberdade de imprensa. O voto vencedor, proferido pelo Min. João Otávio de Noronha, baseou-se na "inconsequência do programa da forma como foi feita"8. Em sentido semelhante, a Min. Maria Isabel Gallotti entendeu que, "quando faz um programa desse tipo antes do trânsito em julgado, antes de condenação definitiva, a emissora assume o risco de arcar com a responsabilidade civil, porque o resultado na vida dos envolvidos, daqueles que são encenados na pele de pastores e palhaços, sem que nunca tivessem sido nem pastores nem palhaços, e praticando atos execráveis, o prejuízo na vida dessas pessoas é incomensurável"9. Em ambos os precedentes do STJ examinados, houve graves violações à honra dos ofendidos, em virtude da divulgação de informações que lhes imputavam a prática de atos ímprobos e criminosos. A Corte, em contrapartida, impôs compensações pecuniárias, na tentativa de reparar os danos extrapatrimoniais causados pelos excessos no exercício da liberdade de imprensa. Cabe, contudo, uma advertência: a compensação pecuniária (pelos danos morais suportados) não deve exaurir os mecanismos de tutela do direito à honra do ofendido pela atividade jornalística. Além de medidas alternativas de reparação,10 como a retratação pública11 e o direito de resposta,12 discute-se se a iminência de violação aos direitos da personalidade pela imprensa poderia ensejar eventual tutela preventiva, de modo a obstar a sua materialização. Segundo precedente paradigmático do Supremo Tribunal Federal, os direitos da personalidade não podem inibir, ex ante, a livre circulação de ideias, devendo eventual excesso no exercício da liberdade de expressão sujeitar-se às consequências previstas no ordenamento, a posteriori.13 Seguindo esse raciocínio, o STJ já entendeu impossível a condenação de determinado jornalista a cessar a divulgação de determinada notícia, sob o argumento da vedação à censura prévia.14 A questão, contudo, não é pacífica. Se, de um lado, tal posição encontraria respaldo, em nossa cultura jurídica, no justificável repúdio à censura à atividade jornalística - duramente vivida na ditadura militar -, de outro lado, parece imprudente pretender hierarquizar os direitos fundamentais de forma abstrata, devendo o intérprete sopesar a liberdade de expressão com os demais direitos da personalidade envolvidos à luz das especificidades do caso concreto.15 Não se descarta, pois, a adoção, ainda que em casos excepcionais, de soluções mais enérgicas, que impeçam a circulação de informação inverídica que implique grave ofensa à honra de outrem. Nessa linha, sustenta-se, na doutrina, que "as situações jurídicas subjetivas não-patrimoniais merecem proteção especial no ordenamento nacional, seja através de prevenção, seja mediante reparação, a mais ampla possível, dos danos a elas causados"16. A propósito, no próprio art. 12, caput, do Código Civil, faculta-se ao lesado a possibilidade de "exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos (...)". A própria lei, portanto, estabelece diversos remédios, de natureza ressarcitória, repressiva e - por que não - inibitória.17 O caso da Escola Base e os demais precedentes julgados este ano pelo STJ, examinados ao longo deste artigo, nos convidam a refletir sobre os remédios existentes para tutelarem os direitos à honra e à imagem daqueles prejudicados pela divulgação de notícias inverídicas na imprensa. Em hipóteses severas como as aqui examinadas, limitar tal aparato remedial tão-somente à reparação pecuniária poderia amesquinhar os direitos da personalidade, cuja tutela, juntamente com a liberdade de expressão, é igualmente cara ao Estado Democrático de Direito. __________ 1 Chimamanda Ngozi Adichie, O perigo de uma única história. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 23. 2 Para um relato histórico do caso. 3 Sobre o tema, Owen Fiss demonstra que os cidadãos "dependem de várias instituições para informá-los sobre as posições dos vários candidatos a cargos governamentais e para relatar e avaliar políticas em andamento e as práticas do governo", concluindo que "a imprensa organizada, incluindo a televisão, talvez seja a instituição principal que desenvolve esta função, e, para cumprir essas responsabilidades democráticas, a imprensa necessita de um certo grau de autonomia em relação ao Estado" (FISS, Owen. A ironia da liberdade de expressão - Estado, regulação e diversidade na esfera pública [tradução de Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto]. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 99). 4 "4. O direito à liberdade de imprensa não é absoluto, devendo sempre ser alicerçado na ética e na boa-fé, sob pena de caracterizar-se abusivo. 5. A jurisprudência desta Corte Superior é consolidada no sentido de que a atividade da imprensa deve pautar-se em três pilares, quais sejam: (i) dever de veracidade, (ii) dever de pertinência e (iii) dever geral de cuidado. Se esses deveres não forem observados e disso resultar ofensa a direito da personalidade da pessoa objeto da comunicação, surgirá para o ofendido o direito de ser reparado" (STJ, AgInt no AREsp 2.090.707/MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. em 17/10/2022, DJe 19/10/2022). 5 Segundo adverte o Min. Luís Roberto Barroso: "Para haver responsabilidade, é necessário haver clara negligência na apuração do fato ou dolo na difusão da falsidade. De fato, no mundo atual, no qual se exige que a informação circule cada vez mais rapidamente, seria impossível pretender que apenas verdades incontestáveis fossem divulgadas pela mídia. Em muitos casos, isso seria o mesmo que inviabilizar a liberdade de informação (...)" (STF, Rcl 22.328 MC/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. em 06/03/2018, DJe 10/05/2018). 6 STJ, REsp 2.036.582/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. em 25/04/2023, DJe 11/05/2023. 7 "AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. LIBERDADE DE IMPRENSA. LIMITES. REPARAÇÃO POR DANO MORAL. PROGRAMA COM EXIBIÇÃO DE MATÉRIA OFENSIVA À HONRA E À DIGNIDADE. NOTÍCIA ALÉM DO CARÁTER ESTRITAMENTE INFORMATIVO. IRRESPONSABILIDADE CONFIGURADA. VIOLAÇÃO DO DIREITO DE LIBERDADE DE IMPRENSA. VERBA INDENIZATÓRIA FIXADA. RESPOSTA AO DANO. SANÇÃO. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. A liberdade de imprensa deve ser exercida com responsabilidade social e individual, dentro de limites éticos e legais, de modo que eventuais excessos devem ser coibidos e caracterizam responsabilidade civil passível de indenização. 2. A irresponsabilidade da imprensa ao exibir, em rede nacional, programa que veicule matéria ofensiva à honra e à dignidade de cidadão enseja dano moral indenizável. 3. A indenização decorrente de exibição de matéria ofensiva à honra e à dignidade de cidadão deve não só considerar a reparação pelo dano moral causado mas também ser suficiente para a sanção da conduta praticada, de forma a coibir novos abusos. 4. Agravo interno desprovido" (STJ, AgInt no REsp 1.770.391/SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, 4ª Turma, j. em 22/11/2022, DJe 02/02/2023). 8 STJ, AgInt no REsp 1.770.391/SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, 4ª Turma, j. em 22/11/2022, DJe 02/02/2023. 9 STJ, AgInt no REsp 1.770.391/SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, 4ª Turma, j. em 22/11/2022, DJe 02/02/2023. 10 Enunciado n. 589 da VII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: "A compensação pecuniária não é o único modo de reparar o dano extrapatrimonial, sendo admitida a reparação in natura, na forma de retratação pública ou outro meio". 11 "O direito à retratação e ao esclarecimento da verdade possui previsão na Constituição da República e na Lei Civil, não tendo sido afastado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 130/DF. O princípio da reparação integral (arts. 927 e 944 do CC) possibilita o pagamento da indenização em pecúnia e in natura, a fim de se dar efetividade ao instituto da responsabilidade civil" (STJ, REsp 1.771.866/DF, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. em 12/02/2019, DJe 19/02/2019). 12 "1. A pretensão de impor ao ofensor o ônus de publicar integralmente a decisão judicial condenatória proferida em seu desfavor não se confunde com o direito de resposta, o qual, atualmente, está devidamente estabelecido na Lei 13.188/2015. 1.1 O direito de resposta tem contornos específicos, constituindo um direito conferido ao ofendido de esclarecer, de mão própria, no mesmo veículo de imprensa, os fatos divulgados a seu respeito na reportagem questionada, apresentando a sua versão da notícia ao público" (STJ, REsp 1.867.286/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, 4ª Turma, j. em 24/08/2021, DJe 18/10/2021). 13 "(...) [A]s relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras. (...) [A] Lei Fundamental do Brasil veicula o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das ideias e opiniões, assim como das notícias e informações, mas sem deixar de prescrever o direito de resposta e todo um regime de responsabilidades civis, penais e administrativas. Direito de resposta e responsabilidades que, mesmo atuando a posteriori, infletem sobre as causas para inibir abusos no desfrute da plenitude de liberdade de imprensa" (STF, ADPF 130/DF, Rel. Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, j. em 30/04/2009, DJe 05/11/2009). 14 "DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AMEAÇA DE VIOLAÇÃO À HONRA SUBJETIVA E À IMAGEM. MATERIAL DE CUNHO JORNALÍSTICO. TUTELA INIBITÓRIA. NÃO CABIMENTO. CENSURA PRÉVIA. RISCO DE O DANO MATERIALIZAR-SE VIA INTERNET. IRRELEVÂNCIA. (...) 2. O deferimento da tutela inibitória, que procura impedir a violação do próprio direito material, exige cuidado redobrado, sendo imprescindível que se demonstre: (i) a presença de um risco concreto de ofensa do direito, evidenciando a existência de circunstâncias que apontem, com alto grau de segurança, para a provável prática futura, pelo réu, de ato antijurídico contra o autor; (ii) a certeza quanto à viabilidade de se exigir do réu o cumprimento específico da obrigação correlata ao direito, sob pena de se impor um dever impossível de ser alcançado; e (iii) que a concessão da tutela inibitória não irá causar na esfera jurídica do réu um dano excessivo. 3. A concessão de tutela inibitória para o fim de impor ao réu a obrigação de não ofender a honra subjetiva e a imagem do autor se mostra impossível, dada a sua subjetividade, impossibilitando a definição de parâmetros objetivos aptos a determinar os limites da conduta a ser observada. Na prática, estará se embargando o direito do réu de manifestar livremente o seu pensamento, impingindo-lhe um conflito interno sobre o que pode e o que não pode ser dito sobre o autor, uma espécie de autocensura que certamente o inibirá nas críticas e comentários que for tecer. Assim como a honra e a imagem, as liberdades de pensamento, criação, expressão e informação também constituem direitos de personalidade, previstos no art. 220 da CF/88. 4. A concessão de tutela inibitória em face de jornalista, para que cesse a postagem de matérias consideradas ofensivas, se mostra impossível, pois a crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não pode ser aprioristicamente censurada. 5. Sopesados o risco de lesão ao patrimônio subjetivo individual do autor e a ameaça de censura à imprensa, o fiel da balança deve pender para o lado do direito à informação e à opinião. Primeiro se deve assegurar o gozo do que o Pleno do STF, no julgamento da ADPF 130/DF, Rel. Min. Carlos Britto, DJe de 06.11.2009, denominou sobredireitos de personalidade - assim entendidos como os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa, em que se traduz a livre e plena manifestação do pensamento, da criação e da informação - para somente então se cobrar do titular dessas situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda que também formadores da personalidade humana. 6. Mesmo que a repressão posterior não se mostre ideal para casos de ofensa moral, sendo incapaz de restabelecer por completo o status quo ante daquele que teve sua honra ou sua imagem achincalhada, na sistemática criada pela CF/88 prevalece a livre e plena circulação de ideias e notícias, assegurando-se, em contrapartida, o direito de resposta e todo um regime de responsabilidades civis e penais que, mesmo atuando após o fato consumado, têm condição de inibir abusos no exercício da liberdade de imprensa e de manifestação do pensamento. 7. Mesmo para casos extremos como o dos autos - em que há notícia de seguidos excessos no uso da liberdade de imprensa - a mitigação da regra que veda a censura prévia não se justifica. Nessas situações, cumpre ao Poder Judiciário agir com austeridade, assegurando o amplo direito de resposta e intensificando as indenizações caso a conduta se reitere, conferindo ao julgado caráter didático, inclusive com vistas a desmotivar comportamentos futuros de igual jaez. (...) 10. O maior potencial lesivo das ofensas via Internet não pode ser usado como subterfúgio para imprimir restrições à livre manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação, cuja natureza não se altera pelo fato de serem veiculadas digitalmente. Cumpre ao Poder Judiciário se adequar frente à nova realidade social, dando solução para essas novas demandas, assegurando que no exercício do direito de resposta se utilize o mesmo veículo (Internet), bem como que na fixação da indenização pelos danos morais causados, se leve em consideração esse maior potencial lesivo das ofensas lançadas no meio virtual. Para além disso, caso essas medidas se mostrem insuficientes, nada impede a imposição de sanções alternativas que, conforme as peculiaridades da espécie, tenham efeito coator e pedagógico mais eficientes do que a simples indenização" (STJ, REsp 1.388.994/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. em 19/09/2013, DJe 29/11/2013). 15 Enunciado n. 613 da VIII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: "A liberdade de expressão não goza de posição preferencial em relação aos direitos da personalidade no ordenamento jurídico brasileiro". 16 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 117. 17 SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; MELO, Marco Aurélio Bezerra de; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 13.
1 Um recorte necessário para o enfrentamento do tema O WhatsApp que se destina ao compartilhamento instantâneo de mensagens de textos, imagens, vídeos e áudios é, atualmente, o aplicativo que mais é utilizado pelos brasileiros que querem se comunicar de maneira rápida e eficaz. Embora, esteja em grande nível de competitividade com outros aplicativos, tais como o Telegram, o Skype, o Messenger e o Instagram, o WhatsApp é utilizado por 99% das pessoas que utilizam smartphones no Brasil e segundo a pesquisa patrocinada pela Infobip, em agosto de 2022, 88% dos entrevistados afirmaram que entram no aplicativo todos os dias e outros 7% dizem se conectar a ele quase todos os dias.1 Dentro do aplicativo, o usuário pode enviar mensagens, fazer ligações, publicar status pessoal e participar de grupos. Considerando que o usuário pode receber mensagens de diversas linhagens, seja de trabalho, negócios, informação e entretenimento, a priori, três trilhas se vislumbram: a mensagem ser recebida pelo usuário e ser deletada; a mensagem ser recebida pelo usuário e se quedar estacionada no aplicativo seja por esquecimento ou inércia do receptor; a mensagem ser repassada adiante para outros novos destinatários. Quando se foca no conteúdo recebido, o seu teor, por sua vez, poderá apresentar duas fontes: a mensagem pode ter sido redigida e criada pelo próprio interlocutor da conversa ou a mensagem pode ter sido criada por terceiro e ter-lhe sido apenas "encaminhada". Dentro do quadrante que se propõe neste trabalho, investiga-se a mensagem que é criada e redigida por seu interlocutor e, sem a sua autorização, é encaminhada a terceiros como, por exemplo, uma trivial conversa entre colegas ou amigos, seja em grupo fechado de WhatsApp ou não, que é encaminhada por seu destinatário a terceiros. Assim, diante do recorte cogitado, é bom destacar que não se trata de estudo do tratamento a ser dado em relação às notícias falsas (fake news), mas tão somente perquire-se sobre a responsabilidade civil daquele que encaminha a mensagem recebida, sem autorização de seu interlocutor, a terceiros. 2. A inversão de uma lógica: a lembrança como regra Popularizou-se, no ano de 2004, a expressão Web 2.02 ao traduzir uma segunda geração da internet cujo objetivo era a participação ativa dos usuários como se dá, por exemplo, em redes sociais, blogs e wikipedia3.  Participação, colaboração e interação são as palavras de ordem no movimento da Web 2.0 que inaugura novos rumos para a Rede. O jurista italiano Stefano Rodotà destaca a importância desse movimento para a construção da personalidade das pessoas e relata que "in questa prospectiva, assume un nuovo significato la libertà di espressione, come elemento essenziale dell`essere della persona e della sua collocazione nella società."4 Tudo isso conduz a novas realidades, perspectivas e, inclusive, promove inversões comportamentais como, por exemplo, a necessidade que muitos apresentam de auto exposição, o que faz a palavra ocupar o lugar do silêncio e a lembrança ocupar o lugar do esquecimento. A inversão da lógica humana conduz à conclusão de que, na era digital, o esquecimento deixa de ser a regra e a lembrança passa a protagonizar o comportamento humano. Essa é a perspectiva abordada por Umberto Eco quando, adentrando à realidade pessoal de cada um, constata que "a tendência geral parece ser o desejo de ser visto e ouvido a qualquer custo para ter a sensação de existir."5 A grande questão que se levanta é como se sustentará uma personalidade forjada no desejo estéril de ser vista a todo custo em redes sociais que "a despeito de todas as suas promessas comunitárias, nos divide em vez de nos aproximar" e que faz a todos "mais desiguais que iguais, mais ansiosos que felizes, mais solitários que socialmente conectados."6 Fomentando essa realidade, em 2009, surge o aplicativo de mensagens instantâneas denominado de WhatsApp7 criado pelo ucraniano Jan Koum e Brian Acton, colegas que se conheceram dentro da empresa Yahoo. Em 2014, o Facebook pagou pelo aplicativo US$ 19 bilhões e, em 2018, o aplicativo de mensagens instantâneas chegou à marca de 1,5 bilhão de usuários. Embora, existam outros aplicativos com a mesma finalidade que pareçam mais funcionais e confiáveis como, por exemplo, o Telegram, prevaleceu para o usuário comum a ideia de que todo mundo pode ser encontrado no WhatsApp. Em verdade, os motivos do êxito do aplicativo foram a simplicidade e a ausência de publicidade, em virtude de seus idealizadores serem avessos a ela. Disso tudo decorreram efeitos colaterais que podem ser reduzidos a dois eixos: o de segurança e o de privacidade. Nessa senda foi que Brian Acton, depois de sair do Facebook e diante de aparente conflito pessoal com os rumos do aplicativo, desabafou: "eu vendi a privacidade dos meus usuários para um benefício maior. Eu fiz a escolha e um compromisso. E eu vivo com isso todos os dias."8 Em tentativa de driblar o problema de segurança do WhatsApp, nos termos de uso do aplicativo consta a informação de que as mensagens são protegidas por criptografia de ponta a ponta9, assim, haverá uma "cifragem de mensagens em códigos com o objetivo de evitar que elas possam ser decifradas por terceiros."10  Isso significa dizer que somente os usuários poderão ter acesso às informações ali contidas, de modo que, nem o WhatsApp pode ter acesso a elas.11 3. Casos concretos de compartilhamento de mensagens via WhatsApp sem a autorização do interlocutor Duas situações são apresentadas: (i) em um grupo de WhatsApp formado por oito  torcedores de determinado time de futebol que trocavam mensagens acerca de diversos assuntos e da insatisfação com a gestão da agremiação esportiva, em um dado momento, um de seus participantes se retira do grupo e passa a divulgar nas redes sociais e na mídia capturas de tela, "prints" de conversas do referido grupo, sem o consentimento dos demais participantes.12 (ii) uma pessoa que confidencia, via WhatsApp, à colega de trabalho a sua vontade de ser demitida e que, para tanto, envidaria esforços nesse sentido, ficando na empresa sem fazer nada, "sentada, de boa". Com o repasse da mensagem ao empregador, o resultado foi a demissão por justa causa da empregada que criou a mensagem.13 Em comum, os cases apresentam pessoa que recebeu mensagens escritas e divulgou a terceiros, sem a autorização de seu emissor. Em comum, tem-se a vulgarização do dever de sigilo e a consequente fragilização da privacidade de seus emissores. Em comum, condenações que decorreram da ponderação entre a liberdade de expressão e a privacidade, fazendo prevalecer esse último direito respaldado, sobretudo, na imposição de sigilo das comunicações, que encontra guarida na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XII). Em comum, a expectativa de que a conversa não ultrapassaria os lindes impostos pela lealdade de seu receptor. 4. Conclusão A utilização de aplicativos como o WhatsApp em um mundo acelerado e ávido por soluções e respostas rápidas é um caminho sem volta. A ideia de que todos podem ser encontrados a qualquer momento é o argumento que seduz e que justifica a disseminação de tais meios de comunicação no planeta Terra. Em uma era de exacerbada auto exposição e exibicionismo em massa, a autorização do interlocutor para divulgação de mensagem enviada por esse, parece elemento absolutamente dispensável numa sociedade que tem pressa e toma decisões movidas por imediatismo e impulsividade. Quando se vê, a tecla "encaminhar" já foi apertada. A despeito das promessas de segurança que o aplicativo de conversas instantâneas WhatsApp apresenta, o que se constata é um risco latente de violação a direitos da personalidade, tais como a privacidade e o sigilo, bem como ofensa à legítima expectativa que o emissor da mensagem tem de ser lido apenas pelo seu destinatário, ao qual enviou a mensagem. Desse modo, salvo por ordem judicial, notório interesse público ou para defender direito próprio, expor opinião particular do emitente da mensagem encaminhada em conversa privada no WhatsApp configura conduta ilícita passível de responsabilização civil, se dela resultar dano. Para que o WhatsApp alcance a sua finalidade máxima de facilitação de comunicação, não se pode admitir a exportação de informações sem a autorização de seu interlocutor, invocando-se aqui a responsabilidade daquele que recebeu a mensagem em seu smartphone.  É necessário que a mesma sociedade que busca respostas rápidas para tudo se contenha do instinto, do desejo, da vingança ou da impulsividade de simplesmente "encaminhar" mensagem que lhe foi enviada, sob pena de nos consolidarmos como sociedade que vive verdadeiramente no modelo arquitetônico panóptico de Bentham14, expostos a todos os olhares e juízos de valor alheios. ____________ 1 Pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box - Mensageria no Brasil, de agosto de 2022, patrocinada pela Infobip, disponível em: https://www2.infobip.com/pt/blog/panorama-mensageria-brasil-mobile-time-opinion-box. Acesso em: 19/03/2023. 2 A expressão "Web 2.0" foi cunhada por Tim O'Reilly em "Web 2.0: Compact Definition?", disponível em http://radar.oreilly.com/2005/10/web-20-compact-definition.html. Acesso em 23/03/2023. 3 A wikipedia se manifesta como uma enciclopédia colaborativa em que os seus usuários inserem o seu próprio conteúdo. 4 RODOTÀ, Stefano. Il diritto di avere diritti, RomaBari: Laterza, 2012. p. 320. Em tradução livre: "Nesta pesperctiva, a liberdade de expressão assume um novo significado, como elemento essencial do ser, da pessoa e do seu lugar na sociedade." 5 ECO, Umberto. Pape Satàn Aleppe: crônicas de uma sociedade líquida. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 39. 6 KEEN, Andrew. Vertigem digital: porque as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e desorientando.  Alexandre Martins (trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 77. 7 O nome WhatsApp se traduz em um trocadilho perfeito entre a palavra "app" e a expressão "what's up", que em tradução livre quer dizer "e aí" ou, no contexto do aplicativo, como "o que está acontecendo?", com a resposta aparecendo no status. 8 ALECRIM, Anderson. Dez anos de WhatsApp: como o serviço de mensagens conquistou o mundo. Disponível em: https://tecnoblog.net/especiais/whatsapp-dez-anos-historia/ Acesso em: 21/03/2023. 9 A criptografia de ponta a ponta do WhatsApp protege suas conversas com outras pessoas no WhatsApp, garantindo que as mensagens e chamadas fiquem somente entre você e a pessoa com quem você está conversando. Ninguém mais pode ler ou ouvir suas conversas, nem mesmo o WhatsApp. As mensagens e chamadas são protegidas com um cadeado exclusivo e somente você e a pessoa que recebe a mensagem têm acesso à chave especial para destrancá-lo e ler as mensagens. Todo esse processo acontece automaticamente: não é necessário ativar configurações especiais para garantir a segurança de suas mensagens. Disponível em: https://faq.whatsapp.com/820124435853543/ Acesso em: 21/03/2022. 10 LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos. Contratos eletrônicos: validade jurídica dos contratos via Internet. São Paulo: Atlas, 2007, p. 160. 11 No Brasil, a criptografia de ponta a ponta é objeto de análise pelo STF na ADI 5527 e ADPF 403 que discutem a possibilidade de suspensão do funcionamento de aplicativos de mensagens, após o WhatsApp informar que não poderia fornecer os dados requisitados por magistrado em virtude da segurança oferecida pela criptografia de ponta a ponta. 12 Superior Tribunal de Justiça. REsp 1903273/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/08/2021, DJe 30/08/2021. 13 Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo nº 1003332-05.2021.8.26.0007. 3ª Vara Cível do Foro Regional de Itaquera, em São Paulo. 14 O modelo arquitetônico de Jeremy Bentham, filósofo utilitarista inglês (1748 - 1832) se manifesta por uma construção de formato circular com uma torre central a qual teria a visão de todos. O modelo surgiria como solução ideal para as penitenciárias, pois o preso seria vigiado a todo tempo, sem ter domínio de quem o faz. A analogia se mostra pertinente pois qualquer mensagem enviada por WhatsApp, a priori, poderia ser submetida a apreciação de todos e não apenas de seu receptor, se não houver limites para a sua divulgação.  ____________ ALECRIM, Anderson. Dez anos de WhatsApp: como o serviço de mensagens conquistou o mundo. Disponível em: https://tecnoblog.net/especiais/whatsapp-dez-anos-historia/ Acesso em: 21/03/2023. ECO. Umberto. Pape Satàn Aleppe: crônicas de uma sociedade líquida. Rio de Janeiro: Record, 2017. LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos. Contratos eletrônicos: validade jurídica dos contratos via Internet. São Paulo: Atlas, 2007. KEEN, Andrew. Vertigem digital: porque as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e desorientando.  Alexandre Martins (trad.). Rio de Janeiro: Zahar, 2012. O`REILLY, Tim. Web 2.0: Compact Definition? Disponível em http://radar.oreilly.com/2005/10/web-20-compact-definition.html. Acesso em 23/03/2023. MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: the virtue of forgetting in the digital age. Princeton: Princeton University Press, 2009. RODOTÀ, Stefano. Il diritto di avere diritti. RomaBari: Laterza, 201 ____________ Pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box - Mensageria no Brasil, de agosto de 2022, patrocinada pela Infobip, disponível em https://www2.infobip.com/pt/blog/panorama-mensageria-brasil-mobile-time-opinion-box. Acesso em: 19/03/2023. ____________ *Mônica Queiroz é doutora e mestre em Direito Privado pela PUC/MG. Autora de obras jurídicas, palestrante e parecerista. 
INTRODUÇÃO Por serem os direitos fundamentais do homem relativos, e não absolutos como, a princípio, se poderia pensar, o seu exercício, consequentemente, não é ilimitado e, nesse norte, muitas são as situações nas quais um pretenso exercer de um direito legítimo e assegurado pela Constituição Federal acaba por se mostrar abusivo e demasiado ofensivo a um direito de terceiro. O notável aprimoramento dos veículos de comunicação de massa, fruto da tecnologia e da sociedade globalizada, se, por um lado, proporciona um maior volume de informações a serem noticiadas, e de forma muito mais veloz e dinâmica, não raro viabiliza a utilização desse aparato tecnológico para operar uma completa e total devassidão da vida íntima e da privacidade das pessoas. O quadro apresentado se torna mais facilmente perceptível quando se considera, por exemplo, a facilidade com que se pode atualmente "produzir" informação, dispondo-se tão somente de uma câmera na mão (presente hoje em qualquer celular) e da internet para sua posterior divulgação. Nesse cenário, como mesmo sugere o diretor Alfred Hitchcock em sua película "Janela Indiscreta", qualquer fato pode se transformar em informação, ainda que o conteúdo desta esteja muito distante do que se pode chamar de informação. Convém esclarecer que não é pretensão deste texto estimular qualquer revolta contra a tecnologia ou o progresso científico existente, especificamente no tocante aos veículos de notícias. O notável aperfeiçoamento tecnológico alcançado não somente pelos meios de informação, mas também pela ciência como um todo, em hipótese alguma, pode ser taxado de forma maniqueísta, como benéfico ou maléfico à sociedade, uma vez que isso depende também da maneira como são utilizados pelas pessoas, ou seja, do emprego que lhes é dado. Se o Direito visa tutelar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem de toda e qualquer pessoa igualmente se porta quanto à liberdade de comunicação, garantindo a sua livre expressão, no que se mostrou cuidadoso o constituinte, naturalmente tendo em consideração o passado recente e autoritário do Brasil, fortemente marcado pela opressão e pela censura de natureza política, ideológica, artística e intelectual. Sendo ambas as normas em questão de caráter principiológico, o que permite avaliações flexíveis em seus espectros de incidência, estabelece-se uma incerteza acerca de qual seria o melhor método para solucionar esse conflito entre normas constitucionais, no caso, a liberdade de informar e de se informado, que constituem interesse público e coletivo, e o direito individual à intimidade. Em resumo, a questão impõe saber qual dos direitos em jogo deverá prevalecer sobre o outro, qual obterá êxito no caso concreto. O tema da liberdade de informação e direitos da personalidade é bastante polêmico, porque é muito frequente que haja colisão entre eles, por exemplo: quando um jornal publica uma reportagem que faz com que alguém se sinta afetado em sua honra ou quando uma emissora de televisão faz algum programa que invade a privacidade de alguém ou, ainda, atualmente, com as questões envolvendo as redes sociais, onde uma pessoa se manifesta e acaba compartilhando fotos ou informações, ou até mesmo falando mal de alguém, o que gera, por consequência, indignações de quem as recebe. Todas essas situações têm gerado processos judiciais numerosos no Brasil e que acabam, desse modo, sendo submetidos ao Poder Judiciário, que no fundo, não sabe muito bem como lidar com esses problemas diante da falta de uma orientação específica mais expressa do ordenamento, isso porque, não só os direitos da personalidade são tratados como expressão da dignidade humana e, portanto, tutelados pela Constituição Federal, mas também a liberdade de informação é protegida no artigo 5º da Constituição Federal, de modo que haveria uma colisão de direitos protegidos constitucionalmente. Por outro lado, partindo de um enfoque sociológico-jurídico abre-se caminho para solução desse conflito. Considerando-se que a imposição de limites à liberdade de informação jornalística converge com a definição de que os direitos fundamentais não são absolutos, é necessário, por conseguinte, que o exercício desses direitos se processe de forma harmoniosa e equilibrada, não se excluindo, portanto, a possibilidade de supressão de determinada norma constitucional. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS De início é relevante acrescentar breve explicação sobre as características dos direitos fundamentais. Não é decisivo, em face da Constituição, afirmar que os direitos são declaratórios e as garantias assecuratórias, porque as garantias em certa medida são declaradas e, às vezes, se declaram os direitos usando forma assecuratória (MIRANDA, 1990, p. 88-89). Por outro lado, questão conflituosa, que muita controvérsia gerou, é a que se refere à relação conceitual que se nota entre a intimidade e a privacidade. Questiona-se continuamente se os institutos realmente possuem o mesmo significado, se constituem, afinal, o mesmo instituto, sendo, no entanto, denominados por meio de expressões distintas. O direito à intimidade é constante e equivocadamente entendido como sinônimo do direito à privacidade. Conforme os dizeres do professor José Afonso da Silva (2006, p. 206), a privacidade é uma terminologia natural do direito anglo-americano (the right to privacy), enquanto intimidade, por sua vez, é o termo de predileção pelos povos latinos. Ao afirmar e reiterar a imprecisão da terminologia, o citado autor prefere utilizar-se da expressão direito à privacidade, como em um sentido amplo e genérico, de modo a abranger todas essas manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade, relacionadas pela Constituição Federal. Para ele, privacidade consiste no "conjunto de informações acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições sem a isso poder ser legalmente sujeito" (SILVA, 2006, p. 206). De acordo com Luiz Alberto Davi Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2004, p. 56), "a vida social do indivíduo divide-se em duas esferas distintas: a pública e a privada". Entende- se por privacidade os relacionamentos sociais resguardados, que o indivíduo mantém oculto ao público em geral, dentre eles, por exemplo, a vida em família. Em outras palavras, consideram- se as relações confidenciais como conteúdo dessa esfera privada. Entretanto, os referidos autores pontuam que pelo fato da privacidade envolver relações interpessoais que se desenvolvem entre pais e filhos, irmãos, namorados, criam-se possibilidades de violação de direitos entre estas pessoas que convivem em conjunto. Nesse cenário, ganha importância e consideração o conceito de intimidade. Torna-se compreensível, portanto, a diferenciação entre intimidade e privacidade operada pela Constituição Federal (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2004, p. 56). Em síntese, a conclusão que se pode extrair da interpretação do dispositivo constitucional é que a vida social dos indivíduos, na verdade, não se limita a somente duas esferas, pública e privada, haja vista que, nesta última, opera-se uma subdivisão da qual resultam a intimidade e a privacidade propriamente dita. O que se quer dizer é que a constatação de um campo próprio à intimidade importa a subdivisão da esfera atinente à privacidade. Por sua vez, René Ariel Dotti (1980, p. 69) entende a intimidade como "a esfera secreta da vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais", definição interessante e não muito distante do que propugna Adriano de Cupis (1969, p. 115), que declara ser a intimidade (riservatezza) "o modo de ser da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento de outrem de quanto se refira à pessoa mesma". Incontestável, no entanto, que essa necessidade de interpretação mais restrita não evita a proteção constitucional contra agressões desarrazoadas, desproporcionais e sem qualquer relação com a atividade profissional. LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA  Quando se defende a superação daquele antigo conceito de liberdade de imprensa, o que se quer dizer é que a liberdade de informação jornalística, consagrada na Contituição Federal, não mais se limita tão somente à publicação de veículo impresso. A informação jornalística engloba, ressalta-se, qualquer forma de propagação de notícias, comentários e opiniões por qualquer veículo de divulgação social. Essa liberdade configura não somente um direito fundamental do dono de empresa ou do jornalista de realizar essa atividade, mas também, e acima de tudo, um dever de informar ao público os acontecimentos e ideias de forma objetiva, condizente com a verdade e imparcial, sem modificar a verdade dos fatos ou destituí-los de seu sentido original. Como argumenta Celso Ribeiro Bastos (2000, p. 45), cabe à imprensa "a função de investigar, noticiar, denunciar e fiscalizar, desempenhando um papel de suma importância para o regime democrático; é da carta de princípios da Inter American Press Association a seguinte frase: "sem liberdade de imprensa não há democracia.". José Afonso da Silva (2006, p. 247) entende com razão que a imprensa, de um modo geral, constitui um poderoso instrumento de formação da opinião pública, mormente com o desenvolvimento de satélites e outras tecnologias capazes de transmitir notícias, ideias, informações e doutrinas, e que, justamente em virtude desses fatores, deve-se considerar a ideia de que a imprensa exercita uma função social. Essa função social, por assim dizer, consiste no ato de expor às autoridades públicas o pensamento e a vontade do povo e de também compor defesa contra excessos de poder, oferecendo para tanto um robusto controle sobre a atividade político-administrativa. Considerada primeira e primária, a liberdade de expressão, da qual decorre a liberdade de informação jornalística, consiste no direito de livre divulgação do pensamento, de não ser impedido de se exprimir. A liberdade de expressão do pensamento, tomada, assim, como direito da personalidade, é de relevância para a concretização do princípio da dignidade humana. A liberdade de expressão, sob essa nova dimensão, adquire um caráter duplo: sendo uma vertente relacionada à esfera individual, pessoal, como a liberdade de exprimir seu ponto de vista; e outra, fundada nas relações sociais, no interesse público. Nesse exato ponto, conciliam-se a liberdade de expressão e a liberdade de informação jornalística. Considerando-se que a imposição de limites à liberdade de informação jornalística converge com a definição de que os direitos fundamentais não são absolutos, é necessário, que o exercício desses direitos se processe de forma harmoniosa e equilibrada, não se excluindo, portanto, a possibilidade de supressão de determinada norma constitucional, quando instaurado conflito entre normas constitucionais, em detrimento de outra. Observa Anderson Schreiber (2012, p. 247) que ao adotar a técnica da ponderação, que confia ao Poder Judiciário a seleção de interesses a serem protegidos, outros instrumentos podem ser utilizados para desencorajar "demandas frívolas" no sistema jurídico: o desenvolvimento de formas não monetárias de reparação desempenha um papel importante, amenizando a contradição da responsabilidade civil contemporânea, que reconhece o dano extrapatrimonial, mas oferece apenas uma solução monetária; recursos como retratações públicas e outras formas de reparação não pecuniária são necessários e muitas vezes mais eficazes na reparação de danos morais; repressão à litigância de má-fé e a rejeição do caráter punitivo das reparações são mecanismos adicionais para desencorajar demandas com motivações mercenárias. É preciso investigar, desse modo, quais as potencialidades que o ordenamento jurídico brasileiro apresenta para solucionar esses conflitos. COLISÃO ENTRE NORMAS CONSTITUCIONAIS Essa situação de conflito que não raro se estabelece entre normas é decorrência direta da própria carga valorativa inserida na Constituição Federal, que, por sua vez, incorporou os diversos interesses das diversas classes componentes de tal sociedade pluralista. Ocorre, que esses direitos, posto representarem as vontades políticas de classes antagônicas, acabam por não se harmonizarem em inúmeros momentos. Dessa pluralidade de concepções surge um duradouro estado de tensão entre normas constitucionais. Existem na Constituição Federal normas de caráter principiológico, em outras palavras, normas-princípios ou simplesmente princípios, com maior teor de abstração e com finalidade destacada dentro do sistema, e que podem, com assustadora frequência, colidir com outras normas, ou princípios, de idêntica natureza. É a situação que ocorre entre a liberdade de expressão ou do direito à informação e o direito à intimidade, tema deste texto. Considerando-se a elaboração clássica de Hans Kelsen (1991, p. 18), tem-se o ordenamento jurídico como um sistema hierarquizado de normas, que possuem diferentes valores entre si, e no qual se escalonam, formando um todo, um conjunto harmônico. Essas normas são funcionalmente interdependentes umas das outras, de modo que para que uma norma seja classificada como válida e aceita é imprescindível que sua validade seja solidamente alicerçada em norma superior. Em razão do modo hierarquizado como se escalonam as normas, e considerando-se que estas são princípios jurídicos, conclui-se, pela existência de hierarquia entre princípios. Este caráter hierárquico se demonstra com muita facilidade quando se consideram princípios constitucionais e princípios infraconstitucionais. Naturalmente, não há que se duvidar da superioridade hierárquica daqueles em face destes últimos. Reitera-se, portanto, que os princípios constitucionais constituem o fundamento de validade dos princípios infraconstitucionais (BARROSO, 1998, p. 141). Entretanto, a questão não é de todo simples e se complica demasiadamente em se tratando de conflitos entre princípios constitucionais, ou seja, de igual nível hierárquico. Não é crível nem razoável afirmar, utilizando-se de um critério axiológico, por exemplo, pela existência de hierarquia entre princípios constitucionais. Todavia, desconsiderando-se o critério axiológico em benefício de uma outra ótica jurídica, não há que se falar na existência de hierarquia entre princípios constitucionais. Todas as normas constitucionais possuem idêntico valor, motivo pelo qual não há, como assevera Canotilho (1998, p. 47), normas constitucionais meramente formais, tão pouco hierarquia de supra ou infra ordenação dentro do texto constitucional. Diante da inexistência de hierarquia entre normas constitucionais, surge a dúvida acerca de qual seria o melhor método para solucionar a situação de colisão entre normas constitucionais, no caso deste texto, a liberdade de comunicação ou de imprensa e o direito individual à intimidade. Possível citar, a princípio, prática normalmente exercida, qual seja, a interpretação valorativa de ambas as normas em colisão, procedendo-se, na sequência, à escolha daquela que, no caso concreto, seria a de maior relevância e significação. Para o deslinde da questão, algumas soluções foram elaboradas pela doutrina estrangeira, entre elas a concordância prática e a dimensão de peso ou importância, e que vêm sendo frequentemente utilizadas pelos Tribunais. Em ambas as soluções propostas figura o princípio da proporcionalidade como "meta-princípio" ou "princípio dos princípios", o qual visa resguardar a integridade dos princípios constitucionais em questão. A doutrina, que tem predileção pela concordância prática em detrimento da dimensão de peso e importância, sugere seja aplicada primeiramente a concordância prática, e, em seguida, não se obtendo os resultados esperados com a medida, experimenta-se a dimensão de peso e importância como solução para o confronto das normas constitucionais em questão, sacrificando-se, o mínimo possível, o princípio de "menor peso". Consequência lógica do princípio da unidade constitucional, o princípio da concordância prática ou da harmonização é uma hábil e eficiente ferramenta a ser utilizada em se tratando de colisão de direitos fundamentais. Antes de se adentrar no contexto do princípio da harmonização, contudo, importa breve, mas contundente definição do princípio da Unidade Constitucional. De forma resumida, o princípio da unidade constitucional disciplina que o Direito Constitucional seja interpretado de uma forma tal que se possa afastar contradições (antinomias e antagonismos) entre suas normas, e principalmente entre seus princípios jurídico-políticos. O princípio da Unidade obriga o intérprete a compreender a Constituição em sua totalidade, procurando atenuar as constantes tensões entre as normas constitucionais. Por esse motivo é que se diz que as normas constitucionais devem ser consideradas como preceitos num sistema unitário, e não como normas isoladas e dispersas (BARROSO, 1998, p. 147). Realizada a observação necessária acerca do princípio da Unidade Constitucional, dá-se prosseguimento ao trabalho com o estudo do princípio da concordância prática ou da harmonização. Com base nesse princípio, concebido por Konrad Hesse (1992, p. 49-50), deve- se buscar a harmonização dos direitos fundamentais, quando em confronto, por intermédio de um juízo de ponderação mediante o qual sejam preservados e concretizados os direitos constitucionais em jogo. A concordância prática, em outras palavras, pode ser compreendida como um princípio tendente a solucionar uma situação de colisão entre normas de hierarquia constitucional mediante a otimização desses direitos fundamentais em confronto. Isto importa dizer que a concordância prática procura equilibrar da forma mais sustentável possível as normas colidentes. Não se trata, porém, de um procedimento que visa estabelecer uma prevalência absoluta de uma norma sobre outra. Procura-se, na verdade, tornar compatíveis as normas, ainda que, no caso concreto, seja preciso a redução de uma das normas em detrimento da outra. O princípio da harmonização ou da concordância prática constitui, assim, uma alternativa para o magistrado para que, frente a uma ocasião na qual duas normas constitucionais estejam em rota de colisão, adote uma posição que possibilite a realização de ambos os direitos em questão sem, no entanto, negá-los. A concordância prática foi utilizada em um caso muito polêmico ocorrido na Alemanha, no qual um homem foi preso por ter sido acusado de crimes de grande repercussão social. Este homem, ciente que a imprensa tencionava divulgar amplamente a matéria, ingressou com uma ação em juízo pretendendo obstar a imprensa, alegando que a publicação ampla do caso iria ferir o seu direito à intimidade, de modo que, após tornado público o fato, não poderia jamais ter uma vida normal, caso fosse inocentado das acusações. Em uma situação de colisão entre o direito à intimidade e a liberdade de expressão, a Justiça Alemã, utilizando-se da concordância prática, decidiu que os veículos de notícias poderiam sim divulgar o fato, posto ser de interesse nacional, no entanto, não poderiam mencionar o nome completo do acusado tão pouco publicar foto de seu rosto, conciliando os dois princípios em jogo. O segundo instrumento que pode ser utilizado, na hipótese de a concordância prática não proporcionar os efeitos esperados, é o princípio da dimensão de peso e importância (dimension of weights), que foi idealizado por Ronald Dworkin (2002, p. 45). Segundo o professor da Universidade de Oxford, as regras jurídicas são aplicadas por completo ou não são de modo absoluto, aplicadas (dimensão do tudo ou nada). Dworkin (2002, p. 45-50) ressalta ainda que os princípios dispõem de uma característica que não é própria das regras jurídicas, qual seja a dimensão de peso ou importância. Nesse compasso, quando do combate entre vários princípios, cabe ao intérprete considerar o peso e a importância de cada um dos que estiverem em jogo para saber qual deles prevalecerá. Demonstrando a seriedade do estabelecimento da ponderação, Luís Roberto Barroso (2009, p. 334) compara a subsunção - incidência direta da norma - a um quadro geométrico com três cores distintas e bem nítidas. A ponderação, por outro lado, usando essa metáfora, será uma pintura moderna, "com inúmeras cores sobrepostas, algumas se destacando mais do que as outras, mas formando uma unidade estética". Contudo, o ministro faz um alerta bem-humorado: "a ponderação malfeita pode ser tão ruim quanto algumas peças de arte moderna." Assim, a legitimidade da interpretação, informada pelo princípio da proporcionalidade, será preservada na medida em que se realize a harmonização. A especificidade, conteúdo e alcance próprios de cada princípio não demandam o sacrifício unilateral de um princípio em relação aos outros, antes reclamam a harmonização dos mesmos, de modo a obter-se a máxima efetividade de todos eles. Em face de conflito entre normas constitucionais, não se fala em antinomia. Deve-se procurar a conciliação, a harmonização entre eles, objetivando-se uma situação final de equilíbrio entre as normas colidentes. É o que se chama de concordância prática, teoria formulada por Konrad Hesse (1992, p. 49-50). Por outro lado, não se obtendo os efeitos esperados, o conflito há de ser resolvido com o prevalecimento de um princípio sobre o outro, técnicas de Dworkin (2002, p. 45) e Alexy (2008, p. 96), considerando-se o peso e a importância de cada um no caso concreto. Corrobora, Anderson Schreiber (2012, p. 162), em não havendo regra de prevalência, ou não sendo possível sua aplicação ou adequação, caberá ao Poder Judiciário o mister de ponderar os interesses conflitantes e diante da situação concreta e à luz do ordenamento jurídico definir a relação de prevalência daqueles interesses. Portanto, em ambos os casos, o princípio da proporcionalidade deve figurar como meta, como princípio norteador na resolução do conflito. CONSIDERAÇÕES FINAIS A complexidade de preservar na seara privada assuntos e ações de trato íntimo se revela cada vez mais uma árdua tarefa para aqueles que detêm visibilidade ou dimensão pública. A essa dificuldade alia-se o direito a liberdade de informação. Por outro lado, tem-se a vida privada, a intimidade e a imagem das pessoas, sejam elas públicas ou não, cumprindo alguns dos direitos basilares do princípio da dignidade humana. O direito individual à intimidade e a liberdade de imprensa ou de informação jornalística, quando confrontados, revelam a dificuldade do operador do direito em encontrar possibilidades em limitar este em detrimento daquele. Essa limitação só se manifesta como viável em virtude da relatividade dos direitos fundamentais. Reitera-se, portanto, que muitas serão as hipóteses de confronto nas quais se estabelecerá a imperiosidade de relativizar direito ou alguns direitos que compõe o rol constante do artigo 5º da Constituição Federal. Para isso, o importante são desenvolver parâmetros para se ter uma segurança jurídica, de modo que é evidente que sempre haverá colisão entre direitos de igual hierarquia, sobretudo, no confronto entre privacidade e informação, situações que sempre nos convida a uma colisão entre direitos fundamentais. A contribuição deste estudo foi apresentar saídas para esse conflito por intermédio de parâmetros: a harmonização, objetivando-se uma situação de equilíbrio entre as normas colidentes (concordância prática) e a técnica de ponderação. Desse modo, colabora-se para o diálogo entre judiciário e academia, no sentindo de construir critérios que propiciem seguridade, uniformidade e igualdade no tratamento dessas questões. Porque casos concretos paralelos com tratamento diferente não só ferem a segurança jurídica, mas, sobretudo, a isonomia, a ideia da necessidade de ser dado tratamento igual a pessoa substancialmente em situações iguais. _____________ ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. BASTOS, Celso Ribeiro. Os limites à liberdade de expressão na constituição da república. Rio de Janeiro: Revista Forense, ano 96, v. 349, p. 43-51, jan.- fev.-mar. 2000. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. CUPIS, Adriano de. Riservatezza e segretto (Diritto a). Novissimo Digesto Italiano. Torino: UTET, 1969. DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 1980. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. 2. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1990. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. _____________ *Daniel Marinho Corrêa é Associado titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC, professor universitário, servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, mediador judicial. Doutorando e Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Extensão em "Justice", curso de estudo oferecido pela HarvardX, iniciativa on-line da Harvard University. Bacharel em Direito pela UEL, pós-graduado em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná e especialista em Direito Civil e Empresarial pela Faculdade Damásio. Autor de obras jurídicas e colaborador em projetos de pesquisa da UEL. 
1- Introdução: o que envolve atualmente o conceito de responsabilidade civil? As tradições de common law e civil law legaram ao instituto da responsabilidade civil traços estruturais distintos. Sob a perspectiva de common law, as hipóteses ocasionadoras de indenização foram sendo construídas de modo tópico, case-by-case, enquanto os países de tradição de civil law consolidam a visão de sistema, conceituando o ato ilícito e seus requisitos e o dano. O direito inglês e norte-americano buscaram a abordagem dos torts. São inúmeras as modalidades de torts, vinculados ao direito à honra, reputação, saúde mental, descumprimento contratual, privacidade, dever de cuidado, dentre outros.1 Já o direito francês, por exemplo, adotou uma lógica de universalidade, portanto, instituindo uma cláusula geral de responsabilidade em que se conseguiu enquadrar praticamente todos os torts.2 Merece registro a posição intermediária da Alemanha que optou por cláusulas de responsabilidade associadas a determinadas hipóteses legais previstas.3 A breve contextualização metodológica entre common law e civil law foi realizada com o propósito de se convergir com o termo liability, ou seja, a responsabilidade civil se restringia sob essas lógicas a se atestar a presença do nexo causal entre conduta e dano, resultando na imputação de uma reparação. Todavia, como afirma Nelson Rosenvald, "a liability não é o epicentro da responsabilidade civil, mas apenas a sua epiderme."4 A liability está associada ao dano, eclodindo a responsabilidade após esse evento e culmina como consequência em prol do reequilíbrio patrimonial. Essa configuração monolítica da responsabilidade não tem mais espaço na sociedade multifacetada em que se vive.  O palco da democracia e a ênfase à proteção dos direitos humanos, fundamentais e sociais clamam por outros papeis do instituto da responsabilidade. Emergem, nesse sentido, aspectos morais e novamente com Nelson Rosenvald, o termo responsibility  "é perene, transitando entre o passado, o presente e o futuro." Responsibility está centrada no necessário olhar prospectivo, ultrapassando a mera função indenizatória de viés retrospectivo, por isso, marcha rumo às funções preventiva e precaucional, afirmando-se a responsabilidade sem dano ou antecipando-se a ele. Parte-se da premissa que prevenção não se confunde com precaução e se embasa na doutrina de Thaís Pascoaloto Venturi, para quem a distinção "reside, fundamentalmente, no grau de possibilidade da efetiva ocorrência das consequências lesivas decorrentes da hipótese cujo risco se busca calcular."5 A prevenção se assenta nos riscos concretos e a precaução nos riscos abstratos.6 A pluralidade que permeia o conceito de responsabilidade civil resta alicerçada sob o campo dos papeis que ela deve desempenhar concomitantemente para que atinja um nível de transparência, informação e justificação em favor da sociedade. O binômio liability - responsability se agrega aos de accountability e answerability. A abertura para o exercício dessas atribuições, por meio das funções compensatória, preventiva, precaucional, punitiva e restitutória, vai ao encontro de uma sociedade que demanda respostas íntegras, resultados otimizados e condutas efetivas quanto aos conflitos de interesses apresentados, especialmente no campo da tutela coletiva e estrutural. 2- O PL 1641/21: ação coletiva e estrutural e as múltiplas funções da responsabilidade civil O PL 1641/21, em homenagem à jurista Ada Pellegrini Grinover, foi elaborado por meio de comissão de integrantes do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), cujo intento primordial residiu em colaborar com os Projetos de Lei 4441/20 e 4778/20 que já estavam em andamento na Câmara dos Deputados. Todos convergem para o aperfeiçoamento da ação coletiva - ação civil pública. Uma proposição legislativa desse quilate que abrange todo o sistema de tutela coletiva jamais poderia deixar de espelhar o caudal funcional do instituto da responsabilidade civil e, ainda mais que o processo deve estar voltado com o seu aporte de técnicas no direcionamento da realização do direito material. Como afirmam Marinoni, Arenhart e Mitidiero, "o direito processual viabiliza - em termos de efetividade - a própria existência do direito material."7 A necessária simbiose entre o direito material e o processual expressa a accountability na sua vertente ex post, como leciona Nelson Rosenvald, pois ela "atua como um guia para o magistrado e outras autoridades, tanto para identificar e quantificar responsabilidades, como para estabelecer os remédios mais adequados."8 A tutela coletiva e atualmente as demandas estruturais não poderiam apenas exteriorizar uma mera reparação, indenização, fruto de liability. O PL 1641/21, em seu art. 2º, densifica o estatuto axiológico do panorama da tutela coletiva e, ao catalogar os princípios, solidifica essa interdependência entre a multifuncionalidade da responsabilidade civil e os caminhos judiciais ou extrajudiciais das ações coletivas e estruturais. Os núcleos da precaução, prevenção, reparação integral de danos patrimoniais e morais, individuais e coletivos; responsabilidade punitivo-pedagógica e restituição integral dos lucros ou vantagens obtidas ilicitamente com a prática do ilícito ou a ela conexas9 (art. 2º, incisos V e VI) revelam a imperiosa ressignificação dos litígios coletivos e sobretudo estruturais, quanto ao que proporcionam que é o acesso à ordem jurídica justa10, em termos de consequências relativas às medidas empregadas. As tutelas coletiva e estrutural não podem ser estereotipadas sob o "véu" de um viés de responsabilidade, porque são vários os grupos de interesse, graus de postulação e níveis de repercussão. Para a defesa desses múltiplos direitos transindividuais, o processo deve estar na rota de recepção de qualquer espécie de tutela jurisdicional e de procedimentos que assegurem a efetividade da tutela11, compreendendo-se as 5 (cinco) funções da responsabilidade civil. À guisa de ilustração, questões de regularização fundiária, possessórias coletivas, desastres ambientais, direito à saúde, educação, trabalho escravo e degradante são algumas situações que não podem ser simplesmente resolvidas com pedido meramente indenizatório. Via de regra são problemas estruturais com diversos enfoques, soluções e que somente podem alcançar uma recomposição institucional se tiverem a pauta de tutelas que inibam a prática, reiteração ou continuação de um ilícito, ou seja, fundamental a remoção e, além disso, pena civil, indenização e outras modalidades de pedidos. Destaca-se, inclusive, o disgorgement como forma de restituição integral dos lucros ou vantagens obtidas ilicitamente que visa uma reparação integral nesses litígios estruturais, e também uma eficácia preventiva, porque vai desestimular a prática ou a reiteração de tais infrações, seja por parte do agente, seja por parte dos players do segmento econômico. O leitor pode indagar-se que as reflexões feitas repousam sobre um projeto de lei que pode não ser convertido em lei e, com isso, a tutela coletiva permaneceria na sua zona de conforto tradicional sem considerar essas multifuncionalidades da responsabilidade civil. A metodologia a ser empregada nos processos coletivos e estruturais é a da visão do todo, portanto de um sistema em que as unidades que compõem esse universo dialogam e as lacunas vão sendo colmatadas, não importando se são leis gerais ou especiais. O Código Civil traduz os núcleos obrigacionais, responsabilidades, instituto do enriquecimento sem causa e o Código de Processo Civil com o amplo campo de técnicas se projeta a serviço do direito substancial. Não se tem mais espaço para déficits interpretativos, quando se trata de direitos fundamentais, sociais e humanos. Em decisão paradigmática assentada em interpretação sistemática, o Tribunal de Contas da União12 decidiu sobre a aplicação do disgorgement e entendeu que a restituição dos lucros ilegítimos tem fundamentação no principio da vedação do enriquecimento sem causa (art. 884 CC); ninguém pode beneficiar-se da sua própria torpeza (arts. 5º e 276 CPC); e efeitos retrooperantes da declaração de nulidade (arts. 59 da lei 8666/93 + 148 e 149 da lei 14133/2021). E imperioso extrair todos os sentidos e alcance do instituto da responsabilidade civil (funções compensatória, preventiva, punitiva, precaucional e restitutória) e se conjugar com o processo dotado de flexibilidade procedimental e que tem como norte a primazia do mérito, eficiência, razoabilidade, proporcionalidade e dignidade da pessoa humana (arts. 4º e 8º CPC), visto que somente assim se caminhará rumo à perspectiva de mudanças comportamentais por parte dos lesantes e de toda a sociedade nos conflitos coletivos e estruturais. _________________ 1  Tort of libel, tort of slander, infliction of mental distress, inducing a breach of contact, invasion of rigtht of privacy, negligence. In LIMPENS, Jean. Liability for One's Own Act. Torts. In. International Encyclopedia of Comparative Law. Vol. XI. Tübingen: Mohr Siebeck, 1979, pp. 5 e 50 e ss. 2 Article 1240 - Tout fait quelconque de l'homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé à le réparer (Todo ato do ser humano que causar dano a outrem, obriga aquela pessoa que incorreu em falta (culpa) a reparar o dano) (trad. livre). Acesso em 09 de maio de 2023. https://www.legifrance.gouv.fr/codes/section_lc/LEGITEXT000006070721/LEGISCTA000032021486/#LEGISCTA000032021486 3 As posições do direito inglês, americano, francês e alemão foram alvo de análise, entre outros autores por MATTIACCI, Giuseppe Dari. Tort Law and Economics. Chapter 2. P. 01-44. Working paper Utrecht University, Institute of Economics, 2003. Acesso em 09 de maio de 2023  https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abid=347801 4 Funções da reponsabilidade civil. 4. ed. SP: Saraiva, 2022. Passim. 5 VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva. SP: Malheiros, 2014. P. 250. 6 VENTURI, Thaís. Idem. p. 254 e ss. 7 Curso de Processo Civil. 6. ed. SP: RT, 2021. p. 29. 8 Curso de Processo Civil. passim. 9 Instituto do Disgorgement. Cf. ROSENVALD, Nelson. https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/334280/o-disgorgement-nas-relacoes-contratuais-pelas-lentes-do-common-law. Acesso em 08 de maio de 2023. 10 WATANABE, Kazuo. Acesso a ordem jurídica justa. BH: Del Rey, 2019. 11 Art. 5º PL 1641/2021 12 Acórdão 1.842/2022 - Plenário, Rel. Min. Antonio Anastasia, j. 10/08/2022. _________________ *Gisele Fernandes Góes é Doutora (PUC-SP), Mestra (UFPA) e Professora de Direito Processual Civil (UFPA). Procuradora Regional do Trabalho 8ª Região.
Siempre imaginé que el paraíso era una especie de librería (Jorge Luis Borges).  1. Contextualização da discussão: O dano entre contratantes é necessariamente contratual? Doutrina e jurisprudência estabelecem frutífero debate sobre os requisitos para atribuição do dever de reparar1, assim como sobre os regimes jurídicos aplicáveis, com relevantes impactos. Entre as instigantes discussões, a distinção entre as chamadas "responsabilidade negocial" e "responsabilidade extracontratual" costuma ser associada aos seguintes aspectos: a-) ônus da prova; b-) exigência da culpa; c-) termo inicial para reparação; d-) possibilidade de contratar limitação ao dano ou ao dever de reparar; e-) prazo prescricional; f-) nexo de atribuição e solidariedade; e, por fim, g-) relevância da capacidade civil. Sob uma perspectiva crítica, é possível assinalar que o direito brasileiro não oferece uma distinção nítida entre responsabilidade negocial e não negocial, ao mesmo tempo em que a legislação, aparentemente, procurou diferenciar seus efeitos. Nessa linha, a distinção destes regimes, embora encontre grande eco na literatura jurídica, é objeto de relevante divergência, que desafia sua importância, utilidade e mesmo seu sentido2. Pontes de Miranda já assinalava: "É possível, portanto, esperar-se que se apaguem as distinções entre a responsabilidade delitual e a responsabilidade negocial, de modo que se crie, por sobre elas, mais solidamente, outro sistema, unitário, de reparação fundada na culpa ou em equilíbrio material de posições jurídicas"3. Na fase atual dos debates, a classificação responsabilidade civil negocial e não negocial nem está superada por completo, nem está imune a inúmeras e duras críticas4, e até mesmo a propostas de outros regimes, como uma terceira modalidade, fundada na confiança5. Exemplar desta saudável discussão é a consagração do Enunciado n. 419 das Jornadas de Direito Civil da CJF, que estabelece: "O prazo prescricional de três anos para a pretensão de reparação civil aplica-se tanto à responsabilidade contratual quanto à responsabilidade extracontratual". Esta linha interpretativa denota clara aproximação entre os regimes - e quiçá a superação de sua distinção, o que se repete no âmbito das relações de consumo6, por meio de institutos jurídicos como o abuso do direito e mecanismos de atribuição de responsabilidade, em consonância a uma ótica que "abala as estruturas da divisão entre responsabilidade civil contratual e extracontratual"7. Até aqui, procurou-se, em poucas linhas, expor as divergências entre a distinção - ou mesmo a aproximação - entre os regimes da responsabilidade negocial e extranegocial.8 Este estudo não aprofundará este interessante debate. O escopo deste texto é mais singelo, busca-se refletir sobre os critérios para estabelecer a natureza da responsabilidade, vale dizer, negocial ou não, e principalmente sobre seus problemas.  2. A existência de relação contratual não é critério suficiente Desde logo, é preciso apontar que o critério distintivo não é a existência de um contrato. Não basta observar se a discussão envolve partes contratantes para extrair a conclusão de que a natureza da responsabilidade em caso de danos seja contratual. Igualmente, a recíproca também não pode ser tida como verdadeira. Eis o problema. É possível estabelecer uma grande lista de situações que não se encaixam na distinção entre o regime de reparação negocial e não negocial9, ou que trazem certo desconforto. Assim, nas relações de consumo, há acentuada preocupação com "grande número de pessoas que 'gravitavam' ao redor dos contratos e relações de consumo, sendo afetadas por eles, sem terem até há pouco status contratual ou vínculo obrigacional que as pudesse proteger"10. Dessa maneira, há o que se tem designado eficácia obrigacional transubjetiva. Em instigante caso, o TJSP considerou que a reparação do dano decorrente de explosão ocorrida em shopping de Osasco submete-se ao regime da responsabilidade extracontratual. Ao manter a compreensão do acórdão, o STJ sinalizou: "MARINHA estava frequentando o shopping para realizar compras. Não havia, portanto, uma relação contratual direta entre ela e aquela sociedade jurídica, não sendo possível afirmar, de outra parte, que os danos sofridos tenham decorrido de um descumprimento das obrigações reciprocamente estabelecidas. Assim, no caso dos autos, não há como ser afastada a responsabilidade extracontratual".11 Os danos associados à ruptura injustificada das negociações, tratados sob o "guarda-chuva" da responsabilidade pré-contratual12, embora sejam usualmente conectados com o descumprimento de deveres contratuais, como defende Antônio Junqueira de Azevedo13, para parte da doutrina estão vinculados à responsabilidade extranegocial, como propõe Vera Jacob Fradeira14. Conforme se pode notar, "a imputação do dever de indenizar em razão de fatos ocorridos em períodos que antecedem a constituição da relação obrigacional - por meio da chamada culpa in contrahendo, segundo expressão tributável a Jhering -, aparece como um dos primeiros sinais de insuficiência da clássica diferenciação entre a responsabilidade civil contratual e extra-contratual"15.   Na outra ponta, a responsabilidade após o fim do contrato, tutelada frequentemente por meio da pós-eficácia obrigacional, pode envolver a proteção com base em elementos não contratuais ou negociais. Ilustrativamente, a contratação de disposições sobre não concorrência, sinaliza um vínculo negocial; enquanto no caso do trespasse, independentemente de previsão contratual a habilitando, o Código Civil presume sua vedação (art. 1.147) - em um regime de opt out. Por sua vez, o uso indevido da imagem de um funcionário após seu desligamento, sem que haja contratação a respeito, constitui ilícito absoluto. Neste último caso, não há nenhum dever contratual violado, e a abstenção do uso do nome e/ou da imagem não tem como fundamento específico a relação contratual pretérita. Alguns exemplos sobre o caráter nebuloso da incidência da responsabilidade negocial ou extranegocial ajudam a percepção sobre como o sistema jurídico é contra intuitivo: (a) O atropelamento de duas pessoas na via férrea, uma pela queda durante o transporte, outra que caminhava próxima se desdobra, à luz da leitura tradicional, em sistemáticas distintas de reparação por danos. Em outras palavras, sob a ótica da jurisprudência: "A responsabilidade civil por danos causados por acidente ferroviário é, em regra, contratual quando o evento esteja relacionado com contrato de transporte previamente celebrado com a empresa responsável pela ferrovia, sendo extracontratual nas demais hipóteses em que não exista prévio vínculo contratual"16. Na esfera do direito laboral (b), considera-se que o dano existencial se relaciona à responsabilidade extranegocial, eis que não fundado na violação do contrato de trabalho.17 Assim também nos casos de morte do empregado. Na compreensão do STJ, "nos casos de reparação por danos morais reivindicada por familiares de vítima fatal de acidente, os juros de mora devem incidir a partir do evento danoso, nos termos da Súmula n. 54/STJ, porquanto se trata de responsabilidade extracontratual, não obstante a relação originária entre o de cujus e o causador do dano ser contratual"18. De modo próximo, (c) no âmbito do direito à saúde, colhe-se na jurisprudência do STJ diversos precedentes que consideram que "A responsabilidade civil por erro médico, na hipótese em que ocorre a morte da vítima e a reparação por danos morais é pleiteada pelos respectivos familiares, possui natureza extracontratual e, portanto, o termo inicial dos juros de mora é a data do evento danoso".19 Por outro lado, (d) a figura do terceiro cúmplice também desafia os limites da própria noção de inadimplemento contratual e de partes da relação, o que torna mais sofisticado o exame da natureza da responsabilidade civil nestas situações. Vistos pelo raciocínio indutivo, típico da tópica20, se por um lado nos casos em que falta assinatura em um contrato a inclinação para a responsabilidade extracontratual seja mais fácil de admitir, como lidar quando há nulidade na formação do negócio jurídico? Tome-se como referência recente acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais21, em que se discuta a contratação por uma pessoa analfabeta, sem a obediência às formalidades legais. O julgamento concluiu pela invalidez do contrato, e pela contagem dos juros moratórios dos danos constatados, na forma da Súmula n. 54 do STJ, a qual, como se sabe, estabelece que "Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual".   Esse último exemplo busca ressaltar a falsa simplicidade em identificar uma relação negocial como elemento suficiente para definir o regime jurídico no direito de danos. Neste caso, o critério proposto por Tepedino, Terra e Cruz22 parece útil para entender a solução adotada pelo tribunal mineiro, na medida em que a diferenciação entre responsabilidade contratual e extracontratual se funda, na leitura dos autores, não em observar qual o dever descumprido, mas ter em conta se existe uma relação contratual válida, cuja violação independe de afronta a um dever legal ou contratado. Como se pode observar, nem haver relação contatual é suficiente para definir que há responsabilidade negocial, nem a ausência de um contrato (celebrado ou negociado), é bastante para afastar esta modalidade. 3. Desdobramentos das discussões, os desafios estão postos O acolhimento pela jurisprudência da distinção entre a responsabilidade negocial e extranegocial, da qual é um grande exemplo o enunciado da Súmula n. 54 do STJ, não pode ocultar os possíveis entrelaçamentos entre o direito de danos e a esfera contratual. Analogamente, o esmaecer da distinção entre a responsabilidade negocial e extranegocial não pode esconder o acolhimento, habitual, de sua distinção na jurisprudência.   Para Catalan, o critério da culpa como distintivo dos regimes não faz sentido, e a diferenciação baseada no regime probatório mostra-se igualmente insuficiente e precária para legitimar uma classificação estrutural23. Aliás, o novo formato de ônus probatório estabelecido pelo CPC parece oferece mais um argumento em seu favor. Na prática, o que se observa na flexibilização24 ou aproximação de regimes, é uma clara insuficiência da compreensão atual, o que sugere a necessidade de repensar o tema de forma ampla, não apenas no momento de "enquadrar" as situações jurídicas, mas igualmente ao avaliar as respectivas consequências. Tais discussões exigem especial atenção diante dos efeitos de descumprimento de contratos que afetam terceiros, como no falecimento de um paciente, ou na hipotética falha na auditoria de uma grande empresa causando prejuízos aos seus acionistas minoritários25. Igualmente, cabe cogitar quais as consequências das situações disciplinadas pelo regime negocial sem que a parte seja propriamente um celebrante do contrato, ou mesmo um contratante, com inúmeros exemplos no âmbito das relações consumeristas. Sob outra perspectiva, é preciso recordar que os instrumentos contratuais podem ser empregados para alocação de riscos26 (e.g. Código Civil, arts. 49-A, parágrafo único e 421-A, inc. II), e estabelecer regimes diferenciados também em caso de descumprimento e mesmo danos. Dessa forma, no campo contratual, há possibilidade de definir-se disposições sobre a conduta das partes, sobre os efeitos da frustação de comportamentos esperados e mesmo em relação aos danos. Assim, apenas para lembrar alguns, é possível adotar mecanismos de garantia, estipulação de penalidades (e.g. por meio de multa); definir consequências pelo arrependimento (e.g. por meio das arras), pré-liquidação de danos (e.g. por meio de cláusula penal reparatória), entre tantas outras consequências práticas. A própria circunstância de que deveres contratuais não nascem apenas da vontade das partes, nem as partes podem limitá-los de forma irrestrita, torna problemático riscar uma fronteira entre as modalidades de responsabilidade civil27. Acrescente-se ainda a hipótese de que as partes contratem regras que reforçam o cumprimento de deveres já estabelecidos na legislação. Para retomar a frase da epígrafe, ainda temos muito o que cultivar neste tema. Em resposta ao questionamento central, se admitida a distinção entre os regimes, é possível que entre partes que em algum momento contrataram - ou são contratantes - haja danos submetidos ao regime extracontratual28, porém, como procurou-se se expor ao longo deste texto, essa resposta oferece mais problemas do que soluções. A possibilidade de haver danos decorrentes de violação contratual e da lei, de forma simultânea, enfraquece ainda mais a distinção de regimes, como neste exemplo: "Os apelantes assumiram a obrigação de não concorrer com os apelados na distribuição e venda mercantil de produtos da marca X na Região do Distrito Federal, mas descumpriram tal obrigação, incorrendo em descumprimento contratual e concorrência desleal que impõe a correspondente reparação pelos lucros cessantes amargados"29. Como se verifica, a responsabilidade negocial e não negocial, longe de serem ilhas, se não merecerem a unificação de regimes, estão ligadas por uma ponte cada vez mais robusta. Essas fronteiras borradas entre dois regimes frequentemente apresentados como bastante distintos estão associadas a várias circunstâncias, entre os quais: (a-) a possibilidade de danos, entre partes contratantes, sem relação direta com o contrato; (b-) a produção de efeitos anteriores à celebração do contrato no curso das negociações preliminares; (c-) a hipótese de danos após o cumprimento do objeto principal do contrato; (d) a eficácia da boa-fé, a qual impõe deveres independentemente da vontade das partes; (e-) a aplicação de deveres decorrentes da boa-fé como o duty to mitigate the loss pode apresentar distinções em matéria de responsabilidade negocial e não negocial; (f-) a possibilidade de as partes contratantes acordarem sobre certos efeitos em matéria de danos; (g-) a hipótese de danos decorrentes de violação contratual e legislativa ao mesmo tempo; bem como analogamente; (h-) a violação de contrato por força de violação de um dever legal. Sem enfrentar-se tais questões, permaneceremos em preocupante penumbra. ____________ 1 LÔBO, Paulo. Em busca do pressuposto comum das classes de responsabilidade civil. Portal Migalhas. 15.06.2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/388213/em-busca-do-pressuposto-comum-das-classes-de-responsabilidade-civil 2 EHRHARDT JR., Marcos. Responsabilidade civil pelo inadimplemento da boa-fé. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 136. FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: imputação e nexo de causalidade. Curitiba: Juruá, 2014, p. 275. BECKER, Anelise. Elementos para  uma  teoria  unitária da  responsabilidade  civil. In: NERY JÚNIOR, Nelson;  NERY,  Rosa  Maria  de  Andrade. Responsabilidade  Civil:  Teoria Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. CATALAN, Marcos Jorge. A morte da culpa na responsabilidade contratual: 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2019. 3 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Direito das obrigações: fatos ilícitos absolutos, responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro, Borsoi, 2012, tomo LIII, p. 246. 4 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Obrigações, 9. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 523. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Responsabilidade Contratual e Extracontratual: contrastes e convergências no direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Ed. Processo, 2016 5 FRITZ, Karina Nunes. A responsabilidade pré-contratual por ruptura injustificada das negociações. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 1, n. 2, jul.-dez./2012. Disponível em: https://civilistica.com/wp-content/uploads1/2015/02/Fritz-civilistica.com-a.1.n.2.2012-4.pdf. 6 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 8. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 116 e 277. 7  MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 8. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 279. 8 Para uma análise comparativa entre o direito alemão e brasileiro cf. RAMOS, André Luiz Arnt. Responsabilidade por danos e segurança jurídica - Legislação e jurisdição nos contextos alemão e brasileiro. Curitiba: Juruá, 2018. Propõe-se no presente texto tão-somente uma reflexão sobre o direito brasileiro. 9 SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil: contemporâneo. 3. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 915. 10 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 8. ed. São Paulo: RT, 2016, p. 407. 11 STJ, AgRg no REsp: 1413995, 3ª. Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, DJe 31/08/2022. 12 MOTA PINTO, Carlos Alberto. A responsabilidade pré-negocial pela não conclusão dos Contratos, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, supl. XIV, Coimbra, 1996. STEINER, Renata Carlos. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. 1. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 264. 13 "A responsabilidade pré-contratual, resultante de prejuízos causados na primeira fase do processo contratual fase pré-contratual -, embora resulte de ato ilícito, provém de descumprimento de dever específico imposto pela norma da boa-fé; por isso, obedece às regras da responsabilidade contratual, antes que da responsabilidade extracontratual". AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Responsabilidade pré-contratual no Código de Defesa do Consumidor: estudo comparativo com a responsabilidade pré-contratual no direito comum. Revista da Faculdade de Direito, Universidade De São Paulo, v. 90, p. 121-132, 1995. 14 FRADERA, Vera Jacob de. Dano pré-contratual: uma análise comparativa a partir de três sistemas jurídicos, o continental europeu, o latino-americano e o americano do norte. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 34, n. 136, p. 169-179, 1997. 15 LEONARDO, Rodrigo Xavier. Responsabilidade contratual e extracontratual: primeiras anotações em face do novo Código Civil brasileiro. In: NERY JR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. (Org.). Doutrinas essenciais: responsabilidade civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, v. 1, p. 391-401. No mesmo sentido, STEINER, Renata Carlos. Reparação de Danos - Interesse Positivo e Interesse Negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 37. 16 STJ, REsp: 1479864 SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª. Turma, DJe 11/05/2018. 17 TST. RR n. 805-03.2013.5.04.0020, Rel. Min.: Lélio Bentes Corrêa, 1ª Turma, DEJT 02/03/2018. 18 STJ, REsp: 1377130, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª. Turma, DJe 10/05/2021. 19 STJ. AgInt nos EDcl no REsp n. 1.732.556/SP, Rel. Min.: Raul Araújo, 4ª. Turma, DJe de 18/6/2019. No mesmo sentido: STJ, AgInt no AREsp: 875512 MG, Rela. Mina. Maria Isabel Gallotti, 4ª, Turma, DJe 16/10/2018. STJ. REsp n. 1.698.812/RJ, Rela. Mina. Nancy Andrighi, 3ª. Turma, DJe de 16/3/2018. 20 CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 259. 21 TJMG, AC: 50010403720228130352, Rel: Des. Habib Felippe Jabour, 18ª Câmara Cível, 06/06/2023. 22 TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline de Miranda Valverde; CRUZ, Gisela Sampaio da. Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 23 CATALAN, Marcos Jorge. A morte da culpa na responsabilidade contratual: 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2019. 24 MARTINS-COSTA, Judith, Comentários ao novo Código civil. Do inadimplemento das obrigações. v. V, Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 98. 25 VIEIRA, André Guilherme. Americanas: Minoritários querem que PwC seja criminalmente responsabilizada por rombo. Valor Econômico. 20/01/2023. 26 ATIYAH, Patrick S. The Rise and Fall of Freedom of Contract. Oxford: Clarendon Press, 1985, p. 202. FORGIONI, Paula. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 148. 27 Essa crítica se repete em outros sistemas jurídicos, confira-se: ROBERTSON, Andrew, On the Distinction between Contract and Tort. The Law of Obligations: Connections and Boundaries, Londres: UCL Press/Routledge-Cavendish, 2004, p. 87-109. 28 SIMÃO. José Fernando Simão. Contractual liability and tort liability - Distinctions -Statute of limitations for torts - Good faith -Duty to mitigate the loss (legal opinion). Revista de Direito Civil Contemporâneo, 2016, v. 8, jul.-set.2016. 29 TJDF, 0708509-11.2017.8.07.0001, Rel. Des. ALFEU MACHADO, 6ª Turma Cível, DJE : 18/03/2021. Sobre o tema: BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de concorrência desleal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.
O Estatuto do Idoso reconhece que a pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos merece proteção especial por ser presumidamente vulnerável, embora não tenha afetada a sua capacidade civil, de modo que envelhecimento e capacidade jurídica são conceitos dissociados e, justamente por isso, o respeito a ambos significa proteção à dignidade do idoso. Não obstante, é fato que, na atual sociedade de consumo, a preservação dessa dignidade, justamente pelo reconhecimento da plena capacidade civil do idoso, aliado à sua presumida hipervulnerabilidade, impõem um cuidado maior na busca de sua proteção integral, quando da análise de suas relações com as instituições financeiras, que têm empregado práticas abusivas e agressivas no fornecimento de crédito, nos moldes previstos no art. 39, IV, do Código de Defesa do Consumidor, gerando endividamento e até superendividamento, com exclusão social por dívidas de consumo, prevalecendo-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade. Considerando que todo negócio jurídico há que ser analisado a partir, em primeiro lugar, dos seus pressupostos de existência, seus elementos essenciais, depois, dos requisitos de validade e, por fim, da sua capacidade de produção de efeitos ou seus fatores de eficácia, possuindo, assim, três planos: de existência, de validade e de eficácia1, é possível analisar os planos de existência e validade dos contratos de empréstimo que têm sido ofertados aos consumidores idosos, sem qualquer preocupação com sua hipervulnerabilidade, com sua adequada informação e com sua compreensão acerca do negócio que está sendo realizado. Essa análise se mostra necessária na medida em que, nessas práticas de oferta claramente predatória, "as fragilidades desses consumidores hipervulneráveis têm sido indevidamente exploradas pelos fornecedores, que efetivamente desrespeitam sua dignidade humana e os levam ao superendividamento de maneira intencional."2 Tem se tornado voz comum nos tribunais pátrios relato da prática de instituições financeiras que, sem qualquer solicitação prévia do consumidor idoso, depositam quantia em sua conta-corrente, a título de empréstimo, e passam a descontar parcelas em seu benefício previdenciário, ou na própria conta bancária, impondo um mútuo, com pagamento consignado ou não, sem declaração de vontade da outra parte. Nesse ponto, cabe perquirir sobre a existência do contrato. Ora, se o consumidor não declarou a sua vontade no sentido de contratar o mútuo junto à instituição financeira, é inegável que o contrato não existe, pois falta a ele elemento essencial e, portanto, pressuposto do plano de existência, a vontade declarada do agente3. Não obstante, nem sempre a jurisprudência tem assim considerado. Essa prática é expressamente estabelecida como abusiva pelo Código de Defesa do Consumidor, que dispõe, em seu art. 39, III, ser abusivo o envio ou a entrega ao consumidor, sem solicitação prévia, de qualquer produto, ou o fornecimento de qualquer serviço, estabelecendo como sanção ao fornecedor que assim age a equiparação do produto ou do serviço a amostra grátis, conforme parágrafo único do mesmo dispositivo. Isso decorre justamente do fato de que, para o consumidor, o contrato inexiste, mas o fornecedor deve ser punido pela abusividade de sua conduta, com o perdimento do produto. Conquanto se trate de previsão expressa, sem ressalva, a jurisprudência tem decidido que, quando se trata de fornecimento de dinheiro sem solicitação prévia, o consumidor deve devolver a quantia ao fornecedor, não se aplicando a sanção do art. 39, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, e isso tem fomentado a prática espúria dos fornecedores de crédito. Ocorre que não parecer vingar a alegação de que o uso da quantia importa em aceitação tácita e, portanto, em contratação, na medida em que quaisquer outros produtos ou serviços também serão utilizados se fornecidos sem solicitação e, para eles, o perdimento é aceito sem discussões. A título de exemplo, o TJMG é pacífico em não estender o conceito de amostra grátis à quantia em dinheiro fornecida sem solicitação prévia, entendendo ora "não se tratar de produto ou serviço stricto sensu"4, outras vezes confundindo a questão do fornecimento sem solicitação com empréstimo feito mediante fraude, situações diversas e que merecem tratamento diferenciado, se bem que as fraudes devem ser analisadas com cautela, pois quase sempre são inescusáveis aos bancos. Conquanto todos os demais tribunais pátrios também não estejam aplicando a equiparação do numerário disponibilizado sem solicitação a amostra grátis, o TJSP já decidiu pela equiparação mais de uma vez5, embora tenha várias outras decisões indeferindo esse pedido6, inclusive sob a alegação de que "os valores foram disponibilizados à autora na expectativa de regular contratação."7 No TJRJ, ao seu turno, para afastar a aplicação do art. 39, parágrafo único, já se afirmou que "tem-se, de fato, situação distinta do oferecimento de produto ou serviço, normalmente para difusão da atividade e incremento de clientela, pois é sabido que bancos e congêneres não disponibilizam ativos financeiros com esse fim."8 Se existente, o contrato de concessão de crédito ao consumidor idoso está sujeito a vicissitudes que podem atingir sua validade9, embora a capacidade civil não esteja relacionada à idade avançada da pessoa, não sendo o idoso incapaz. Fato é que, embora plenamente capaz para os atos da vida civil, o idoso é, conforme já afirmado, presumidamente hipervulnerável, estando mais suscetível a ser vítima de algum vício do consentimento ou vício social, chamados no Código Civil de defeitos dos negócios jurídicos. Além disso, o próprio Código de Defesa do Consumidor traz situações especiais de proteção ao consumidor idoso, que podem levar à invalidade do negócio ou de parte de suas cláusulas. Nesse sentido, o art. 39, IV, do Código de Defesa do Consumidor, estabelece como abusiva a prática de "prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços", mas não estabelece uma sanção específica para o fornecedor que se utiliza dessa prática, justamente porque a mesma pode ocorrer em momentos diversos da relação, como na fase pré-contratual, contratual e pós-contratual, demandado solução diversa e adequada a cada momento10. Ao impingir, na dicção legal, a contratação do empréstimo ao consumidor idoso, prevalecendo-se de sua hipervulnerabilidade, a prática abusiva se inicia na oferta e se prolonga à fase de formação do contrato, celebrado a partir de ardis implementados pelo fornecedor, que abusa do direito. Assim, o contrato pode ser inválido, se foi celebrado pelo consumidor a partir de ato doloso do fornecedor, situação bastante provável nessa prática, nos termos do art. 145 do Código Civil, gerando sua anulabilidade. O art. 54-C do Código de Defesa do Consumidor traz práticas vedadas na oferta de crédito e estabelece, em seu inciso IV, a proibição de "assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio", evidenciando um dever negativo, uma proibição, tratando-se de uma confirmação do que prevê o art. 39, IV, porém específica para concessão de crédito, e sujeitando o contrato a anulabilidade, além de outras sanções, conforme estabelece o parágrafo único do art. 54-D. O dever de informar também ganha contornos mais nítidos quando o consumidor é hipervulnerável em razão da idade, de modo que o art. 54-D, I, do Código de Defesa do Consumidor, prevê o dever de o fornecedor ter um cuidado adequado à idade do consumidor ao prestar a informação sobre contratação de crédito, revelando uma escolha pela atribuição do crédito responsável não apenas aos tomadores, mas também aos seus fornecedores. Nos termos do art. 54-D, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor: Parágrafo único. O descumprimento de qualquer dos deveres previstos no caput deste artigo e nos arts. 52 e 54-C deste Código poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor. A análise do dispositivo legal revela que o descumprimento, pelo fornecedor, dos deveres de informação ao consumidor e, especialmente ao consumidor idoso, pode acarretar a aplicação de outras sanções, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e das possibilidades financeiras do consumidor, que serão analisadas em cada caso concreto, inclusive a atribuição do dever de indenizar. O fornecimento de empréstimos aos consumidores idosos, prática que tem movimentado o mercado de consumo e causado graves problemas de superendividamento, precisa ser, então, repensado à luz dos planos de existência e validade do negócio jurídico, e ir além, com a efetiva aplicação da responsabilidade civil pelos diversos abusos de direito cometidos nesta seara. De fato, o próprio assédio de consumo deve ser caracterizado como dano11, pois viola a boa-fé objetiva, confunde o consumidor, explora seus pontos fracos e, a partir de sua ocorrência, o idoso hipervulnerável tem sua tranquilidade efetivamente violada e muitas vezes contrata sem saber o que está fazendo, sem entender o que está aceitando, assina para se livrar da pressão, cai em situação de superendividamento. A responsabilidade civil na relação de consumo, em especial no consumo de crédito, surgida a partir da violação dos deveres objetivos de cuidado, do descumprimento da boa-fé objetiva e do desrespeito ao contratante hipossuficiente12, seja pelo dano patrimonial ou extrapatrimonial, decorrente do assédio de consumo ou da própria imposição de contrato, é objetiva, de modo que não se perquire a culpa, sendo seus requisitos o evento, o dano e o nexo causal, conforme resta estabelecido no art. 14 do Código de Defesa do Consumidor. E mais, essa responsabilidade pode ser contratual ou extracontratual, não fazendo diferença alguma, já que a Lei nº 8.078/1990 unificou essa dicotomia, que restou superada, notadamente pela adoção do conceito de consumidor bystander, ou vítima do evento ou acidente de consumo, nos termos do seu art. 17. Mas de nada adianta estabelecer a responsabilidade civil dos fornecedores de crédito por suas práticas abusivas, desde a oferta predatória, até a imposição de um contrato não celebrado, se essa responsabilização não assumir as funções necessárias à coibição das práticas, fomentando a perpetuação das abusividades, mais lucrativas que o respeito à ordem jurídica.13 Enquanto a violação da tutela da pessoa humana for mais interessante, do ponto de vista econômico, do que o respeito à sua dignidade, as instituições financeiras continuarão a fazê-la, pois o lucro é que as move. Nesse sentido, as funções da responsabilidade civil nas relações de consumo precisam ser pensadas para além da eventual relação individual em questão, servindo para "reparar ou compensar o dano, punir o ilícito e prevenir o risco."14 A reparação ou compensação do dano tem um efeito especialmente evidente para o consumidor, de ver seu prejuízo reparado; a punição do ilícito destina-se mais especificamente ao fornecedor, como forma de penalidade em razão da ação ou omissão causadora do dano; por fim, a prevenção de riscos, como função preventiva15, tem como objetivo preservar a sociedade da reiteração de atos ilícitos, alcançando para além das próprias partes da relação. Portanto, a responsabilidade civil nesses casos não pode se limitar a reparar o dano causado ao consumidor, mas deve abarcar um papel maior, servindo de desestímulo a que as práticas que levam a esses danos sejam reiteradas pelos fornecedores de crédito16. Enfim, não se olvida que a legislação brasileira dispensa ao idoso proteção especial, no âmbito constitucional, bem como por meio da legislação ordinária, que busca, através da regulamentação de seus direitos, promover a realização de sua dignidade humana, através da garantia de sua liberdade, autonomia e plena participação social, o que se dá, inclusive, com sua manutenção no mercado de consumo. Contudo, também é fato que o oferecimento do crédito se tornou perigoso e tem levado vários idosos ao superendividamento e à exclusão social. Diante dessa conclusão, é imprescindível analisar as relações de consumo de crédito realizadas por idosos e, portanto, hipervulneráveis, com absoluta atenção, atendendo aos ditames legais que os protegem e, mais, à vontade constitucional que determina a tutela de sua dignidade, com prioridade, enxergando a inexistência de contratos em que sua vontade não foi efetivamente obtida, invalidando os contratos celebrados com violação dos deveres de informação clara e objetiva, direcionada à sua compreensão, e responsabilizando civilmente os fornecedores que insistem em desrespeitar as normas cogentes e de caráter social estabelecidas no Código de Defesa do Consumidor.17 Além disso, fundamental é incentivar a tutela coletiva dos interesses dos idosos submetidos às práticas abusivas analisadas, devendo os legitimados do art. 82 do Código de Defesa do Consumidor e do art. 5º da lei 7.347/1985 promovê-la sempre que possível, já que se evidencia, em muitos casos observados, a existência de direitos difusos, coletivos e, ainda, individuais homogêneos, e essa forma de defesa de direitos mostra-se muito efetiva, na medida em que é capaz de coibir abusos contra consumidores indefesos e promover a correta responsabilização civil do fornecedor.18 __________ 1 Para Antônio Junqueira de Azevedo, são os três planos que a mente humana deve sucessivamente examinar para verificar se o negócio jurídico tem plena realização. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 24. 2 ARQUETTE L. N., Alinne. Crédito consignado: uma necessária análise sobre oportunidades, abusos e superendividamento dos hipervulneráveis. In: ANDREASSA JÚNIOR, Gilberto; OLIVEIRA, Andressa Jarletti Gonçalves de. Novos estudos de direito bancário. v. 2. Curitiba: Íthala, 2022a, p. 49-67. 3 No plano da existência, encontram-se os elementos essenciais do negócio, assim considerados seus pressupostos fundamentais, que são a vontade declarada, o objeto, a forma e a causa. (TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Fundamentos do direito civil. v. 1: Teoria geral do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 252). Faltando qualquer desses pressupostos, o negócio não existe ou, conforme Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, é um não-ato. (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 597). 4 TJMG -  Apelação Cível  1.0000.22.276214-8/001, Relator(a): Des.(a) Vicente de Oliveira Silva , 20ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 26/04/2023, publicação da súmula em 27/04/2023. 5 TJSP - AC: 10615602220208260002 SP 1061560-22.2020.8.26.0002, Relator: Roberto Mac Cracken, Data de Julgamento: 05/11/2021, 22ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 05/11/2021; TJSP - AC: 10034098820218260047 SP 1003409-88.2021.8.26.0047, Relator: Roberto Mac Cracken, Data de Julgamento: 27/04/2022, 22ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 27/04/2022. 6 TJSP - Apelação Cível 1010797-11.2021.8.26.0510; Relatora: Ana Catarina Strauch; Órgão Julgador: 37ª Câmara de Direito Privado; Foro de Rio Claro - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 15/05/2023; Data de Registro: 15/05/2023; TJSP - Apelação Cível 1001316-05.2021.8.26.0484; Relator (a): Israel Góes dos Anjos; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Privado; Foro de Promissão - 2ª Vara Judicial; Data do Julgamento: 12/05/2023; Data de Registro: 12/05/2023. 7 TJSP - Apelação Cível 1008476-41.2021.8.26.0077; Relator (a): Fábio Podestá; Órgão Julgador: 21ª Câmara de Direito Privado; Foro de Birigui - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 15/05/2023; Data de Registro: 15/05/2023. 8 TJRJ - APL: 00317034520188190023, Relator: Des(a). GILBERTO CLÓVIS FARIAS MATOS, Data de Julgamento: 29/07/2021, VIGÉSIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 02/08/2021. 9 Os requisitos de validade do negócio jurídico, previstos no art. 104 do Código Civil, são a capacidade do agente que declara a vontade, a licitude, determinabilidade e possibilidade material e jurídica do objeto e, ainda, a previsão legal ou não proibição em lei da forma usada para o negócio ((TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato, ob. cit., p. 253). Ausente algum requisito, o negócio é inválido, podendo ser nulo ou anulável, dependendo do requisito faltante. 10 ARQUETTE L. N., Alinne; SOUZA, Carlos Henrique Medeiros de. Contratação (in)válida de empréstimo por idosos hipervulneráveis - uma análise necessária em busca da preservação de sua dignidade. In: BOECHAT, Hildeliza; ARQUETTE, Alinne; SILVA, Karla Mello da (org.). Avanços e dilemas no vintênio do código civil principiológico. Livro eletrônico. PDF. Campos dos Goytacazes: Econtrografia, 2022b. Disponível aqui. p. 73. 11 Para mais aprofundamento, ver BASAN, Arthur Pinheiro. Do idoso sossegado ao aposentado telefonista: a responsabilidade civil pelo assédio do telemarketing de crédito; e também MARQUES. Claudia Lima; MARTINS, Fernando Rodrigues. Deveres e responsabilidade no tratamento e na promoção do consumidor superendividado. Ambos In: RÊGO MONTEIRO FILHO, Carlos Edison et al. Responsabilidade civil nas relações de consumo. Foco: Indaiatuba, 2022. 12 Sobre o princípio da tutela do contratante hipossuficiente como concreção do princípio da igualdade material, tratei na obra A teoria contratual e o Código de Defesa do Consumidor, resultado a dissertação do mestrado cursado na UERJ. Mais recentemente, revisitei o tema em ARQUETTE L. N., Alinne. Crédito consignado: uma necessária análise sobre oportunidades, abusos e superendividamento dos hipervulneráveis, ob. cit. 13 Sobre a questão da banalização do dano moral e do mero aborrecimento, escreveram recentemente EFING, Antonio Carlos; BOZO, Aline Maria Hagers. O mero aborrecimento e a justiça defensiva: a tragédia do ilícito lucrativo em favor do alegado desafogamento do judiciário. In: Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | Belo Horizonte, v. 31, n. 4, p. 121-144, out./dez. 2022. Disponível aqui. Acesso em 16 maio 2023. 14 BASAN, Arthur Pinheiro, ob. cit., p. 650. 15 Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Peixoto Braga Netto denominam essa função de precaucional, diferenciando prevenção e precaução (p. 72) e concluindo que a prevenção está no cerne da responsabilidade civil contemporânea e é consequência inafastável da aplicação de qualquer das suas três funções (reparatória, punitiva e precaucional) (p. 79). FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil: responsabilidade civil. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2016. 16 Sobre os punitive damages, ver MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana - estudos de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, mais especificamente o capítulo Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas, em que a autora faz uma crítica à adoção da função punitiva da responsabilidade extrapatrimonial, concluindo, ao final, que, em hipóteses absolutamente excepcionais, para situações potencialmente lesivas a um grande número de pessoas, como nas relações de consumo, a mesma pode ser admitida (p. 380). Ver também MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). Revista CEJ, Brasília, n. 28, jan./mar. 2005, p. 15-32. Disponível aqui. Acesso em 12 maio 2023. 17 Conforme art. 1º do CDC, "O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias." 18 Sobre a eficácia da defesa coletiva dos interesses do consumidor, ver RIZZATO NUNES. A eficácia das ações coletivas para a defesa dos direitos dos consumidores. In: Migalhas de responsabilidade civil. Disponível aqui. Acesso em 15 maio 2023.
Sim, ainda se morre de doenças transmitidas por carrapatos no Brasil. Buscando as últimas atualizações do noticiário, apenas no interior do Estado mais rico da Federação, constatar-se-á a morte de quatro pessoas e a suspeita de contaminação de mais dezessete1 que, após participarem de dois eventos distintos em uma mesma fazenda na zona rural de São Paulo (próximo a Campinas), contraíram Febre Maculosa (FM). Pessoalmente, há tempos não ouvíamos falar dessa doença, muito menos que ainda matava no Brasil. Ela é considerada endêmica2 em várias regiões do país, no entanto. Entre 2013 e 2023 o Ministério da Saúde registrou 2059 casos em todo Brasil, sendo 1292 concentrados na região Sudeste. Destes, foram registrados 703 óbitos, sendo 623 na mesma região3. A Febre Maculosa é uma doença infecciosa de notificação compulsória4 e imediata, considerada de gravidade variável e elevada taxa de letalidade (acima de 20%, podendo chegar a 55%). A doença é provocada pela bactéria Rickettsia rickettsii (Febre Maculosa Brasileira, mais grave), presente no norte do Paraná e nos Estados do Sudeste e pela bactéria Rickettsia parkeri (mais leve) registrada na Mata Atlântica brasileira (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Bahia e Ceará)5. No país, os principais vetores são os carrapatos do gênero Amblyoma (carrapato estrela) infectados pela bactéria, mas qualquer espécie de carrapato pode, eventualmente, ser vetor da doença. O período de incubação varia de dois a quatorze dias, manifestando-se, muitas vezes, subitamente e evoluindo rapidamente. Os principais sintomas são febre, dor de cabeça intensa, náuseas e vômitos, diarreia e dor abdominal, dor muscular constante, inchaço e vermelhidão nas palmas das mãos e solas dos pés, gangrena nos dedos e orelhas e paralisia dos membros iniciando pelas pernas e chegando aos pulmões, manchas vermelhas nos pulsos e tornozelos que vão aumentando com a progressão da doença6. O diagnóstico precoce é difícil7 não só porque os sintomas iniciais se confundem com os de outras doenças, mas também porque exige amplo conhecimento médico sobre doenças recorrentes em dadas regiões (nem sempre viável para os turistas infectados atendidos em sua região de origem). Quando não é confundida com outras, a exemplo, da dengue, também endêmica em vários Estados. O médico poderá solicitar exames laboratoriais complementares8 para confirmação do diagnóstico e que serão realizados pelos Laboratórios Centrais de Saúde Pública (LACENS), integrantes da rede oficial de vigilância em saúde. O tratamento oportuno visa impedir o agravamento da doença e é feito com antibiótico específico e, eventualmente, internação (a taxa de internação chega a 80%). O início do tratamento deve ser realizado imediatamente, mesmo antes dos resultados laboratoriais. A terapêutica, em regra, será ministrada no período de sete dias, sendo mantida em, no mínimo, três dias após o controle da febre. Por fim, o Ministério da Saúde indica como medidas a serem adotas em locais em que pode haver exposição aos carrapatos: usar roupas claras para ajudar a identificar o animal; usar calças, botas e blusas com mangas compridas ao caminhar em áreas arborizadas e gramas; evitar caminhar em locais com grama ou vegetação alta; usar repelentes de insetos; verificar se você ou seus animais de estimação estão com carrapatos ao sair das áreas; ao encontrar um animal usar pinça para removê-lo, puxando com firmeza; lavar a área da mordida com álcool ou sabão e água; após lavar suas roupas em água fervente para retirar os insetos remanescentes (Nota Técnica n. 114/2022-CGZV/DEIDT-SVS/MS). A frieza dos dados estatísticos causa não apenas o espanto com o não controle da doença, como também pela normalidade com que vinha sendo tratada. Daí, talvez, a surpresa demonstrada pela cobertura jornalística: as contaminações teriam ocorrido em eventos realizados em zona endêmica da doença. Pior, a sua existência e risco são considerados fatos notórios entre a população e gestores locais e, portanto, a depender da legislação processual brasileira, independentes de prova (art. 374 do CPC). Apesar disso, de todos os relatos, é possível observar que nenhuma advertência sobre o risco da doença ou sobre os cuidados preventivos foi feita nos convites/ingressos, bem como nenhuma orientação sobre eventuais sintomas foi oferecida aos participantes/consumidores daqueles eventos. Também não se relatou a recomendação dos cuidados profiláticos básicos e, surgidos os casos, o alerta de que poderiam se relacionar à doença. Diante de um cenário destes, então, seria razoável imaginar que caberia ao fornecedor algum dever de informação e, claro, responsabilização em caso de descumprimento? Podemos nos socorrer do interessantíssimo precedente do Superior Tribunal de Justiça que avaliou a responsabilidade de hotel pela ausência de advertência envolvendo o perigo de salto em piscina para afastar a excludente de responsabilidade da 'culpa exclusiva do consumidor' (Recurso Especial n° 287849/SP, julgado em 2001). Ainda que, no caso, possa ter havido a atribuição de um risco em razão de um dano injusto9, o fato é que - do ponto de vista negocial em sentido estrito - a ausência do completo adimplemento do dever de informação poderia atrair tal responsabilidade. Lá se tratou de caso em que jovem embriagado pulou em piscina, lesionando-se gravemente. Considerou-se que a existência de informação sobre o horário de funcionamento não seria suficiente, exigindo-se que fossem esclarecidos os riscos e o nível da água. Lembre-se, ademais, que o próprio Superior Tribunal de Justiça já considerou, em outro importante precedente, que a informação deve ser "correta (=verdadeira), clara (=de fácil entendimento), precisa (=não prolixa ou escassa), ostensiva (=de fácil constatação ou percepção) e, por óbvio, em língua portuguesa." (Recurso Especial n° 1.758118/SP, julgado em 2019). A questão a se saber, então, é em que medida o fornecedor (seja o organizador do evento, eventualmente seu patrocinador ou explorador comercial) se preocupou e colocou em ação medidas informacionais preventivas. Talvez, mesmo, fosse o caso de se indagar se foram tomadas medidas mais aprofundadas como a limpeza do espaço, a utilização de pesticidas adequados, etc. Os relatos não indicam, no entanto, a existência de medidas de advertência ou profilaxia. Este aliás é o cenário turístico brasileiro: mesmo em cidades com estrutura de acolhimento internacional, raramente se percebe este nível de preocupação na rede hoteleira, por exemplo (seja em relação à dengue ou à febre amarela). Poder-se-ia até argumentar que este padrão de informação seria extrapolar o nível do gerenciamento de riscos para algo irreal do ponto de vista da governança. Ousamos discordar, afinal o turista que retorna dos bem-organizados safaris sul-africanos relata, usualmente, a constante advertência sobre os riscos da malária. A questão prática a se saber é se o risco do empreendedor abrangeria riscos sanitários ou, ao menos, sobre a informação de sua existência. Em outros termos, qual a abrangência do art. 931 do Código Civil ou em que medida é defeituoso o serviço a partir do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor. Uma breve passagem de olhos na legislação consumerista parece indicar que tal 'cuidado' é dever: desde a informação sobre riscos inerentes ao serviço (art. 6º, I) e a efetiva prevenção do dano (art. 6º, VI) como direitos básicos do consumidor, assim como o dever de informação prévio sobre os perigos à saúde e segurança (art. 9º) e o dever de informação posterior ao conhecimento da concretização do risco (art. 10, §1°) atribuídos ao fornecedor. Os relatos colhidos pela imprensa não indicam, por exemplo, nem uma, nem outra informação. Deste ponto de vista, portanto, pode-se afirmar, então, que compõe a relação obrigacional do serviço turístico a informação adequada, clara, precisa e ostensiva sobre o risco a que aquele consumidor - especialmente vulnerável em razão do não conhecimento local - se sujeita ao contratar sua participação no evento. Não se tratava, portanto, de mero almoço em que - com certeza - deveriam estar destacados eventuais riscos alimentares (presença de glúten - Lei n. 10.674/03, por exemplo), mas de experiência mais ampla que envolveria a refeição, mas também, música e lazer. Em outros termos, a informação a ser prestada pelo fornecedor não se limitaria aos riscos alimentares, mas a todos os riscos a que aquele consumidor estaria exposto simplesmente por estar em ambiente rural. A eventual inexistência de medidas sanitárias efetivas adotadas pela Municipalidade poderiam impactar esta conclusão? Pouco provável que a ausência delas modificasse o quadro de violação do dever de informação. Então, ainda que eventualmente se pudesse afirmar que a morte das quatro pessoas seria decorrente de evento fortuito, excludente de responsabilidade, a ausência de informação sobre risco conhecido dos organizadores dos eventos por si só torna o serviço defeituoso, a exemplo do citado precedente do STJ. Assim, pode-se firmar que o fornecedor - neste caso - ao vender o ingresso para o evento gastronômico ao céu aberto e em fazenda não só precisaria indicar a composição dos alimentos, responsabilizar-se pelo caso de intempérie, como - também - por fatalidades decorrentes de doenças endêmicas. Sem sombra de dúvida, dentro da organização da atividade, potencializava-se o lucro pela experiência 'rústica'. Caberia a ele, ao menos, informar o seu consumidor da possibilidade de chuva e de se tratar de uma região endêmica para doenças específicas, isso para não falar em dificuldades de logística (estradas de terra ou falta de sinal de GPS) ou de acesso a serviços de emergência. Eventual falha da Administração local no exercício de sua fiscalização e regulação não afastariam esta responsabilidade, mas acrescentariam outro nível de responsabilização seja pela ausência das medidas em si (art. 7º, parágrafo único e art. 22 do CDC), seja pela ausência de cumprimento de seu próprio dever de informação (art. 10, §3° do CDC) e, na prática, criaria a solidariedade para eventual obrigação indenizatória (art. 25, §1° do CDC). Ainda que o número de casos notificados seja considerado quantitativamente baixo, devido à gravidade e alta letalidade da doença, o dever de informação se apresenta ainda mais relevante. Perceba-se que o próprio Ministério da Saúde reconhece o problema na Nota Técnica n. 114/2022-CGZV/DEIDT/SVS/MS10, de 7 de outubro de 2022. Nela, reafirma que se trata de doença prevalente na região Sudeste, com "frequente manifestações hemorrágicas e, consequentemente, altas taxas de letalidade (podendo chegar a 55%)". A transmissão ocorre em ambientes propícios ao carrapato vetor. Adverte o documento que "o risco de infecção para os humanos tem sido relacionado com fatores de exposição que favorecem o contato com os carrapatos, principalmente em áreas rurais (atividades de lazer, pescaria, contato com capivaras, atividades de fazenda e outras atividades que possam ser desenvolvidas em ambientes onde tenham presença de carrapatos)". Após a notificação dos casos (aqui noticiados) ao Ministério da Saúde, a Vigilância Sanitária municipal determinou à fazenda diversas medidas de adequação para que possa voltar a receber eventos, entre elas: sinalização e advertências aos usuários sobre a FM, limpeza de áreas, adequação de espaços com pisos que evitem o contato com a grama. O plano de mitigação de riscos11 da transmissão da doença foi entregue à autoridade sanitária no dia 16 de junho. O que se indaga é por que essas medidas não foram tomadas previamente como determinada pela Nota Técnica antes mencionada? Lembre-se que a transferência de risco inerente ao serviço ao consumidor é considerada abusiva. Destaca-se, ainda, que desde 2004 o Estado de São Paulo possui um Manual de Vigilância Acarológica, que prevê que o controle de carrapatos faz parte das atribuições da vigilância e controle de vetores. Em 2008, o Estado criou o Núcleo de Estudos de Doenças Transmitidas por Carrapatos com Ênfase na FMB, cujos trabalhos acabaram resultando na Resolução Conjunta n. 1, de 1° de julho de 2016, SEMA e SESA-SP, que determina que áreas classificadas como de risco ou de transmissão devam passar por manejo com o objetivo de reduzir o risco de circulação da bactéria. Estas conclusões acabam sendo reforçadas pelo fato de que, em 16 de junho de 2023, a Vigilância Sanitária de São Paulo, expediu o Alerta n. 1/2023, NDTVZ/CIEVS/DVE/DVZ/COVISA/SMS12, sobre a Febre Maculosa Brasileira, na qual indica como medidas recomendas reduzir a letalidade com a divulgação e orientação sobre a doença; reduzir danos, agindo de acordo com as características de cada local e reduzir focos, evitando que se estabeleçam situações propícias à transmissão da doença. O Alerta deixa claro, então, que entre as medidas preventivas está a intensificação do dever de informação atribuível ao fornecedor e à Administração. Referências ALTHEIM, Roberto. A atribuição do dever de indenizar no direito brasileiro. Superação da teoria tradicional da responsabilidade civil. Dissertação, UFPR, 2006. Disponível aqui. BRASIL. Portaria n. 1.378/2013. Ministério da Saúde. Regulamenta as responsabilidades e define diretrizes para execução e financiamento das ações de Vigilância em Saúde pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, relativos ao Sistema Nacional de Vigilância em Saúde e Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Disponível aqui. BRASIL. Portaria n. 1.061/2020. Ministério da Saúde. Revoga a Portaria nº 264, de 17 de fevereiro de 2020, e altera a Portaria de Consolidação nº 4/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir a doença de Chagas crônica, na Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional. Disponível aqui. RODRIGUES, Cláudio Manuel; GEISE, Lena; GAZETA, Gilberto Salles; OLIVEIRA, Stefan Vilges. Estudo descritivo de casos notificados de febre maculosa em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais entre 2007 e 2016.In: Cadernos de Saúde Coletiva, 2023; 31(2), p. 1-10. SILVA, Luiz Jacintho. O controle das endemias no Brasil e sua história. In: Ciência & Cultura, São Paulo, v. 55, n. 1, p. 44-7, jan./fev. 2003. __________ 1 Disponível aqui. 2 Segundo Luiz Jachinto da Silva, "convencionou-se no Brasil designar determinadas doenças, a maioria delas parasitárias ou transmitidas por vetor, como 'endemias', 'grandes endemias' ou 'endemias rurais'. Essas doenças foram e são, a malária, a febre amarela, a esquistossomose, as leishmanioses, as filarioses, a peste, a doença de Chagas, além do tracoma, da bouba, do bócio endêmico e de algumas helmintíases intestinais, principalmente a ancilostomíase. Essas doenças, predominantemente rurais, constituíram a preocupação central da saúde pública brasileira por quase um século, até que diversos fatores, notadamente a urbanização, desfizeram as razões de sua existência enquanto corpo homogêneo de preocupação (SILVA, Luiz Jacintho. O controle das endemias no Brasil e sua história. In: Ciência & Cultura, São Paulo, v. 55, n. 1, p. 44-7, jan./fev. 2003). A endemia se caracteriza quando uma doença em uma determinada região apresenta número de casos significativos, frequentes e recorrentes, de duração contínua. O site da Prefeitura de Campinas reconhece que Campinas e região são áreas endêmicas para febre maculosa. 3 Dados extraídos do SINAN e SUSVS. 4 Vide Portaria n. 1061/2020, Ministério da Saúde. Disponível aqui. 5 A Portaria n. 1.378/2013, Ministério da Saúde, regulamenta as responsabilidades e define as diretrizes para execução e financiamento das ações de Vigilância em Saúde pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, relativos ao Sistema Nacional de Vigilância em Saúde e Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (Disponível aqui).  6 Informações do Ministério da Saúde. Disponível aqui. 7 Apenas 6% dos casos suspeitos são confirmados por exames laboratoriais. "Há uma tendência de aumento anual do número de casos confirmados de FM quando analisada a série histórica, já apontada por alguns autores, o que está mais relacionado ao aumento da sensibilidade da vigilância e à utilização de técnicas de diagnóstico10, inclusive em investigações post-mortem, do que propriamente a mudanças do perfil epidemiológico da doença na área de estudo" (RODRIGUES, Cláudio Manuel; GEISE, Lena; GAZETA, Gilberto Salles; OLIVEIRA, Stefan Vilges. Estudo descritivo de casos notificados de febre maculosa em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais entre 2007 e 2016.In: Cadernos de Saúde Coletiva, 2023; 31(2), p. 1-10). 8 Testes laboratoriais para diagnóstico específico (padrão-ouro), segundo o Ministério da Saúde: "reação de imunofluorescência indireta (RIFI): detectam presença de anticorpos contra a bactéria, a partir de coleta de sangue; exame de Imunohistoquímica: detecta a bactéria em amostras de tecidos obtidas a partir de biópsia de lesões de pele; técnicas de biologia molecular - reação em cadeia da polimerase (PCR): realizada a partir de amostras de sangue, tecido de biópsia. Detecta o material genético da bactéria; isolamento da bactéria: O isolamento da bactéria é feito a partir do sangue (coágulo) ou de fragmentos de tecidos (pele e pulmão obtidos por biópsia) ou de órgãos (pulmão, baço, fígado obtidos por necrópsia), além do carrapato retirado do paciente. A bactéria irá crescer em um meio de cultura" (Disponível aqui). 9 Vale ressaltar a excelente dissertação de mestrado defendida por Roberto Altheim, em 2006, perante o PPGD da Universidade Federal do Paraná, que entende ter havido, neste caso, a atribuição de um risco (talvez por um critério econômico) a um dano que foi considerado injusto (a dissertação está disponível aqui) 10 Disponível aqui. 11 "De acordo com a [Fazenda] Santa Margarida, o plano foi desenvolvido com a colaboração de pesquisadores e especialistas em controle de doenças transmitidas por carrapatos e abrange seis aspectos principais: avaliação da situação - monitoramento constante do carrapato-estrela e identificação de possíveis áreas de risco na fazenda; equipe responsável - definição de um grupo com profissionais de manutenção e controle de pragas para dar andamento à estratégia; medidas de prevenção - manutenção adequada do terreno, criação de barreiras físicas e investimentos em sinalização e orientações; serviços contratados - contratação de especialistas no combate ao carrapato; autoridades e colaboração - colaboração constante com as autoridades de saúde locais; monitoramento e revisão - cumprimento do cronograma e avaliações das medidas" (Disponível aqui). 12 Disponível aqui.
Na terça-feira, dia 20/6/2023, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgará o recurso de Regina Merlino Dias de Almeida e Angela Mendes de Almeida, que, na condição de irmã e companheira do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, pedem reparação por danos morais contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsável por comandar os atos de tortura que levaram à morte de Merlino durante a ditadura militar. Este caso coloca no centro da discussão o papel da responsabilidade civil na garantia do direito à verdade sobre as graves violações de direitos humanos ocorridas no período da ditadura. A responsabilização criminal, já dificultada pela decisão do STF de 2010 de que atos de tortura estariam incluídos entre os beneficiados pela lei de anistia1, torna-se impossível com a morte dos torturadores. Já a ação de responsabilidade civil persiste contra o espólio, quando o réu falece durante o processo. Ustra morreu aos 83 anos, em 2015, sem ter sido judicialmente responsabilizado pela morte de Merlino. A ação que o STJ julgará na terça-feira 20.06 decidirá, portanto, de modo definitivo, sobre a possibilidade de imputar a Ustra seus atos e com isso impedir que a história de Merlino seja contada sem nunca termos a condenação judicial de quem o torturou e matou. Merlino desde os 17 anos de idade trabalhou com jornalismo. Foi preso na casa da sua mãe em Santos e levado ao DOI-CODI de São Paulo, onde de acordo com testemunhas foi submetido a cerca de 24 horas de tortura, e Ustra esteve presente. Muito machucado, com feridas graves nas pernas que gangrenaram, Merlino foi privado de cuidados médicos, até ser retirado do DOI-CODI desfalecido, e ser provavelmente conduzido ao Hospital do Exército. Ainda segundo testemunhas, funcionários do hospital telefonaram para Ustra, pedindo o contato de familiares que pudessem autorizar a amputação de suas pernas, mas decidiu-se por deixá-lo morrer. Documentos da ditadura reproduziram uma versão falsa sobre a causa da morte, de que esta teria decorrido de atropelamento. Merlino morreu aos 23 anos de idade em julho de 1971. Ao saber da morte, familiares dirigiram-se ao IML, onde foram informados de que o corpo de Merlino não estaria no local. Foi só graças a  seu cunhado, que era delegado de polícia e conseguiu ingressar no local e localizar o corpo, que se evitou que Merlino se tornasse mais um desaparecido político.2 Diante de requerimento feito pela família, em 1996, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte de Merlino.3 O relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, registra em seu capítulo sobre autoria que Ustra comandou o DOI-CODI de São Paulo entre setembro de 1970 e janeiro de 1974 - portanto estava no comando do DOI-CODI quando Merlino foi submetido à tortura que provocou sua morte -, e que nesse período aconteceram ao menos 45 mortes e desaparecimentos forçados por ação de agentes ligados a esse órgão.4 No trecho em que trata da morte de Merlino em seu volume 3, o relatório da CNV apresenta os testemunhos de Leane de Almeida e Eleonora Menicucci, que, torturadas no mesmo dia, confirmam que Ustra estava presente na sessão de tortura de Merlino. Apresenta ainda o testemunho de Ivan Seixas, que estava preso ao lado de onde Merlino foi torturado, e viu Ustra comandar a retirada de Merlino da sala e a limpeza do local, bem como o testemunho de Otacílio Cecchini, que viu um militar informar sobre o telefonema do hospital dirigido a Ustra, a respeito da necessidade de autorização para amputação. Ainda, transcreve o depoimento de Joel Rufino dos Santos, segundo o qual um torturador lhe contou que, depois da ligação do Hospital do Exército, Ustra fez uma votação entre os agentes do DOI-CODI "E venceu a ideia de deixar morrer".5  Em busca do reconhecimento em âmbito judicial da responsabilidade de Ustra, as familiares de Merlino moveram primeiro uma ação declaratória, que foi extinta pelo  Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) em 2008, sob a justificativa de inadequação do meio processual.6 Outra ação declaratória contra Ustra - da família Teles - foi depois julgada procedente pelo mesmo TJSP, em decisão confirmada pelo STJ.7 Diante da extinção da ação declaratória pelo TJSP, as familiares de Merlino propuseram a ação de reparação por danos morais. Em 2012, a ação foi julgada procedente em primeira instância. De acordo com a sentença, "a prova oral deu integral respaldo ao relato feito constante da inicial", em especial no que diz respeito ao comando e participação de Ustra na tortura e à decisão de não amputação diante do questionamento proveniente do hospital.  No entanto, em julgamento de 2018, o TJSP decidiu que o pedido de indenização das vítimas estaria prescrito8. A decisão se baseia, entre outros fundamentos, no argumento de que ao caso seria aplicável o prazo prescricional de 20 anos previsto na lei civil vigente à época dos fatos, cujo termo inicial seria a promulgação dos Atos e Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), e que a imprescritibilidade prevista no texto constitucional seria aplicável apenas aos crimes de racismo e à ação de grupos armados civis ou militares. O objeto central do recurso que será julgado pelo STJ, portanto, é a prescrição de ações de responsabilidade civil relativas a crimes praticados por agentes da ditadura,  tema já enfrentado diversas vezes pela Corte. Desde 2009, o STJ tem decidido de forma reiterada pela imprescritibilidade das ações civis que visam reparar violações a direitos humanos e fundamentais da pessoa humana. Naquele ano, em sede de Embargos de Divergência destinados a pacificar a questão, a Primeira Seção decidiu pela imprescritibilidade da pretensão de reparação por danos morais e materiais. Nas palavras da relatora, Ministra Eliana Calmon, "reconhecer como imprescritível o pedido de indenização por danos, sejam morais ou materiais, decorrentes dos atos de tortura arbitrariamente ministrados por agentes do regime ditatorial brasiliero, é uma das formas de dar efetividade à missão de um Estado Democrático de Direito, assegurando proteção e, sobretudo, reparação à dignidade do ser humano".9 A questão já foi tratada também pela Segunda Seção do STJ, especificamente pela 3a. Turma, na decisão do Resp n. 1434498/2014, a respeito do caso da família Teles. Embora naquele caso se tratasse de ação meramente declaratória de responsabilidade civil, e não de ação condenatória como a que será decidida pela Quarta Turma na próxima semana, o acórdão consignou expressamente adesão à jurisprudência fixada pela Primeira Seção: "Conforme a jurisprudência do STJ, mesmo as pretensões reparatórias por violações a direitos humanos, como as decorrentes de tortura, não se revelam prescritíveis. Com maior razão, é imprescritível a pretensão meramente declaratória nesses casos". Nos anos seguintes, o STJ manteve este entendimento, o qual já era, portanto, predominante à época em que o TJSP julgou pela prescrição da pretensão indenizatória de Regina e Angela10. Em 2021, o tema foi consolidado com a edição da Súmula 647: "são imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar". Dos precedentes que amparam a Súmula, especialmente dos Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 845.228-RJ/201011, é possível extrair os seguintes fundamentos jurídicos justificadores da imprescribilidade: i) a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, o que encontra amparo no art. 8, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; ii) a morte e a tortura são atentados à dignididade humana, de modo que a proteção desse valor pela Constituição deve perdurar enquanto subsistir a República Federativa; iii) a Lei 9.140/95 não estabeleceu prazo prescricional para propositura de ações indenizatórias relacionadas às mortes e aos desparecimentos forçados de pessoas que participaram ou foram acusadas de participar de atividades políticas durante o regime militar. O teor da Súmula 647 encontra respaldo na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) - a cuja jurisdição o Brasil se submete desde 1998. Há mais de 20 anos, a Corte tem o entendimento de que os Estados têm a obrigação internacional de investigar, instaurar processos de responsabilização e, se for o caso, punir violações graves de direitos humanos, e que prazos prescricionais e leis de anistia não podem servir de impedimento para que isso aconteça12. No caso do Brasil, tal entendimento deu base para as sentenças da CorteIDH nos casos Gomes Lund e outros (2010)13 e Vladmir Herzog (2018)14. No caso Órdenes Guerras vs. Chile (2018)15, a Corte IDH afirmou explicitamente que a imprescritibilidade, já reconhecida diversas vezes em sua jurisprudência com referência a processos criminais, se aplica também às ações civis de reparação. Os fundamentos  da decisão do TJSP estão, portanto,  à margem da jurisprudência da CorteIDH e da jurisprudência sumulada do STJ sobre a matéria. O julgamento do recurso contra esta decisão do TJ paulista é  uma oportunidade de o STJ reconhecer - mais uma vez - o comando das práticas de tortura por Ustra e reafirmar a tese da imprescritibilidade da responsabilização civil pela prática de tortura por agentes de Estado. A jurisprudência dominante do STJ é resultado de uma soma de julgados históricos sobre responsabilidade estatal, que, com sua firmeza, são o que há de mais correto e alinhado aos parâmetros de direitos humanos no tratamento dos horrores da ditadura pela justiça brasileira. Essas decisões têm como cerne o debate sobre a natureza do bem jurídico lesado (dignidade da pessoa humana) e a gravidade das violações (tortura enquanto violação extrema aos direitos fundamentais). Tal racional se aplica integralmente à reparação direcionada ao agente estatal que pratica ou comanda atos de tortura, sem qualquer distinção. Não se pode esquecer também da missão constitucional do STJ, de unificar a interpretação de lei federal. Assim, na linha do que prevê o art. 926 do Código de Processo Civil - "os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente" -, é injustificável a dissonância do TJSP em relação à jurisprudência do STJ sobre o tema, a qual resultou de um amplo e longevo histórico de julgamentos que certamente estão dentre os mais importantes já proferidos em toda a história da Corte Superior. Em pleno 2023, chega a ser uma violação em si a discussão sobre a possibilidade ou não de reparação às vítimas da ditadura militar, pois significa ignorar o direito das vítimas de serem vistas e escutadas pelo sistema de justiça em busca do mínimo de reconhecimento pela sua dor e sofrimento. De fazer prevalecer a verdade, que mesmo após tantos anos continua sendo rediscutida e relativizada. De se reafirmar que a tortura é inaceitável e quem a pratica deve ser responsabilizado. Como é amplamente reconhecido mundo afora, o debate sobre a reparação de vítimas de violência de Estado e de tortura é parte de um processo de transição democrática, e essa pretensão não pode simplesmente perecer. Nos casos das violações mais graves de direitos humanos, cuja prática e cujo esquecimento são organizados pelo Estado, a aplicação dos prazos ordinários para a propositura de ações judiciais obstaculiza a responsabilização e a reparação e favorece a repetição das violações. Assim, a escolha pela prescrição é perversa e desconsidera que as vidas de muitas famílias, especialmente de muitas mulheres, foram dedicadas a lutar por respostas. Como lembra a sobrinha de Luiz Eduardo Merlino, Tatiana: "Dizer que a gente esperou 20 anos para entrar com a ação é muito cruel. Foram 47 anos de muita luta. E eu sinto muito minha avó ter morrido sem ter visto justiça"16. Esperamos que o STJ não repita o erro do TJSP e honre sua jurisprudência e a luta da família Merlino, que também é nossa, por memória, verdade, justiça e reparação de todas as vítimas da violência estatal. __________ 1 STF. ADPF n. 153/DF, Rel. Min Eros Grau, j. 29.04.2010.   2 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório: mortos e desaparecidos políticos. Brasília: CNV, 2014, pp. 650 e ss.   3 BRASIL. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Requerimento n. 0209/96, 23/04/1996, fls. 56. O reconhecimento da responsabilidade do Estado pela morte de Merlino foi publicado no Diário Oficial da União em 25/04/1996.   4 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório, v 1. Brasília: CNV, 2014, p. 859.   5 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório: mortos e desaparecidos políticos. Brasília: CNV, 2014, pp. 650 e ss.   6 TJSP. Ag n. 568.587.4/5-00, Rel. Desemb. Luiz Antonio de Godoi, j. 23.09.2008.   7 TJSP. AC n. 0347718-08.2009.8.26.0000 (994.09.347718-5), Rel. Desemb. ?Rui Cascaldi, j. 14.08.2012.). A decisão foi confirmada pelo  STJ em 2014, ocasião em que o tribunal estabeleceu pela primeira vez a responsabilidade de Ustra - um agente estatal da ditadura brasileira - pela prática de tortura, reconhecendo que cada vítima tem o direito de acionar o Judiciário para "buscar a plena apuração dos fatos, com a declaração da existência de tortura e da responsabilidade daqueles que a perpetraram" (STJ. REsp 1.434.498/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 09.12.2014).   8 TJSP. AC n. 0175507-20.2010.8.26.0100, Rel. Desemb. Salles Rossi, j. 17.10.2018.   9 STJ.EREsp 816.209-RJ, Rel. Min.Eliana Calmon, j. 28.10.2009.   10 Até 2018, já havia no STJ outras  decisões que reafirmaram a imprescritibilidade do pedido de indenização por danos decorrentes de atos de tortura durante o período ditatorial. STJ, EREsp 845.228-RJ, Rel.Min. Humberto Martins, j. 08.09.2010. STJ. AgRg no REsp 1.392.941-RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 26.11.2013.STJ, ??AgInt no REsp 1.590.332-RS, Rel. Min.Sérgio Kukina, j. 21.06.2016. STJ. AgInt no AREsp 711.976-RJ, Rel. Min. Gurgel de Faria, j. 03.05.2018. STJ. AgInt no REsp 1.710.240-RS, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 05.06.2018. STJ. AgRg nos EDcl no REsp 1.328.303-PR, Rel. Min. Assusete Magalhães, j. 21.06.2018.   11 STJ, EREsp 845.228-RJ, Rel.Min. Humberto Martins, j. 08.09.2010.   12 Corte IDH. Caso Barrios Altos vs. Peru. Mérito. Sentença de 14 de Março de 2001. Série C No. 89.   13 Corte IDH. Gomes Lund e outros ("Guerrilha do Araguaia") vs. Brasil. Exceções Preliminares. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 24 de novembro de 2010, Série C No. 219.   14 Corte IDH. Caso Herzog e outros vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de março de 2018. Série C No. 353.   15 Corte IDH. Caso Órdenes Guerra e outros vs. Chile. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 29 de novembro de 2018. Série C No. 372.   16 DIP, Andrea. A ditadura julgada às vésperas das eleições. Agência Pública, São Paulo, 25 de outubro de 2018.Disponível aqui. Acesso em: 18.jun.2023.
Na contemporaneidade, houve verdadeira implosão dos pressupostos e requisitos tradicionais da responsabilidade civil em geral. Surgiram, então, os pressupostos específicos de cada classe de responsabilidade civil: da responsabilidade por culpa ou subjetiva, da responsabilidade sem culpa ou objetiva, da responsabilidade transubjetiva (por fato de coisa, de animal ou de outra pessoa), da responsabilidade por fato ou atividade lícita, da responsabilidade preventiva, da responsabilidade sem danos efetivos, da responsabilidade por ilícito lucrativo. Novos conceitos foram difundidos para conformação da responsabilidade civil: danos extrapatrimoniais, prevenção, precaução, atividade, risco, reparação punitiva, primazia da vítima, proteção, preservação, consolação ou satisfação da vítima para além da reparação. Se a culpa, a antijuridicidade, o dano efetivo, o nexo de causalidade e a reparação, qualificados como requisitos tradicionais da responsabilidade subjetiva, não constituem pressupostos abrangentes de todas as classes de responsabilidade civil, o que há de comum, ou seja, o que se encontra presente em todas elas? Por exemplo: na responsabilidade objetiva não há culpa; na responsabilidade por atividade lícita não há ilicitude ou contrariedade a direito; na responsabilidade preventiva não há dano (não ocorreu ou pode não ocorrer) nem reparação; na responsabilidade transubjetiva não há nexo de causalidade entre dano e comportamento de quem efetivamente o originou (a culpa presumida já não é explicação adequada). Não são mais comuns a licitude ou ilicitude do fato ou ato gerador, a existência ou não de dano real, a possibilidade ou não de reparação, a equivalência da reparação em razão da extensão do dano, o nexo causal entre determinado comportamento e o dano, a culpa do agente. A multiplicidade das espécies de responsabilidade civil e das próprias classes ante a crescente complexidade da vida desafiam a busca de pressupostos comuns entre elas. Esse quadro, aparentemente inseguro, abre amplas possibilidades para a reconfiguração da responsabilidade no direito privado que abranja tanto as obrigações decorrentes de fatos passados (consequências negativas ou repressivas), principalmente quando geradores de danos, quanto as obrigações de fazer em virtude de situações e posições jurídicas (consequências positivas ou promocionais), sem a camisa de força dos requisitos tradicionais da responsabilidade subjetiva. A afirmação dos direitos fundamentais, notadamente no mundo ocidental, duramente conquistada contra os despotismos de todos os matizes, de certa forma obliterou a compreensão dos consequentes deveres fundamentais, onde se insere a noção alargada de responsabilidade de cada pessoa humana. O predomínio exclusivo dos direitos fundamentais oponíveis ao Estado ou das liberdades públicas, de caráter negativo, apenas faz sentido em uma visão de mundo individualista e antropocêntrica, na qual o Estado, a sociedade e a natureza são apenas tolerados quando favorecem a realização individual. Os deveres fundamentais são necessariamente transindividuais, pois têm como destinatários a outra pessoa humana, a coletividade e os meios de vida digna das atuais e futuras gerações, implicando fins e futuridade. A reciprocidade é a tônica dos deveres fundamentais, pois cada pessoa humana é responsável pela outra, e ela é também responsabilidade das outras. Quando o art. 931 do Código Civil estabelece a responsabilidade das empresas pelos danos que o produto causou, dispensa o requisito da contrariedade a direito e concentra-se no dano em si, que deve ser reparado. A atividade empresarial é lícita, mas basta o fato de pôr em circulação os produtos - licitamente produzidos - para responsabilizar-se pelos danos decorrentes. Antes, justamente pela ausência de contrariedade a direito, a lei não admitia a reparação desse dano, que se entendia inserido nos riscos da vida social, ou o preço a pagar pelo progresso econômico. Consequentemente, há danos reparáveis que não dependem de contrariedade a direito ou de ilicitude. O dano causado por fato lícito é reparável, mas não é ilícito, o que também torna dispensável o pressuposto de nexo de causalidade da responsabilidade civil. O dano pode existir, mas o direito pré-excluir a ilicitude. O direito até admite que haja reparação do dano em alguns desses casos, mas não em virtude da ilicitude do ato causador. O dono de imóvel encravado em outro tem direito a servidão de passagem, mas há de indenizar o dono do imóvel serviente para que possa exercê-lo; o proprietário de imóvel tem direito a entrar no imóvel vizinho quando houver necessidade de reparos, limpeza, construção, mas assume a responsabilidade de indenizar os danos que provocar, ainda que sem culpa sua. Nesses casos, o dano não deriva de ato ilícito, e o dever de reparar independe de contrariedade a direito ou de existência de culpa, somente podendo ser excluído se houver culpa exclusiva da vítima, ou de terceiro, ou caso fortuito ou força maior. Pontes de Miranda já aludia a hipóteses excepcionais nas quais o direito dispensaria a ocorrência do dano: a) a cobrança de dívida ainda não vencida; b) a cobrança de dívida já paga. Em sendo assim, o dano não poderia constituir pressuposto da responsabilidade civil em geral, porque o pressuposto não admite exceção. Quanto ao nexo de causalidade, nunca é demais lembrar que a responsabilidade civil subjetiva, em sua origem, não o contemplava, bastando a prova da culpa do ofensor e do dano. Não há consenso doutrinário sobre o tipo de causalidade que o direito brasileiro deve adotar (direta, ou adequada, ou eficiente, ou necessária) prevalecendo a causalidade direta ou do dano direto e imediato, em razão do art. 403 do Código Civil. O STF (RE 130.764), aplicando norma do Código Civil anterior, idêntica à do atual art. 403, afirmou que em nosso sistema jurídico "a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal", aplicando-se também à responsabilidade extranegocial, "inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das [demais]". A relativização do nexo de causalidade tem esbarrado em afirmações categóricas de sua imprescindibilidade, contrariando a evolução do direito brasileiro. Como exemplo, o STJ, para negar a responsabilidade civil de shopping center por tiros desferidos por uma pessoa em cinema nele instalado, fundamentou-se na ausência de nexo de causalidade (REsp 1.164.889). Contudo, o nexo de causalidade deve ser afastado ou expandido quando houver solidariedade passiva dos fornecedores de serviços e o dever jurídico de proteção de terceiros, como no caso. No plano filosófico é comum a relativização da causalidade e até mesmo sua negação. Por exemplo, Nietzsche, em A Gaia Ciência, afirma que a dualidade causa e efeito "não existe provavelmente jamais - na verdade temos diante de nós um continuum do qual isolamos algumas partes", na mesma linha que vem do pré-socrático Heráclito. Ocorre muito mais um processo, as causas sendo causadas por outras e os efeitos sendo causas seguintes. A vida é um fluxo eterno. A causalidade apenas existiria na linguagem, no pensamento. Por seu turno, a imputabilidade, na evolução do direito, desligou-se da culpa e da causa da responsabilidade pelo ilícito civil. A imputabilidade contemporânea diz respeito à atribuição da responsabilidade pelo dano, independentemente de ter havido culpa ou até mesmo participação no evento (exemplo, empregador pelo fato danoso do empregado). É simplesmente imputação de responsabilidade patrimonial extranegocial. Deslocou-se da causa do dano para os efeitos do dano, máxime com o crescimento das hipóteses de responsabilidade que têm na origem atos e atividades lícitas. Assim, a imputabilidade não mais está relacionada à capacidade delitual do agente, ou capacidade para praticar ilícito, salvo para os atos ilícitos referidos no art. 186 do Código Civil. O ato cometido pelo menor absolutamente incapaz, contrário a direito, é ilícito civil, ainda que ele pessoalmente seja inimputável; a imputabilidade é objetivamente trasladada para seus pais, que não participaram ou mesmo não sabiam do evento. Tende-se para a extensão da imputação da responsabilidade, para além do fato gerador do dano, como ocorre com o direito do consumidor, que alcança todos os que, direta ou indiretamente, participaram do fornecimento do produto ou do serviço no mercado de consumo, não bastando a relação jurídica imediata, recorrendo-se à solidariedade passiva de todos. O mesmo ocorre com relação às pessoas e entidades referidas no art. 932 do Código Civil. A reparação compensatória adquiriu autonomia própria, com a tutela dos danos extrapatrimoniais. A própria função reparatória da responsabilidade civil não é mais suficiente para abranger todas as suas dimensões contemporâneas. Exemplo é a incorporação do ilícito lucrativo entre as espécies de responsabilidade civil, como os estudos de Nelson Rosenvald apontam. A quase exclusividade da indenização ou reparação pecuniária cedeu também sua primazia para modalidades de sanção ou pena civil, nas obrigações de fazer e de não fazer: a legislação processual estabelece que a obrigação somente se converta em perdas e danos se for impossível a tutela específica ou a obtenção de resultado prático correspondente ao adimplemento, ou se interessar ao autor, e sem prejuízo da multa (CPC, art. 489). O juiz pode determinar a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva. Essas medidas produzem mais satisfação pessoal e social que a simples reparação em dinheiro. Atualmente, retoma-se com força a ideia de conjugação de reparação e de pena, na responsabilidade civil (principalmente em situações de danos extrapatrimoniais), enquanto no ilícito criminal cada vez mais assiste-se a substituição da pena de prisão por "penas alternativas", de natureza civil, como obrigações de fazer ou obrigações de dar. Sem o acréscimo da pena civil, a sociedade e outras pessoas ficam vulneráveis a novas violações dos direitos da personalidade, quando o valor econômico suplanta o valor jurídico, na apreciação de custo e benefício. Mas, nenhuma pena civil pode ser considerada sem previsão legal. Neste ponto, a responsabilidade civil atual retoma a diretriz fundamental da pena criminal, como requisito do estado de direito: nulla poena sine lege. Há muito mais espécies e classes de responsabilidade civil de que nossa vã teoria é capaz de unificá-las a partir dos requisitos tradicionais. Comuns são os pressupostos de cada classe em relação às suas espécies. Apesar dessa constatação, haveria ao menos um pressuposto comum a todas elas? Assumindo-se a complexidade irredutível da vida contemporânea, podemos afirmar que sim: a imputação legal da responsabilidade a alguém de obrigação pecuniária ou não, em face de determinado fato jurídico lícito ou ilícito.
Introdução A interpretação do artigo 246 da lei 6.404/1976 ("Lei das S.A.") tem sido objeto de intensos debates desde que o Superior Tribunal de Justiça ("STJ") decidiu, no âmbito do Conflito de Competência nº 185702/DF1, que o ajuizamento, pela própria companhia, de ação de responsabilidade civil contra o acionista controlador causa a perda de objeto da ação de responsabilidade civil ajuizada anteriormente pelo acionista minoritário. Segundo o artigo 246 da Lei das S.A., acionistas que representem 5% ou mais do capital social - ou que prestem caução das custas e honorários de advogado, caso detenham uma porcentagem menor - podem propor, em nome da companhia, ação de responsabilidade civil contra o acionista controlador por danos causados por abuso de poder de controle. A decisão do STJ determinou que, caso a companhia decida, por deliberação de sua Assembleia Geral, ajuizar a ação diretamente, a ação anteriormente ajuizada por acionistas minoritários perde o objeto. Na esteira da discussão, Nelson Eizirik publicou artigo2 em que sustentou, essencialmente, que a legitimidade de acionistas para o ajuizamento de ação de responsabilidade civil contra o acionista controlador da companhia, nos termos do artigo 246 da Lei das S.A., depende da demonstração de prejuízo indireto. Ambos os entendimentos parecem advir de uma má compreensão do espírito do artigo 246 da Lei das S.A. Conjugando-os, chegar-se-ia às seguintes conclusões: (i) somente os acionistas que detinham ações à época do ilícito podem ajuizar a ação de responsabilidade civil contra o acionista controlador da companhia; e (ii) caso a Assembleia Geral aprove o ajuizamento da ação, a eventual propositura da ação pela companhia causa a perda de objeto de demanda em curso proposta por acionistas minoritários. As duas conclusões são incorretas e incompatíveis com a regra disposta no artigo 246 da Lei das S.A., pelas razões que se passa a expor. Desnecessidade de demonstração de dano indireto pelo acionista Quanto à necessidade de demonstração de prejuízo indireto pelo acionista minoritário para fins de comprovação de sua legitimidade, tal requisito não existe por dois motivos. O primeiro motivo é que o prejuízo indireto não é indenizável no direito brasileiro (art. 403 da lei 10.406/2002) e, portanto, não pode ser utilizado como requisito de legitimidade ativa. A legitimidade depende da relação entre o resultado da demanda e a esfera de direitos da pessoa3, de modo que a existência de dano indireto - que não é indenizável - não pode ser utilizada como requisito para sua aferição. O segundo motivo é que a ação do artigo 246 da Lei das S.A., muito embora seja proposta por acionistas, tem como objetivo, necessariamente, o ressarcimento de prejuízos sofridos pela companhia como decorrência do abuso do poder de controle4. A legitimidade do acionista nesse caso é extraordinária, resultante de substituição processual5. Se a ação busca o ressarcimento de danos sofridos pela companhia, não há que se falar em demonstração de dano indireto pelo acionista para que seja comprovada a sua legitimidade extraordinária. Eventual exigência de demonstração de dano indireto, além de descabida, representaria um ônus excessivo e desnecessário às ações de indenização contra o acionista controlador, criando custos e ineficiência ao funcionamento do mercado6. Além disso, caso se admitisse a necessidade de verificação de dano indireto do acionista para fins de demonstração de sua legitimidade, criar-se-ia situações que a Lei das S.A. nem mesmo previu. Por exemplo, como seria tratado o caso do acionista que possuía ações à época do ilícito, alienou-as no mercado e voltou a adquirir participação posteriormente? No critério proposto por Nelson Eizirik, esse acionista hipotético teria legitimidade, por ter sofrido um "dano indireto" com as ações que foram posteriormente vendidas? Ou o acionista não teria legitimidade, em função de o seu "dano indireto" estar vinculado a ações que foram alienadas? A Lei das S.A. não oferece resposta a esses questionamentos, pois não é essa a lógica e a racionalidade da ação de responsabilidade prevista no artigo 246 da Lei das S.A. Em defesa de sua regra, Eizirik afirma que a demonstração do dano indireto pelo acionista seria necessária para evitar a proliferação de "strike suits", que, segundo o autor, foram muito adotadas nos Estados Unidos. No entanto, sabe-se que o sistema de responsabilização societária nos Estados Unidos tem as suas próprias peculiaridades7, as quais impedem uma comparação direta com as ações de responsabilidade societária brasileiras. Fora isso, embora o artigo 246 da Lei das S.A. encontre-se em vigor com a mesma redação há várias décadas, desde 1976, não se conhece qualquer estudo que demonstre haver uma proliferação de ações contra acionistas controladores. Muito pelo contrário: o problema geralmente apontado pelos estudos da área é de baixa efetividade dos mecanismos de responsabilização de administradores e acionistas controladores8. O argumento dos "strike suits", portanto, é falacioso. E, ainda que esse risco de fato existisse, a possibilidade de pagamento de honorários sucumbenciais, que se impõe ao próprio acionista no caso de insucesso da demanda9, seria um fator inibidor das demandas frívolas. Perda de legitimidade do acionista por decisão superveniente da Assembleia Geral Quanto à perda de legitimidade pelo acionista no caso de aprovação de ajuizamento da ação pela própria companhia pela Assembleia Geral, nos termos da decisão do STJ no Conflito de Competência nº 185702/DF, parece haver um erro de premissa que contamina a conclusão. A premissa incorreta é a de que o legislador foi silente ao dispor sobre a questão da legitimidade da companhia no artigo 246 da Lei das S.A., o que autorizaria a analogia como o artigo 159 da mesma lei10. O artigo 159 da Lei das S.A. prevê a ação de responsabilidade contra administradores da companhia e estabelece uma complexa sistemática que comporta a existência de legitimidade primária da companhia e legitimidade derivada (extraordinária) dos acionistas. A legitimidade primária da companhia nasce na hipótese de aprovação, pela Assembleia Geral, do ajuizamento de ação de responsabilidade contra o administrador (artigo 159, caput, da Lei das S.A.). A legitimidade derivada do acionista se configura em duas hipóteses: (i) caso a companhia deixe de ajuizar a ação no prazo de 3 (três) meses da deliberação da Assembleia Geral, cabendo legitimidade, nessa hipótese, a qualquer acionista (artigo 159, § 3º, da Lei das S.A.); ou (ii) caso a Assembleia Geral delibere por não ajuizar a ação de responsabilidade, hipótese na qual os acionistas que representem ao menos 5% (cinco por cento) do capital social poderão ajuizá-la em nome da companhia (artigo 159, § 4º, da Lei das S.A.). A doutrina em geral qualifica a ação de responsabilidade pela companhia como ut universi e a ação proposta pelos acionistas como ut singuli, havendo substituição processual derivada no caso da aquisição de legitimidade pela omissão da companhia e substituição processual originária no caso da aquisição de legitimidade por reprovação do ajuizamento da ação pela Assembleia Geral11. Percebe-se que toda a sistemática da ação de responsabilidade civil disposta no artigo 159 da Lei das S.A. tem início em uma decisão assemblear. A Assembleia Geral deve, necessariamente, deliberar previamente sobre o ajuizamento da ação. No caso da ação prevista no artigo 246, no entanto, não há qualquer previsão de uma decisão da Assembleia Geral. Não se trata, contudo, de uma lacuna a ser preenchida com analogia ao artigo 159, mas sim de um silêncio eloquente12. Na sistemática da ação de responsabilidade civil contra o controlador, o legislador quis afastar a legitimidade originária da companhia, privilegiando a substituição processual originária pelo acionista. E o fez por um motivo muito simples: a companhia lesada é controlada, justamente, pela parte que lhe causou dano. Caso se admita que a companhia possa ajuizar a ação de responsabilidade diretamente, a condução da demanda e toda a estratégia processual será definida por administradores eleitos pelo réu da ação, isto é, o acionista controlador. Por esse motivo, na lógica do artigo 246 da Lei das S.A., "a ação cabe aos acionistas da sociedade prejudicada, em qualquer caso"13. Cumpre reproduzir a análise de Modesto Carvalhosa sobre a legitimidade ativa na ação de responsabilidade contra o acionista controlador14: A legitimidade dos minoritários é nata e originária. Assim, transformam-se os minoritários em órgão da sociedade para o específico fim de ingressar em juízo contra a controladora. E, assim prescrevendo a lei, configura-se ação social ut universi, na medida em que a controlada faz valer o seu direito à reparação civil junto à controladora, ingressando ela mesma em juízo, através do órgão especial criado para tal fim: os minoritários. A legitimação dos minoritários independe de prévia autorização de qualquer outro órgão da companhia. Os minoritários, portanto, corporificam a vontade da controlada em juízo, representando-a organicamente. [...] Temos, assim, que a legitimidade, para a propositura da ação de reparação de perdas e danos, é exclusivamente dos acionistas minoritários, em grupo, ou mesmo individualmente, mediante prestação de garantia. Nota-se, assim, que a deliberação superveniente da Assembleia Geral aprovando o ajuizamento da ação de responsabilidade contra o acionista controlador pela própria companhia não tem o efeito de causar a perda de objeto da ação proposta pelo acionista minoritário, pois o legislador pretendeu afastar a legitimidade originária da companhia, conferindo-a exclusivamente aos acionistas minoritários, que atuam como seus substitutos processuais. Não se defende, aqui, a posição de Modesto Carvalhosa no sentido de que os acionistas minoritários atuariam, nesse caso, como órgãos da companhia. Até porque, no caso de insucesso da ação, são os acionistas, e não a companhia, que deverão arcar com os custos. Além disso, a legitimidade não cabe apenas aos acionistas minoritários, na medida em que não se vislumbra qualquer óbice à propositura da ação por um novo acionista controlador, no caso de troca de controle. O que há, no artigo 246 da Lei das S.A., é uma substituição processual originária exclusiva, utilizada pelo legislador como instrumento para impedir que o acionista controlador, por via transversa, seja capaz de manipular o resultado da ação que visa à sua responsabilização. Conclusão Os mecanismos de proteção dos acionistas minoritários previstos na Lei das S.A. são insuficientes e frágeis. O acionista controlador, alçado à posição de "dirigente supremo" da companhia15, recebeu poderes demasiadamente amplos, podendo, com poucas restrições, orientar os negócios da companhia da forma que desejar. O cenário de excessivos poderes e poucas restrições é evidentemente desfavorável aos acionistas minoritários, que muitas vezes se sujeitam ao arbítrio do controlador. Um possível sintoma dessa disfuncionalidade da governança estabelecida pela Lei das S.A. é a proliferação, nos últimos anos, de companhias brasileiras que buscam mercados estrangeiros para abrir o seu capital, muito embora continuem a recorrer ao mercado nacional para obter liquidez dos seus títulos por meio de certificados de depósito. Esse fenômeno pode ser explicado pela literatura especializada, que aponta a existência de um "prêmio" para companhias que se sujeitam a ordenamentos com proteções mais robustas aos acionistas minoritários16. Ao fragilizar a ação de responsabilidade civil contra o acionista controlador prevista no artigo 246 da Lei das S.A., aplicando-o de forma contrária aos interesses de acionistas minoritários, os recentes movimentos de reinterpretação do dispositivo podem exacerbar a disfuncionalidade do sistema de governança da companhia brasileira, reduzindo ainda mais a sua atratividade aos olhos dos investidores. __________ 1 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, CC 185702 / DF, Segunda Seção, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 22/06/2022. 2 EIZIRIK, Nelson. Usos e abusos do artigo 246 da Lei das S.As. Disponível aqui. Acesso em 13/04/23. 3 Ela [legitimidade ad causam] depende sempre de uma necessária relação entre o sujeito e a causa e traduz-se na relevância que o resultado desta virá a ter sobre sua esfera de direitos, seja para favorecê-la ou para restringi-la. Sempre que a procedência de uma demanda seja apta a melhorar o patrimônio ou a vida do autor, ele será parte legítima; sempre que ela for apta a atuar sobre a vida ou patrimônio do réu, também esse será parte legítima. Daí conceituar-se essa condição da ação como relação de legítima adequação entre o sujeito e a causa" (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual. 6. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. p. 309). 4 Neste ponto, vale ressaltar o ensinamento do próprio professor Nelson Eizirik: "Trata-se de ação social, uma vez que objetiva a restauração do patrimônio da companhia lesada pela atuação de seu controlador. Verifica-se, nessa hipótese, a substituição processual, pois a ação judicial é proposta pelo acionista, em nome próprio, mas no interesse da sociedade" (EIZIRIK, Nelson. A Lei das S.A. Comentada. São Paulo: Quartier Latin, 2011. v. 3. p. 369. 5 "Trata-se, pois, de legitimação extraordinária autônoma e concorrente, como por excelência o é a resultante da substituição processual (CPC, art. 18), e, mais do que isso, cuida-se de hipótese de legitimação originária, ou primária (adotando-se, para tanto, a tradicional classificação prevalente no estudo dessa matéria)" (ADAMEK, Marcelo Vieira von. A legitimação extraordinária concorrente do acionista para propositura de ação de responsabilidade contra o controlador: modo de lidar com a superveniente iniciativa da companhia. In: FRAZÃO, Ana; CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; CAMPINHO, Sergio. Direito empresarial e suas interfaces: volume II. São Paulo: Quartier Latin, 2022. p. 535). 6 Neste sentido, vide: SETOGUTI, Guilherme. O (inexistente) requisito de propriedade contemporânea no art. 246. Disponível aqui. Acesso em 13/04/23. 7 Vide, neste sentido: MAFRA, Ricardo. A responsabilidade civil da companhia aberta perante investidores por violação do seu dever de informar: análise à luz do funcionamento eficiente do mercado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. p. 328 e seguintes. 8 GORGA, Érica. Culture and Corporate Law Reform: a case study of Brazil. University of Pennsylvania Journal of International Economic Law, Filadélfia, v. 27, p. 803-905, 2000. p. 896-900. 9 A questão dos honorários sucumbenciais foi também ressaltada por Setoguti. SETOGUTI, Guilherme. O (inexistente) requisito de propriedade contemporânea no art. 246. Disponível aqui. Acesso em 13/04/23. 10 Confira-se o seguinte trecho do voto do Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze (páginas 45 e 46): "A lei 6.404/1976 tratou de forma pormenorizada a respeito da responsabilização dos administradores, em seu art. 159, o qual, de acordo com autorizada doutrina e com esteio em julgados desta Corte de Justiça, comporta aplicação extensiva à responsabilização dos controladores (prevista no art. 246), ainda que se possa estabelecer algum temperamento, considerada as suas particularidades e finalidades". 11 ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Responsabilidade civil dos administradores de S/A e as ações correlatas. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 367-373. 12 Nesse sentido, vide o voto do Diretor João Accioly no Processo Administrativo CVM nº 19957.007423/2021-12. 13 LAMY FILHO, Alfredo; BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. A Lei das S/A - pareceres. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. v. 2. p. 213. 14 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas - arts. 243 a 300. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 71. 15 "A formação do bloco de controle modifica de fato - e de modo importante - a estrutura de poder na companhia: o poder político, que cabia aos acionistas durante as reuniões da Assembleia Geral, passa a ser exercido - de modo permanente - pelo acionista controlador; e os administradores ficam subordinados a esse acionista , que exerce - de fato - a função de dirigente supremo, ainda que não ocupe cargo dos órgãos da administração, e pode tomar decisões sobre os negócios da companhia independentemente da reunião da Assembleia Geral porque tem a segurança de que serão formalmente ratificadas pelo órgão social" (LAMY FILHO, Alfredo; BULHÕES PEDREIRA, José Luiz. A Lei das S/A - pressupostos e elaboração. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1995. v. 1. p. 66). 16 COFFEE JR., John C. Law and the market: the impact of enforcement. University of Pennsylvania Law Review, Filadélfia, v. 156, p. 229-311, 2007. p. 233.
O dever de documentação médica. Conteúdo e abrangência A responsabilidade civil do médico baseia-se na correta execução das medidas diagnósticas e terapêuticas, bem como no dever de informar sobre cada procedimento a ser executado. Paralelamente a esses deveres, observa-se o dever do profissional de manter documentado todo o acompanhamento de seu paciente, documentação essa sobre a qual recai o sigilo profissional, que somente pode ser levantado por ordem judicial ou com o consentimento do paciente.1 Assevera-se que os documentos médicos mais importantes são o atestado médico, o prontuário medico, o relatório médico, o laudo médico e o termo de consentimento livre e esclarecido.2 A obrigação de documentação do médico em relação ao paciente caracteriza-se como uma "obrigação terapêutica natural", ou seja, faz parte do próprio tratamento médico, é intrínseco a ele, até mesmo para possibilitar que o seguimento do tratamento se dê de forma segura.3 Ademais, isto não se aplica apenas a um tratamento ulterior pelo mesmo médico, mas é ainda mais importante no caso da sua continuidade por outro profissional, seja por um sucessor livremente escolhido pelo paciente, seja por um especialista ou por um hospital para o qual o médico encaminhou o paciente. Visto sob outro prisma, uma documentação insuficiente pode tornar o tratamento subsequente muito mais difícil. Consequentemente, os resultados de raios-X devem ser registrados para poupar o paciente de um segundo ou vários outros exames de raios-X e seus efeitos maléficos; o registro de reações alérgicas que ocorreram a medicamentos que já foram administrados pode salvar vidas; mais ainda, o curso do tratamento deve ser documentado para registrar quais medidas já foram realizadas e quais foram os resultados alcançados. Seria inútil, demorado e perigoso se um profissional prescrevesse ao paciente antibióticos que já haviam sido prescritos sem sucesso pelo tratamento anterior, se fosse feito um exame já feito sem resultado significativo. Apenas a documentação das medidas diagnósticas e terapêuticas tomadas cria o pré-requisito para o tratamento do paciente por um médico que continua o processo de tratamento.4 Esta responsabilidade do médico não corresponde apenas ao dever contratual de quem assume a responsabilidade de zelar pelos interesses de outrem por meio de um contrato (nesse sentido, o arquiteto, o auditor, o advogado, o administrador também possuem esse dever), mas sobretudo porque aqui vigora o princípio da boa fé objetiva, tendo em conta os interesses envolvidos. Naturalmente, um paciente anestesiado não pode acompanhar o curso de uma operação, mas tem um interesse legítimo em saber o que lhe aconteceu. No caso de doenças graves em particular, o paciente também tem uma necessidade legítima e compreensível de obter uma segunda opinião. Para tanto, é necessário que ele tenha todos os dados anteriormente colhidos, anotados em documentos, para que possam ser verificados por outro médico.5 Em relação ao conteúdo da documentação, deve ela abranger anamnese, diagnóstico e terapia e todas as informações relevantes sobre o curso do tratamento. Num caso de cirurgia, por exemplo, isso também inclui os resultados obtidos, os cuidados de enfermagem, a medicação prescrita, o protocolo anestésico, o método da operação, o curso da operação, o cirurgião, a mudança de cirurgião, os incidentes ocorridos, o estado geral pré-operatório, as precauções tomadas pelo paciente para prevenir determinado ferimento, qualquer desvio dos métodos padrão e processos padrão. Por outro lado, medidas de rotina não estão sujeitas à documentação, a menos que surja uma constatação que necessite ser registrada. Nesse sentido, a desinfecção da pele antes de uma injeção é uma medida de rotina que não requer documentação. O fato de a febre ter sido medida rotineiramente durante a internação não requer documentação se a medição permanecer sem alterações. Se, por outro lado, o paciente tiver febre, a temperatura deve ser documentada.6 Além de se anotar as medidas básicas referentes à anamnese, diagnóstico e terapia, devem ser documentadas todas as características especiais, anormalidades, alterações, desvios ou irregularidades que surjam no decorrer do processo. Ao contrário, questões médicas padrão, cumprimento de rotina e ausência de eventos especiais não precisam ser registradas, pois seria um formalismo desnecessário, irracional e demorado para um médico ter que copiar novamente as diretrizes ou recomendações existentes para cada operação.7 Nesse sentido, o §1º do art. 87 do CEM prescreve que: "O prontuário deve conter os dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido, em cada avaliação, em ordem cronológica com data, hora, assinatura e número do registro do médico no Conselho Regional de Medicina." O conteúdo e a abrangência da documentação médica geralmente são moldados pela prática médica. Ao se deparar com um caso concreto, juízes e tribunais devem, se necessário, obter um parecer médico sobre a questão de saber se os fatos individuais precisam ser documentados do ponto de vista médico. Na prática médica, por exemplo, geralmente é documentado apenas um resultado de exame positivo, enquanto um resultado negativo não é. A este respeito, no entanto, pode ser que seja possível um padrão médico diferente em relação a um determinado caso concreto. Por exemplo, por razões médicas, a pressão arterial da gestante deve ser documentada durante toda a fase de parto, mesmo que a medição resulte em um valor normal.8 No que diz respeito à obrigação de documentação, avaliar quais informações, dados e resultados são importantes para registro médico, apenas o profissional poderá dizê-lo. No entanto, essa necessidade vem sendo paulatinamente moldada pelos operadores do Direito, na medida em que a documentação tem o objetivo de preservar provas. Trata-se de uma questão jurídica fundamental, pois baseando-se nas provas é que juízes e tribunais atribuirão ao médico eventual responsabilidade pelos danos causados ao paciente. Necessidade da documentação para fins de preservação da prova A violação da obrigação de documentação não resulta automaticamente em condenação do médico. Na verdade, o que ocorre é que a omissão da documentação ou uma documentação insuficiente facilita a prova ao paciente no respectivo processo de responsabilidade médica. Se uma medida que requer documentação não foi registrada, há uma presunção em favor do paciente de que essa medida não ocorreu. A falta de documentação tem um forte impacto na prova a favor do paciente, que pode demonstrar, assim, a ocorrência de um erro de tratamento. Ao contrário, a falta de documentação não tem influência sobre o nexo causal a ser comprovado pelo paciente (a menos que o erro de tratamento que se suspeite devido à falta de documentação seja o chamado erro grosseiro de tratamento). No entanto, a presunção de que a medida não documentada não foi tomada pode ser refutada por parte do profissional. Nesse sentido, há inversão do ônus da prova. Se o médico puder provar que a medida não documentada foi realizada de outra forma (por exemplo, depoimento de testemunha ou qualquer outro meio de prova), a falta de documentação é irrelevante.9 Foi nesse sentido que a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve a condenação de um médico por negligência no preenchimento de prontuário de gestante. O caso de deu numa ação indenizatória, cujas instâncias ordinárias condenaram o médico e a clínica pelo fato de o obstetra não ter feito as anotações necessárias das intercorrências e procedimentos adotados na folha de evolução do parto. Tais registros eram de suma importância para monitorar as condições da mãe e do feto. Segundo o relator, Ministro Villas Bôas Cueva, a falta de anotação adequada no prontuário da paciente levou a gestante a sofrer problemas no parto que resultaram em sequelas neurológicas graves e irreversíveis no recém-nascido. Nas palavras do Ministro: "o cuidado e o acompanhamento adequados à gestante - deveres legais do médico - poderiam ter conduzido a resultado diverso, ou, ainda que o dano tivesse de acontecer de qualquer maneira, pelo menos demonstrariam que todas as providências possíveis na medicina foram tomadas - fatos que, registrados no prontuário, teriam auxiliado o profissional em sua defesa."10 Conclusões A documentação médica constitui um importante dever deste profissional no acompanhamento de seus pacientes. Trata-se de dever inerente ao tratamento médico, que se consubstancia em registrar todos os aspectos importantes relacionados ao tratamento. Sua omissão ou deficiência pode constituir importante fator de responsabilidade civil médica, na medida em que facilita a prova do erro médico em favor do paciente, que será indenizado caso o médico não consiga provar, por meio de outros meios de prova, a correta execução de sua conduta. __________ 1 Arts. 77 e 89 Código de Ética Médica 2 SARAIVA, Nayara Guimarães. Conheça os 5 documentos médicos mais importantes! In JusBrasil, acesso em 13/05/2022. 3 DEUTSCH, Erwin; SPICKHOFF, Andreas. Arztrecht, Arzneinmittelrecht, Medizinprodukterecht und Transfusionsrecht. 7ª edição. Frankfurt: Springer. 214, p. 578, 3ª edição. München: C.H. Beck, 2002, pp.485-486. 4 LAUFS, Adolf; UHLENBRUCK, Wilhem. Handbuch des Arztrechts. 3ª 5 Folgen einer Dokumentaionspflichtverletzung, acesso em 12/05/2023. 6 LAUFS, Adolf. Handbuch, cit, pp. 483-484. 7 DEUTSCH, Erwin. Arztrecht, cit., pp. 580/581. 8 idem ibidem 9 Folgen einer Dokumentaionspflichtverletzung, acesso em 12/05/2023.   10 Disponível aqui, acesso em: 12/05/2023.
Introdução É necessário que o Brasil retome investimentos em infraestrutura. É muito evidente que a ausência de investimentos, públicos e privados, em determinados setores vem gerando enormes gargalos que impedem o desenvolvimento firme e constante da economia nacional. Os exemplos são de conhecimento geral, como a falta de linhas de transmissão que melhorem e otimizem a distribuição da energia elétrica por todo território nacional1, e a carência de infraestrutura de transportes com eficácia e baixo custo que permitam o escoamento da produção nacional2. A necessidade premente de melhorias significativas da infraestrutura nacional certamente levará, no curto ou médio prazo, independentemente de pressões ou posições políticas, ao retorno de investimentos em obras de grande porte. Obviamente, tais obras encontrarão todos os percalços e vicissitudes costumeiras, que vão desde a necessidade de encontrar um balanço harmônico entre a evolução delas e o respeito ao meio ambiente até questões ligadas à segurança jurídica, passando, certamente, pela existência de litígios entre os donos das obras e os construtores. Esses novos litígios de construção, que serão instaurados em arbitragens e processos judiciais, não só repetirão os velhos temas, como, por exemplo, os debates acerca de insuficiências, lacunas e atrasos nos projetos das obras, mas também trarão novos desafios e debates relevantes. Essas construções complexas e de grande porte certamente serão reguladas, em sua maioria, por contratos EPC3, que já são adotados há décadas para a viabilização de obras sofisticadas, com o objetivo principal de facilitar o financiamento delas4. Nestes contratos, o construtor assume riscos mais significativos e se obriga a um número maior de obrigações. Diversamente da empreitada tradicional, na qual o empreiteiro se obriga a construir, podendo, se as partes assim acordarem, fornecer também os materiais5, no EPC, por sua vez, o epcista também é obrigado a conceber e elaborar todo o projeto (engineering), ficando, por óbvio, responsável pelas falhas dele. Ou seja, o epcista concebe o projeto, compra todos os materiais, executa a edificação, realiza todos os testes e a entrega pronta para ser utilizada pelo contratante. Essa modalidade contratual complexa e sofisticada tem ainda como uma de suas características a tentativa das partes de definir, de forma muito precisa, a alocação dos riscos mediante a elaboração de diversas cláusulas contratuais que vão desde a definição do que deve ou não ser considerado como caso fortuito e força maior6 - além de seus efeitos - até a estipulação de cláusulas limitativas e impeditivas do dever de indenizar, que consistem no objeto desta pequena reflexão. Embora sejam vistas com certas resistências, as cláusulas limitativas e impeditivas da obrigação de indenizar são instrumentos muito importantes para a repartição dos riscos entre os contratantes, dando maior segurança e previsibilidade aos negócios, podendo servir, inclusive, para redução de custos. Apesar das exacerbadas críticas sofridas, tais cláusulas sempre foram aceitas, em termos gerais, como válidas no ordenamento jurídico nacional, principalmente nas relações paritárias7-8. Apesar disso, muitas são as determinações e orientações legais, jurisprudenciais e doutrinárias, que limitam ou impedem a validade e a aplicabilidade das referidas cláusulas em certas situações. Na verdade, a regulamentação das cláusulas de limitação ou de exoneração da responsabilidade é feita às avessas. O ordenamento jurídico não indica os casos em que elas atuam, mas sim aqueles em que elas não podem ser aplicadas.   De uma forma geral, é possível afirmar que as cláusulas limitativas de indenização e de não indenizar não operaram nas hipóteses em que: (a) há norma especificamente às profligando; (b) são invocadas para impedir reparações decorrentes de atos dolosos; ou (c) atentam contra as regras de ordem pública ou elementos essenciais do contrato no qual foram inseridas9. Diante destas ponderações surge o questionamento objeto deste estudo: pode a cláusula limitação de responsabilidade ou de não indenizar impedir ou reduzir o direito a reparação decorrente do descumprimento da obrigação de construtor de edificar com solidez e segurança, tal qual determina o art. 618 do Código Civil10?    A cláusula de limitação e de exoneração do dever de indenizar frente às obrigações principais do contrato Antes de responder ao questionamento acima, é importante fixar alguns pontos relevantes acerca da aplicabilidade das cláusulas de não indenizar e de limitação das indenizações. Como acima dito, as aludidas cláusulas são, em regra, válidas. Contudo, existem situações em que elas não operam. Há diversas limitações e impedimentos por imposição legislativa. Exemplo vistoso ocorre nas relações de consumo, pois o art. 25 do Código de Defesa do Consumidor veda estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar por vício ou fato do produto e do serviço e o art. 51, I, daquele mesmo diploma legal reputa tais cláusulas abusivas e, por isso, nulas; sendo viáveis apenas as limitações de indenização nas relações entre fornecedor e consumidor pessoa jurídica em hipóteses justificáveis. Além disso, o decreto 2.682/1912, em seu art. 1211, o Código Brasileiro da Aeronáutica (lei 7.565/1986), cujo art. 247, repete a regra do art. 23 da Convenção de Varsóvia12 e o art. 734 do Código Civil, consideram nulas as cláusulas de não indenizar insertas em contratos de transporte por eles regulados. Também são consideradas inoperantes as cláusulas de limitação ou exoneração de responsabilidade quando adotadas para afastar as consequências de condutas dolosas ou eivadas de culpa grave. Embora não haja regra expressa na lei, o entendimento doutrinário e jurisprudencial é tradicional. Cabe aqui, por todos, trazer o ensinamento de Judith Martins-Costa: "Já quando voltada a exonerar o agente em caso de dolo, é nula a cláusula, pois admitir a sua validade importaria em dar uma autorização para delinquir, atingindo-se tríplice ordem de interesses: de índole moral (aí se entendendo que o devedor aproveitar-se-ia da própria torpeza); contratual (já que a posição de credor exige uma tutela mínima); e de índole econômica e social (pois atingiria o tráfico jurídico, com reflexos prejudiciais a nível econômico e social)."13 Além disso, a cláusula de não indenizar não é viável nas hipóteses em que exclui as consequências de obrigação essencial do contrato, a ponto de descaracterizá-lo. Existem alguns elementos definidos por lei que podem ser afastados pela autonomia da vontade das partes, porquanto subsidiários. Por outro lado, existem outros que são da essência do tipo contratual, por isso não são passíveis de derrogação. Seu afastamento atinge a natureza do tipo contratual. Nas palavras de Enzo Roppo:  "Em qualquer caso, deve, desde já, acrescentar-se que esta possibilidade da autonomia privada de derrogar a disciplina legislativa do tipo não é ilimitada. Se o grande número das normas que integram tal disciplina tem uma posição meramente subsidiária relativamente à vontade omissa das partes, e podem, por isso, sofrer derrogação quando estas últimas manifestem uma vontade em tal sentido (estas dizem-se então normas dispositivas), existem, de facto, outras, caracterizadas, inversamente, pela inderrogabilidade: aquilo que nelas é disposto, a solução do conflito de interesses que codificam, a repartição dos riscos, dos encargos, de vantagens que estabelecem, não podem ser modificadas pela vontade contrária das partes, constituindo barreiras ao poder de autonomia privada, tendo em vista a tutela de interesses superiores: são as normas imperativas, sobre que nos ocuparemos mais alongamente."14 Assim, não podem as partes afastar elementos essenciais do tipo contratual, tampouco suas consequências, de modo que cláusulas que têm esse objetivo serão reputadas nulas. Exemplo mais comum de elemento essencial é a cláusula de incolumidade nos contratos de transporte, que obriga o transportador a fazer o deslocamento das pessoas sãs e salvas e das coisas sem danificações. Não é por outro motivo que a jurisprudência consolidada aponta, há décadas, para a inviabilidade da inclusão da cláusula de não indenizar no contrato de transporte, na forma do verbete sumular 161 do Supremo Tribunal Federal15, que foi posteriormente positivado na parte final do art. 734 do Código Civil16. Outro importante exemplo é a obrigação essencial nos contratos de depósito de guardar e conservar a coisa depositada, na forma do art. 629 do Código Civil17. A responsabilidade decorrente da inexecução dessa obrigação essencial não pode ser afastada por cláusula de não indenizar, consoante firme entendimento jurisprudencial.18 Claro, pois, que as cláusulas de não indenizar e as de limitação de responsabilidade não operam para afastar a responsabilidade decorrente de obrigação essencial do tipo contratual. É essencial a obrigação de construir com solidez e segurança O art. 618 do Código Civil determina que o empreiteiro é obrigado a responder pela solidez e segurança da construção pelo prazo irredutível de cinco anos19. A lei criou uma garantia imposta ao empreiteiro de construir com qualidade e dentro das boas técnicas de engenharia de modo que edificação seja sólida e segura. Há, como apontam Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, uma verdadeira "garantia legal de cinco anos", sendo que durante esse período a responsabilidade é objetiva, não sendo possível qualquer debate sobre a existência ou não de culpa do construtor20. Existindo qualquer problema na construção que ponha em risco sua solidez e segurança, haverá obrigação do construtor de reparar. Como lembra Silvio Rodrigues, da "obrigação genérica de executar a encomenda de acordo com as regras de sua arte, decorre, para o empreiteiro, um dever excepcional de garantia"21. E essa obrigação - esse "dever excepcional de garantia" - é essencial ao tipo contratual, tendo sido erigida pelo legislador à condição de norma de ordem pública. Como ensina Álvaro Vilaça Azevedo, "Atualmente, preferiu o legislador considerar de ordem pública a norma constante do art. 618, citado, tornando indiscutível seu posicionamento de considerar irredutível o prazo de cinco anos para esse tipo de responsabilidade excepcional do empreiteiro."22 Assim, "não se há de cogitar da exclusão da responsabilidade legalmente prevista no art. 618", até porque a "exclusão não tem eficácia quando seu objeto disser respeito à obrigações fundamentais do contrato, sob pena de desfiguramento do tipo"23. Note-se que a essencialidade da obrigação, fixada por regra de ordem pública, de construir com solidez e segurança não decorre apenas do contrato. Ela tem origem, principalmente, no ato de construir. Quem decide construir é obrigado a fazê-lo com solidez e segurança, seja perante aquele que com ele contratou seja em face de terceiro, como, por exemplo, um novo adquirente do imóvel24 ou os seus vizinhos (CC. Art. 1.311)25. A legitimidade de terceiros para exigir o cumprimento rigoroso da obrigação de construir de forma sólida e segura é mais um elemento que leva à conclusão de que regra é de ordem pública e, por isso, inderrogável. A inafastabilidade da obrigação de construir com solidez e segurança fica ainda mais evidente quando examinada a evolução legislativa, mediante a comparação da redação do art. 1.245 do Código Civil de 1916 com a do art. 618 da codificação vigente. Veja-se que do Código atual consta uma adição e uma supressão. Adicionou-se o adjetivo "irredutível" ao prazo de dois anos, reforçando sua natureza de ordem pública. Além da adição acima comentada, a nova redação suprimiu da parte final da norma a expressão "exceto quando este, se não o achando firme, preveniu em tempo o dono da obra".  Tal expressão permitia que o construtor se exonerasse da obrigação de construir com solidez e segurança caso detectasse problemas no solo e avisasse o dono da obra, que, ciente e consciente do risco, decidisse prosseguir mesmo assim. Com a advertência e a permissão para a continuação dos trabalhos, alocava-se o risco ao dono da obra. Ou seja, a parte final do dispositivo permitia, ao fim e ao cabo, que as partes celebrassem uma cláusula de não indenizar liberando o construtor da responsabilidade se os problemas construtivos decorressem de questões geológicas previamente informadas. Como já dito, a regra foi suprimida pelo Código Civil vigente, de modo que hoje não é mais viável a alocação ao dono das obras dos impactos na solidez e segurança da obra decorrentes de riscos geológicos, ainda que devidamente advertidos e consentidos. "Assim, é dever do empreiteiro recusar prosseguir na execução da obra que, sabe de antemão, apresentará risco de ruir"26 . A supressão da regra, que permitia, por acordo das partes, que se afastasse a obrigação de construir com solidez e segurança caso existissem problemas no solo, é mais uma demonstração da inafastabilidade da garantia legal criada pelo art. 618 do Código Civil. Por todos os pontos acima expostos, que vão do texto da lei até sua evolução histórica, fica claro que a obrigação de construir com solidez e segurança é essencial, elemento integrador do tipo, que, ipso facto, não pode ser afastada - nem ela, nem suas consequências - pela autonomia da vontade das partes. E essa inafastabilidade atingirá todos os contratos de construção, abrangendo todas as modalidades de empreitada e o contrato de EPC, dentre outros. A alocação dos riscos, que é inerente aos contratos de EPC, se dá dentro de limites dentre os quais os ditados pelas regras de ordem pública e pelas normas essenciais do tipo contratual. Conclusão  Agora já é possível responder ao questionamento formulado no parágrafo 9 deste estudo: podem as cláusulas de limitação de responsabilidade ou de não indenizar impedir ou reduzir o direito a reparação decorrente do descumprimento da obrigação de construtor de edificar com solidez e segurança, tal qual determina o art. 618 do Código Civil? A resposta é negativa. Essa obrigação e suas consequências - correção dos defeitos ou indenização - não pode ser afastada por estipulação contratual, pouco importa se inserta em contrato de empreitada ou de EPC. Bibliografia ANDRIGHI, Nancy; BENETI, Sidnei; ANDRIGHI, Vera. Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. IX. AZEVEDO, Álvaro Vilaça. Curso de direito civil, v. 4: contratos típicos e atípicos. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. CASTRO, Diana Loureiro Paiva de. Potencialidades funcionais das cláusulas de não indenizar: releitura do requisito tradicional de validade referente ao dolo e à culpa grave do devedor. In: SCHREIBER, Anderson; et al. (Coord.). Problemas de Direito Civil: homenagem aos 30 anos de cátedra do professor Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Forense, 2021. DEUS, Adriana Regina Serra de. Engineering, Procurement and Construction. São Paulo: Almedina, 2019. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil - Contratos. São Paulo: Atlas, 2015. MARTINS, Raphael. Estudo mostra gargalos da infraestrutura e propostas para sair do buraco. Exame, 25 de mai. de 2018. Disponível aqui. Acesso em: 29 de mai. de 2023. MARTINS-COSTA, Judith. Contrato de construção. Contratos-Aliança. Interpretação contratual. Cláusulas de exclusão e de limitação do dever de indenizar. Parecer. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 1/2014, out.-dez./2014, pp. 315-351. MESQUITA, Marcelo Alencar Botelho. Contrato Chave na Mão (Turnkey) e EPC (Engineering, Procurement and Construction). São Paulo: Almedina, 2019. PAMPLONA, Nicola. Gargalos de transmissão limitam transporte de energia para socorrer reservatórios secos. Folha de S. Paulo, Rio de Janeiro, 11 de jun. de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 29 de mai. de 2023. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 28ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 3. ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 1988, pp. 149-150 SALES, Claudio; et al. Restrições de geração impostas por gargalos de transmissão. Acende Brasil, 18 de jan. de 2023. Disponível aqui. Acesso em: 29 de mai. de 2023. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 2ª Turma, Recurso Especial n° 1.169.109/DF, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 22.06.2010. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n° 1.909.182/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 13.06.2022. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma, Recurso Especial n° 168.346/SP, Rel. Min. Waldemar Zveiter, Rel. para acórdão Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 20.05.1999. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma, Recurso Especial n° 7.363/SP, Rel. Min. Athos Carneiro, j. 08.10.1991. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma, Recurso Especial n° 8.754/SP, Rel. Min. Athos Carneiro, j. 30.04.1991. __________ 1 PAMPLONA, Nicola. Gargalos de transmissão limitam transporte de energia para socorrer reservatórios secos. Folha de S. Paulo, Rio de Janeiro, 11 de jun. de 2021. Disponível aqui. Acesso em: 29 de mai. de 2023; SALES, Claudio; et al. Restrições de geração impostas por gargalos de transmissão. Acende Brasil, 18 de jan. de 2023. Disponível aqui. Acesso em: 29 de mai. de 2023. 2 MARTINS, Raphael. Estudo mostra gargalos da infraestrutura e propostas para sair do buraco. Exame, 25 de mai. de 2018. Disponível aqui. Acesso em: 29 de mai. de 2023. 3 "... define-se o EPC, acrônimo da expressão engineering, procurement and construction, traduzida sem maiores qualificações por engenharia, aquisição (de materiais e equipamentos) e construção, como o negócio em que o contratado incumbe-se de todas as atividades desde a concepção de um empreendimento até a sua entrega, inteiramente construído, dotado de todo o maquinário e demais utensílios, testado e em operação" (MESQUITA, Marcelo Alencar Botelho. Contrato Chave na Mão (Turnkey) e EPC (Engineering, Procurement and Construction). São Paulo: Almedina, 2019, p. 25). 4 "A principal característica dessa operação é o oferecimento do próprio empreendimento financiado como garantia do empréstimo concedido. Com isso, o dano da obra consegue obter recursos de que necessita para executar o empreendimento e, simultaneamente, delimitar o risco que está exposto, salvaguardando parte de seu patrimônio. Por outro lado, é natural que o agente financiador externo exija um grau de certeza quanto ao cumprimento do preço, do prazo de entrega e do desempenho projetado para o empreendimento, cuja receita gerada será a principal fonte de pagamento do empréstimo e cujos bens serão a garantia em caso de inadimplemento. O instrumento jurídico que se encontrou para atender a essa necessidade de certeza foi justamente o contrato de EPC, que encontra em uma única parte, o epecista, a grande parcela dos riscos envolvidos na consecução do empreendimento." (DEUS, Adriana Regina Serra de. Engineering, Procurement and Construction. São Paulo: Almedina, 2019, p. 200). 5 Código Civil, art. 610. "O empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela só com seu trabalho ou com ele e os materiais". 6 A definição do que pode ou não ser considerado como caso fortuito no âmbito de uma determinada relação contratual pela vontade das partes é claramente viável. Essa conclusão é muito evidente quando lembrada a dicção do art. 393 do Código Civil, que, em sua parte final, estipula que as partes podem excluir ou determinar a responsabilidade por fatos capazes de serem considerados como caso fortuito. Com efeito, estipula o referido dispositivo legal que "O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado". 7 "As cláusulas de não indenizar, ao distribuírem os riscos atinentes à reparação por perdas e danos, exercem importante função de assegurar às partes a previsibilidade no que tange aos efeitos de eventual descumprimento, em relevante garantia de segurança jurídica. Além disso, considerando-se que risco e preço são fatores diretamente relacionados, a redução do primeiro gera, em consequência, a diminuição do segundo. Assim, as convenções, em sua função de gestão contratual de riscos, viabilizam operações econômicas que poderiam não ser exequíveis sem a sua inclusão, facilitam a contratação de seguros por prêmios menos custosos e permitem ao credor a obtenção de vantagem em contrapartida, não arcando (ou arcando em menor extensão) com o impacto no preço causado pelo grau de assunção de riscos pelo devedor. Nesse cenário, permite-se a ampliação do acesso a bens e serviços e o desenvolvimento da atividade no bojo do sistema econômico, com participação de novos agentes e incentivo à livre concorrência". (CASTRO, Diana Loureiro Paiva de. Potencialidades funcionais das cláusulas de não indenizar: releitura do requisito tradicional de validade referente ao dolo e à culpa grave do devedor. In: SCHREIBER, Anderson; et al. (Coord.). Problemas de Direito Civil: homenagem aos 30 anos de cátedra do professor Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 358). 8 STJ, 3ª Turma, REsp n. 168.346/SP, Rel. Min. Waldemar Zveiter, Rel. para acórdão Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 20.05.1999; STJ, 2ª Turma, REsp n. 1.169.109/DF, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 22.06.2010. 9 "Tradicionalmente, foram concebidos, em doutrina, como requisitos de validade das cláusulas de não indenizar: (i) o respeito à ordem pública; (ii) a não incidência da convenção sobre a obrigação principal do negócio jurídico; e (iii) a impossibilidade de referência ao dolo e à culpa grave". (CASTRO, Diana Loureiro Paiva de. Op. cit., p. 357) 10 Código Civil, art. 618. "Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo". 11 Art. 12, Decreto n° 2.682/1912. "A clausula da não garantia das mercadorias, bem como a prévia determinação do máximo de indenização a pagar, nos casos de perda ou avaria, não poderão ser estabelecidas pelas estradas de ferro senão de modo facultativo e correspondendo a uma diminuição de tarifa. Serão nulas quaisquer outras clausulas diminuindo a responsabilidade das estradas de ferro estabelecida na presente lei." 12 Art. 247, Código Brasileiro da Aeronáutica. "É nula qualquer cláusula tendente a exonerar de responsabilidade o transportador ou a estabelecer limite de indenização inferior ao previsto neste Capítulo, mas a nulidade da cláusula não acarreta a do contrato, que continuará regido por este Código (artigo 10)." 13 MARTINS-COSTA, Judith. Contrato de construção. Contratos-Aliança. Interpretação contratual. Cláusulas de exclusão e de limitação do dever de indenizar. Parecer. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 1/2014, out.-dez./2014, p. 327. 14 ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 1988, pp. 149-150.  15 Súmula 161 do STF: "Em contrato de transporte é inoperante a cláusula de não indenizar". 16 Código Civil, art. 734. "O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade". 17 Código Civil, art. 629. "O depositário é obrigado a ter na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence, bem como a restituí-la, com todos os frutos e acrescidos, quando o exija o depositante". 18 STJ, 4ª Turma, REsp n. 8.754/SP, Rel. Min. Athos Carneiro, j. 30.04.1991 19 Veja-se que o prazo do art. 618 não é prescricional ou decadencial, mas sim verdadeira garantia legal. O prazo prescricional para o exercício da pretensão reparatória do dono da obra contra o empreiteiro é decenal. "A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orienta-se no sentido de que é decenal o prazo prescricional da acão para obter, do construtor, a indenização por defeito na obra, na vigência do Código Civil de 2002 (...)" (STJ, 3ª Turma, AgInt no AREsp n. 1.909.182/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 13.06.2022). 20 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil - Contratos. São Paulo: Atlas, 2015, p. 854. 21 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 28ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 3, p. 250. 22 AZEVEDO, Álvaro Vilaça. Curso de direito civil, v. 4: contratos típicos e atípicos. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 169. 23 MARTINS-COSTA, Judith. Op. cit., p. 336. 24 STJ, 4ª Turma, REsp n. 7.363/SP, Rel. Min. Athos Carneiro, j. 08.10.1991 25 Código Civil, art. 1.311. "Não é permitida a execução de qualquer obra ou serviço suscetível de provocar desmoronamento ou deslocação de terra, ou que comprometa a segurança do prédio vizinho, senão após haverem sido feitas as obras acautelatórias." 26 ANDRIGHI, Nancy; BENETI, Sidnei; ANDRIGHI, Vera. Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. IX, p. 326.
"Assim, determino o retorno dos autos à origem, para que o Tribunal local reaprecie acausa, à luz da jurisprudência desta Corte"1. Pois bem, não há decisão judicial mais emblemática capaz de ilustrar de maneira definitiva que hoje no Brasil vivenciamos uma verdadeira Responsabilidade Civil Médica Jurisprudencial. Mais adiante vamos nos dedicar ao estudo detalhado dessa decisão, mas o importante para o momento é ficar evidenciado que nesse caso o Superior Tribunal de Justiça atuou de uma maneira muito diversa da sua atuação cotidiana, sob o ponto de vista da forma empregada e do resultado gerado a partir desse julgamento. Explico. Em termos gerais, o STJ, verificando que uma decisão de um Tribunal inferior diverge do seu entendimento já consolidado, conhece do recurso interposto e reforma a decisão de segunda instância, substituindo o acórdão recorrido por sua própria decisão.   Nesse caso específico não foi assim, pois, como se vê, o STJ, por decisão do Min. Marco Buzzi, determinou "o retorno dos autos à origem, para que o Tribunal local reaprecie a causa". Vale dizer, não reformou e nem declarou nula a decisão do Tribunal inferior. Na prática, tornou o acórdão de segunda instância sem efeito e determinou que outro fosse proferido em seu lugar, "à luz da jurisprudência desta Corte" (do STJ). Ponto importante de ser mencionado é que essa espécie de "cassação" da decisão não se deu em virtude de nulidade procedimental que eventualmente maculasse o acórdão, e daí fosse passível de ser declarado sem efeito e substituído por um outro pelo mesmo órgão jurisdicional após eventual correção procedimental. Não. Essa espécie de "cassação" se deu num processo que tramitou de maneira absolutamente hígida sob o ponto de vista procedimental em primeira e segunda instâncias. Em outros termos, o acórdão estava formalmente apto a ser apreciado no mérito por meio do recurso interposto. Fosse constatado que o entendimento do acórdão estava em dissonância com alguma orientação consolidada no STJ, seria totalmente viável sua reforma no Tribunal Superior, sem necessidade de seu retorno para a origem a fim da prolação de um novo acórdão de segunda instância. Entretanto, ainda assim, o STJ considerou necessária a postura adotada, qual seja, repita-se, não conheceu do mérito do recurso interposto e determinou o retorno dos autos para o proferimento de uma nova decisão pelo Tribunal a quo, esta agora de acordo com seu entendimento, obviamente visando não só que prevaleça a observância de sua jurisprudência pelo trabalho revisor e uniformizador da instância especial (do STJ), mas principalmente pelo trabalho originário e de base da própria segunda instância ordinária (dos Tribunais de Justiça). Independente da conveniência ou não desse formato decisório adotado pelo STJ - o que não está sendo objeto de qualquer juízo de valor, mas apenas evidenciado - o fato é que essa atuação, nesse caso em específico, tem o condão de demonstrar que as questões da Responsabilidade Civil Médica hoje no Brasil são preponderantemente resolvidas por meio dos julgamentos nos Tribunais, contando com o trabalho de uniformização dos entendimentos esparsos pelo Superior Tribunal de Justiça, numa constante construção de um real Direito Jurisprudencial.    Frente a essa afirmação, legitimamente se pode indagar: ora, mas sendo o Brasil integrante dos países pertencentes ao Civil Law, não seria precipuamente tarefa da lei brasileira a disciplina e a previsão de consequências jurídicas para as relações jurídicas estabelecidas no país, inclusive aquelas derivadas da prestação do serviço médico entre pacientes e médicos/empresas de saúde? Sim, a pergunta, como disse, é legítima e parte de um pressuposto até certo ponto lógico, mas há necessidade do reconhecimento de um fenômeno notório: a legislação não tem mesmo o condão de disciplinar de maneira nem próxima do exauriente acerca das questões jurídicas surgidas nos mais variados ramos de atuação das pessoas e empresas, especialmente na seara da prestação do serviço médico, o que gerou o preenchimento desse espaço de disciplina jurídica pelos Tribunais nacionais. Nesse cenário, em que o Poder Judiciário tomou para si a relevante tarefa de disciplinar tais relações jurídicas advindas dos contratos de prestação de serviços médicos, destacou-se o Superior Tribunal de Justiça como instância máxima na maioria dos casos médicos que aportam para definição sobre a pertinência ou não da fixação de indenização e em que patamares pecuniários. Essa conclusão permanece hígida mesmo num cenário nacional de mais de 14.559 leis brasileiras só no âmbito federal, esta última que declarou Patrono do Esporte Brasileiro o ex-piloto Ayrton Senna da Silva, com toda legitimidade - diga-se. Isto é, mesmo num cenário de vertiginosa produção legislativa, nem sempre de qualidade satisfatória, a questão atinente à Responsabilidade Civil Médica ainda se pode dizer quase que totalmente entregue à resolução por parte dos organismos de justiça do país - talvez, por hipótese, por tratar de litígios surgidos de situações totalmente peculiares, demandando soluções a cada caso concreto, exclusivamente. Uma outra hipótese para esse fenômeno seria que, mesmo nas tentativas formuladas pelo Legislador de estabelecer uma disciplina mínima para os casos médicos, as normas dele emanadas acabaram por se traduzir em dispositivos legais de caráter bastante genérico, positivadas em verbetes normativos equiparados a verdadeiras cláusulas gerais - para o que, ademais, não se encontra proposta de solução plausível, dado que a tarefa do Legislador é mesmo estabelecer normas de natureza geral e abstrata. Nenhuma crítica quanto a isso, apenas o reconhecimento de um fenômeno que impôs ao Poder Judiciário muito mais que uma tarefa de interpretação ou mesmo de colmatação da lei, mas sim uma genuína criação de soluções para os casos médicos vivenciados e não disciplinados em legislação apontando num sentido ou noutro, daí falar-se numa verdadeira Responsabilidade Civil Médica Jurisprudencial, tratando o Superior de Justiça de uniformizar os entendimentos judiciais esparsos. A presente e honrada oportunidade, por seus limites editoriais, não permite o ingresso mais aprofundado por questões de ordem acadêmica, como, p. ex., se temos nesse campo do Direito Médico um sistema próximo dos precedentes judiciais do Common Law e outras indagações de ordem mais teóricas do que práticas. Para essas questões pedimos licença para remeter o Caríssimo Leitor à nossa tese de doutoramento na qual foi estudado o próprio sistema jurídico norte-americano e feito o devido cotejo com o sistema jurídico brasileiro, derivando o estudo para a comparação entre os punitive damages nos EUA e os danos morais no Brasil com ênfase no Direito de Imprensa2. De qualquer modo, a ideia básica desse texto é a demonstração de que hoje no Brasil praticamente todas as questões atinentes às indenizações decorrentes da prestação do serviço médico são resolvidas por meio de soluções verdadeiramente criadas pelo Poder Judiciário nacional, como passa a ser ilustrado por uma questão específica da Responsabilidade Civil Médica: a solidariedade civil (ou não) entre Médico e Hospital. Pareceu-nos importante trazer especificamente essa questão porque tivemos a sensação de que, muito embora haja uma importância extraordinária sob o ponto de vista jurídico, econômico e administrativo para pacientes, médicos e empresas de saúde, uma determinada decisão do STJ do meio do ano de 2021 não foi objeto da divulgação correspondente à sua enorme relevância para todo o sistema de saúde brasileiro. Pois bem, crescemos todos no Direito Médico com uma pergunta sempre presente: afinal, o hospital responde pelo erro do médico praticado dentro do nosocômio em caso de mera locação do centro cirúrgico? Essa questão quase sempre foi respondida de maneira praticamente uníssona em termos genéricos da seguinte forma: em havendo mera locação do centro cirúrgico e ali o profissional de medicina cometendo um erro médico, o hospital não responde solidariamente pela indenização ao paciente.    Pode-se dizer que essa era uma resposta única de fonte jurisprudencial, isto é, essa conclusão foi extraída de um antigo e consolidado entendimento do STJ sobre a questão. Mas esse quadro foi colocado em dúvida após a prolação da citada recente decisão do mesmo STJ do ano de 2021, como veremos após a descrição do seguinte caso concreto. Em virtude de um erro médico ocorrido em meio a uma cirurgia plástica realizada em 2012, uma paciente ajuizou, em 2015, uma ação cominatória c.c. indenizatória apenas contra o hospital dentro do qual foi realizada a cirurgia. Em outubro de 2017, o juiz de primeira instância julgou parcialmente procedente o pedido para compelir o hospital a realizar uma nova cirurgia reparadora conforme indicado pelo perito judicial, bem como compensar a paciente em danos morais no valor de R$10.000,003. Duas apelações foram interpostas - da paciente e do hospital - e ambas desprovidas. Para os fins desse estudo, importa no acórdão o seguinte trecho da ementa: Responsabilidade Objetiva de clínicas e hospitais e subjetiva dos profissionais liberais.4 Importante mencionar que, segundo o acórdão, o hospital acabou por ser condenado sob esse único fundamento de aplicação de responsabilidade civil objetiva ao caso, sem que fosse avaliada qual a relação jurídica que havia entre o nosocômio e o médico, conforme distinção que o STJ estabelecia à época do julgamento da apelação. Foi negado seguimento ao Recurso Especial interposto pelo hospital contra o acórdão, ensejando a interposição do Agravo em Recurso Especial n. 1.561.936/SP, no qual foi proferida a decisão que deu início a este artigo, cassando-se o acordão do Tribunal a quo com determinação da prolação de um outro de acordo com a jurisprudência do STJ. De suma importância para o entendimento da questão a transcrição de trechos dessa decisão do STJ, pois que, segundo o Min. Relator Marco Buzzi: - Da leitura do acórdão recorrido, nota-se que o Tribunal local consignou que a responsabilidade civil do hospital seria objetiva, ainda que não houvesse relação jurídica com o médico assistente. - Com efeito, trata-se de entendimento que destoa da jurisprudência desta Corte, para a qual a existência e natureza do vínculo existente entre médico e hospital é relevante para a apreciação da responsabilidade deste. - No ponto, relevante a menção aos seguintes precedentes, nos quais restou assentado que, quando a falha técnica é restrita ao profissional médico sem vínculo com o hospital, não cabe atribuir à entidade hospitalar a obrigação de indenizar. - Nesse contexto, considerando-se que o Tribunal local não teceu qualquer comentário acerca da efetiva existência ou particularidades do vínculo existente entre o médico responsável pelo dano e o hospital ora recorrente, faz-se necessário o parcial provimento, para que reaprecie a demanda, à luz da jurisprudência desta Corte. Assim, retornados os autos ao Tribunal de origem, foi prolatado um novo acórdão em que foi modificada a orientação anterior e a sentença de parcial procedência agora foi reformada, julgando-se o pedido inicial da paciente integralmente improcedente: ERRO MÉDICO. Autor que alegou erro médico no procedimento estético realizado. Sentença de parcial procedência. Apelação da parte ré e da parte autora desprovidas. Recurso Especial interposto pela parte ré que teve seguimento negado. Agravo em Recurso Especial que deu provimento ao recurso especial, determinando a reapreciação dos autos, à luz da jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça. CASO CONCRETO. Laudo pericial que concluiu pela existência de "nexo causal entre a cirurgia realizada e o resultado inestético obtido". Ação que foi proposta somente em face do nosocômio, onde foi realizado o procedimento cirúrgico. Ausência de vínculo entre o profissional, que realizou a cirurgia, e o nosocômio réu. Impossibilidade de se atribuir responsabilidade objetiva ao prestador de serviços. Sentença reformada. RECURSO DA PARTE RÉ PROVIDO. RECURSO ADESIVO PREJUDICADO. (Apelação nº 1007671-14.2015.8.26.0590, 2ª Câmara de Direito Privado, 9/4/20). Vale mencionar que agora, com o julgamento de improcedência favorecendo o hospital, não houve interposição de Recurso Especial por parte da paciente, transitando em julgado o acórdão em maio de 2020. Ocorre que uma das características mais importantes e virtuosas desse denominado Direito Jurisprudencial é a sua capacidade de se revigorar e buscar a correção de entendimentos judiciais que porventura mereçam revisitação e eventualmente superação, naquilo que se denominaria overruling no sistema de precedentes. Foi, então, o que se viu em junho de 2021, iniciando-se esse movimento quando a mesma questão da solidariedade ou não entre médicos e hospitais aportou novamente no STJ para mais uma deliberação, mas agora verificando-se uma virada na orientação anterior sob a relatoria da Min. Nancy Andrighi dentro da 3ª Turma, in verbis: 1. Ação de obrigação de fazer c/c indenização por danos materiais e compensação por dano moral ajuizada em 24/11/2014, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 19/12/2018 e concluso ao gabinete em 19/08/2019. 2. O propósito recursal é decidir sobre a legitimidade passiva do hospital recorrente, bem como sobre a denunciação da lide aos médicos responsáveis pelos procedimentos cirúrgicos ou à formação de litisconsórcio passivo necessário entre o hospital recorrente e os respectivos médicos. 3. Os fatos narrados na petição inicial, interpretados à luz da teoria da asserção, não autorizam reconhecer a ilegitimidade passiva do hospital, na medida em que revelam que os procedimentos cirúrgicos foram realizados nas dependências do nosocômio, sendo, pois, possível inferir, especialmente sob a ótica da consumidora, o vínculo havido com os médicos e a responsabilidade solidária de ambos - hospital e respectivos médicos - pelo evento danoso. 4. Segundo a jurisprudência do STJ, quanto aos atos técnicos praticados de forma defeituosa pelos profissionais da saúde vinculados de alguma forma ao hospital, respondem solidariamente a instituição hospitalar e o profissional responsável, apurada a sua culpa profissional; nesse caso, o hospital é responsabilizado indiretamente por ato de terceiro, cuja culpa deve ser comprovada pela vítima de modo a fazer emergir o dever de indenizar da instituição, de natureza absoluta (artigos 932 e 933 do Código Civil), sendo cabível ao juiz, demonstrada a hipossuficiência do paciente, determinar a inversão do ônus da prova (artigo 6º, inciso VIII, do CDC). Precedentes. 5. Em circunstâncias específicas como a destes autos, na qual se imputa ao hospital a responsabilidade objetiva por suposto ato culposo dos médicos a ele vinculados, deve ser admitida, excepcionalmente, a denunciação da lide, sobretudo com o intuito de assegurar o resultado prático da demanda e evitar a indesejável situação de haver decisões contraditórias a respeito do mesmo fato. 6. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 1.832.371/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3T, 22/6/2021). Vale notar a perspicácia do entendimento da 3ª Turma do STJ nessa questão sobre a solidariedade ou não do hospital pelo erro médico, traduzida nos seguintes fatores: * antes dessa decisão, para se definir quem seriam os responsáveis pela indenização ao paciente, voltavam-se as atenções exclusivamente para um dos polos da relação de prestação do serviço de saúde, isto é, definia-se quem seria responsabilizado ou não unicamente diante da observação e análise do tipo de vínculo jurídico havido entre médico e hospital; * posteriormente a essa decisão, a definição sobre a constituição do conjunto de devedores da indenização no caso de erro médico se descolou para o campo de observação do outro lado da relação de prestação do serviço médico, perquirindo-se agora qual seria o ponto de vista do paciente frente à relação estabelecida entre médico e hospital. Particularmente quanto ao item 3 da decisão acima e caso prevaleça doravante esse entendimento, entregamos para a comunidade jurídica uma conclusão inevitável que vai significar uma mudança de 180 graus no entendimento que se tinha da questão: * apaga-se por completo o antigo critério da locação do centro cirúrgico para definição da solidariedade ou não entre médico e hospital por dano ao paciente; * inaugura-se um novo critério baseado no espaço físico de realização da cirurgia dentro do hospital, fato este suficiente para atrair a responsabilidade do nosocômio juntamente com a do médico que falhou, agora sob o ponto de vista do paciente que não tem como desvelar que tipo de vínculo jurídico há entre os prestadores da cadeia do serviço médico-hospitalar. Dito isso, há, ainda, dois pontos extremamente importantes a serem evidenciados. O primeiro deles é que uma leitura rápida do acórdão do Resp. 1.832.371/MG pode levar o pesquisador a pensar que todas os pontos decididos e constantes da ementa acima transcrita foram objeto da divergência de votos acentuada de 3x2 entre os Ministros. Portanto, poderia parecer, numa primeira análise, que a conclusão sobre a solidariedade do hospital pelo critério único de realização do ato médico dentro de suas dependências estaria submetida a uma pronunciada divergência dentro mesmo da 3ª Turma do STJ. Mas não. A divergência aberta pelo saudoso Min. Sanseverino se restringiu unicamente ao item do voto da Min. Nancy Andrighi que deferiu a denunciação da lide ao médico que realizou a cirurgia, mantida a unanimidade de entendimento dos 5 Ministros quanto à conclusão segundo a qual o novo critério definidor da responsabilidade solidária do hospital é a realização do ato médico dentro de suas dependências - isso na 3ª Turma do STJ. Porém, e sendo este o segundo ponto importante a ser evidenciado, devemos mencionar um julgamento recentíssimo na 4ª Turma do STJ, ainda utilizando-se expressamente do antigo critério acerca do tipo de vínculo havido entre médico e hospital para a definição da solidariedade ou não pelo dano causado ao paciente, in verbis: 1. "Admite-se o prequestionamento ficto, nos termos do art. 1.025 do CPC, exigindo-se, para tanto, que, opostos embargos de declaração na origem, seja constatada a ocorrência de algum vício previsto no art. 1.022 do CPC, devidamente apontado nas razões do recurso especial, sob pena de incidência da Súmula n. 211 do STJ" (AgInt no AREsp n. 2.094.099/RJ, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 13/2/2023, DJe de 16/2/2023). 2. "Consoante a jurisprudência desta Corte, a 'responsabilidade do hospital somente tem espaço quando o dano decorrer de falha de serviços cuja atribuição é afeta única e exclusivamente ao hospital. Nas hipóteses de dano decorrente de falha técnica restrita ao profissional médico, mormente quando este não tem vínculo com o hospital - seja de emprego ou de mera preposição -, não cabe atribuir ao nosocômio a obrigação de indenizar' (REsp 908.359/SC, Segunda Seção, Relator para o acórdão o Ministro João Otávio de Noronha, DJe de 17/12/2008)" (AgInt no REsp n. 1.739.397/MT, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 14/8/2018, DJe de 27/8/2018). 3. A desconstituição das premissas fáticas que fundamentam as conclusões do Tribunal de origem encontra óbice no fato de o recurso especial não comportar o exame de questões que impliquem incursão no contexto fático-probatório dos autos, a teor da Súmula n. 7/STJ. 4. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no AREsp n. 2.223.737/PR, R. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4ªT, j. em 3/4/2023). Resumindo e concluindo, estamos diante de mais uma recente e pronunciada divisão de entendimentos entre as duas Turmas julgadoras da Seção de Direito Privado do STJ, agora acerca do critério de definição da solidariedade indenizatória entre médico e hospital por dano ao paciente, e essa fulcral questão para todos os atores da prestação do serviço de saúde deverá ser definida mais uma vez com exclusivamente por aquela que é a fonte mais vigorosa de solução jurídica dos casos médicos concretos no país: a Responsabilidade Civil Médica Jurisprudencial. Referências - SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Danos Morais no Brasil e Punitive Damages nos Estados Unidos e o Direito de Imprensa. Tese (Doutorado em Direito) - PUC/SP, São Paulo, 2013. - Agravo em Recurso Especial n. 1.561.936/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, STJ. - Processo n. 1007671-14.2015.8.26.0590, da 3ª Vara Cível da Comarca de São Vicente - SP. - Apelação n. 1007671-14.2015.8.26.0590 do TJ/SP. - REsp n. 1.832.371/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3T, j. em 22/6/2021. - AgInt no AREsp n. 2.223.737/PR, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4T, j. em 3/4/2023. __________ 1 Agravo em Recurso Especial n. 1.561.936/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, STJ. 2 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Danos Morais no Brasil e Punitive Damages nos Estados Unidos e o Direito de Imprensa. Tese (Doutorado em Direito) - PUC/SP, São Paulo, 2013. 3 Processo n. 1007671-14.2015.8.26.0590, da 3ª Vara Cível da Comarca de São Vicente - SP. 4 Apelação n. 1007671-14.2015.8.26.0590 do TJ/SP.
Recentemente, defendemos tese, sob orientação do prof. Paulo Nalin, no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, a qual resultará na obra intitulada "Responsabilidade Civil Médica na Inteligência Artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI", com publicação pela editora Revista dos Tribunais prevista para setembro de 2023. Nestas breves reflexões, tem-se o intuito de apresentar um panorama geral do que defendemos na referida obra - vide tabela abaixo - sobre as interseções dos princípios éticos da IA na Medicina com os deveres de conduta médica decorrentes da boa-fé objetiva contratual, ressignificados na perspectiva da Pós-Constitucionalização do Direito Civil e na Medicina Centrada na Pessoa. Para tanto, apresentaremos 4 cenários para reflexão sobre culpa médica e deveres de conduta quando o diagnóstico ou proposta de tratamento envolve um sistema decisional automatizado. No primeiro quartel do séc. XXI, algoritmos de IA têm proporcionado uma mudança de paradigma para o modelo de cuidados de saúde. Não substituirá os médicos, mas definitivamente todo o arsenal tecnológico impulsionado pela Era da Medicina Digital tem transformado - e transformará ainda mais - a relação médico-paciente e a maneira como os sistemas de saúde funcionam, especialmente pela possibilidade de o atendimento médico seguir um modelo mais proativo, preventivo, preciso e centrado na individualidade de cada paciente. Sistemas decisionais automatizados têm um imenso potencial de melhorar a experiência dos pacientes nos seus cuidados de saúde, proporcionando diagnósticos, prognósticos e propostas de tratamento com maior rapidez, precisão e eficácia. Por outro lado, surgem novos desafios para o setor da saúde, sobretudo pelos riscos de algoritmos imprecisos, discriminatórios, mal utilizados e com processos decisórios obscuros. Atualmente, ao redor do mundo, não se tem notícia de jurisprudência sobre responsabilidade civil médica envolvendo um sistema de IA. Todavia, há uma tendência de que surjam litígios, tendo em vista a maior frequência, nas últimas décadas, de utilização de sistemas autônomos para apoiar decisões clínicas. Cenário 1 - culpa médica: em 2018, noticiou-se o problema de que o denominado "Watson for Oncology", sistema decisional automatizado da IBM para apoiar diagnósticos e propostas de tratamento de pacientes oncológicos, estava indicando tratamentos flagrantemente incorretos. Em certa ocasião, o sistema de IA sugeriu o uso de um determinado medicamento quimioterápico para um paciente com câncer de pulmão e com histórico de sangramento grave.  A questão é que há um efeito colateral bastante conhecido pela comunidade médica no fármaco indicado que é justamente a possibilidade de causar sangramento, razão pela qual ele é utilizado apenas em alguns pacientes com essa patologia. Trata-se de situação na qual, sobrevindo a morte do enfermo após o tratamento inapropriado, a aferição da culpa médica se torna, de certa forma, menos complexa, pois o profissional age em evidente falta de diligência (erro grosseiro), caso siga a proposta de tratamento bastante fora do padrão trazido pela IA. Por outro lado, imagine-se a situação na qual o médico insere os dados de um paciente no sistema de IA, o qual apresenta uma proposta de tratamento com outro remédio quimioterápico, que é bastante fora do padrão (apesar de correto) do que o médico está acostumado a recomendar, ao longo de muitos anos de sua prática clínica. Em seguida, o profissional ignora o resultado algorítmico, seguindo sua própria convicção de que o caso clínico do paciente se enquadra naquele padrão de tratamento, sobrevindo, assim, danos ao enfermo. Deve o médico ser responsabilizado? Nessa hipótese, em princípio, pode-se concluir que o médico não será responsabilizado, caso tenha sido diligente na anamnese e solicitação de exames, reconhecendo como apropriado um tratamento que é o padrão para o quadro clínico do enfermo. Todavia, frise-se que os estudos científicos evoluem, e pode ser verificado que um determinado medicamento que vinha sendo usado por médicos para tratar determinada doença não é mais adequado, sendo muito mais benéfico para o paciente um novo medicamento. Justamente por isso que poderíamos defender que, diante do tratamento fora do padrão proposto pela IA, o profissional tem que ao menos ser diligente ao ponto de investigar se não é necessário repensar a forma de tratamento compreendida por ele como a correta para o paciente, sob pena de ser responsabilizado. Nicholson Price, grande estudioso sobre as intersecções entre o direito médico e a Inteligência Artificial, afirma que, em tese, o médico, caso não seja diligente na utilização da IA, pode ser responsabilizado.1  No mesmo sentido, Fruzsina Molnár-Gábor defende que, se os médicos reconhecerem, com base em suas expertises, que as informações fornecidas pela IA estão incorretas naquele caso específico, não devem considerá-las como base para sua decisão.2 Assim, seguindo nessa mesma linha de pensamento, concluímos que, para verificar se um médico agiu culposamente em um caso específico, devem ser analisados os padrões de conduta profissional exigidos no momento da atuação médica.  O médico, diante do resultado diagnóstico ou prognóstico trazido pelo algoritmo de IA, estará na complexa posição de justificar: (i) porque ele seguiu o diagnóstico ou tratamento sugerido pela IA; ou (ii) porque - e com base em quais fatores - ele se desviou da recomendação algorítmica. O médico é livre para escolher seus meios de diagnóstico e propostas de terapia, mas também é responsável por suas escolhas.3 De todo modo, há uma premissa básica na avaliação da culpa médica, que será sempre uma constante na análise jurídica dos eventos adversos ocorridos por ato essencialmente médico: a álea terapêutica, os fatores aleatórios da prática da Medicina tornam impossível impor ao médico uma obrigação de infalibilidade ou absoluta exatidão.4 Além disso, defendemos que, ao longo dos próximos anos, à medida que essas ferramentas baseadas em IA forem se tornando comuns no dia a dia da prática clínica, mais se exigirá do médico que utilize de todo o arsenal tecnológico disponível, a fim de cumprir com seu dever de diligência nos cuidados da saúde. Pela aplicação da Teoria da Alteração das Circunstâncias no contexto sanitário, muito em breve o padrão de diligência do médico, para fins de aferir a culpa profissional, será substancialmente modificado. Assim como hoje um médico diligente usa com sabedoria um estetoscópio como instrumento para ouvir o coração e os pulmões de um paciente, vai chegar um momento na história da Medicina na qual o padrão de diligência mínima exigida para um médico fazer um diagnóstico clínico será aferido com base na constatação do profissional ter ou não utilizado (com sabedoria) um sistema de IA para apoiar a sua decisão. Cenário 2 - violação do dever de esclarecimento: frequentemente, tem-se levantado a preocupação de que à medida que algoritmos de IA começam a se infiltrar nos ambientes de assistência médica, há um aumento no que é conhecido como "paternalismo da IA" (AI Paternalism). A propósito, em 2020, noticiou-se que milhares de pacientes hospitalizados em uma das maiores entidades hospitalares de Minnesota, nos Estados Unidos, tiveram suas decisões de planejamento de alta médica apoiadas em um sistema de Inteligência Artificial; todavia, nenhum destes enfermos teve sequer ciência sobre o envolvimento da tecnologia para apoiar a decisão dos profissionais da Medicina. Trata-se da denominada "opacidade algorítmica pela não revelação",5 que não diz respeito às características intrínsecas dos sistemas de IA, mas parte da ideia dos riscos à autodeterminação informativa do paciente. Eric Topol destaca a importância de "colocar os valores e preferências do paciente em primeiro lugar em qualquer colaboração homem-máquina", a fim de que o implemento de tecnologias na prática clínica não propague o paternalismo médico, mas, ao contrário, a "IA represente um ganho de tempo para o médico estar em contato com o paciente".6 Em que pese existir divergência doutrinária sobre a quantidade da informação que deve ser repassada ao paciente para que o médico cumpra com o seu dever de informação, entendemos que, há atualmente a exigência de nova interpretação ao princípio da autodeterminação do paciente: saímos do simples direito à informação e caminhamos para uma maior amplitude informacional, ou seja, há um direito à explicação e justificação.7 Nesse sentido, além do dever que o médico possui de informar que, por exemplo, utilizou um algoritmo de IA para apoiar a sua avaliação de determinado quadro clínico, ele precisa também explicar o funcionamento da tecnologia utilizada, de acordo com o grau de compreensão de cada paciente, sob pena de ocorrer a chamada "opacidade explicativa". Em conclusão, observa-se que o dever de conduta médica de informação, esclarecimento e conselho, decorrente da boa-fé objetiva contratual, está intimamente relacionado com dois princípios éticos próprios da IA: i) proteger a autonomia humana, e ii) garantir a transparência, explicabilidade e inteligibilidade. Importante a ressalva de que a ressignificação do direito à informação do paciente, nos moldes apresentados, engloba uma espécie de "padrão ouro no tratamento", razão pela qual deve se considerar as peculiaridades da situação concreta para aferir a possibilidade de exigir do médico determinada conduta diante de eventual condição precária de trabalho ou, ainda, outras questões relacionadas à própria estrutura da entidade hospitalar onde ocorreu o atendimento. Cenário 3 - violação do dever de lealdade: tem sido muito discutida a problemática em torno da falta de educação e treinamento contínuo dos médicos com a utilização de novas tecnologias, somando-se ao fato de que nem sempre o emprego da IA é recomendado. Em paralelo, há o risco de os profissionais, fascinados pelos sistemas decisionais automatizados, confiarem "cegamente" nas predições algorítmicas e assegurarem ao paciente que determinada ferramenta tecnológica é extremamente precisa ou até infalível e ao enfermo será praticamente garantido um certo resultado. Por exemplo, logo que os robôs da Vinci foram inseridos no mercado de consumo norte-americano, em 2000, havia uma propaganda maciça das cirurgias assistidas por robôs e os médicos passavam implícita ou explicitamente a garantia de sucesso, especialmente em cirurgias oncológicas de extirpação da próstata, devido ao emprego da plataforma robótica. Pode-se imaginar o risco de que a mesma situação ocorra com algum sistema decisional automatizado, para fins de diagnóstico, prognóstico ou proposta de tratamento médico. Então, questiona-se: qual seria o reflexo na forma de aferição da culpa médica por eventos adversos neste cenário? A obrigação médica continua sendo de meios? Observa-se aqui a importância do debate sobre o princípio ético da promoção de uma IA que seja responsiva e sustentável, com o correlato dever do médico de cooperação e lealdade, decorrente da boa-fé objetiva contratual.  O profissional da Medicina, seguindo parâmetros de lisura e honestidade, tem o dever de respeitar as legítimas expectativas do paciente. Caso o profissional não compreenda as limitações do sistema de IA (opacidade epistêmica), utilizando como um fim em si mesmo - não como uma ferramenta - e, mais do que isso, repasse a garantia de total sucesso ao paciente justamente por utilizar a tecnologia, poderíamos cogitar o seguinte: a possibilidade de qualificar a obrigação médica como sendo de resultado, baseando-se na promessa de infalibilidade do recurso tecnológico empregado no procedimento. Ou seja, quando o profissional não compreende a IA como uma ferramenta de apoio à tomada de decisão (AI-as-a-tool), trazendo a tecnologia como garantia de sucesso na atuação médica, há uma quebra da confiança e legítima expectativa do paciente e, assim, a possível qualificação da natureza jurídica obrigacional em obrigação de resultado. Nesse sentido, recairá uma presunção de culpa ao ser avaliada a diligência na atuação médica. Frank Pasquale é categórico ao sustentar a necessidade de se promover um futuro no qual a IA tenha a função primordial de auxiliar, ao invés de substituir os médicos, e que "sempre haverá um lugar para que especialistas verifiquem a precisão das recomendações algorítmicas e avaliem o quão bem elas funcionam no mundo real".8 O julgamento profissional e o diagnóstico clínico final não podem ser automatizados, pois haverá situações nas quais o médico, por razões sólidas/científicas não deverá seguir a recomendação do algoritmo. Ressalte-se que, chegará (muito em breve) um momento no qual a Inteligência Artificial se tornará tão comum no setor de saúde e, mais precisamente, na prática clínica, que novas tecnologias deverão ser incorporadas à educação formal, ensinadas aos médicos em formação no Brasil desde os próprios bancos da universidade - o que já ocorre em instituições fora do país, tal como a Universidade de Standford, nos EUA. Além disso, é urgente a necessidade de que o próprio conselho de classe estabeleça algumas diretrizes sobre a política de capacitação e treinamento contínuo dos médicos com os sistemas de IA, a exemplo da resolução do CFM sobre cirurgia robótica publicada em 2022. Como afirmam Bernard Nordlinger e Cédric Villani, o médico do futuro deve ser "inteligente" e "aprimorado", no sentido de implementar diversas inovações tecnológicas na sua prática clínica e, ao mesmo tempo, estar "melhor educado e informado para prevenir, analisar, decidir e tratar doenças com empatia e o toque humano".9 Caso 4 - violação do dever de proteção: entidades hospitalares que implementarem sistemas de IA devem garantir a manutenção e funcionamento regular dos equipamentos. A garantia de condições apropriadas para utilização de sistemas decisionais automatizados por pessoas adequadamente treinadas, com avaliação e monitoramento constantes, deve ocorrer por meio de um programa de compliance alinhado com o trabalho do comitê de bioética do hospital. Contudo, questiona-se: o médico tem alguma responsabilidade sobre o arsenal tecnológico que ele utiliza na sua prática clínica? O médico tem um dever de atualização que é intrínseco ao profissional e um dever de vigilância que é extracorpóreo, ou seja, está relacionado ao instrumental que ele usa para o seu exercício profissional. Ele tem a obrigação de estar sempre atualizado, mas não necessariamente ter à sua disposição todo o arcabouço tecnológico existente.  Por isso, o padrão de conduta exigível varia de acordo com as circunstâncias do caso concreto. Em geral, é exigida uma diligência mínima na utilização de tecnologias, razão pela qual, caso ocorra, por exemplo, um erro de diagnóstico grosseiro apoiado em um sistema de IA bastante ultrapassado, que apresenta frequentemente resultados errados/imprecisos, o médico pode vir a ser responsabilizado subjetivamente pela violação ao dever de vigilância decorrente da boa-fé objetiva contratual. Isso, especialmente quando o aparato tecnológico não for frequentemente atualizado e o médico estiver ciente da falha na manutenção do equipamento, a exemplo de um episódio ocorrido com pacientes oncológicos submetidos à radioterapia com o equipamento chamado Cobalt-60, no Instituto Oncológico Nacional do Panamá. Ressalte-se que o médico, agindo com boa-fé, caso perceba que a IA não agrega valor na sua prática ou, ainda, traz frequentemente resultados errados, tem um dever ético - e jurídico - de parar de utilizar a tecnologia na sua prática clínica, sob pena de incorrer em violação positiva do contrato. Para além da possibilidade de incidir a responsabilidade do fabricante por um algoritmo defeituoso, veja-se que o debate se insere na observância do médico ao princípio ético da IA de fomentar a responsabilidade e prestação de contas - ou seja, incide aqui a ideia de accountability (data informed duties), com o correlato dever de cuidado e de vigilância decorrente da boa-fé objetiva. A partir dos 4 casos debatidos acima, conclui-se que, cada vez mais, o médico precisará estar familiarizado com novas tecnologias, sendo um profissional altamente capacitado, com habilidades em múltiplas áreas que ultrapassam o limiar do conhecimento técnico em Medicina. Além disso, deverá possuir um treinamento constante e pautado em inovações médicas, desde o primeiro momento da sua formação. É imprescindível que essas tecnologias sejam implementadas com responsabilidade, respeitando princípios éticos e preservando a importância do papel do médico e a centralidade no ser humano. Os novos especialistas deverão conseguir integrar tecnologia, ciência e habilidades interpessoais para fornecer cuidados de saúde mais personalizados, eficazes e acessíveis. O que determinará se o implemento da IA desumaniza ou despersonaliza a relação médico-paciente é a maneira pela qual a tecnologia será utilizada e o significado que a ela será atribuído nos diversos cenários da atividade médica. Por fim, vale uma ressalva: é deveras inviável adotar a responsabilidade sem culpa no âmbito da atividade médica, mesmo para ser aferida a violação a um dever de conduta na prestação de serviços médicos com IA, os quais foram analisados nos casos acima, não apenas como mandamentos éticos, mas especialmente em razão da sua força jurídica cogente. Tratando-se o contrato firmado entre médico e paciente de negócio jurídico de natureza existencial, alguns deveres são preenchidos com novos e diferenciados significados, conduzindo a uma tutela distinta com uma lógica diversa daquela tradicional visão da responsabilidade civil contratual. A violação positiva do contrato médico pautada em uma análise subjetiva se justifica porque os deveres de conduta apresentam-se de maneira qualificada na relação contratual médico-paciente, comportando-se quase que como obrigação principal. Nesse contrato existencial, encontra-se na culpa o fundamento jurídico da responsabilidade do profissional. De igual modo, a violação positiva do contrato médico (por meio do descumprimento dos deveres de conduta) deve ser aferida subjetivamente, por imperativo legal, nos termos do art. 951 do CC e do § 4º do art. 14, do CDC, sob pena de inviabilizar a profissão e despersonalizar a relação médico-paciente. Novos paradigmas para os contratos de prestação de serviços médicos com IA se aproximam e é essencial buscar entendê-los. Evidencia-se a necessidade de impulsionar o pensamento crítico e o processo contínuo de aperfeiçoamento gradual e/ou ressignificação dos institutos e normas existentes. Isso tende a se tornar mais acentuado no (breve) futuro. __________ 1 PRICE II, W. Nicholson; GERKE, Sara; COHEN, I. Glenn. Liability for use of artificial intelligence in medicine. In: COHEN, I. Glenn; SOLAIMAN, Barry (ed.). Research handbook on health, AI and the law. Versão eletrônica. Cheltenham: Edward Elgar Publishing Ltd., 2023. 2 MOLNÁR-GÁBOR, Fruzsina. Artificial intelligence in healthcare: doctors, patients and liabilities. In: WISCHMEYER, Thomas; RADEMACHER, Timo (ed.). Regulating artificial intelligence. Cham: Springer, 2020, p. 350-351. 3 NOGAROLI, Rafaella; GUIA DA SILVA, Rodrigo. Inteligência artificial na análise diagnóstica:  benefícios, riscos e responsabilidade do médico. In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (coord.). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 89-112. 4 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 11. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 35-37. 5 Sobre as três dimensões semânticas da opacidade algorítmica, particularmente relevantes para o Direito Médico - (I) opacidade epistêmica; (II) opacidade pela não revelação; (III) opacidade explicativa -, vide tese desenvolvida originalmente no seguinte artigo: NOGAROLI, Rafaella; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Tripla dimensão semântica da opacidade algorítmica no consentimento e na responsabilidade civil médica. Migalhas de Responsabilidade Civil, 17 jun. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 22 maio 2023. 6 TOPOL, Eric. Deep medicine: how artificial intelligence can make healthcare human again. Nova Iorque: Basic Books, 2019, p. 288; 308. 7 Sobre o novo perfil do consentimento do paciente em novas tecnologias, remeta-se a DANTAS, Eduardo; NOGAROLI, Rafaella. Consentimento informado do paciente frente às novas tecnologias da saúde (telemedicina, cirurgia robótica e inteligência artificial). Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, n. 13, ano 17, p. 25-63, jan./jun. 2020. 8 PASQUALE, Frank. New laws of robotics: defending human expertise in the age of AI. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2020, p. 33; 35. 9 NORDLINGER, Bernard; VILLANI, Cédric; RUS, Daniela (coord.). Healthcare and artificial intelligence. Cham: Springer, 2020, p. VIII.
Causou expressiva atenção na esfera jurídica, social e política a ação movida pela empresa Dominion Voting Systems frente à empresa de mídia Fox Corporation. A ação tinha por finalidade pedido indenizatório, por difamação, decorrente da conduta da Fox, que veiculou em seus noticiários referências à suposta irregularidade na eleição americana, sendo que a empresa Dominion produz máquinas eleitorais utilizadas na votação ocorrida em estados americanos objeto de críticas pelo resultado ocorrido. Nesse contexto, o pedido indenizatório era no valor de 1.6 bilhão de dólares. Cumpre recordar que a origem da questão residia nas referências falsas divulgadas pela Fox sobre a Dominion, a partir das alegações feitas pelo anterior presidente americano, Donald Trump, de que as eleições americanas tinham sido roubadas. Nesse contexto, a Dominion tinha de provar não apenas que as alegações não eram verdadeiras, como também demonstrar que a conduta da Fox configura o standard jurídico de 'actual malice'1, correspondente à noção de que a empresa de comunicação sabia que as notícias eram inverídicas ou que demonstrou uma irresponsável desconsideração pela verdade. A partir da fase inicial do processo, correspondente ao denominado legal discovery process, foi possível para a Dominion obter acesso à documentação que demonstrava que a Fox efetivamente tinha conhecimento (knowledge) sobre as teorias conspiratórias divulgadas e que optou por levá-las ao ar com o objetivo de atrair sua audiência, propícia a acreditar nessas alegações. Ao analisar a documentação obtida, Eric M. Davies, o juiz do caso, observou ser absolutamente cristalino (crystal clear foi a expressão utilizada pelo magistrado) que as alegações divulgadas pela Fox eram falsas. Diante disso, o recurso à transação apresentou-se como um caminho natural para a Fox, poupando-a dos dissabores, para dizer o mínimo, de ser submetida a todas as démarches do processo, que incluiriam por exemplo depoimentos de seus principais executivos e acionistas. Constitui um truísmo ressaltar que a transação configura um instrumento jurídico contratual para pôr fim a litígio, mediante concessões recíprocas, conforme a previsão do artigo 840, do Código civil2. Sobressai, porém, que a transação contemporaneamente não se limita a um simples contrato particular: ocupa um lugar entre os instrumentos para a solução de conflitos por meios alternativos, conforme reconhecido pelo Código de Processo Civil e pontuado pela melhor doutrina nacional3. Essa finalidade se apresenta no presente caso, em que no dia previsto para o início do julgamento propriamente dito sobreveio a notícia de que a transação fora celebrada entre as partes, mediante o pagamento do valor de cerca de 787 milhões de dólares pela Fox - praticamente metade do valor pretendido pela autora. Muito embora a distinção entre as finalidades da responsabilidade penal e a da responsabilidade civil seja tradicional e historicamente conhecida4, a circunstância de a transação envolver apenas o pagamento da expressiva cifra antes indicada, quase um bilhão de dólares, acarretou, em alguns setores, uma certa frustração, que teve por base mais de um fundamento. Em primeiro lugar, a transação não foi acompanhada de qualquer reconhecimento por parte da Fox de que ela havia agido maliciosamente. De forma mais concreta, não houve por parte dela qualquer pedido de desculpas em face da Autora, muito menos qualquer reconhecimento de que agiu contrariamente a padrões exigidos em sua atividade. Limitou-se a empresa a reconhecer que algumas alegações divulgadas relativamente à Dominion não eram verdadeiras, mas reafirmou os seus elevados padrões de jornalismo5. Em síntese, não houve tanto perante a Dominion, autora da ação, como por extensão em relação à comunidade em geral, o reconhecimento por parte da Fox de que ela agiu erradamente, violando códigos éticos e morais de conduta6. Essa circunstância parece representar uma certa dissociação entre os interesses da Dominion, que mediante o resultado financeiro do acordo, alavancou seu patrimônio de forma astronômica, na medida em que o investimento inicial na companhia foi de 38 milhões de dólares7, e os críticos da Fox, que a veem como uma inimiga dos melhores interesses da opinião pública - e por extensão da democracia -, razão pela qual esperavam que ela fosse explicitamente sancionada.  Em essência, a mera conclusão patrimonial não pareceu a melhor solução para os analistas, que exigiam uma espécie de penalidade e, provavelmente, uma execração pública da Fox, na medida em que consideravam sua conduta como violadora de padrões morais da sociedade.  Vislumbra-se, portanto, que apesar do reconhecimento da função corretiva da responsabilidade civil8, essa finalidade não pode, em princípio, ser alcançada de ofício, ou ao menos quando o interesse da vítima se dirige primordialmente à compensação, como ocorreu no caso da Fox. Com efeito, observa-se que não obstante seja reconhecido o valor das desculpas como instrumento de correção e sanção para o causador do dano9, este mecanismo pressupõe o interesse da vítima, que não se apresentou no caso concreto. Desse modo, o papel institucional que as desculpas poderiam desempenhar foi substituído pelo pagamento de uma soma em dinheiro exclusivamente ao ofendido, sem que a opinião pública pudesse vislumbrar que os seus valores morais violados foram igualmente, ainda que de forma simbólica e mínima, reparados10. Sobressai, aliás, a perspectiva de quanto mais alto for o valor pago pelo suposto causador do dano à vítima, especialmente no estágio inicial do processo, mais rapidamente esta estará disposta a renunciar a um eventual pedido de desculpas, o que implica uma certa fragilidade do mecanismo de responsabilidade civil, baseado precipuamente no pagamento de valores indenizatórios, para propiciar a satisfação social almejada por determinadores setores. Para piorar as coisas, logo apontou-se que o valor da transação, altamente expressivo para o comum dos mortais, não acarretaria um prejuízo expressivo para a Fox. A razão para essa constatação reside na circunstância de que a quantia paga poderia ser deduzida do seguro contratado pela Fox, estando coberta a partir da previsão para os riscos decorrentes de sua atividade (media liability insurance). Uma demanda como a enfrentada pela Fox e a consequente transação inserem-se nas provisões do seguro normalmente realizadas pelas companhias americanas, de modo que uma parte da indenização paga será reembolsada pelas seguradoras contratadas11. Além disso, em se tratando de pagamentos a particulares, a companhia poderá deduzir o valor do acordo invocando benefícios fiscais, conforme foi noticiado pelos especialistas americanos, na medida em que pagamento do valor da indenização poderá ser qualificado como uma despesa necessária para o custo da realização do negócio12.  Por fim, foi devidamente ressaltado que a Fox detém, em caixa, a quantia de 4 bilhões de dólares, de modo que, muito embora expressivo, o valor pago no acordo não afetará o desempenho da companhia. Em essência, portanto, o pagamento do valor decorrente da transação não representará, efetivamente, qualquer valor 'punitivo' para a empresa, capaz de eventualmente abalar suas atividades, ou acarretar ao menos qualquer responsabilidade corporativa para seus dirigentes ou membros do board, por força de um eventual prejuízo para os seus acionistas. Nesse contexto, muito embora se trate da maior soma paga na história americana em face de uma ação de difamação, a análise feita a partir da transação celebrada resultou em uma percepção crítica sobre as potencialidades da responsabilidade civil para efetivamente exercer uma função corretiva, a fim de alterar uma conduta reputada por todos como contrária aos melhores valores sociais. Configurou-se, portanto, um paradoxo: diante dos mecanismos de proteção estabelecidos pela empresa previamente e em face de seu extraordinário poderio econômico, ao invés de configurar uma sanção, o valor astronômico da transação resultou inexpressivo frente ao alto grau de culpa atribuída ao ofensor por diversos setores sociais, de modo que o processo civil movido pela autora demonstrou-se, em princípio, incapaz de servir como elemento dissuasório, a fim de impedir a reiteração de condutas como a praticada pela Fox. Essa percepção, porém, deve ser objeto de ponderação. Deve-se, de um lado, evitar percepções niilistas, capazes de levar ao imobilismo, como 'se não houvesse nada de novo sob o sol'. De outro, há que se afastar a percepção de que o sistema jurídico não atinge as classes dominantes, de modo a automaticamente caracterizar o direito como um instrumento de manutenção do status quo. Mesmo que a ação civil proposta, e o correspondente processo civil instaurado, tenham sido extintos a partir da transação, o elevado valor pago pelo "suposto" causador do dano revelam indiretamente um reconhecimento de responsabilidade e sinalizam a necessidade de atender a padrões mínimos de condutas: ou seja, certos padrões não podem ser ultrapassados, pois geram consequências. Nesse contexto, há que se reconhecer que o Direito Privado pode servir como um instrumento de subversão, ou seja, atuar para alterar as condições sociais, sendo que, como subsistema jurídico do Direito Privado, também a responsabilidade civil pode configurar um mecanismo de alteração de condutas sociais, estando presentes os pressupostos para que ela possa exercer esse papel. Desse modo, a transação no processo entre Dominion e Fox e o valor vultoso objeto de pagamento podem servir como um estímulo de reflexão, e não como um fator de desestímulo nesse longo percurso evolutivo. __________ 1 O referido standard foi estabelecido de modo unânime na decisão New York Times v. Sullivan, da Suprema Corte, de 1964. 2 Ver, por exemplo, ANDRADE, Fábio S. Notas sobre a transação como contrato típico: instrumento negocial de autorregulação dos conflitos entre particulares. Revista de Direito Civil Contemporâneo, 2017, v. 13, p. 171ss. 3 Ver por exemplo GARANI, João Peixoto; DENARDI, Eveline. Técnicas de Negociação e de Transação como forma de ampliar a efetividade dos meios extrajudiciais de solução de conflitos - um estudo sobre experiências internacionais. Revista Jurídica Luso Brasileira, 2021, n. 4, p. 891 ss; BERGAMASCHI, André Luis; TARTUCE, Fernanda. A Solução negociada e a figura jurídica da transação. Associação necessária? 4 Ver, por exemplo, ANDRADE, Fabio S. de. Notas sobre as distinções e relações entre a Responsabilidade civil e a responsabilidade penal. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, 2020, n. 95, p. 83 ss. 5 No original : "We acknowledge the Court's rulings finding certain claims about Dominion to be false. This settlement reflects FOX's continued commitment to the highest journalistic standards. We are hopeful that our decision to resolve this dispute with Dominion amicably, instead of the acrimony of a divisive trial, allows the country to move forward from these issues".      6 Sobre o tema ver, por exemplo, ROSENVALD, Nelson. Os danos irreparáveis na filosofia da responsabilidade civil norte-americana: Um contributo de Gregory Keating - Parte 1, migalhas direito privado no common law, 20.03.2023. 7 MYSTAL, Elie. The Lesson of the Dominion Suit ? Corporations won't save us from Fox. The Nation.com 8 Ver, por exemplo, CARVAL.  Suzanne. La responsabilité civile dans sa fonction de peine privée. Paris: LGDJ, 1995. 9 Ver, por exemplo, VINES, Prue. Apologies as corrective Justice in Tort Law : Reparation and Compensation as (partial) redemption in a Torts System. UNSL Law Series, 2018, vol. 79, p. 1. 10 MYSTAL, Elie. The Lesson of the Dominion Suit ? Corporations won't save us from Fox. The Nation.com 11 ANDERSON, MAE. Fox's Settlement with Dominion unlikely to cost it $ 785.5M.  12 ANDERSON, MAE. Fox's Settlement with Dominion unlikely to cost it $ 785.5M.
Há pouco mais de 10 anos, com o surgimento do Facebook e, posteriormente, do Instagram e do Whatsapp, o comportamento da sociedade atravessou uma estrondosa mudança de hábito, potencializada não só pelo aumento do uso da tecnologia como também pelo confinamento decorrente da pandemia da Covid-19. A velocidade dos acontecimentos diariamente retratada (e eternizada) nas redes sociais trouxe não só a redução da privacidade e da intimidade, mas o aumento da ocorrência de danos. O tradicional "querido diário" de outrora hoje é compartilhado coletivamente nas redes sociais. As postagens variam entre conquistas profissionais, ida à academia, o prato do dia, a festinha do fim de semana, as sonhadas férias e tudo o mais que acontece na vida de uma pessoa em atividade digital. Todos assumiram o seu lado pop star e se transformaram em verdadeiros influenciadores digitais por meio de lives, vídeos, dancinhas, "reels" e fotos postadas nas redes sociais. Porém, a vida digital não é bem esse mar de rosas muitas vezes retratado minuto a minuto na Internet. Na realidade, esse ambiente digital, trazido pelas redes sociais, é bastante fértil para a ocorrência de danos, o que torna cada vez mais visível o despreparo da sociedade para uma vida social hígida no ambiente digital, evidenciando uma vulnerabilidade digital da coletividade. Uma das formas de dano oriundas da vida digital é o abuso de direito no exercício da liberdade de expressão1. No ambiente das redes sociais, as pessoas se sentem autorizadas a opinar sobre tudo e sobre todos como se fossem verdadeiros juízes do exercício da vida alheia, em um verdadeiro Tribunal da Internet, cuja competência principal é julgar o cotidiano dos outros sem ser provocado, além de multiplicar opiniões, levantar discursos odiosos e até mesmo discutir com desconhecidos para fazer valer a própria opinião. A figura obsoleta da chamada "Fifi Fofoqueira" - idealizada na figura de uma mulher na janela, olhando o movimento dos passantes - foi substituída pelo fofoqueiro digital, atividade profissional e lucrativa, não necessariamente exercida por um jornalista de formação. Sempre convidado para festas e grandes eventos, o fofoqueiro digital, por vezes realiza atividade descompromissada com a ética do que está sendo noticiado. A atividade de fofoqueiro retrata não só o cotidiano das celebridades, a beleza, a moda e o glamour, mas principalmente as polêmicas, os fins de relacionamentos e as perdas de contrato, pois, infelizmente, é o que dá engajamento e, portanto, lucro.   Quanto mais fofoca se faz, mais seguidores e mais visibilidade se tem e, por consequência, mais dinheiro se ganha com publicidades e contratos. Os seguidores, por sua vez, alvo de toda a publicidade promovida, estão sempre aptos a opinar, criticar, sem qualquer filtro, por se sentirem protegidos pelo ambiente remoto cujo escudo é a tela do celular. Em um ambiente de poucos escrúpulos, nem sempre se leva em consideração se a situação noticiada vai provocar algum dano a alguém, pois a preocupação maior é o burburinho da notícia.  Em 2022, uma sucessão de boatos, seguidos por críticas e ataques sem propósito algum à atriz Klara Castanho, movimentou as redes sociais, voltando a atenção da sociedade a respeito da vulnerabilidade digital das pessoas e da gravidade dos problemas oriundos da fofoca digital. A situação teve início com um teaser2de um fofoqueiro digital que, em poucas palavras, afirmava ter uma atriz, de 21 anos, encaminhado o filho recém-nascido para a adoção, provocando a curiosidade das pessoas a respeito da identidade da atriz. Em seguida, desconhecendo o contexto da situação e antes mesmo de se inteirar sobre o assunto, uma apresentadora de televisão, realizou uma live em que tomava como inaceitável a conduta da referida atriz, mencionou ainda que a parturiente sequer teria olhado para o nascituro e por fim imputou a ela o crime de abandono de incapaz. A proporção tomada pela fofoca digital levou a atriz Klara Castanho, a uma situação de completa fragilidade emocional, pois a partir dali iniciaram-se as propagações dos ataques moralistas e os discursos odiosos, forçando a atriz a justificar os fatos, através de nota postada em sua conta pessoal do Instagram. O triste relato trazia uma sequência de violências sofridas pela atriz que havia sido estuprada e, tendo descoberto a gravidez tardiamente, optou por realizar o procedimento de entrega voluntária do bebê para adoção (art. 19A do ECA). A informação teria sido vendida pela enfermeira que atendeu Klara no hospital a um fofoqueiro de plantão que, após a nota de esclarecimento da atriz, se viu no direito de realizar uma reportagem sobre o ocorrido, mesmo tendo sido orientado pela assessoria da atriz a não fazer qualquer abordagem sobre o assunto. Depois, a matéria foi apagada das redes e seguida de um pedido de desculpas do responsável pela postagem e da diretora da redação do jornal digital cuja função principal é noticiar a vida das celebridades. O episódio gerou comoção nas redes sociais por parte dos fãs e admiradores de Klara, reabrindo o sempre atual debate sobre a privacidade de pessoas públicas e danos digitais. Diante desta situação, questiona-se: o pedido de desculpas teve alguma relevância jurídica para o dano provocado? Nesse caso específico, o pedido de desculpas isolado servirá como forma de reparação natural apta a reparar integralmente a vítima? É possível haver cumulação da reparação pecuniária com a reparação natural? Como atender ao princípio da reparação integral nesse tipo de situação? O direito à privacidade, na perspectiva do Direito Civil Constitucional, é uma espécie de direito da personalidade e, como tal, encontra fundamento constitucional nos direitos fundamentais à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem, bem como na inviolabilidade da casa, do sigilo e dos dados pessoais do indivíduo (art. 5º, incisos X - XII). Aliado a isso, a proteção de dados é direito fundamental, incluído no rol do artigo 5º, pela Emenda Constitucional 115/2022. No caso Klara Castanho, além da privacidade, houve uma violação a um outro direito fundamental autônomo que com este não se confunde, qual seja, o direito à proteção de dados. Já no Código Civil, a privacidade está regulada nos artigos 20 e 21 que garantem a inviolabilidade da vida privada, notadamente, quanto à transmissão de atos, escritos, palavras e imagens do sujeito, sem prejuízo de eventual indenização em caso de violação. Vista sob a perspectiva de cunho espacial, a privacidade não está limitada somente ao espaço físico3, mas também às ações do indivíduo no ambiente digital, abrangendo não só os dados pessoais, mas - principalmente - a sua intimidade, sendo irrelevante para tanto o fato de o indivíduo ser - ou não - uma pessoa pública. Nesse contexto, o professor Paulo Lôbo elege três faces da privacidade, quais sejam: i) o direito à intimidade e à vida privada, ii) direito ao sigilo e iii) direito à imagem. O direito à intimidade, portanto, está relacionado ao domínio privativo do sujeito, isto é, fatos que não se deseja compartilhar com ninguém, denominados pelo Prof. Paulo Lôbo de "direito de não informar", a exemplo do episódio vivenciado pela atriz Klara Castanho. São as situações de cunho particular aptas a trazer dor e sofrimento ao sujeito, cujo sigilo se deseja manter4. No caso da atriz, além do direito à proteção de dados, todas as faces da privacidade foram violadas. O ambiente das redes sociais, apesar de haver o compartilhamento espontâneo da vida privada do usuário, não autoriza a disseminação da vida íntima do sujeito cujo sigilo se deseja manter, ainda que este seja uma pessoa pública. Ademais, a preservação da privacidade é pedra angular da Lei Geral de Proteção de Dados, por ser fundamento da política de proteção de dados (art. 2º, I, II e IV, da LGPD) e direito do seu titular (art. 17 da LGPD). Além disso, dados de saúde configuram dados pessoais sensíveis (art. 5º, II, da LGPD), sendo dever do Hospital garantir o sigilo destes, em respeito ao princípio da segurança (art. 6, VII, da LGPD). Nos espaços relacionais, a exemplo de hospitais e consultórios médicos, há um espaço mais amplo a ser tutelado, porque a intimidade e os dados sensíveis do sujeito ficam (ou deveriam ficar) limitados às pessoas envolvidas. Veja-se que a notícia do parto seguido da entrega voluntária para adoção deveria ser sigilosa5 porque compreendida em prontuário médico. Apesar disso, foi vendida pela enfermeira do Hospital a fofoqueiros digitais. A profissional vilipendiou dados sensíveis e desrespeitou tanto o sigilo profissional como o sigilo do processo judicial relativo à entrega para adoção. Diante do ocorrido, o Hospital emitiu nota se desculpando com a atriz e ressaltando que "tem como princípio preservar a privacidade de seus pacientes bem como o sigilo das informações do prontuário médico''. O hospital se solidariza com a paciente e familiares e informa que abriu uma sindicância interna para a apuração desse fato"6.  Por outro lado, importa registrar que os fatos aqui narrados não são resguardados pela liberdade de expressão dos causadores dos danos, estando a hipótese na seara do abuso de direito, pois, pelas razões acima expostas, do outro lado da balança estão valores existenciais merecedores de tutela constitucional qualificada, quais sejam, o direito à intimidade, ao sigilo de dados sensíveis e à imagem, diretamente preservados pelo princípio da dignidade da pessoa humana. A esse respeito, Maria Celina Bodin de Moraes esclarece: O substrato material da dignidade assim entendida se desdobra em quatro postulados: i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado da vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado7.                Assim, todos os sujeitos de direito são merecedores da tutela da privacidade em suas três faces por conformar e informar o princípio da dignidade humana. Diante da vulnerabilidade digital e dos danos à intimidade, à honra e à imagem sofridos por Klara, importa enumerar os responsáveis: i) o Hospital, em decorrência de divulgação de dados sensíveis provocado por preposto (artigo 932, inciso III, do Código Civil); ii) os fofoqueiros digitais pela divulgação e disseminação da notícia sabidamente sigilosa cuja publicação foi expressamente desautorizada pela atriz e iii) a apresentadora e influenciadora que caluniou a atriz ao imputar-lhe crime de abandono de incapaz, atingindo não só a sua privacidade como também a sua honra. A ofensa à direito da personalidade pode se dar por meio da i) reparação pecuniária, em que se fixa um valor indenizatório a título de compensação pela dor moral sofrida, efetivada em uma obrigação de dar (pagar) ou da ii) reparação natural, ou seja, quando se utiliza de todos os meios para levar a vítima - de alguma maneira - a  uma situação semelhante a que ela se encontrava antes de sofrer o dano. Nesta segunda hipótese, a reparação do dano causado é realizada por meio de obrigações de fazer ou de não fazer. A aplicabilidade da reparação natural se extrai do princípio da reparação integral, cujo fundamento é constitucional. Nesse sentido, o homenageado Carlos Edison Monteiro Filho: Como se pode inferir, de um lado, em exame sob a perspectiva existencial, os danos extrapatrimoniais são merecedores de tutela privilegiada, estando intrinsecamente ligados à dignidade da pessoa humana, segundo a normativa da Constituição. Erigida a fundamento da República (art. 1º, III), a dignidade da pessoa humana se irradia prioritária e necessariamente por todo o ordenamento e consagra a plena compensação dos danos morais (art. 5º, V e X), fundamento extrapatrimonial da reparação integral. De modo que o sistema traçado pelo constituinte, além de promover, com a necessária prioridade, os valores existenciais, repudia qualquer atentado à sua integridade, forjando assim cláusula geral de tutela que embasa o mecanismo sancionatório a assegurar, em sua totalidade, a compensação dos danos extrapatrimoniais.8 Assim, para se atender ao princípio da reparação integral, diante da ocorrência de danos existenciais, é necessária a cumulação de pedidos indenizatórios e compensatórios por parte do sujeito lesado, cabendo à doutrina dar protagonismo às diversas formas de reparação natural como meio de atender ao melhor interesse da vítima, reparando-a integralmente. O direito de resposta é regulado pela lei 13.188/2015 e tem por objetivo assegurar ao ofendido, por matéria divulgada nos meios de comunicação social, a correção das informações inverídicas de forma gratuita e proporcional ao dano. A publicação da sentença condenatória em larga escala, por sua vez, se presta a dar repercussão social mediante a divulgação da condenação em caráter definitivo do causador do dano.  A retratação, extraída do direito penal, é uma das hipóteses de extinção da punibilidade nos crimes contra a honra (art. 143 do CP), pois implica na retirada, por parte do ofensor, daquilo que foi dito anteriormente, devendo este esclarecer, de forma completa e livre de dúvidas, a veracidade dos fatos. Assim, por exemplo, diante da divulgação de uma notícia falsa, o ofensor pode se retratar e, dirigindo-se aos destinatários da informação, corrigi-la. O caso Klara, no entanto, contém uma peculiaridade, pois a primeira postagem da notícia, qual seja, "atriz, de 21 anos, entrega filho para adoção" foi incompleta e fora de contexto, levando à compreensão de uma notícia falsa como se a atriz estivesse descartando um filho proveniente de uma aventura juvenil. Nesse caso, o causador do dano poderia ter se retratado, retificando ou complementando a informação. Porém, a retificação da notícia resultaria em um dano ainda maior, pois findaria por expor a intimidade da vítima e fatos dos quais ela desautorizou a divulgação.  Assim, o primeiro fofoqueiro digital - que não sabia da integralidade dos fatos, mas deveria saber - agiu corretamente ao apagar a postagem e silenciar sobre o assunto, pois a retratação resultaria em mais danos.  Diferentemente da retratação, o pedido de desculpas é personalíssimo, isto é, somente pode ser exercido pelo ofensor, trazendo consigo a intenção deste de buscar o perdão da vítima pelo dano causado. Assim, o destinatário do pedido é o ofendido, bastando que a ele seja dirigido e cientificado, independentemente do meio de comunicação utilizado. Contudo, isso não impede que o pedido de desculpas seja feito de forma pública. Ademais, o arrependimento do ofensor é irrelevante para efeito de reparação, ante a subjetividade da conduta cuja averiguação é inviável de ser constatada. Dos personagens envolvidos no episódio da Klara Castanho, apenas o Hospital e os fofoqueiros digitais se preocuparam em se desculpar com a atriz pelo ocorrido. Nesse contexto, o pedido de desculpas e a retratação podem figurar tanto na função compensatória da reparação civil como na função reparatória. Na primeira, figuram como espécies de reparação natural, ao tentar trazer a vítima para o momento fático mais próximo do estado em que ela se encontrava antes do dano acontecer; na segunda são utilizados como um dos elementos de minoração da quantificação do dano, pois interferem diretamente na extensão do prejuízo. Nesse contexto, a eficiência do pedido de desculpas de algumas situações, contudo, não pode ser capaz de afastar a via indenizatória sob pena de mácula ao princípio da reparação integral.  Sobre o assunto, o professor Paulo Lôbo pondera: O dano moral é suscetível de fixação pecuniária equivalente e é de difícil reparação in natura. De qualquer modo, é reparável, encontrando-se o valor patrimonial, por equidade. No caso de ofensa à honra, mediante divulgação pública (cartazes, manifestações pela imprensa, redes sociais), a indenização pode ser acrescida de outras reparações específicas, aproximadas das reparações in natura, como a retratação pública. O Código Civil especifica a reparação por injúria, calúnia ou difamação, mas estas não são as únicas hipóteses de dano moral. A ofensa moral pode ser sem palavras, como na publicação de fotografia de alguém, sem identificação, dando a entender ser cúmplice de criminoso9. Aceitar a cumulação é, portanto, referendar as cláusulas abertas, contidas no Código Civil Brasileiro, em obediência ao princípio da reparação integral. Veja-se que, no caso da Klara Castanho, o pedido de desculpas não é minimamente capaz de levar a vítima à situação próxima ao status quo ante, demonstrando-se imprescindível a cumulação de pedidos que poderiam ser: i) indenizações a serem pagas por todos os envolvidos na ocorrência do dano por violação da privacidade da atriz, ii) o pedido de desculpas por todos os envolvidos, notadamente, os fofoqueiros digitais, o jornal digital onde a notícia foi veiculada por um deles, o hospital, a enfermeira e a apresentadora, iii) a punição administrativa da enfermeira e dos fofoqueiros, traduzida na demissão de todos eles, e iv) a suspensão do perfil do Instagram da apresentadora, utilizado para levantar discursos de ódio contra a atriz. A atriz ajuizou diversas ações contra os envolvidos, porém por estarem em segredo de justiça não é possível saber o conteúdo dos pedidos realizados por ela. Sabe-se, apenas, que o Conselho de Enfermagem arquivou o processo disciplinar contra os profissionais de saúde envolvidos, por ausência de provas. O caso Klara Castanho demonstra que nem sempre a reparação natural é capaz de levar a vítima ao estado anterior de coisas ou mesmo a situação próxima a este estado. Nesses casos, a reparação natural repercute apenas na extensão do dano, reduzindo a dor sofrida sem, contudo, repará-la integralmente. A cumulatividade entre as funções reparatória e ressarcitória, é de escolha, por parte da vítima. Logo, uma indenização pode ser aliada a uma obrigação de fazer, a exemplo do pedido de desculpas, pois somente a vítima é capaz de indicar como a reparação do dano sofrido será alcançada. __________ 1 Sobre esse tema vide: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rego e MOUTINHO, Maria Carla. O mérito do riso: limites e possibilidades da liberdade do humor. In EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LÔBO, Fabíola Albuquerque; ANDRADE, Gustavo (Coord.) Liberdade de expressão e relações privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 219-235. 2 Utilizado em peças publicitárias, o teaser constitui uma publicação, prestando informação incompleta com o objetivo de provocar a curiosidade das pessoas.  3 No espaço físico, a tutela da privacidade pode se apresentar de várias formas: em ambientes públicos, nos ambientes relacionais e na residência das pessoas. Apesar disso, sabe-se que, nos ambientes públicos, em princípio, a privacidade é quase irrisória, não se podendo livrar do conhecimento de passantes os fatos ocorridos nesses locais. 4 LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 159. 5 As informações fornecidas ao médico e mantidas em prontuário se revestem de sigilo e pertencem única e exclusivamente ao paciente. 6 Disponível aqui. Acesso em 29/6/2022. 7 MORAES. Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional do dano moral. 1ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 85. 8 MONTEIRO FILHO, C. E. DO R. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. civilistica.com, v. 7, n. 1, p. 1-25, 5 maio 2018. 9 LÔBO, Paulo. Direito Civil: obrigações. vol 2.. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 363.
Violações relacionadas a dados pessoais têm se tornado recorrentes em ritmo consentâneo com a evolução da sociedade da informação e em decorrência da introjeção de novas tecnologias nas rotinas individuais. De fato, todo tipo de atividade realizada a partir de então adquire contornos peculiares e desafiadores conforme se avolumam os incidentes de segurança de grandes proporções. Técnicas para a tutela jurídica desses incidentes passam a envolver - para além do mapeamento das vulnerações - o propósito mais abrangente da reparação civil, que, pelas proporções tipicamente gigantescas, demanda atuação dos legitimados para a tutela coletiva. Significa dizer que a tormenta gerada por situações dessa estirpe, embora encontre suporte normativo para a instrumentalização de ações coletivas que visem solucionar seus impactos deletérios, recorrentemente demandará análise casuística de seus efeitos a fim de que se possa conjecturar institutos jurídicos mais adequados para cada evento danoso. No contexto específico da proteção de dados pessoais, nem sempre se terá uma única violação setorial em eventos multitudinário e nem toda relação jurídica atingida será, por exemplo, de consumo, o que gera dúvidas quanto à invocação de instrumentos previstos no Código de Defesa do Consumidor - CDC (lei 8.078/1990), como a reparação fluida (fluid recovery) de seu artigo 100, para solucionar determinado caso1. A grande repercussão de violações variadas, usualmente relacionadas a crimes cibernéticos que desencadeiam a exposição indevida de conjuntos de dados, tem sido uma preocupação hodierna. Situações dessa natureza são noticiadas pela mídia sob a alcunha de "vazamentos"2, embora, em termos mais apropriados, seja preferível descrevê-las como "incidentes de segurança"3. Com o recrudescimento do uso de estruturas automatizadas para o tratamento de dados pessoais, o desafio tem se tornado ainda maior, pois passa a extrapolar a ação criminosa de hackers, crackers, spammers e malfeitores em geral. Eventos multitudinário têm sido caracterizados, em notícias recentes que circulam pela mídia, pela palavra "megavazamentos"4. Em seu cerne, o fenômeno descrito pela doutrina como Big Data5 - que remete ao volume massivo de dados que circula pela rede e que alimenta estruturas algorítmicas - é o fator preponderante da aferição casuística de cada evento, o que pode sinalizar a necessidade de soluções variadas para um fenômeno complexo e que atinge interesses plurissubjetivos variados e inegavelmente danosos6, mas recônditos. Eis alguns exemplos: a) publicidade comportamental e perfilização7; b) policiamento preditivo (predictive policing)8 e os "risk assessment instruments" (RAIs) para o mapeamento da criminalidade em grandes centros urbanos9-10; c) geo-pricing e geo-blocking, que são técnicas que analisam a localização geográfica do usuário para apresentar-lhe preços diversos (discriminatórios) ou negar-lhe acesso ao produto ou serviço11; d) a discriminação por gênero, peso, idade ou outros fatores para a ocupação de determinados postos de trabalho12; e) para fins de reconhecimento facial13-14; f) para a propagação do discurso de ódio (hate speech); g) para a propagação de fake news15; h) os citados "megavazamentos" etc. Todas essas atividades acirram riscos - muitos deles evitáveis e previsíveis - e desencadeiam os malfadados ilícitos. Analisando a interlocução normativa do CDC com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD (lei 13.709/2018) e outras fontes, como a Lei da Ação Civil Pública - LACP (lei 7.347/1985), fica clara a necessidade de conformação dos contornos estruturais da atuação dos legitimados para a tutela coletiva, que poderão se valer de institutos como a citada reparação fluida, mesmo em casos nos quais a identificação dos interesses violados não seja precisamente classificada como uma vulneração de consumo, a gerar reverberações plurais que justifiquem a conexão normativa descrita pelo artigo 45 da LGPD, segundo o qual "as hipóteses de violação do direito do titular no âmbito das relações de consumo permanecem sujeitas às regras de responsabilidade previstas na legislação pertinente". Ora, nem sempre é possível individualizar todas as vítimas de um evento danoso, o que gera dificuldades para a delimitação do interesse merecedor de tutela - se difuso, coletivo ou individual homogêneo -, embora a legislação aplicável determine a realização da tutela coletiva para eventos de violação à proteção de dados pessoais. Nesse contexto, merecem expressa transcrição os artigos 22 e 42, §3º, da LGPD: Art. 22. A defesa dos interesses e dos direitos dos titulares de dados poderá ser exercida em juízo, individual ou coletivamente, na forma do disposto na legislação pertinente, acerca dos instrumentos de tutela individual e coletiva. Art. 42. O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo. (...) § 3º As ações de reparação por danos coletivos que tenham por objeto a responsabilização nos termos do caput deste artigo podem ser exercidas coletivamente em juízo, observado o disposto na legislação pertinente. Nota-se, nos dois dispositivos, expressa remissão ao "disposto na legislação pertinente", indicando uma preferência do legislador, aparentemente calculada, quanto à não delimitação de instrumentos próprios para essa tutela, ou mesmo em relação à estipulação de explicações específicas acerca da aplicação dos métodos tradicionais de apuração de danos aos eventos de violação a dados pessoais. Leitura precipitada do artigo 45 da LGPD pode levar o intérprete à conclusão de que as relações de consumo que envolvam dados pessoais serão regidas unicamente pelo Código de Defesa do Consumidor. Isso é relevante para a averiguação da reparação fluida (fluid recovery) porque tal instituto é estruturado, no Brasil, pela legislação consumerista. O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 95, preconiza claramente que a sentença condenatória pautada em direitos individuais homogêneos será sempre genérica, demandando ulterior liquidação. A fase de conhecimento do processo coletivo destina-se, portanto, à delimitação do an debeatur (se há débito), do quis debeatur (o que é devido) e do quid debeatur (a quem se deve). Na LGPD, pouca clareza há quanto a diferenciações conceituais concernentes à delimitação dos danos, embora se tenha remissões ao "disposto na legislação pertinente" (art. 22 e art. 42, §3º, acima); nada se fala, em específico, sobre a extensão dessa conexão a outras leis, de modo que cabe ao intérprete analisar se o conteúdo de eventual decisão judicial decorrente de violação à LGPD deverá contemplar o cômputo dos danos. Na sistemática descrita, cada indivíduo lesado ou sucessor poderá, pessoalmente ou através de legitimados, promover a liquidação e posterior execução da indenização a que faz jus, conforme prevê o artigo 97 do CDC: "A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82". Destarte, na fase de liquidação e execução de que trata o referido dispositivo, surgem duas situações específicas: (i) a primeira diz respeito à iniciativa de cada uma das vítimas e de seus sucessores; (ii) a segunda traz à tona a possibilidade de ajuizamento dos pedidos de liquidação e execução pelos legitimados mencionados no artigo 82 do CDC16. Já no caso do artigo 98, tem-se a possibilidade de que a execução seja coletiva e promovida pelos mesmos legitimados do artigo 82, mas somente "abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiveram sido fixadas em sentença de liquidação, sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções". Consta do artigo 100 do CDC que, "decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida". A redação do dispositivo é clara e revela a opção do legislador brasileiro pela incorporação da fluid recovery norte-americana, mas com algumas distinções17, pois foram estabelecidos dois requisitos cumulativos para a sua viabilização, a saber: a) que transcorra o prazo de um ano para que se inicie a liquidação e execução da reparação, a partir do trânsito em julgado da sentença condenatória genérica a que se refere o artigo 95 do CDC; b) que a gravidade do dano seja incompatível com o número de habilitações à tutela coletiva18. A incorporação da reparação fluida no ordenamento brasileiro, pelo artigo 100 do CDC, tem o objetivo de reduzir as chances de que o lesante saia impune diante de determinada prática lesiva, que pode equivaler à inobservância dos parâmetros de segurança que lhe são impostos (a se constatar pela presença do verbo 'dever') no caput do artigo 46 da LGPD. A indenização pelo dano de grandes proporções tem a finalidade de garantir a prevenção geral de ilícitos19, algo evidente nos chamados "megavazamentos", na medida em que se atribui maior valor à eficácia deterrente (deterrence) e dissuasória que é associada ao interesse público subjacente à tutela coletiva20. Exatamente por isso, a reparação fluida se torna relevantíssima para a ampliação do acesso à justiça e para a efetivação do devido processo legal coletivo, uma vez que garante a satisfação da tutela coletiva em situações peculiares que envolvem direitos individuais homogêneos capazes de colocá-la em risco, mesmo que a identificação das vítimas de forma individualizada seja impossível ou dificílima21. Assim, devido à amplitude de determinadas ações coletivas, nem sempre o saldo total obtido por força de uma decisão judicial - ou até mesmo de um acordo - será vertido para indenizar, de forma integral, todos os indivíduos afetados. Por essa razão, é usual que haja um saldo não reclamado, uma sobra, um saldo residual, que merece ser destinado a algum fim socialmente útil. Essa destinação, no Brasil, é o Fundo de Defesa de Direitos Difusos criado pelo artigo 13 da lei 7.347/1985, com a seguinte previsão: "Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados". Referido fundo foi regulamentado pelo decreto 92.302, de 16 de janeiro de 1986. Sendo desejável que haja tutela coletiva em contraponto a eventos de grandes proporções que causem danos e gerem desequilíbrio no ordenamento, a integração da previsão do artigo 100 do CDC aos dispositivos delineados pela LGPD para a construção material da vulneração e para a responsabilização civil de quem cause danos (arts. 42 a 44) deve ser formatada para além do redirecionamento remissivo contido no artigo 45 da LGPD, que conecta seus termos ao artigo 100 do CDC, restringindo seu escopo apenas de forma aparente. Noutros dizeres, deve-se conceber a previsão do artigo 100 como uma festejada incorporação da reparação fluida ao ordenamento jurídico, com clara aplicação às relações de consumo, mas que não deve, nelas, se esgotar. Situações concernentes a vulnerações setoriais não consumeristas devem ser contempladas pelo instituto para que, também, se viabilize a imposição do instituto com o objetivo de redirecionar eventual saldo remanescente da condenação ao pagamento de dano moral coletivo ao FDD do artigo 13 da LACP. __________ 1 Cf. FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. A imprescindibilidade da reparação fluida (fluid recovery) para a tutela de ilícitos relativos a dados pessoais. Revista Fórum de Direito Civil, Belo Horizonte, ano 11, n. 30, p. 35-53, maio/ago. 2022. 2 O exemplo mais recente ocorreu no Brasil e envolveu a exposição ilícita dos números de CPF de 223 milhões de brasileiros, quantidade superior à da população do país, atualmente estimada em cerca de 212 milhões. Sobre tal fato, conferir a notícia divulgada, em 2021, pelo Migalhas. Acesso em: 15 maio 2023. 3 Explorei detidamente o conceito em publicação da coluna Migalhas de Proteção de Dados. Disponível aqui. Acesso em: 15 maio 2023. 4 Cf. TEIXEIRA NETO, Felipe; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Dano moral coletivo e vazamentos massivos de dados pessoais: uma perspectiva luso-brasileira. Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, ano 2, p. 265-287, 2021. 5 MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor; CUKIER, Kenneth. Big Data: a revolution that will transform how we live, work, and think. Nova York: Houghton Mifflin Harcourt, 2014, p. 19. Eis o conceito: "Big Data is all about seeing and understanding the relations within and among pieces of information that, until very recently, we struggled to fully grasp". 6 Para este tema, são importantíssimas as considerações desenvolvidas por Romualdo Baptista dos Santos, em sua Tese de Doutoramento, sobre o conceito de "dano enorme". Consultar: SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba/Porto: Juruá, 2018. 7 COLOMBO, Cristiano; GOULART, Guilherme Damasio. Inteligência Artificial aplicada a perfis e publicidade comportamental: proteção de dados pessoais e novas posturas em matéria de discriminação abusiva. In: PINTO, Henrique Alves; GUEDES, Jefferson Carús; CERQUEIRA CÉSAR, Joaquim Portes de (Coord.). Inteligência artificial aplicada ao processo de tomada de decisões. Belo Horizonte: D'Plácido, 2020, p. 286-290; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; BASAN, Arthur Pinheiro. Desafios da predição algorítmica na tutela jurídica dos contratos eletrônicos de consumo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 44, p. 131-153, dez. 2020, p. 141-146. 8 Exemplo recente envolveu a licitação iniciada pelo Município de São Paulo visando à implementação do sistema "Smart Sampa". Conferir interessante publicação da coluna Dados Públicos, de autoria de Patricia Peck Pinheiro, Cecília Frota e Maiara Fenili. Disponível aqui. Acesso em: 15 maio 2023. 9 SLOBOGIN, Christopher. Assessing the risk of offending through algorithms. In: BARFIELD, Woodrow (Ed.). The Cambridge handbook of the Law of Algorithms. Cambridge: Cambridge University Press, 2021, p. 432. O autor explica: "To aid in the risk assessment inquiry at sentencing, commitment, and pre-trial proceedings, a number of jurisdictions have begun relying on statistically derived tools called "risk assessment instruments" (RAIs). In a few urban areas, police are engaging in what has been called "predictive policing," which involves using data-driven algorithms to identify crime hot spots and sometimes even 'hot people'". 10 BORSARI, Riccardo. Intelligenza Artificiale e responsabilità penale: prime considerazioni. MediaLaws: Rivista di Diritto di Media, Milão, p. 262-268, nov. 2019. 11 MARTINS, Guilherme Magalhães. O geopricing e geoblocking e seus efeitos nas relações de consumo. In: FRAZÃO, Ana; MULHOLLAND, Caitlin (Coord.). Inteligência artificial e direito: ética, regulação e responsabilidade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 635-647. 12 REIS, Beatriz de Felippe; GRAMINHO, Vivian Maria Caxambu. A Inteligência Artificial no recrutamento de trabalhadores: o caso Amazon analisado sob a ótica dos direitos fundamentais. Anais do XVI Seminário Internacional "Demandas Sociais e Políticas Públicas na Sociedade Contemporânea". Santa Cruz do Sul: UNISC, 2019. 13 Conferir, sobre o tema: NEGRI, Sergio Marcos Carvalho de Ávila; OLIVEIRA, Samuel Rodrigues de; COSTA, Ramon Silva. O uso de tecnologias de reconhecimento facial baseadas em Inteligência Artificial e o direito à proteção de dados. Revista de Direito Público, Brasília, v. 17, p. 82-103, maio/jun. 2020, p. 99-100. 14 Exemplo recente envolveu a concessionária Via Quatro, condenada ao pagamento de indenização por dano moral coletivo em razão do implemento de sistemas de reconhecimento facial em áreas de espera do metrô de São Paulo com o intuito de mapear reações e traçar perfis para fins publicitários. Consultar, sobre o caso, COLOMBO, Cristiano; GOULART, Guilherme Damasio. New body perimeter and biometrics as personal data: some thoughts and insights on the 'São Paulo metro case'. Brazilian Journal of Law, Technology and Innovation, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 1-22, jan./jun. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 15 maio 2023. 15 Sobre o tema, consultar REIS, Robson Vitor Freitas; THIBAU, Tereza Cristina Sorice Baracho. Os discursos de ódio e as ações coletivas. Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 2084-2107, 2017. 16 O rol de legitimados contempla o Ministério Público; a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica,      especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC; as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC, dispensada a autorização em assembleia. 17 LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. O dano moral coletivo e a reparação fluida (fluid recovery). In: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA NETO, Felipe (Coord.). Dano moral coletivo. Indaiatuba: Foco, 2018, p. 389-393. 18 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ponderações sobre a fluid recovery do art. 100 do CDC. Revista de Processo, São Paulo, ano 29, n. 116, jul./ago. 2004, p. 327. 19 A este respeito, destaca-se que a indenização punitiva, segundo a doutrina, "consiste na soma em dinheiro conferida ao autor de uma ação indenizatória em valor expressivamente superior ao necessário à compensação do dano, tendo em vista a dupla finalidade de punição (punishment) e prevenção pela exemplaridade da punição (deterrence), opondo-se, nesse aspecto funcional, aos compensatory damages, que consistem no montante indenizatório compatível ou equivalente ao dano causado, atribuído com o objetivo de ressarcir o prejuízo. MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). Revista CEJ, Brasília, n. 28, jan./mar. 2005, p. 15-32. 20 VOIGT, Paul; VON DEM BUSSCHE, Axel. The EU General Data Protection Regulation (GDPR): a practical guide. Cham: Springer, 2017, p. 206. 21 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria geral das ações coletivas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 313.
A responsabilidade civil ambiental é dotada de especificidades próprias do dano ambiental, podendo se dar de duas formas: por meio da indenização e por meio da recomposição do meio ambiente ao status quo ante. A reparação civil por dano ambiental será devida tanto na esfera coletiva, tratando-se de interesses difusos, quanto na esfera patrimonial do particular atingido, quando se tratar de dano individual ou individual homogêneo (STEIGLEDER, 2011)1. Os Tribunais Superiores adotam, em relação ao dano ambiental, a teoria do risco integral. Por esta teoria, a mera criação do risco autoriza incidência da responsabilização civil, não se admitindo excludentes de ilicitude para afastar a reparação do dano causado (MACHADO, 2017). Constatado que a atividade exercida gera risco de dano ambiental, admite-se a inversão do ônus da prova, havendo presunção de responsabilidade em desfavor do réu. A responsabilidade civil por danos ambientais também é solidária (STEIGLEGER, 2011), podendo ser demandado qualquer dos causadores do dano ambiental, inexistindo obrigatoriedade de formação de litisconsórcio e assegurado o direito de regresso do demandado contra os demais causadores do dano ambiental. Destaca-se, ainda, que a pretensão de reparação civil por danos ambientais é imprescritível, conforme tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 654.833/AC. O dano ambiental, por vezes, se prolonga no tempo e "a valorização do futuro é importante para responder aos riscos invisíveis" (STLEIGLEDER, 2011, p. 121), sendo certo que a sociedade é o titular do bem jurídico. Reconhecida a autonomia jurídica do dano ambiental, não é possível limitar as formas de reparação ao direito civil clássico. Nesse sentido, emerge a necessidade de buscar formas de reparação eficazes que, para além da reparação, previnam a ocorrência de novos danos. O instituto da indenização punitiva é uma solução possível à efetivação da tutela civil do meio ambiente. A indenização punitiva, originária do direito inglês (punitive damages), é definida por Nelson Rosenvald como o "remédio monetário de caráter punitivo em complemento à recomposição das perdas patrimoniais e existenciais das vítimas, sempre em caráter extraordinário"2 (ROSENVALD, 2017). A indenização punitiva possui função punitivo-pedagógica, extrapolando a função compensatória da reparação civil. A indenização punitiva, além de ter a finalidade de desestimular a conduta lesiva, também visa reparar a vítima que sofreu danos que podem ser imensuráveis e forçar a sociedade a cumprir a lei. Possui, ainda, a função de educação, que diz respeito tanto ao causador do dano quanto à sociedade em geral, servindo para "informar e lembrar ao réu e à sociedade que determinado valor legal não apenas existe, mas recebe a proteção firme da lei" (OWEN, 1994, p. 13, tradução nossa). A função compensatória da indenização punitiva, por sua vez, visa garantir a reparação por perdas que não são facilmente recuperáveis, as quais o autor é incapaz de fazer prova objetiva, incluindo por exemplo, as despesas processuais e honorários advocatícios, cabendo ao causador do dano arcar com tais ônus. A indenização punitiva também possui a função de prevenir condutas similares, cuja efetividade depende dois fatores principais: se a lei, de fato, pune o causador do dano e se os potenciais infratores compreendem o que a lei prescreve e a possibilidade de serem punidos por eventual comportamento danoso (OWEN, 1994). Nesta esteira, para dissuadir o potencial causador do dano é necessário que ele compreenda as condutas proibidas, bem como os mecanismos que sejam capazes de forçá-lo ao cumprimento da lei. A aplicação da lei é complementar à função dissuasiva dos punitive damages, emergindo em momento posterior ao dano, quando a dissuasão não foi capaz de prevenir a conduta lesiva. A indenização punitiva exige que a vítima seja capaz de fazer prova do seu direito, a fim de fazer cumprir a execução da responsabilização. Owen (1994) destaca que a perspectiva de recebimento de indenização punitiva serve como incentivo à vítima para demandar judicialmente a tutela de seu direito. Por fim, a função da retribuição é considerada por Owen (1994) como a mais fundamental dos punitive damages. Essa função se mostra apropriada por proteger e possibilitar liberdade e igualdade, considerados como valores fundamentais da lei, possibilitando restauração da igualdade da vítima e da sociedade em geral para com o causador do dano ambiental. A retribuição, portanto, se dá tanto em favor da vítima quanto em favor da sociedade, assegurando o direito de igualdade para com o causador do dano ambiental, por vezes em condição de superioridade econômica. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu, de forma mitigada, o caráter punitivo da indenização como forma de desestimular comportamentos semelhantes. Como exemplo, tem-se o Recurso Especial 210.101/PR, no qual o Superior Tribunal de Justiça afirmou que a fixação do valor do dano deve buscar desestimular a repetição do ato ilícito, mas também evitar o enriquecimento ilícito do ofendido. O acórdão consignou que "a aplicação irrestrita das punitive damages encontra óbice regulador no ordenamento jurídico pátrio" (BRASIL, 2008)[3], em razão da vedação ao enriquecimento ilícito, mas autoriza sua incidência de forma mitigada. Para Rosenvald (2017), o ordenamento jurídico brasileiro resiste em aplicar a indenização punitiva, mas recorre à "hipertrofia do dano moral" como alternativa. A adoção do dano moral como resposta aos conflitos levados ao Poder Judiciário é dada como resposta à necessidade de desestimular a prática de ato ilícito, transcendendo o viés "puramente reparatório de lesões existenciais, anabolizando a sua quantificação", justificando-se em "uma pseudofinalidade punitiva, com fundamento na extrema reprovabilidade do comportamento do ofensor e em sua portentosa condição econômica." (ROSENVALD, 2017). A resistência dos Tribunais Superiores na aplicação irrestrita do instituto da indenização punitiva é justificada nas decisões com base no artigo 944 do Código Civil ("A indenização mede-se pela extensão do dano.") e ma vedação ao enriquecimento ilícito. Contudo, o dispositivo legal não pode ser óbice à aplicação da indenização punitiva, sobretudo no que toca à responsabilização civil por danos ambientais. O ordenamento jurídico brasileiro fornece elementos que obstam o enriquecimento ilícito do ofendido em caso de arbitramento de indenização punitiva por dano ambiental. Conforme disposto na Lei de Ação Popular, os valores arbitrados em sede de ação coletiva são direcionados ao Fundo gerido por Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais, dos quais devem fazer parte o Ministério Público e representantes da comunidade atingida. Nesse sentido, a fim de evitar o enriquecimento ilícito, a importação dos punitive damages pelo Direito Ambiental poderia restringi-lo aos danos ambientais coletivos. Na regulamentação da indenização punitiva, poderia haver previsão de não aplicação aos danos individuais decorrentes da lesão ambiental, sobretudo diante da assegurada participação da comunidade atingida no Fundo responsável pelo recebimento da indenização. Ademais, a responsabilidade civil objetiva prescinde da demonstração de culpa, mas não proíbe sua avaliação. Constada a ocorrência de dano ambiental que decorreu de conduta altamente reprovável por seu causador, é possível avaliar a gravidade da culpa do agente para fixação da indenização punitiva para desestimular a prática de novos danos, tanto pelo réu quanto pela sociedade. A lesão ao meio ambiente importa em lesão à direito fundamental garantido constitucionalmente, sendo necessário que as formas de responsabilização visem não só reparar e compensar o dano causado, mas também desestimular a prática de condutas lesivas e criar mecanismos de enforcement. O punitive damages é compatível com o ordenamento jurídico brasileiro e encontra espaço de aplicabilidade ao Direito Ambiental, sobretudo em razão da autonomia jurídica do dano ao meio ambiente. A indenização punitiva no caso de dano ambiental visa efetivar os princípios da solidariedade intergeracional e da reparação integral, desestimulando a prática de danos ao meio ambiente por meio da fixação de valor indenizatório que ultrapasse a mera compensação. Contudo, a importação do instituto originário do common law deve se dar de forma cautelosa, atentando-se para as especificidades na criação e aplicação do direito no civil law. Desse modo, propõem-se alternativas de adequação do instituto ao ordenamento jurídico pátrio. Destaca-se que fixação do quantum indenizatório deverá considerar as condições financeiras do causador do dano ambiental, a dimensão do dano, o grau de reprovabilidade da conduta e a gravidade do ato ilícito, não havendo vedação a análise da culpa para fixação da indenização punitiva. Cabe registrar que eventuais obstáculos à adoção da indenização punitiva pelo ordenamento jurídico brasileiro podem ser solucionados pela interpretação sistemática das próprias normas jurídicas, valendo-se da hermenêutica constitucional e considerando a premente necessidade de proteção e efetivação do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida. __________ 1 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. 2 ROSENVALD, Nelson. Uma reviravolta na responsabilidade civil. 2017. Disponível aqui. 3 BRASIL. Acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nº 201.101/PR. 09 de dezembro de 2008. Disponível aqui.
A recente experiência francesa de denúncias por parte de mulheres alegando terem sido vítimas de constrangimentos sexuais ou sexistas durante os exames ginecológicos ou obstétricos não diverge da realidade brasileira, evidenciando, assim, de modo ostensivo, a premência da renovação da cultura da responsabilidade civil correlata. Considerações iniciais O presente texto se inspira na saisine1 em julho de 2022 do Comitê Consultivo Nacional de Ética francês ("CCNE") pela atual Primeira Ministra francesa, Elisabeth Borne, com o fim de conduzir reflexão sobre o consentimento no contexto dos procedimentos ginecológicos e, mais amplamente, nos exames médicos que concernem à intimidade da  paciente.2 No ato de saisine, a chefa do governo justifica a consulta considerando que "a noção de consentimento evoluiu nos últimos anos em razão, principalmente, de novas situações geradas pelos progressos da medicina e das técnicas e pela confrontação dos profissionais da saúde e do social com as novas vulnerabilidades",3 e que "no âmbito dos cuidados ginecológicos, a noção de consentimento reveste uma importância e uma sensibilidade peculiares, pois os exames dizem respeito à intimidade psíquica e física das mulheres".4 De fato, além da crescente conscientização da população francesa acerca do problema dos constrangimentos marcados pela questão de gênero na sociedade em geral e no campo do sistema de saúde especificamente (criação do hashtag #PayeTonUterus, e polêmica surgida em 2015 a respeito dos toques vaginais e retais praticados quando a paciente está sob anestesia geral, por exemplo), o  que realmente determinou uma nova saisine do CCNE sobre um tema  já abordado no Avis5 136 de 15 de abril de 20216 foi um aumento expressivo da frequência das denúncias por parte de mulheres alegando terem sido vítimas de violências sexuais ou sexistas durante os exames ginecológicos ou obstétricos e a midiatização das ações judiciais envolvendo profissionais da medicina que possuem expressão pública e que recebem acusações de estupro por pacientes. Assim, não é por acaso que o CCNE foi consultado em julho de 2022, um mês depois de vir à tona o fato de um membro da equipe governamental, a Secretária de Estado para o Desenvolvimento, a Francofonia e Parcerias Internacionais, Chrysoula Zacharopoulou, especialista reconhecida em endometriose, ter sido  alvo de denúncias por estupro e violências sexuais que teriam acontecido quando exercia a profissão de ginecologista. Segundo a revista Marianne, em edição de 24/06/2022,7 que se refere a duas entrevistas realizadas com mulheres no programa de TV Quotidien da rede TMC, o Parquet de Paris aceitou  abrir, em maio de 2022, um inquérito, após receber as denúncias a fim de determinar se os fatos relatados pelas supostas vítimas eram suscetíveis de qualificação penal. A primeira entrevista se reporta a uma consulta durante a qual a paciente teria expressamente recusado o procedimento do toque anorretal (verbalmente e por um movimento de recuo do corpo), mas que teria sido imposto pela referida Secretária de Estado sob argumento de que, segundo a vítima, "no meu consultório é assim que acontece, não de outra forma". Na segunda, outra paciente acusa Chrysoula Zacharopoulou de ter praticado toques vaginais sem dizer uma palavra e por surpresa, além de toques anorretais também sem prévio consentimento, de maneira brutal, violenta e dolorida. Embora as conclusões do Parquet, comunicadas no início de abril de 2023, tenham sido pelo arquivamento das acusações por ausência de infração suficientemente caracterizada,8 a forte repercussão do caso na sociedade acabou amplificando as declarações da Primeira Ministra que registrou que as mulheres, após um exame médico, ficam, recorrentemente, com o sentimento de não terem sido respeitadas, em que pese ter destacado a preocupação de profissionais da saúde quanto à utilização das palavras não necessariamente em seus significados técnicos, como acontece com a alusão ao estupro.9 Foi justamente nessa conjuntura de ebulição midiática que, em fevereiro 2023, o CCNE adotou, à unanimidade, o Avis 142, que se intitula "O consentimento e o respeito da pessoa na prática de exames ginecológicos ou no que toca à intimidade"10 após o depoimento de mais de 30 pessoas, incluindo representantes de usuários e usuárias do sistema de saúde (associações e demais movimentos sociais contra as violências sexuais e de proteção das mulheres) e profissionais e estudantes da área da medicina, da enfermagem, da educação e do Direito. A experiência francesa não é isolada e denúncias similares ganham espaço na mídia nacional com uma frequência que sugere um contexto que carrega marcas indeléveis de violência de gênero na assistência à saúde. Tal realidade expressa, ostensivamente, a urgência da renovação da cultura do consentimento da mulher na assistência médica e a premência de revisitação dos elementos estruturais, das funções e da amplitude da responsabilidade civil. O consentimento  Desde os seus primeiros registros como exigência prévia para autorizar procedimentos médicos, em julgado do século XVIII, na Inglaterra, o consentimento alcança relevância no tempo e espaço, inclusive no campo da assistência médica. Trata-se de imperativo ético-moral alçado à qualidade de exigência normativa, cujos requisitos são determinantes para a validade de atos praticados na teia da relação entre profissional da medicina e paciente.11 Com efeito, esse novo estado de coisas rejeita a concepção de paciente que se submete a tratamento como ser "desvalido" de opinião sobre as decisões médicas tidas como impassíveis de compartilhamento, de informação e de deliberação dialogada. Vale dizer, a autonomia privada das pessoas participantes da relação médica exige expedientes eficientes para o seu reconhecimento e para o seu exercício.12 Assim, o consentimento é imprescindível para conferir à pessoalidade um caráter normativo, pois viabiliza que os seres humanos se assumam enquanto pessoas livres, que são regidas e reconhecidas por meio das ações que decidem praticar. Para tanto, é preciso perpassar por um processo comunicativo em que as pessoas possam definir suas escolhas, para que, nesse cenário, o Direito possa ser aperfeiçoado e aplicado.13 O consentimento livre e esclarecido14 é pressuposto para que profissionais da medicina realizem procedimentos que interfiram na esfera psicofísica da pessoa.15 Logo, tratando-se de aspecto essencialmente existencial, que se desenha em conformidade com o personalismo ético constitucional, o consentimento deve ser pleno, efetivo, nunca presumido, atual, espontâneo, consciente, informado e circunscrito. É sempre revogável, ou seja, cabe arrependimento e revogação a qualquer tempo.16 Portanto, o consentimento livre e esclarecido, no contexto da relação médico-paciente, somente é válido se concedido na dinâmica da exposição detalhada de aspectos relevantes do procedimento a ser realizado, devendo ser resguardada a prerrogativa de recusa e de interrupção da intervenção. Nas palavras de Márcia Santana Fernandes e José Roberto Goldim,17 vale destacar a  necessidade do uso da "palavra "processo" associada ao verbo "consentir", para que o consentimento seja compreendido como "uma cadeia de atos e/ou procedimentos, não necessariamente consecutivos ou postos de forma sequencial, que agregados ao ato de consentir lhe dão sentido e determinam os efeitos jurídicos". Nesse rumo, autora e autor lançam luzes sobre a importância de observância de elementos plurais, tais como capacidade psicológico-moral e jurídica; motivações subjetivas e/ou objetivas; forma escrita ou verbal; e informação. Tal giro conceitual parece guardar o potencial de colaborar com a renovação da cultura jurídica sobre a responsabilidade civil no que toca ao consentimento da mulher na assistência médica. Boas práticas e responsabilidade civil Uma possível concepção das chamadas boas práticas é a de que elas compreendem ações, procedimentos, processos ou métodos que foram estabelecidos como efetivos e que são amplamente aceitos como padrões para alcançar um objetivo específico, usualmente ligado à observância da responsabilidade em sentido ético-moral (positivo), à precaução/prevenção de danos, à explicabilidade de posturas e de processos, à prestação de contas, à mitigação/ afastamento da responsabilidade. Baseadas em experiências, pesquisas, testes e desafios pregressos, as boas práticas podem ser implementadas em áreas diversas, como as boas práticas de governança corporativa, boas práticas de mercado, boas práticas de proteção e de promoção de vulneráveis e de vulnerabilidades, boas práticas em tratamento de dados e boas práticas em serviços de saúde. Em um sentido mais amplo, boas práticas podem ser entendidas como gênero apto a comportar os programas e as práticas de conformidade e integridade, revelando a urgência de uma cultura organizacional e comunitária renovada e comprometida com a ética intersubjetivamente firmada. Esse debate que tem a ética como importante recurso discursivo oferece uma teia de possibilidades para reflexões de redimensionamento da responsabilidade civil, tanto em sua estrutura quanto em suas funções e em sua extensão. Na estrutura, os pressupostos da responsabilidade civil admitem os influxos para a configuração de um sistema plástico de licitude, que aceita incursões diretas dos ditames da boa-fé e de outros princípios que se apoiam no personalismo ético constitucional18. O nexo de causalidade enfrenta processos de erosão e de reinterpretação, haja vista que as boas práticas podem turvar a sua tradicional definição.  Novos danos são passíveis de reparação. A própria culpa depende, fundamentalmente, da diligência e do comprometimento com as práticas, que, eventualmente, servem para afastar, por exemplo, a negligência em determinado caso concreto.  As boas práticas reforçam a emergência de reconhecimento da multifuncionalidade da responsabilidade civil19, que pode se voltar para além da remediação de danos, para manifestar propósitos de precaução, punição, regulação de atividades, reparação social, distribuição de riscos, educação ético-cultural. Aliás, já vem sendo propriamente pontuado20 que, ao lado da função compensatória da responsabilidade civil (liability), destacam-se também, nas jurisdições do common law, três outros sentidos, quais sejam, os de "responsibility", "accountability" e "answerability". Essas figuras inspiram as dimensões da responsabilidade civil em seu regime nacional e podem encontrar sustentáculo na teia normativa vigente, especialmente aquela dos direitos e garantias fundamentais eficazes, inclusive, em perspectiva horizontal para as relações de direito privado. Em suma, as repercussões de inobservância do sistema mais amplo de boas práticas aplicáveis à relação médico-paciente são sentidas e provocam uma renovação cultural para a responsabilidade civil.  Considerações finais Favorável à instauração de uma nova cultura do consentimento no âmbito da saúde, ultrapassando a sua natureza meramente jurídica e o seu caráter tradicionalmente binário (sim/não), o CCNE21 considera que, diante do risco evidenciado de "despersonalização" dos atos médicos,22 o consentimento deve ser tratado como uma "construção dinâmica, relacional e social"23 visando à promoção de uma cultura humanista da saúde. O comitê de ética24 ressalta ainda que a relação de saúde deve ser sempre regida pelos princípios fundamentais do respeito da inviolabilidade do corpo humano, da autonomia e da dignidade de pacientes, de modo a propor uma redefinição das noções de intimidade, pudor e integridade corporal e psíquica, julgando imprescindível uma nova tipologia das violações ilegítimas e desproporcionais sofridas pelas mulheres nessa espécie de exame  (como o fato de desconsiderar o desconforto emocional ou as manifestações de pudor, falta de empatia, observações sexistas). Com base nessas observações, o CCNE, em sua manifestação, recomenda que os procedimentos ginecológicos envolvendo as esferas urogenital e anorretal sejam sempre praticados em um ambiente de escuta, de "saber-ser" e de autonomia de decisão para que se busque a preservação da intimidade das pacientes, com a validação de manifestações de desconforto como expressão de recusa. Vale dizer, o CCNE conclui que o consentimento deve ser informado e sistematicamente buscado na relação médico-paciente, não podendo ser presumido ou tácito, mas sempre explícito (embora suficiente a sua oralidade) e diferenciado para cada ato do exame que exige um "contato" com o corpo e para cada "toque" relativo à extrema intimidade da paciente.25 Esse posicionamento ressoa para a necessidade do resgate ético nas relações humanas, tanto na dinâmica de seu acontecimento quanto nos debates acerca de sua regência jurídica. As recomendações do CCNE tendem a desenhar-se como verdadeiros mananciais de boas práticas na relação entre paciente e obstetra, que possuem o potencial de prevenir e de mitigar violências correlatas e danos decorrentes. A experiência francesa de denúncias por parte de mulheres alegando terem sido vítimas de constrangimentos sexuais ou sexistas durante os exames ginecológicos ou obstétricos não é distante da realidade brasileira, na qual casos similares ganham espaço na mídia com uma frequência que sugere um contexto que carrega marcas indeléveis de violência de gênero na assistência à saúde. Tal realidade expressa, ostensivamente, a urgência da renovação da cultura do consentimento da mulher na assistência médica e a premência de revisitação de elementos estruturais, das funções e da amplitude da responsabilidade civil, que hão de ser considerados no desenho da configuração da repercussão civil da conduta tida por violenta à mulher em decorrência do descaso com o consentimento na assistência médica.26 __________ 1 Saisine é palavra polissêmica no direito francês. Em sentido amplo, "saisine" pode referir-se ao ato de submeter um assunto ou uma questão à apreciação de um órgão jurisdicional. No Direito Administrativo, por exemplo, pode designar a obrigação que tem a administração pública de examinar, por iniciativa própria, determinados assuntos de interesse público (saisine d'office). 2 LE MONDE. Elisabeth Borne saisit le Comité consultatif national d'éthique sur le consentement en gynécologie. 6 jul. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023. 3 Tradução livre do texto original. A íntegra da carta de saisine está disponível em: COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis N°142: Consentement et respect e la personne dans la pratique des examens génicologiques ou touchant à l'intimité. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023, p. 33. 4 COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis Nº 142: : Consentement et respect e la personne dans la pratique des examens génicologiques ou touchant à l'intimité. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023, p. 33. 5 Os "Avis" do CCNE francês têm natureza jurídica consultiva, sem força vinculante. Entretanto, sendo oriundos desse órgão consultivo independente que visa a fornecer orientações éticas nas áreas de saúde, ciência, tecnologia e direitos humanos para o governo, instituições públicas e privadas e a sociedade como um todo, tais pareceres ou recomendações podem orientar decisões e ações de indivíduos e organizações, bem como podem ter influência expressiva sobre a política pública e as práticas institucionais, haja vista que são frequentemente empregados como referência por tribunais, legisladores e outras autoridades. 6 COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis N° 136: Évolution des enjeux éthiques relatifs au consentement dans le soin. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023. 7 MAGAZINE MARIANNE. Plaintes pour viol: Chrysoula Zacharopoulou dénonce des accusations inacceptables. Marianne.net. 28 abr. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023. 8 LE MONDE. Violences gynécologiques: l'enquête visant la secrétaire d'État Chrysoula Zacharopoulou classée sans suite. Le Monde.fr. 4 abr. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023. 9 LE MONDE. Élisabeth Borne saisit le Comité consultatif national d'éthique sur le consentement en gynécologie. Le Monde.fr. 6 jul. 2022. Disponível aqui.Acesso em: 22 abr. 2023. 10 Tradução livre. COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis Nº 142: Consentement et respect e la personne dans la pratique des examens génicologiques ou touchant à l'intimité. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023. 11 TEIXEIRA, Ivan Lobato Prado. Capacidade e consentimento na relação médico/paciente. 2009. 210f. Dissertação (Mestrado em Direito Civil) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 71-72. Disponível aqui. Acesso em: 18 abr. 2023. Ainda a esse respeito, o autor registra que um importante marco para a inserção do consentimento do paciente nas decisões médicas ocorreu em 1947, após o fim da Segunda Guerra Mundial, sobretudo com o Código de Nuremberg, contexto em que isso se mostrou indispensável face aos horrores decorrentes do nazismo. Isso porque esse regime promoveu uma série de práticas que objetificaram o ser humano, como, por exemplo, experimentos com pessoas sem qualquer autorização do paciente, reduzindo-as a um mero objeto de pesquisa clínica. Destaca-se, ainda, que em 1964, a Declaração de Helsinque ampliou a exigência do consentimento na Medicina para um alcance mundial, aplicável, porém, apenas em situações de experimentação médica. Cabe mencionar, por fim, a Declaração de Lisboa, em 1981, que previu, expressamente, o direito do paciente de conceder ou revogar o consentimento em qualquer procedimento médico. 12 NOGUEIRA, Roberto Henrique Porto. Prescrição off label de medicamentos, ilicitude e responsabilidade civil do médico. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2017, p. 189-190. 13 SÁ, Maria de Fátima Freire de; OLIVEIRA NAVES, Bruno Torquato de. Panorama bioético e jurídico da reprodução humana assistida no Brasil. Revista de bioética y derecho, n. 34, p. 64-80, 2015, p. 75. 14 LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire. Inteligência artificial e Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais: o direito à explicação nas decisões automatizadas. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 26, n. 04, p. 227-227, 2020, p. 245. 15 RIBEIRO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Consentimento informado em intervenções médicas envolvendo pessoas com deficiência intelectual ou psicossocial e a questão das barreiras atitudinais. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 27, n. 01, p. 83, 2021, p. 87. 16 SCHREIBER, Anderson. Direito civil e constituição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 151. 17 FERNANDES, Márcia Santana; GOLDIM, José Roberto. Os diferentes processos de consentimento na pesquisa envolvendo seres humanos e na LGPD - Parte I. Migalhas de Proteção de Dados, 01 out. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 4 maio 2023. 18 NOGUEIRA, Roberto Henrique Porto. Prescrição off label de medicamentos, ilicitude e responsabilidade civil do médico. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2017. 19 ROSENVALD, Nelson. Funções da Responsabilidade Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 04 mai. 2023. 20 Ver: ROSENVALD, Nelson. Funções da Responsabilidade Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 04 mai. 2023; CLEMENTE, Graziella Trindade.  ROSENVALD, Nelson. A multifuncionalidade da responsabilidade civil. Migalhas de Direito, Médico e Bioética, 19 jul. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 04 mai. 2023. 21 COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis nº 136: Évolution des enjeux éthiques relatifs au consentement dans le soin. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023, p. 4. 22 COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis Nº 142: Consentement et respect e la personne dans la pratique des examens génicologiques ou touchant à l'intimité. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023, p. 32. 23 COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis nº 136: Évolution des enjeux éthiques relatifs au consentement dans le soin. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023, p. 27. 24 COMITÉ CONSULTATIF NATIONAL D'ÉTHIQUE POUR LES SCIENCES DE LA VIE ET DE LA SANTÉ (CCNE). Avis Nº 142: Consentement et respect e la personne dans la pratique des examens génicologiques ou touchant à l'intimité. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2023, p. 22-23. 25 Segundo o CCNE é preciso distinguir o "contato" com o corpo que é a "materialidade de um ato técnico" e o "toque" que representa "o que pode aceitar o paciente, um contato aceito por um psychè" (CCNE, Avis N° 142, p.32). 26 O texto é um prelúdio dos diálogos havidos entre as advogadas Fernanda Galvão e Leila Bitencourt com os professores Arnaud Belloir e Roberto Pôrto Nogueira acerca de pesquisa que integrará o  2º volume da obra "Temas Contemporâneos de Responsabilidade Civil: teoria e prática", coordenado pelas professoras Aline França e Luciana Berlini.
O filósofo romeno Constantin Noica1, em belo trabalho de ontologia, reconheceu que ao lado das doenças somáticas e psíquicas, devem existir outras "de ordem superior", qualificadas como "doenças do espírito" que nenhuma neurose poderia explicar, entre outros sentimentos, o tédio metafísico, a consciência do vazio e do absurdo etc. O criador da técnica logoterápica e professor de psiquiatria da Escola de Viena, Dr. Victor Frankl, descreve o ser humano em três dimensões, quais sejam: a dimensão biológica, a dimensão psicológica e a dimensão noológica, onde se desenvolvem os fenômenos noéticos2, ou seja, trata-se da dimensão espiritual no sentido mais largo do termo e que pode levar à ausência de "sentido existencial" e, por consequência, à perda "da vontade de sentido" 3. Em geral, de graves lesões à vida e à saúde de uma pessoa surgem danos que limitam ou extirpam a vontade de viver decorrente de uma parcial ou completa ausência de sentido existencial, aquilo que Frankl chama de "vazio existencial". Antes, porém, tais lesões podem provocar sequelas que atingem o ser humano em sua vida de relação e em seus projetos de vida. Existe notadamente uma diferença qualitativa, embora os danos sejam ontologicamente semelhantes, entre as três espécies de danos existenciais. O que será aqui sugerido é que para a reparação civil do dano existencial é necessário que se entenda a diferença qualitativa entre as três esferas de dimensões humanas - em sua acepção ontológica mesma - o que importará um valor maior da verba compensatória para cada título de acordo com a gravidade do dano. O dano existencial, segundo Flaviana Rampazzo4, "se consubstancia, como visto, na alteração relevante da qualidade de vida, vale dizer, em 'um ter que agir de outra forma' ou em um 'não poder mais fazer como antes', suscetível de repercutir, de maneira consistente, e, quiçá, permanente, sobre a existência da pessoa. Significa ainda uma limitação prejudicial, qualitativa e quantitativa, que a pessoa sofre em suas atividades cotidianas". No Peru, o professor Carlos Fernandez Sessarego5 desenvolveu o conceito de dano ao projeto de vida enquanto dano existencial. Segundo ele, o projeto de vida é, em sua linha de raciocínio, o rumo ou destino que a pessoa humana consagra à sua vida, ou seja, o sentido existencial derivado de uma prévia valoração, pois, enquanto ser humano, ela é livre para dar o rumo que desejar à sua própria existência, elegendo vivenciar de preferência certos valores, escolhendo determinada atividade de trabalho, perseguindo certos objetivos. Em resumo, como afirma Osvaldo Burgos6, "tudo o que a pessoa decide fazer com o dom de sua vida". O impedimento ao projetar-se do homem por ato ilícito praticado por outrem ou mesmo o retardamento a esse vir a ser, ou ainda o seu impedimento parcial, caracteriza, dessa maneira, o dano extrapatrimonial a tal projeto de viver (total ou parcial, respectivamente), impondo ao lesado a mudança substancial dos seus rumos a gerar sofrimento para além daquilo que possa suportar, de forma mais ou menos intensa. Observe-se o exemplo de um determinado pianista, em início de carreira e com futuro projetado de maneira promissora que, em razão de um acidente de veículo provocado por imprudência de um outro condutor, perdeu uma de suas mãos, impossibilitando-o de concretizar os resultados que planejava com muito esforço e previdência durante muitos anos de sua vida. O dano ao projeto de vida se estabelece, nessa situação, para além do dano tipicamente moral em razão da lesão à sua saúde e integridade física e independentemente da existência de danos emergentes e/ou lucros cessante caso existentes. Já o dano à vida de relação, embora imponha prejuízos existenciais à pessoa, difere do dano ao projetar-se na vida pelo motivo de não abarcar um vir a ser frustrado de maneira total ou parcial; entrementes, implica no aviltamento das condições de relacionamento do "ser" em sociedade, a dizer, na sua profissão, no seu casamento, na sua vida sexual e/ou familiar etc, a ponto de desestruturar também total ou parcialmente o seu dia a dia. O dano ao projeto de vida e à vida de relação de uma pessoa pode derivar de lesão existencial à integridade física ou à integridade psicológica, seja porque o homem não tem mais aptidão física para realizar determinado ofício - como na situação do pianista com mãos e dedos decepados -, seja porque foi acometido de um mal psíquico que o levou à depressão por um período mais ou menos longo. Resta-se evidente que tais agressões resultam no sujeito a ruptura do seu equilíbrio psicoemocional, ou seja, a homeostase (estado livre de tensão), mas, ainda assim, não se atinge o seu estado de equilíbrio espiritual, ou seja, quando esse estado é concretamente violado, a vontade de viver perde qualquer sentido, diante de atos ultrajantes que aviltam a própria alma humana e o suporte espiritual7. Segundo Frankl8, é nesse espaço em que a noodinâmica é atingida, e não mais a homeostase. A homeostase pode ser solapada por atos menos graves e um estado de tensão que produz a sua quebra resulta até necessário para o amadurecimento psíquico da pessoa em algumas situações. O dano resultante, portanto, da quebra noodinâmica do ser humano pode ser denominado de dano noológico.9 Gize-se como exemplo o dos judeus sobreviventes aos campos de concentração nazistas. Predicada a situação particular ao aviltamento intenso da dignidade humana, os fortes traumas desenvolvidos por eles, resultaram, para muitos, em verdadeiros danos noológicos, ante à quebra - em consideração permanente em cada vida humana - do equilíbrio do espírito e da sua correlata função noodinâmica. Os danos existenciais podem, em apertada e ligeira síntese, ser classificados como dano ao projeto de vida, dano à vida de relação e dano noológico.  As duas primeiras espécies aparentam produzir efeitos semelhantes sobre o homem, isto é, são decorrentes de agressões aos aspectos biológico e psicológico do sujeito e podem constituir consequências limitadoras ou impeditivas do funcionamento corporal e psíquico dele, resultando prejuízos consideráveis ao constante devir humano e aos relacionamentos de vida em suas múltiplas acepções. A terceira espécie, de sua parte, é decorrente da quebra do equilíbrio noológico da pessoa humana e resulta da falta de vontade de viver por consequência do vazio existencial provocado pela lesão de tão grande magnitude, podendo-se asseverar que a sua característica mais importante - e a que o faz diferenciar sobremaneira dos demais espécimes agora catalogados - é o elemento qualitativo da lesão: a lesão que pode atingir o equilíbrio noodinâmico para além do equilíbrio homeostático. Nessa ordem de ideias, a pessoa pode ser atingida em seu aspecto biológico e não desenvolver graves consequências sobre a sua psiquê ou sobre o seu sentido existencial de vida; pode, outrossim, desenvolver consequências sobre o seu estado psíquico sem ter sido atingido em seu campo biológico e também noético; entretanto, não pode ter seu estado espiritual atingido e não ter também sido atingido, a jusante, o seu estado psíquico, não obstante possa, na mesma situação, não ter sido atingido o seu estado biológico. Em termos de gravidade provocada, pode se estabelecer que o dano resultante da quebra do equilíbrio noológico - que vem sempre a rebote da quebra do equilíbrio psicológico - é o de maior intensidade na vida do cidadão e, por isso mesmo, merece atenção especial do Juiz a fim de possibilitar um maior valor à título de reparação pecuniária. Extrai-se, de pronto, a partir da categorização ora formulada, uma conclusão importante tanto para a teoria dos danos quanto para a práxis judicial: diferentemente do dano moral, o dano existencial, à guisa de sua classificação tripartite, é um dano de consequência provada, ou aquilo que em doutrina italiana se chamava de dano-consequência ou dano-prejuízo, cuja utilização foi defendida no Brasil por autores importantes10. Silvio Neves Baptista11 compreende o dano como um fenômeno unitário e um verdadeiro fato jurídico. Para o eminente jurista brasileiro, o dano é um fato jurídico consequente decorrente de um fato jurídico antecedente que, quando entra no mundo jurídico, produz efeitos indenizativos. Portanto, os fatos antecedentes podem existir sem que sejam transformados em supostos jurídicos, quando o ordenamento não lhe atribua consequências indenizativas, a exemplo dos prejuízos não indenizáveis provenientes de fatos encobertos por excludentes de ilicitude. Logo, enxerga o dano como uma unidade pressuposta do dever de reparar. De fato, a lesão a um interesse juridicamente tutelado pressupõe uma determinada consequência jurídica, contudo, tal efeito pode se encontrar predisposto no fato jurídico danoso (p., ex, o dano à honra de um sujeito absolutamente incapaz) ou necessitado de comprovação concreta (caso dos danos existenciais, na tipologia aqui adotada). Daí ser preferível à expressão "dano presumido" a expressão dano de consequência predisposta. Com base nesse raciocínio, quanto aos seus efeitos ou consequências, sugere-se dizer que os danos podem ser classificados em: a) Danos de Consequência Predisposta e b) Danos de Consequência Concreta ou Provada. Assim, nesse contexto, o Dano em seu sentido jurídico, como categoria unitária, não pode nunca ser presumido, porquanto está sempre pressuposto e entretecido ao dever de reparar, isto é, havendo lesão a um interesse tutelado pelo ordenamento jurídico, também se pressupõem as suas consequências sempre jurídicas, estando estas predispostas normativamente no fato danoso ou necessitadas de comprovação concreta em cada caso particular. O dano moral é um dano de consequência predisposta, pois decorre da simples lesão à bem personalíssimo do sujeito; enquanto o dano existencial - em qualquer de suas facetas - é uma espécie de dano extrapatrimonial de consequência concreta ou provada, cuja gradação poderá levar o Juiz a fixar a verba compensatória de acordo com a gravidade dessas mesmas consequências. Em resumo, os danos ao projeto de vida e à vida de relação merecem um valor consideravelmente maior em sua reparação que os simples danos morais, e, entre os danos existenciais, o dano noológico merece um valor maior, a título de reparação, que os danos ao projeto de vida e à vida de relação.  ___________ 1 NOICA, Constantin. As seis doenças do espírito. Tradução de Fernando Klabin e Elena Sburlea. Beste/Bolso: Rio de janeiro, 2011, p. 19. 2 FRANKL, Victor. A vontade de sentido.  Fundamentos e aplicações da logoterapia. Tradução de Ivo Studart Pereira. São Paulo: Paulus, 2011, p. 27-32. 3 FRANKL, Victor. A falta de sentido. Um desafio para a psicoterapia e a filosofifia. Tradução de Bruno Alexander. Campinas-SP: Auster, 2021, p. 45 e ss. 4 SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 144 e 145. 5 SESSAREGO, Carlos Fernandez. El daño al proyecto de vida. Disponível em . Acesso em 17/05/2021, p. 4/8. 6 BURGOS, Osvaldo R. Daños al proyecto de vida. Buenos Aires: Astrea, 2012, p. 137-138. 7 FRANKL, Victor. Sobre o sentido da vida. Tradução de Vilmar Schneider. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022, p. 111. 8 FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido. Trad. de Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. São Leopoldo: Sindonal; Petrópolis: Vozes, 2019, p. 126 e 128. 9 Nomenclatura criada por este articulista. 10 FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. DANO-EVENTO E DANO-PREJUÍZO. Tese: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2009. 11 BAPTISTA, Silvio Neves. Teoria geral do dano. São Paulo: Atlas, 2003, p. 65 e 76.
A cirurgia plástica é uma especialidade médica que tem como objetivo restaurar ou melhorar a aparência e/ou função de uma parte do corpo humano. Essa especialidade é composta por duas vertentes principais: a cirurgia plástica reconstrutiva e a cirurgia plástica estética. A cirurgia plástica reconstrutiva tem como objetivo reconstruir alguma parte do corpo que sofreu deformidades, defeitos congênitos, traumas ou lesões, como queimaduras e câncer de pele. Ela pode incluir procedimentos como a reconstrução de mamas, reparação de lábio leporino e fenda palatina, reconstrução de partes do corpo após a retirada de tumores, entre outros. Já a cirurgia plástica estética é aquela que busca melhorar a aparência física do paciente, sem necessariamente ter uma finalidade médica ou funcional. Ela pode incluir procedimentos como a rinoplastia (cirurgia do nariz), a abdominoplastia (cirurgia da barriga), a lipoaspiração (remoção de gordura localizada), a mamoplastia de aumento (colocação de prótese mamária), entre outros. Ambas as vertentes da cirurgia plástica exigem uma formação médica específica e um alto nível de habilidade técnica e artística por parte do cirurgião plástico. Além disso, é importante que o paciente esteja ciente dos riscos e benefícios de cada procedimento, e que escolha um profissional qualificado e experiente para realizar a cirurgia.  No campo do Direito Médico, a cirurgia plástica assume lugar de destaque, uma vez que a incidência de processos versando sobre tal especialidade assume proporções desmedidas, sendo digno de nota a quantidade de cirurgiões plásticos que sofrem ou já sofreram questionamentos judiciais à sua prática profissional. Não bastasse, o Brasil é um dos países onde mais se realizam procedimentos estéticos em cirurgia plástica, sendo necessário estabelecer conceitos jurídicos - em nome da estabilidade e da segurança - que estejam em consonância com os aspectos técnicos dos procedimentos realizados, especialmente em se tratando de uma atividade que não se traduz em uma ciência exata, onde múltiplos fatores influenciam em seu resultado.  São hipóteses que, mesmo indesejadas, se mostram presentes na literatura especializada, e que fogem ao controle do esculápio, uma vez que independem de sua capacidade técnica, da diligência empregada, e mesmo da utilização dos melhores e mais modernos centros cirúrgicos e equipamentos disponíveis. Muito se discute na doutrina nacional, quando se trata da natureza jurídica da obrigação médica, sobre obrigação de meio, e obrigação de resultado. É consenso que a atividade médica é considerada, em sua maioria, uma obrigação de meio, ou seja, que o exercício da medicina não promete cura, mas sim tratamento adequado, segundo as normas de prudência, perícia e diligência, e padrão de conduta ético e comprometido por parte do profissional em favor da melhora de seu paciente. Isto ocorre porque a atividade médica, por definição, está sujeita ao acaso, ao imprevisível comportamento da fisiologia humana, que por vezes insiste em desafiar o senso comum, os prognósticos mais acurados, e às expectativas mais prováveis. Enfim, além da resposta de cada organismo ser única (embora sejam esperados determinados padrões de resposta), ainda se encontra a intervenção médica sujeita ao acaso, ao infortúnio, à força maior. Por estas e mais outras tantas razões, a atividade médica não se sujeita a um comprometimento com o resultado, mas sim ao dever de diligência. Todavia, temos visto a repetição - por vezes irrefletida - de que dentre as exceções a esta regra, se encontraria a cirurgia plástica com finalidade estética (ou desprovida de finalidade terapêutica). Esta seria considerada uma obrigação de resultado, implicando comprometimento do cirurgião com o êxito satisfatório de sua intervenção. Em princípio, "êxito satisfatório" pode parecer redundante. Não o é, todavia, neste caso, uma vez que - dado o alto grau de subjetividade envolvido na apreciação do resultado de uma cirurgia plástica estética não reparadora, por parte do paciente. O que pode parecer belo e tecnicamente perfeito para uns, não o será necessariamente para outros. Um dos elementos centrais aqui a serem discutidos, portanto, versa sobre o fato de a cirurgia plástica estética não reparadora ser uma obrigação de meio, ou obrigação de resultado.  Por certo que, em qualquer atividade médica, existe a necessidade - e o dever - de se agir com prudência, diligência, precaução e perícia. Tal fato se justifica porque, em se tratando de uma obrigação de meio, na hipótese da superveniência de um resultado adverso, o que será analisado para a verificação da existência ou não de culpa, será a conduta do médico.  A comprovação do dano deverá passar, necessariamente, pela verificação da prudência, da perícia, do comportamento profissional adotado durante todo o procedimento. O que o atual estágio da medicina (e todo o seu aparato tecnológico) não permite mais tolerar, seja por parte do médico, da clínica ou do hospital, é o descuido, o descaso, a negligência, a imperícia e a imprudência. É nossa opinião que, sob nenhum aspecto, a cirurgia plástica pode ou deve ser considerada obrigação de resultado. A simples impossibilidade de pré-determinar o resultado de qualquer procedimento jurídico desautoriza esta distinção, afirma Hildegard Taggesell Giostri1. Muito se fala em impor diferença de tratamento jurídico à chamada cirurgia plástica desprovida de finalidade terapêutica. Ocorre que este termo, por si só, é equivocado. Há relativamente pouco tempo, era generalizado o conceito de que a cirurgia plástica de caráter meramente embelezador, sem finalidades terapêuticas, se constituía em simples capricho do paciente, sendo, portanto, desnecessária. A respeito do tema, Miguel Kfouri Neto em sua obra Culpa Médica e Ônus da Prova2, transcreve trechos do julgamento do Recurso Especial 81.101-PR3, onde se decidiu sobre recurso relativo à responsabilidade civil em cirurgia plástica estética. Ali, destaca trechos extremamente elucidativos do voto proferido pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, aqui emprestados em virtude de sua relevância e clareza elucidativa: "Pela própria natureza do ato cirúrgico, cientificamente igual, pouco importando a subespecialidade, a relação entre o cirurgião e o paciente está subordinada a uma expectativa do melhor resultado possível, tal como em qualquer atuação terapêutica, muito embora haja possibilidade de bons ou não muito bons resultados, mesmo na ausência de imperícia, imprudência ou negligência, dependente de fatores alheios, assim, por exemplo, o próprio comportamento do paciente, a reação metabólica, ainda que cercado o ato cirúrgico de todas as cautelas possíveis, a saúde prévia do paciente, a sua vida pregressa, a sua atitude somatopsíquica em relação ao ato cirúrgico. Toda intervenção cirúrgica, qualquer que ela seja, pode apresentar resultados não esperados, mesmo na ausência de erro médico. E, ainda, há em certas técnicas conseqüências que podem ocorrer, independentemente da qualificação do profissional e da diligência, perícia e prudência com que realize o ato cirúrgico. Anote-se, nesse passo, que a literatura médica, no âmbito da cirurgia plástica, indica, com claridade, que não é possível alcançar 100% de êxito." Nesse sentido, Arnaldo Rizzardo :  "Pode-se incutir a ideia que se encaixa um misto de obrigac¸a~o de resultado e de obrigac¸a~o de meio na cirurgia pla´stica, ou mais precisamente, a responsabilidade em face da contratac¸a~o, com forte carga objetiva. Inquestiona´vel que uma melhora deve haver, com a mudanc¸a do aspecto ou do defeito anterior. No entanto, e´ normal admitir-se uma margem de tolera^ncia, aceitando pequenas diferenc¸as. Bem coloca o assunto Fabri´cio Zamprogna Matielo: ... "Deixar de cumprir a obrigac¸a~o de resultado e´ causar ao paciente um prejui´zo percepti´vel de ordem fi´sica ou mesmo funcional(...)".  Não se pode ignorar que o paciente tem consciência dos riscos envolvidos em qualquer procedimento5. Eximi-lo desta responsabilidade em favor de uma falsa responsabilidade objetiva do médico (não prevista pela legislação, diga-se) é absolutamente contraproducente. O consentimento, a conduta e o comportamento do paciente são - mais que atenuantes, excludentes de responsabilidade. Rosana Jane Magrini6, conclui: "O que se exige do médico, seja qual for sua especialidade, é a prestação de serviços zelosos, atentos, conscienciosos, a utilização de recursos e métodos adequados e de agir conforme as aquisições da ciência. O que não se pode admitir, sempre com a máxima vênia, é uma corrente jurisprudencial em desalinho com a realidade moderna dos avanços da ciência médica e da ciência jurídica." O que se pretende demonstrar é que, sob todos os aspectos, a cirurgia plástica é intervenção cirúrgica equiparável a todos os demais procedimentos cirúrgicos, e que as reações do organismo humano são imprevisíveis e conseqüências indesejadas podem sobrevir, ainda que toda a técnica, recursos disponíveis, prudência e perícia tenham sido empregados ao caso concreto, não se podendo, por sua vez, simplesmente culpar o médico pelo infortúnio, por ele também não desejado. Cada corpo humano, em sua individualidade, pode apresentar somatizações, hipersensibilidades, reações diversas verdadeiramente imprevisíveis. A evolução de quadros clínicos ou patológicos, diante da intervenção médica, não é sempre igual, não obedece sempre a uma fórmula preestabelecida. Em qualquer procedimento cirúrgico, conforme comprovado por incontáveis estudos médicos, o organismo pode reagir de forma inesperada, negativa ou adversa, comprometendo o resultado. Na prática, ainda, é de destacar que o sucesso da cirurgia plástica depende muito dos cuidados pós-operatórios tomados pelo próprio paciente, o que em parte também escapa do controle do médico. O entendimento majoritário da jurisprudência brasileira sobre a obrigação de resultado na cirurgia plástica estética é equivocado e não se alinha com os princípios da medicina e da ética profissional. Reconhecer a obrigação de meio na cirurgia plástica estética é importante para proteger tanto o paciente quanto o médico. O paciente tem a garantia de que o cirurgião empregará a melhor técnica e cuidado, mas sem prometer um resultado que não pode ser garantido. E o médico não é injustamente responsabilizado por um resultado imprevisível e incontrolável.  Sérgio Cavalieri Filho entende e leciona no sentido de que não se deixa de reconhecer, em tais caso, a responsabilidade subjetiva, mas com culpa presumida7: "E como se justifica essa obrigac¸a~o de resultado do me´dico em face da responsabilidade subjetiva estabelecida no Co´digo do Consumidor para os profissionais liberais? A indagac¸a~o so´ cria embarac¸o para aqueles que entendem que a obrigac¸a~o de resultado gera sempre responsabilidade objetiva. Entendo, todavia, que a obrigac¸a~o de resultado em alguns casos apenas inverte o o^nus da prova quanto a` culpa; a responsabilidade continua sendo subjetiva, mas com culpa presumida. O Co´digo do Consumidor na~o criou para os profissionais liberais nenhum regime especial, privilegiado, limitando-se a afirmar que a apurac¸a~o de sua responsabilidade continuaria a ser feita de acordo com o sistema tradicional, baseado na culpa. Logo, continuam a ser-lhes aplica´veis as regras da responsabilidade subjetiva com culpa provada nos casos em que assume obrigac¸a~o de meio; e as regras de responsabilidade subjetiva com culpa presumida nos casos em que assumem obrigac¸a~o de resultado." O Superior Tribunal de Justiça, todavia, tem apresentado entendimento diverso, como se nota do acórdão abaixo transcrito: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. INDENIZAC¸A~O POR DANOS MORAIS E ESTE´TICOS. CIRURGIA PLA´STICA. OBRIGAC¸A~O DE RESULTADO. DANO ESTE´TICO COMPROVADO. RECURSO NA~O PROVIDO. 1. A jurisprude^ncia desta Corte entende que "A cirurgia este´tica e´ uma obrigac¸a~o de resultado, pois o contratado se compromete a alcanc¸ar um resultado especi´fico, que constitui o cerne da pro´pria obrigac¸a~o, sem o que havera´ a inexecuc¸a~o desta" (REsp 1.395.254/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/10/2013, DJe de 29/11/2013). (...) 4. Agravo regimental na~o provido.  (AgRg no AREsp 678.485/DF, Rel. Ministro RAUL ARAU´JO, QUARTA TURMA, julgado em 19/11/2015, DJe 11/12/2015) (original sem grifos)  Com a devida vênia, tal entendimento pode ser aplicado a um contrato de transporte de mercadoria, mas não a um procedimento cirúrgico. Não há justificativa alguma para qualificar de maneira diferente um procedimento "estético" de um "reparador". Ou seria o elemento vaidade, um fator a ser considerado, quando comparado com os demais procedimentos médicos? O que diferencia o compromisso de "alcançar um resultado específico" em uma cirurgia plástica estética, programada, de uma outra cirurgia - também programada - desta feita realizada na área de cardiologia, para a troca de uma válvula coronariana? Uma rápida busca na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça mostra um impressionante (e preocupante) compilado de decisões8 com o mesmo fundamento, sem qualquer individualização de casos ou condutas, jogando na mesma vala comum todos os casos envolvendo cirurgia plástica estética, utilizando do mesmo conjunto de palavras: "2. A obrigação assumida pelo médico, normalmente, é obrigação de meios, posto que objeto do contrato estabelecido com o paciente não é a cura assegurada, mas sim o compromisso do profissional no sentido de um prestação de cuidados precisos e em consonância com a ciência médica na busca pela cura. 3. Apesar de abalizada doutrina em sentido contrário, este Superior Tribunal de Justiça tem entendido que a situação é distinta, todavia, quando o médico se compromete com o paciente a alcançar um determinado resultado, o que ocorre no caso da cirurgia plástica meramente estética. Nesta hipótese, segundo o entendimento nesta Corte Superior, o que se tem é uma obrigação de resultados e não de meios. 4. No caso das obrigações de meio, à vítima incumbe, mais do que demonstrar o dano, provar que este decorreu de culpa por parte do médico. Já nas obrigações de resultado, como a que serviu de origem à controvérsia, basta que a vítima demonstre, como fez, o dano (que o médico não alcançou o resultado prometido e contratado) para que a culpa se presuma, havendo, destarte, a inversão do ônus da prova. 5. Não se priva, assim, o médico da possibilidade de demonstrar, pelos meios de prova admissíveis, que o evento danoso tenha decorrido, por exemplo, de motivo de força maior, caso fortuito ou mesmo de culpa exclusiva da "vítima" (paciente)." Negar as evidências científicas e os estudos médicos que afirmam a impossibilidade de prever com 100% de certeza o comportamento da fisiologia humana, em nome da imutabilidade de um entendimento equivocadamente sedimentado não faz bem à evolução e adequação do pensamento jurídico, e não orna com a tradição jurídica inovadora e doutrinária daquela Corte de Justiça. A doutrina admite a distinção entre cirurgia estética reparadora de enfermidades congênitas e outra de finalidade puramente estética. Ocorre que a fronteira entre tais casos pode ser extremamente difusa. A correção de um lábio leporino, por exemplo, é considerada reparação de enfermidade congênita. Por que, então, a modificação corretiva de um nariz enorme, ou de orelhas desproporcionalmente grandes não pode assim também ser considerada, se em ambos os casos o que se persegue é um melhoramento estético? Em nosso sentir, o verdadeiro problema nas cirurgias plásticas não é o fato de ela ser reparadora ou não, de possuir finalidade terapêutica ou não. Em qualquer situação, a obrigação continuará a ser de meio, não de resultado, em virtude das várias razões já expostas. O verdadeiro problema, causador de tantas celeumas e pendências jurídicas, é a falta de adequada e prévia informação ao paciente. Por vezes, a oferta do serviço não traz uma apresentação clara dos riscos envolvidos, inclusive os riscos anestésicos do procedimento, sendo sugeridos resultados que não podem ser garantidos. Cabe ao cirurgião plástico prestar ao paciente informação clara, completa, precisa e inteligível, de modo que o mesmo, conhecendo os riscos advindos de suas decisões e do tratamento perseguido, assuma as responsabilidades de seu consentimento informado, e se comprometa em seguir as instruções para o período pós-operatório. Em nome da segurança jurídica, e do respeito à autonomia da vontade que permeia e vincula as relações contratuais entre pessoas adultas e capazes, é necessário rever e modificar o entendimento jurisprudencial majoritário, no sentido de reconhecer a impossibilidade de um planejamento cartesiano para procedimentos cirúrgicos, estéticos ou não, uma vez que existe uma multiplicidade de fatores que podem interferir e interagir, não havendo na medicina a possibilidade de uma "obrigação de resultado". Decisões que simplesmente mencionam "entendimento dos tribunais superiores", como forma de não se debruçar - sequer superficialmente - sobre os elementos concretos dos processos indenizatórios envolvendo responsabilidade civil médica oriunda de procedimentos estéticos se mostram em completo desacordo com a sistemática processual atual, e em desacordo com o atual estágio de conhecimento sobre a fisiologia humana. __________ 1 Erro Médico à luz da jurisprudência comentada. Ed. Juruá, 1ª ed, Curitiba, 2001, p. 122. 2 Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002, 1ª ed., p. 252 e ss. 3 DJU 31.05.1999. RSTJ 119/290. 4 In Responsabilidade Civil, 5ª edição revista e atualizada, Gen. Forense, 2011, p. 337. 5 Neste sentido, acórdão publicado na Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (RJTJESP 109/127), traz orientação bastante significativa: "Obviamente nenhum leigo pode ignorar os riscos decorrentes de qualquer cirurgia". 6 MAGRINI, Rosana Jane. Médico - Cirurgia plástica reparadora e estética: obrigação de meio ou de resultado para o cirurgião. Revista Jurídica Notadez 280/92-1993, fev. 2001. 7 In Programa de Responsabilidade Civil. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 505/507  8 São elas:  PROCESSO REsp 1468756 RELATOR(A) Ministro MOURA RIBEIRO DATA DA PUBLICAÇÃO 27/03/2015 RECURSO ESPECIAL Nº 1.468.756 - DF (2014/0173852-5) PROCESSO AREsp 334756 RELATOR(A) Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO DATA DA PUBLICAÇÃO 31/03/2015 AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL nº 334756 - RJ (2013/0127613-0) PROCESSO AREsp 700208 RELATOR(A) Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI DATA DA PUBLICAÇÃO 19/05/2015 AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 700.208 - DF (2015/0073218-1) PROCESSO AREsp 1233572 RELATOR(A) Ministro MOURA RIBEIRO DATA DA PUBLICAÇÃO 19/04/2018 AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.233.572 - PR (2018/0010152-7) PROCESSO AREsp 614977 RELATOR(A) Ministro MOURA RIBEIRO DATA DA PUBLICAÇÃO 28/11/2014 AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 614.977 - SP (2014/0277525-8) PROCESSO Ag 1359322 RELATOR(A) Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA DATA DA PUBLICAÇÃO 20/09/2011 AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 1.359.322 - SP (2010/0180665-5) PROCESSO Ag 1151306 RELATOR(A) Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO DATA DA PUBLICAÇÃO 26/10/2010 AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 1.151.306 - RS (2009/0012581-6)  
A sociedade contemporânea perpassou por diversas mudanças no contexto social, econômico, cultural e, sobretudo, tecnológico, as quais ensejaram o surgimento do fenômeno da hiperconexão e do hiperconsumo, que, por conseguinte, permitiram o incremento de um novo paradigma tecnológico digital.1   Com o advento das plataformas digitais - Facebook, Instagram, Youtube e Tik Tok, dentre outras - se alterou profundamente os padrões de comunicações previamente estabelecidos, permitindo-se que as referidas mídias sociais se transformassem em locus, para a implementação de uma comunicação interindividual e transfronteiriça, possibilitando assim a difusão de conteúdo de forma célere e simplificada, e, afetando, intensamente, a vida dos indivíduos em sociedade e o mercado de consumo, que diante dos avanços tecnológicos se transforma em um mercado de consumo digital. Nesse cenário, exsurgem personalidades digitais denominadas de digital influencers ou influenciadores digitais2, os quais passaram a produzir conteúdo temático em diversas áreas (entretenimento, moda, medicina, jurídico, pets, games, lifestyle, finanças, dentre outros) e a realizar atividade publicitária para marcas, produtos ou serviços nas redes sociais. A atuação dos influenciadores digitais, na última década, remodelou os padrões de comunicação, informação, opinião, comportamento e, especificamente, hábitos de consumo de seu público-alvo (seguidores-consumidores) no ambiente digital.  Dentre os diversos nichos de atuação dos influencers, assume especial destaque, o segmento dos influenciadores mirins, o qual atrai significativo contingente do público infantojuvenil, na qualidade de seguidores dessas webcelebridades, no âmbito das plataformas digitais. Com efeito, a fama, prestígio e rentabilidade econômica em se tornar um influenciador digital é um grande atrativo para inúmeras crianças e adolescentes, de modo que "ser um youtuber mirim de sucesso é um negócio bastante promissor, e isso se constata pelo comportamento da família diante da atividade desenvolvida pelos pequenos."3 Logo, não é incomum que os pais invistam na carreira digital de seus filhos, os quais, por vezes, se tornam a principal fonte de renda do núcleo familiar. Os influenciadores mirins se apresentam como crianças e adolescentes, que produzem conteúdo específico para o público infantojuvenil, com o objetivo de se alcançar engajamento e contrapartidas econômicas nas mídias sociais. Muitos destes influenciadores são representados, por seus pais ou responsáveis legais, que administram suas plataformas digitais e incentivam a produção de conteúdo reiterado e em larga escala. O tema em análise revela múltiplas problematizações, especialmente, no tocante à superexposição de crianças e adolescentes na Internet, se desdobrando tanto pelo excesso de compartilhamento - prática conhecida como (over)sharenting - quanto pela hipersexualização infantojuvenil no ambiente digital. Para uma correta compreensão da questão relacionada ao excesso de compartilhamento, se faz necessário proceder a análise da semântica do termo "sharenting", que segundo Fernando Büscher von Teschenhausen Eberlin se qualifica como: A prática consiste no hábito de pais ou responsáveis legais postarem informações, fotos e dados dos menores que estão sob a sua tutela em aplicações de internet. O compartilhamento dessas informações, normalmente, decorre da nova forma de relacionamento via redes sociais e é realizado no âmbito do legítimo interesse dos pais de contar, livremente, as suas próprias histórias de vida, da qual os filhos são, naturalmente, um elemento central. O problema jurídico decorrente do sharenting diz respeito aos dados pessoais das crianças que são inseridos na rede mundial de computadores ao longo dos anos e que permanecem na internet e podem ser acessados muito tempo posteriormente à publicação, tanto pelo titular dos dados (criança à época da divulgação) quanto por terceiros.4 Trata-se, de forma sintética, do ato ou prática dos pais ou responsáveis legais publicarem ou compartilharem, dados, imagens e demais formas de conteúdo relativos aos infantes, que estejam sob sua tutela, no ambiente digital. Destaca-se, por oportuno, que o compartilhamento realizado, nestes termos, não é, em princípio, considerado ilegal ou imoral. O problema, contudo, reside no compartilhamento excessivo, imoderado, desarrazoado, promovido pelos responsáveis legais dos infantes, que caracteriza a prática do (over)sharenting, que se configura como um exercício abusivo (disfuncional) da autoridade parental. Um dos casos de maior notoriedade relativamente à prática do (over)sharenting e do abuso da autoridade parental envolveu o canal do YouTube "Toy Freaks", o qual à época da controvérsia contava com mais de 8 (oito) milhões de seguidores. O referido canal publicou vídeos nos quais as crianças tinham que agir como se bebês fossem, inclusive, vestindo-as com roupas de bebês, forçando-as a mastigar e cuspir alimentos e, até mesmo, urinar nas próprias roupas. Logo, diante de inúmeras denúncias dos usuários da plataforma, o YouTube, em 2017, retirou o canal do ar, por violação às políticas internas de prevenção a abusos infantis.5-6 No Brasil, o canal do YouTube "Bel Para Meninas" (atualmente apenas "Bel"), com mais de 7 (sete) milhões de inscritos7, promovendo brincadeiras em família e relatos do cotidiano da jovem, que dá nome ao canal, gerou grande controvérsia nas redes sociais, em razão da excessiva exposição da criança na Internet, em diversas situações constrangedoras e vexatórias. A rotina da criança era transmitida com alta frequência por meio de vídeos filmados por seus pais. Em 2020, após uma série de vídeos publicados, contando, inclusive, com um episódio no qual a mãe da criança aparecia zombando da filha após esta vomitar diante das câmeras, a hashtag #SalvemBelParaMeninas ganhou evidência, com a finalidade de se questionar o comportamento da mãe em relação à criança.8 Destarte, se constata que a prática do (over)sharenting pode ser vislumbrada nas plataformas digitais de inúmeras crianças e adolescentes no ambiente digital. Entretanto, as que vivenciam o fenômeno em maior intensidade são aquelas que atuam nas mídias sociais como influenciadores mirins. Nesse giro, Renata de Oliveira Tomaz assevera, ainda, que "o processo por meio do qual as crianças vão da invisibilidade do ambiente doméstico para a visibilidade do espaço on-line é bastante complexo"9, ensejando, por conseguinte, inúmeros prejuízos ao desenvolvimento físico, intelectual e psicológico, bem como, a própria formação da personalidade das crianças e adolescentes que atuam como influencers.    Assim, constata-se que os pais ou responsáveis legais do infante podem exercer sua autoridade parental e, até mesmo, realizar o sharenting, mediante o compartilhamento de conteúdo diverso nas redes sociais, como forma de incentivo à carreira de influenciador, o que não configura conduta ilícita ou ilegítima. Não obstante, esse compartilhamento pode se tornar excessivo, imoderado e até abusivo, caracterizando o (over)sharenting, sem que a criança ou adolescente seja capaz de determinar os próprios atos e compreender as implicações dessa exposição desmedida nas mídias sociais. Outrossim, há de se destacar, ainda, que o (over)sharenting pode se consubstanciar ainda que os infantes consintam com a superexposição. Nessa linha de intelecção, a Constituição da República de 1988, em seu artigo 227,10 estabelece como dever dos pais zelar pela incolumidade psicológica, moral e física dos filhos, em consonância com o melhor interesse dos mesmos, de forma que, devem se abster de veicular postagens que possam, eventualmente, violar a integridade física, moral e psicológica de crianças e adolescentes, resguardando, inclusive, sua imagem, dados e demais conteúdos, com o objetivo de coibir possíveis reflexos danosos ao desenvolvimento de sua personalidade. Nesse mesmo sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente11, em seus artigos 15, 17 e 18, destaca como garantia fundamental aos infantes, o respeito e a primazia pela dignidade humana, assegurando-se, assim, um caráter protetivo especial estabelecido pelo referido Estatuto aos hipervulneráveis no ambiente digital.    Ademais, o que se objetiva coibir é o compartilhamento excessivo nas plataformas digitais, prejudicial à formação da própria criança/adolescente, uma vez que essa superexposição pode ensejar situações caracterizadas pelo desconforto, angústia, constrangimento, humilhação ou em alguns casos até mesmo se efetivar mediante a sexualização dos infantes. A erotização de crianças e adolescentes não é fenômeno recente, nem mesmo restrito às plataformas digitais, uma vez que as celebridades mirins, em decorrência da superexposição midiática, se tornaram alvo de uma adultização precoce, por meio da utilização de uma imagem sexualizada das mesmas promovida por terceiros.12 Exemplificativamente, pode-se citar o caso da atriz infantojuvenil Millie Bobby Brown, mundialmente conhecida pelo seu papel na série "Stranger Things", a qual foi listada pela Revista W, como uma das atrizes que "fazem a televisão estar mais sexy do que nunca"13, quando tinha apenas 13 (treze) anos de idade. Em relação aos influenciadores digitais mirins, verifica-se que os próprios influencers ou seus pais/responsáveis legais promovem a referida hipersexualização infantojuvenil. Nesse sentido, 2 (duas) situações se denotam no tocante a problematização em análise, quais sejam: i) os influencers mirins são obrigados pelos pais ou responsáveis legais a postarem conteúdo erotizado; ii) influenciadores mirins, em patente omissão dos deveres relacionados ao exercício da autoridade parental, contam com a anuência dos pais/responsáveis legais na veiculação de publicações erotizadas nas mídias sociais. Outrossim, não é incomum que influenciadores mirins postem vídeos e imagens ao som de músicas, com teor sensual ou explicitamente erótico, com objetivo de alcançar mais seguidores e um maior engajamento nas redes sociais. O caso de maior repercussão relacionado a erotização precoce de influenciadores mirins no Brasil, se refere à cantora Melody, outrora conhecida como MC Melody, nome artístico de Gabriella Abreu Severiano, a qual possui mais de 12 (doze) milhões de seguidores no Instagram.14 A influenciadora mirim, atualmente, com 16 (dezesseis) anos de idade, foi alvo de numerosos debates acerca da hipersexualização infantil, desde os seus 8 (oito) anos de idade, época em que o Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito para investigar o pai da influencer por suspeita de violação ao direito ao respeito e à dignidade de crianças e adolescentes.15 Nas mídias sociais da influenciadora mirim é possível vislumbrar a utilização de um visual adultizado nas postagens divulgadas pela cantora, bem como fotos com poses e clipes musicais com coreografias, letras e cenas com conteúdo erotizado. Outro caso de destaque em relação à temática, diz respeito à atriz Mel Maia, a qual possui mais de 19 (dezenove) milhões de seguidores no Instagram.16 A influencer, atualmente, com 18 (dezoito) anos de idade, protagonizou numerosas situações de erotização precoce em suas plataformas digitais, durante sua adolescência, ao publicar múltiplas fotos nas redes sociais com teor adultizado, gerando intensas polêmicas relativas à hipersexualização de crianças e adolescentes e o exercício abusivo da autoridade parental. Insta frisar que a atuação erotizada e hipersexualizada de influenciadores mirins contribui para que inúmeros prejuízos sejam causados ao desenvolvimento da personalidade dos mesmos. Ademais, as postagens erotizadas realizadas pelos influenciadores mirins, em função do seu alcance no ambiente digital, influência, credibilidade e engajamento que possuem junto ao seu público infantojuvenil (consumidores), possuem a potencialidade de gerar enormes danos aos seus seguidores, os quais reproduzem os referidos comportamentos, hábitos de consumo e lifestyle dos influencers. As crianças e adolescentes são considerados como hipervulneráveis, demandando, portanto, proteção especial do Estado, o qual restringe determinadas condutas da sociedade, dos pais/responsáveis legais e dos próprios infantes, com o intuito de se permitir o livre desenvolvimento de sua personalidade. No caso da hipersexualização dos filhos pelos próprios pais, nota-se grave disfunção da autoridade parental, pois os pais acabam excedendo a fronteira da proteção e promoção para a exposição. Com o intuito de ganhar seguidores, tornar-se popular, fazer publicidade e eventualmente até ter benefícios financeiros, desvirtua-se o próprio filho, antecipando fases significativas da vida.17 Em síntese, se impõe aos pais/responsáveis legais no exercício da autoridade parental, as plataformas digitais no estabelecimento dos termos de uso/utilização, ao Estado, por meio do Ministério Público e dos Conselhos Tutelares, e a toda a sociedade, que atuem no sentido de garantir a efetiva tutela dos infantes no ambiente digital, com a finalidade de se coibir situações relacionadas a hipersexualização infanto-juvenil, a erotização precoce e a adultização de crianças e adolescentes nas redes sociais.  Outra relevante questão é apontada por Ana Carolina Brochado Teixeira e Filipe Medon ao explicitarem que "nada obstante sejam inicialmente exibidas por seus pais, não raro a exposição online passa a ser em algum momento a vontade da própria criança/adolescente"18, de forma em que, os influenciadores mirins passam a desejar, autonomia digital de suas plataformas, com a postagem de conteúdo muitas vezes impróprio aos mesmos e aos seus seguidores. O trabalho infantil cibernético, também, pode levar as crianças a estarem sujeitas a transtorno psicológicos e associar-se à "cultura de likes", o vício em ser notado instantaneamente e se definir pelo número de interações dadas a uma publicação em uma rede social. A criança que depende de like é viciada como se fora dependente de qualquer outra droga, objetificando a criança, pois ela não é vista pelo que ela é, mas pelos likes que consegue.19 A cultura dos likes não apenas valoriza, como, também, fomenta a superexposição, dos mais diversos aspectos da vida pública e privada dos influenciadores mirins, sendo que todo conteúdo publicizado no ambiente digital parece se tornar válido para garantir o maior número de likes, de seguidores e de engajamento. Múltiplos são os impactos psicoemocionais advindos dessa exposição desmedida ou erotizada dos infantes, ao longo de sua vida, ensejando um processo de adultização precoce. Nesse giro, as fotos e os vídeos publicizados nas redes sociais, podem ser utilizadas de modo indevido e ilegal, como por exemplo, por pedófilos com a finalidade de satisfazer a lascívia, pelo roubo de identidade, pela criação de memes, dentre outras situações indesejadas. Neste interim, crianças e adolescentes devem ser resguardados de situações que possam implicar em riscos e danos psicoemocionais, bem como que deixem pegadas digitais que impactem o livre desenvolvimento de sua personalidade ao longo da vida. Logo, os pais e responsáveis legais, devem se abster de publicar, ou mesmo consentir que os infantes publiquem, conteúdos que ensejem a hipersexualização, posto que tais condutas configuram o exercício abusivo da autoridade parental. Por fim, salienta-se, ainda, que inexistem regramentos legislativos e jurídicos específicos para o tratamento da controvérsia relacionada à superexposição e a hipersexualização de crianças e adolescentes no Brasil. A despeito disso, as disposições previstas na Constituição da República de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, preconizam a primazia do melhor interesse das crianças e adolescentes, dos seus direitos fundamentais e da sua proteção integral, bem como o respeito a dignidade humana dos infantes, como pilares essenciais a serem observados pelos pais/responsáveis legais, pelas plataformas digitais, pelo Estado e por toda a sociedade, com a finalidade de se garantir a adequada tutela de crianças e adolescentes no ambiente digital. __________ 1 Para maiores informações acerca do novo paradigma tecnológico e do mercado de consumo digital se remete a leitura de: MIRAGEM, Bruno. Novo paradigma tecnológico, mercado de consumo e o direito do consumidor. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti (Coords.). Direito digital: direito privado e internet. 4. ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2021. 2 Para um estudo aprofundado sobre a temática dos influenciadores digitais, remete-se a leitura de: SILVA, Michael César; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira; BARBOSA, Caio César do Nascimento. Digital influencers e social media: repercussões, perspectivas e tendências da atuação dos influenciadores digitais na sociedade do hiperconsumo. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2023. [No prelo]. 3 ALMEIDA, Claudia Pontes. Youtubers mirins, novos influenciadores e protagonistas da publicidade dirigida ao público infantil: uma afronta ao Código de Defesa do Consumidor e às leis protetivas da infância. Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, v. VI, n. 23, 2016, p. 176. 4 EBERLIN, Fernando Büscher von Teschenhausen. Sharenting, liberdade de expressão e privacidade de crianças no ambiente digital: o papel dos provedores de aplicação no cenário jurídico brasileiro. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, 2017, p. 258. 5 Canal de pai que constrangia e assustava filhas em vídeos é deletado do YouTube. Estadão. 2017. Disponível aqui Acesso em: 13 abr. 2023. 6 Insta frisar que o referido canal foi recriado na plataforma do YouTube, em 04 de março de 2023, e, desde então, está a publicar vídeos nos mesmos moldes anteriores. (YOUTUBE. Toy Freaks. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 21 abr. 2023). 7 YOUTUBE. BEL. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2023. 8 BATISTA JÚNIOR, João. A polêmica do canal 'Bel para meninas': "Exposição vexatória e degradante". VEJA. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 9 TOMAZ, Renata de Oliveira. O que você vai ser antes de crescer:  youtubers, infância e celebridade. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2017, p.199. 10 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 11 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 12 Exemplificativamente, tem-se casos notórios de celebridades mirins, que em decorrência de sua excessiva exposição ao longo de seu crescimento sofreram uma série de abalos psicológicos, como nos casos de Lindsay Lohan, Britney Spears, Demi Lovato e Miley Cyrus, dentre outros, que repercutem, ainda hoje. 13 De sexualização precoce a críticas de fãs, elenco de 'Stranger Things' vive pressão da fama. BBC Brasil. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 14 INSTAGRAM. Melodyoficial3. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 15 SENRA, Ricardo. Ministério Público abre inquérito sobre 'sexualização' de MC Melody. BBC Brasil. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 16 INSTAGRAM. Melissamelmaia. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 17 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MEDON, Filipe. A hipersexualização infanto-juvenil na internet e o exercício da autoridade parental na era da superexposição. Forum. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 18 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MEDON, Filipe. A hipersexualização infanto-juvenil na internet e o exercício da autoridade parental na era da superexposição. Forum. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 19 LAS CASAS, Fernanda. O incesto financeiro de ativos digitais. Magis - Portal Jurídico. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. (destaques no original)
Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé. Desde agora, a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor,justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amarem a sua vinda. Paulo de Tarso, Bíblia, 2 Timóteo 4:7-8. Os autores da coluna Migalhas de Responsabilidade Civil me concederam a honra de escrever o artigo comemorativo dos três anos da coluna e o desafio de homenagear o meu querido professor, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Com grande pesar lamentamos o falecimento do Ministro Sanseverino, ocorrido no dia 8 de abril de 2023. De uma carreira exemplar no Poder Judiciário brasileiro, Sanseverino foi um destacado magistrado, excelente professor, competente jurista e, mais do que tudo, um grande ser humano. Paulo de Tarso nasceu em 16 de junho de 1959 em Porto Alegre, teve sua formação Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) em 1983. Tornou-se mestre (2000) e doutor (2007) em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). No primeiro ano de formado, Sanseverino passou no concurso do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) em 1º lugar e, depois, no concurso para magistratura estadual que lhe proporcionou a atuação como juiz de direito, a partir de 1986 em diversas comarcas gaúchas. Exerceu, ainda, a magistratura como juiz eleitoral entre 1998 e 1999. Em 1999 foi promovido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), atuando como desembargador até 2010, quando foi nomeado Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). No STJ foi um exímio magistrado nos colegiados de direito privado, se destacando como uma referência no país para os temas contratuais, de reponsabilidade civil, formação de precedentes, entre outros. Foi relator de inúmeros Leading cases, dos quais se destacam: a) Em 2011, o Ministro Sanseverino já mostra a força de sua atuação no STJ ao relatar e votar pela aplicação do método bifásico da mensuração das indenizações por dano moral (REsp 1.152.541). No caso, o Ministro confirma aplicação de sua tese de doutorado, unindo jurisdição e pesquisa acadêmica, para exarar o voto condutor e determinar a elevação do valor da indenização por dano moral considerando as duas etapas que devem ser percorridas no arbitramento de indenizações por danos morais. Na primeira etapa, deve-se estabelecer um valor básico para a indenização, considerando o interesse jurídico lesado, com base em precedentes para casos similares. Na segunda etapa, devem ser consideradas as circunstâncias específicas do caso para definição do valor da indenização com fundamento na determinação de arbitramento equitativo pelo juiz em interpretação analógica do da norma insculpida no art. 953 do Código Civil. b) Em 2012, no Recurso Especial nº 1.192.678-PR, o Ministro Sanseverino lidera o julgado pela aplicação da "teoria dos atos próprios" com base no princípio da boa-fé objetiva e nos institutos do "tu quoque" e "venire contra factum proprium" para reconhecer a validade de assinatura digitalizada aposta pelo próprio emitente em título de crédito. c) Sanseverino relatou o acórdão que julgou sistema credit scoring (Tema 710). Após realizar audiência pública no STJ, o Ministro Sanseverino votou pela validade do sistema desde que as instituições bancárias respeitem os direitos dos consumidores sob pena de responsabilização pelos danos causados. d) O Ministro Sanseverino relatou, em 2015, o acórdão do Tema Repetitivo 898, que julgou a controvérsia sobre a atualização monetária nas indenizações por morte ou invalidez do seguro DPVAT. Após mais uma audiência pública, o Ministro votou e foi seguido, unanimemente, pela atualização monetária da indenização do seguro DPVAT desde a data do evento danoso. e) Relatou o acórdão que definiu a legitimidade da Telebras para responder a processos sobre complementação de ações (Tema 910). f) O Ministro Sanseverino, também, liderou o precedente que definiu o caráter abusivo do ressarcimento, pelo consumidor, da comissão do correspondente bancário (Tema 958). g) Cabe citar, ainda, seu voto na decisão sobre a plena eficácia da sentença arbitral estrangeira no Brasil após a homologação (REsp 1.203.430). h) Outra decisão de grande repercussão foi a da definição da abusividade da negativa de cobertura de despesas com cirurgia de gastroplastia necessária à sobrevivência do paciente nos contratos de planos de saúde (REsp 1.249.701). i) Recentemente, o Ministro Sanseverino relatou e conduziu o julgado pelo reconhecimento de que o "Direito da Concorrência e Direito do Consumidor apresentam relação simbiótica, pois, em termos gerais, quanto maior a concorrência, maior tende a ser o bem-estar do consumidor e que, quanto maior a proteção do consumidor, mais justa e leal tende a ser a concorrência". Contudo, apesar dessa relação essencial entre proteção à livre-concorrência e proteção ao consumidor, não é possível à concorrente exigir a inversão do ônus da prova e impor ao concorrente a comprovação de afirmações publicitárias como "o melhor hamburguer do mundo" sob pena de abuso de direito e violação da própria livre-concorrência (REsp 1.866.232).1 O ministro Sanseverino, além de excelente magistrado, foi um grande professor de Direito na graduação, mestrado e doutorado, exercendo o nobre ofício na PUC-RS, no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) entre outras renomadas instituições de ensino. A atividade como professor foi coroada com uma relevante carreira como escritor e pesquisador jurídico. O jurista Sanseverino escreveu diversas obras que marcaram o direito privado brasileiro, especialmente, sobre o direito da responsabilidade civil e o direito dos contratos. Dentre os principais escritos se destacam: a) "Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil"2: Na obra, fruto de seu doutorado, o doutrinador Sanseverino destaca que o princípio da reparação integral procura colocar o lesado, na medida do possível, em situação equivalente à anterior ao fato danoso, concepção que não se revela viável, entretanto, em várias ocasiões. Diante da complexidade dos diversos elementos da responsabilidade civil, Sanseverino buscou defender a aplicação do princípio da reparação integral nos casos de danos extrapatrimoniais de forma mitigada para que se evite distorções como o enriquecimento injustificado. A teoria da diferença (aplicável aos danos patrimoniais) deve ser superada pela teoria do interesse, permitindo a ponderação do interesse jurídico do lesado. O exame deve ser feito em duas fases (método bifásico): primeiro, pela análise dos precedentes jurisprudenciais similares e, posteriormente, num segundo momento, pela valoração das circunstâncias especiais do caso. Como acima referido no julgamento do REsp 1.152.541, o Professor Sanseverino pode liderar a consolidação de sua tese nos tribunais pátrios. b) "Contratos nominados II: contrato estimatório, doação, locação de coisas, empréstimo (comodato-mútuo)"3: obra na qual Sanseverino comenta os principais dispositivos do Código Civil em relação aos contratos nominados, com especial destaque para o mútuo e as formas de responsabilidade contratual. c) "Responsabilidade civil no Código Do Consumidor e a defesa do fornecedor"4: Sanseverino examina a responsabilidade por acidentes de consumo e os seus pressupostos (defeito, dano, nexo causal e nexo de imputação). Defende a compreensão do defeito com base na teoria do risco criado e a sua compatibilidade com as excludentes de responsabilidade como a culpa concorrente da vítima, o caso fortuito e a força maior. Por tudo referido e muito além, o Ministro Sanseverino foi uma das estrelas da escola gaúcha e brasileira de direito privado, herdeiro e/ou parceiro intelectual de grandes juristas como Clóvis do Couto e Silva, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Judith Martins-Costa, Claudia Lima Marques, citando apenas alguns. Como advogado, tive muitas demandas julgadas pelo magistrado Sanseverino, ganhei e perdi, mas sempre fui tratado de forma justa. Contudo, foi nos bancos universitários que aprendi a admirar ainda mais o professor e acadêmico. Fui aluno do Professor Sanseverino na disciplina de Contratos no ano 1996 na PUC-RS e, pelo seu exemplo, comecei a me interessar pelo direito privado, o direito dos contratos e a responsabilidade civil. Desde então, passei a ter o Professor Sanseverino como referência e lhe segui no mestrado da UFRGS (minha dissertação chega a abordar o mesmo tema da dele). Posteriormente, tive a sorte de ser seu colega como docente na PUC-RS e receber suas turmas de contratos quando da sua nomeação para o STJ e mudança para Brasília. Digo isso, pois tenho certeza que, assim como para mim, o Professor Sanseverino foi para muitos um exemplo do exercício dos diversos ofícios jurídicos na busca do bem e da justiça. Sanseverino foi a prova de que não há grande magistrado, jurista ou professor, sem um grande ser humano. Assim, deixo aqui meu testemunho de que, como seu homônimo citado no início deste breve depoimento, Paulo de Tarso combateu o bom combate, acabou a carreira, guardou a fé e, assim, certamente, a coroa da justiça, que ele tanto defendeu, lhe foi, merecidamente, dada. __________ 1 Informações em parte obtidas no site do STJ, em notícia sobre o falecimento do Ministro Sanseverino intitulada "A despedida prematura de Paulo de Tarso Sanseverino": Acesso aqui. 2 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010. 3 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Contratos nominados II: contrato estimatório, doação, locação de coisas, empréstimo (comodato-mútuo). Editora Revista dos Tribunais, 2006. 4 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a Defesa do Fornecedor. são Paulo: saraiva, 2010.
Um dos mais polêmicos pilares estabelecidos pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais foi o da responsabilidade civil dos agentes de tratamento. Ao regular as situações ilícitas, acidentais ou não, as normas dos artigos 42 a 45 da Lei 13.709/1 criaram um inusitado e desconfortável paradoxo: quais elementos levar em consideração para fixar os critérios do regime de responsabilização civil? Não há dúvida de que a reparação de danos decorrente do tratamento ilícito de dados pessoais há de ser examinada com extrema cautela. A ninguém interessa que o futuro se veja aprisionado em formas técnicas pertencentes ao passado e que possam se revelar insuficientes para compreender o significado das inovações que se apresentam atualmente (Rodotà,1997). Mas também é igualmente temerária a proposta alvissareira de revisão da tradição secular que firmou as bases da responsabilidade civil e que pode causar desproporcional insegurança jurídica para as relações civis e descortinar uma nova roupagem às afrontas à dignidade da pessoa humana. Interessa-nos compreender que o artigo 42 da LGPD estabelece que "o controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo". Verifica-se a clara alusão aos institutos do ato ilícito e do nexo de causalidade, não se identificando qualquer alteração em relação aos tradicionais elementos ensejadores do dever de indenizar a que aludem os artigos 186 e 927 do Código Civil. Cumpre observar, entretanto, que durante a tramitação do PL que deu origem à LGPD, havia a expressão "independentemente de culpa" que foi retirada do texto do artigo 42 exatamente para que não fosse consagrado o regime da responsabilização objetiva dos agentes de tratamento de dados pessoais. Disso, e ainda de forma superficial, pode-se apontar a primeira incoerência de uma pretensão de se postular a aplicação do regime da responsabilidade objetiva pela simples interpretação literal da norma. Porém, também é importante compreender e com amparo na lição de Anderson Schreiber (2021, p.324) que "[...] a parte final do art. 42 alude ao dano causado em violação à legislação de proteção de dados pessoais, expressão que sugere uma responsabilidade fundada na violação de deveres jurídicos (culpa normativa)". O critério de culpa normativa aqui mencionado por Schreiber diz respeito à conduta do bonus pater familias (ou do reasonable man no common law) e ao critério de culpa in abstracto, levando-se em consideração circunstâncias comuns inerentes ao "tempo, lugar, usos, costumes e hábitos sociais" (BANDEIRA, 2008, p. 231). Dito isso, interessa-nos, por conseguinte, alcançar aquilo que se encontra previsto no artigo 43 da LGPD, em especial pela aproximação de sua redação com o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor que traz consigo a fortíssima herança da responsabilização objetiva dos fornecedores de produtos e serviços: Art. 43. Os agentes de tratamento só não serão responsabilizados quando provarem: I- que não realizaram o tratamento de dado pessoais que lhes é atribuído; II- que, embora tenham realizado o tratamento de dados pessoais que lhe é atribuído, não houve violação à legislação de proteção de dados; ou III- que o dano é decorrente de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiro. De fato, a redação do indigitado dispositivo é bem próxima ao que dispõe o parágrafo terceiro do artigo 14 do CDC, o qual consagrou a sistemática da responsabilidade do fornecedor independentemente de culpa na reparação de danos causados aos consumidores. Essa comparação, potencializada pelo fato de que o tratamento de dados pessoais constituirá uma frequente relação consumerista, constitui um fator de razoável insegurança no estudo da matéria diante da constante relação de dialeticidade entre essas normativas. Vale dizer que a objetivação da responsabilidade consumerista não deve ser confundida com a regra geral. No domínio do CDC, que pode ser aplicado diretamente (art. 45, LGPD) em inúmeros casos do tratamento de dados pessoais caso presentes as figuras do consumidor (direto ou por equiparação) e do fornecedor, o artigo 14 da Lei 8.078/90 estabelece que há responsabilidade "independentemente da existência de culpa pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação de serviços". E o parágrafo terceiro deste dispositivo estabelece que o fornecedor somente se isenta da responsabilização quando comprovar a inexistência de vício no serviço prestado ou se o dano tiver sido causado pela culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Na esfera da LGPD, como já se anotou, não foi adotada positiva e expressamente a expressão "independentemente da existência de culpa". No tocante ao mencionado artigo 43 da LGPD, aponta-se a prevalência da responsabilização do controlador, o qual estará isento do ressarcimento quando provar que não realizou o tratamento de dados pessoais (inciso I). Nesta hipótese, não haveria sequer a constituição de um liame a unir juridicamente o controlador ao titular, eis que em um primeiro momento aquele não seria sequer legitimado para responder por atos de terceiro1. É o típico caso da ausência do nexo de causalidade a impedir a responsabilização do controlador em relação ao qual, aliás, não se estabeleceu solidariedade como regra geral.2-3 A segunda hipótese contemplada no dispositivo diz respeito à inexistência de ato ilícito, isto é, embora o controlador tenha realizado efetivamente o tratamento de dados pessoais, e sua prática tenha sido respaldada por um dos fundamentos para o tratamento lícito inseridas no art. 7o da LGPD, ou em outro dispositivo correlato assim considerado pelo diálogo das fontes4. Nesta hipótese, não há ato ilícito e, consequentemente, não prospera o dever de indenizar entre o controlador e a pessoa lesada5-6. Houvesse o art. 43, II, da LGPD predeterminado a responsabilidade objetiva, não haveria motivo para se preocupar com a licitude ou não do ato praticado pelo agente de tratamento, já que bastaria, por si só, a existência de ato ou fato a ele atribuído que, em virtude de uma relação causal, houvesse causado danos à pessoa. A esse respeito, Gustavo Tepedino, Aline Terra e Gisela Guedes (2021, p.751) destacam que os incisos I e III se referem expressamente à relação de causalidade e que o inciso II remete claramente à ideia de culpa enquanto fundamento primário da responsabilidade. Neste particular, é essencial compreender que o ato que se reputar ilícito será praticado a título de culpa ou dolo. A responsabilidade objetiva, nada obstante, representa uma simplificação dos requisitos do dever de indenizar e do afastamento do elemento subjetivo da culpabilidade, bastando que exista ato praticado, dano e nexo de causalidade. Deste modo, é possível afirmar que o inciso II do art. 43 da LGPD constitui uma clara evidência da adoção do padrão subjetivo da responsabilidade civil pois, a se cogitar sua objetivação, seria irrelevante a comprovação do caráter lícito ou ilícito do ato praticado pelo respectivo agente de tratamento. Não há dúvida de que este dispositivo reclamou o cotejo do elemento culpa. A terceira hipótese estabelece que o controlador não será responsável, quando comprovar que o dano suportado pela pessoa foi causado exclusivamente por ela própria ou por terceiro. Mais uma vez, trata-se do reconhecimento da necessária relação de causalidade entre o ato que se reputa ilícito e o dano originado. Se o ato, ainda que ilícito, foi praticado pela própria pessoa ou por terceiro, há que se reconhecer o afastamento do nexo de causalidade e do dever de indenizar. A compreensão daquilo que está contido nos incisos do art. 43 da LGPD revela que o controlador será sempre responsabilizado, salvo nas hipóteses em que inexistir nexo de causalidade entre o ato por ele praticado e o dano suportado pela pessoa, assim como na ausência de antijuridicidade do ato realizado. Isso significa que o sistema adotado pela LGPD é o da culpa presumida em caráter relativo e não o da responsabilidade objetiva pura. Parte-se do pressuposto, portanto, de que a responsabilidade do agente de tratamento constitui uma regra geral que pode ser afastada mediante a demonstração de que sua conduta não incorreu em quaisquer das modalidades da culpa, o que ocorrerá notadamente através da demonstração da adoção dos deveres de cuidado inerentes ao bonus pater familias estruturalmente definidos pela lei. Acrescentem-se, ainda, os naturais obstáculos à comprovação da existência e da dimensão do dano, os quais podem excepcionalmente impedir o estabelecimento do liame obrigacional de ressarcimento e que historicamente justificaram a criação da teoria objetiva da responsabilidade civil. Taísa Maria Macena de Lima e Maria de Fátima Freire de Sá (2020), assim como Maria Celina Bodin de Moraes (2019), Laura Mendes e Danilo Doneda (2018) entendem que a objetivação da responsabilidade do controlador decorre da adoção da teoria do risco-proveito. Para tais autores, a responsabilidade civil pelo tratamento de dados pessoais prevista no art. 43 da LGPD estaria respaldada pelo parágrafo único do art. 927 do CC/02, segundo o qual o dever de reparar o dano não depende de culpa "quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". Porém, como observa Silvio Venosa (2010) "o que se leva em conta é a potencialidade de ocasionar danos; a atividade ou conduta do agente que resulta por si só na exposição a um perigo [...]". Em um mundo cada vez mais interconectado e em que o tratamento de dados pessoais se torna a pedra angular de qualquer atividade, não se pode presumir a prática da potencialidade danosa e acabamos por concordar com Leonardo Poli (2019): É lógico que a noção de risco criado deve ser relativizada, ou, caso contrário, a responsabilidade subjetiva não mais seria aplicável, visto que, em última análise, toda conduta humana em sociedade gera risco de dano para terceiros. Assim, tem-se que a teoria do risco criado não se aplica a qualquer atividade humana que gere risco, uma vez poder-se dizer que exista risco em qualquer atividade humana. A teoria se aplica apenas a atividades ditas perigosas, aquelas em que o risco é inerente, seja por sua natureza, seja pelos meios que utiliza. (POLI, 2019, p.575). Além disso, duas outras questões corroboram esse apontamento. A primeira, é que toda a LGPD é estruturada de acordo com uma complexa morfologia de práticas relacionadas ao dever de cuidado, transparência, informação, prevenção, segurança, responsabilização e prestação de contas e cujo cumprimento total ou parcial devem importar à gradação da responsabilidade do agente de tratamento. A simples atribuição da responsabilidade civil, independentemente do elemento subjetivo da culpa, significará que o cumprimento desses deveres estruturais será irrelevante para o agente de tratamento de dados pessoais, já que não resultaria em qualquer possibilidade de afastamento ou mitigação de sua responsabilidade. Dito de outra forma, nem mesmo existiria incentivo para a adoção das melhores práticas de governança de dados pessoais (art. 50, LGPD), da sua manutenção e melhoria contínua ao longo do tempo se, eventualmente, incapazes de evitar o ilícito, não pudessem atenuar total ou parcialmente a dimensão da responsabilidade do agente de tratamento. Se é certo afirmar que o instituto da responsabilidade civil tem passado por um deslocamento de seu eixo gravitacional, o qual se transfere de uma inicial incidência sobre o dano e, agora, tende para a reprovabilidade da conduta do ofensor (LEVY, 2012; ROSENVALD, 2010), seria igualmente apropriado também compreender que esse movimento deve ser levado em consideração, ao se interpretar a responsabilidade civil pelo tratamento de dados pessoais. A objetivação da responsabilidade civil, nessa esfera, embora possa constituir uma medida de facilitação da preservação dos direitos fundamentais da pessoa, não dispensa, a priori, a sua conjugação com o critério subjetivo. Para compreender a responsabilidade civil na LGPD é preciso ir além. Gustavo Tepedino, Aline Terra e Gisela Guedes (2021) chegam à mesma conclusão ao compararem a redação do art. 43 da LGPD com o art. 493, item 2, do Código Civil português e com o art. 2.050 do Código Civil italiano que acolheram exatamente a figura da culpa presumida em caráter relativo. No movimento histórico que levou ao desenvolvimento da responsabilidade civil enquanto presunção relativa de culpa e o dever de reparar, mediante presunção absoluta ou da adoção de medidas mitigadoras do dano, consolidara-se no CC/02 diversas disposições neste sentido, como é o caso da responsabilidade de pais, tutores, curadores, empregadores, donos de hotéis e hospedarias, casas ou estabelecimentos onde uma pessoa se abriga, mediante contraprestação pecuniária, em que a culpa por danos causados não é discutida pois dotada de presunção iure et de iure. O mesmo ocorre com a responsabilidade do fornecedor de produtos ou serviços pelos danos causados aos consumidores (art. 14, CDC).  Porém, em tais situações, houve expressa determinação prevista na legislação para a adoção desse tipo de obrigação. No desafio da construção de uma interpretação consentânea com a unidade da ordenação jurídica em um pensamento pós-abissal (SANTOS, 2007), sem descuidar da tendência antropocêntrica orientada pela dignidade da pessoa, de fato, não há sentido em se atribuir à parte lesada o ônus decorrente do tratamento indevido de seus dados pessoais, dificultando-lhe, sobremaneira, o exercício de seu direito de ação e o ressarcimento integral daquilo que suportou. Em inúmeras situações, a pessoa se torna verdadeiramente hipossuficiente em relação a qualquer prova do elemento subjetivo da culpa e da adoção das salvaguardas técnicas, de segurança e administrativas, a cargo do agente de tratamento, e às quais alude o art. 46 da LGPD. Porém, há aqui um problema relativo à prova do ato ilícito e da adoção das medidas de índole procedimental e estrutural previstas na legislação, como os deveres de cuidado, informação, transparência, segurança, prestação de contas e responsabilização e não, rigorosamente, uma discussão inerente ao regime de culpa. Para tais situações, a legislação processual estabelece a possibilidade de inversão do ônus da prova, seja pela aplicação do art. 6o, do CDC ou do art. 373 do CPC. O sistema da culpa presumida em caráter relativo, destarte, serve como instrumento de inversão da lógica de comprovação da culpa (e da sua gradação), ao atribuir ao agente de tratamento o dever de demonstrar a adoção das obrigações de cuidado, informação, transparência, segurança, prestação de contas e responsabilização, o que parece lógico e compatível com a disposição da LGPD. O mesmo se extrai do art. 44 da LGPD, segundo o qual haverá ilicitude no tratamento de dados pessoais, quando este não oferecer a segurança esperada, a se considerarem os seguintes vetores: o modo de sua realização, o resultado e os riscos razoavelmente esperados, e as técnicas de tratamento disponíveis à época. Aqui novamente se consagra a responsabilização decorrente da falta de demonstração da adoção de medidas de segurança. Presume-se, portanto, a culpa do agente de tratamento, até que haja demonstração da licitude dos atos por ele praticados, da inexistência de nexo causal entre o ato e o dano, assim como da suficiência dos deveres de cuidado, informação, transparência, segurança, prestação de contas e responsabilização, em sintonia com a cláusula geral da boa-fé objetiva. Situações consentâneas com a obrigação do agente de tratamento em demonstrar, ativa e claramente, as cautelas por ele observadas, envolvem a identificação do uso secundário de dados pessoais, o desvio de finalidade pautado em base legal que assim o permita (art. 7o, LGPD) e, neste ângulo, principalmente, a utilização do legítimo interesse do controlador (art. 7o, IX c/c art. 10, LGPD) e da proteção do crédito (art. 7o, X, LGPD). Essa conjuntura, que apresenta um maior grau de opacidade no tratamento de dados pessoais, tende a privilegiar a consecução de atividade meramente econômica e, em maior grau, a atender os interesses do controlador. Trata-se de situações concretas que eventualmente podem externar um verdadeiro risco assumido por este, em virtude de sua própria atividade, hipótese na qual a teoria do risco-proveito poderia se mostrar de adequada aplicação, sempre como regra de exceção. A proposição de que se reconheça a responsabilidade subjetiva com culpa presumida estabelecida pelo art. 43 da LGPD e a incidência da teoria do risco-proveito, apenas circunstancialmente e em decorrência da natureza extraordinária da atividade empreendida pelo controlador, leva em consideração não apenas um regime de incentivos econômicos e comportamentais a induzir um determinado padrão de comportamento responsável e zeloso pela dignidade da pessoa, mas, também, um profundo vetor de coerência da norma. Ao mesmo tempo em que os custos de transação associados ao tratamento de dados pessoais podem ser aumentados através do estabelecimento, por exemplo, da solidariedade entre operador e controlador, também se devem estabelecer verdadeiras salvaguardas, na concepção de um safe harbor, no sentido de se estabelecerem premissas para a ausência de responsabilidade civil, quando ausente o nexo de causalidade ou a própria ilicitude do ato, aspectos estes mencionados tanto pelo art. 42 quanto pelo art. 43, II, da LGPD. Bernardo Grossi é Doutor e Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Advogado. Professor da Pós-Graduação do IEC PUC Minas. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC), da International Association of Privacy Professionals (IAPP), do Instituto de Direito e Inteligência Artificial (IDEIA) e do Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG).  Referências CHAMON JÚNIOR. Lúcio Antônio. 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São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p.741-770. __________ 1 Conquanto não se tenha estabelecido a solidariedade como regra geral. 2 A exemplo do que se estabeleceu, por exemplo, no art. 18 do CDC e cujo teor é o seguinte: Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. 3 Ad cautelam, é importante relembrar que o nexo de causalidade rompe com o dever de indenizar mesmo nas situações de objetivação da responsabilidade civil, eis que esta diz respeito à presunção relativa ou absoluta da culpa de uma das partes, enquanto não se dispensa o dano e a respectiva relação de causalidade direta. 4 Como, por exemplo, o autêntico exercício regular de direito previsto no art. 188, I, do CC/02. 5 Salvo na hipótese do abuso de direito que, por si só, será considerado como uma espécie de ato ilícito na forma do art. 186 do CC/02. 6 Ainda que a responsabilidade objetiva trate do dever de indenizar sem culpa, ainda nela há ato ou fato atribuído ou inerente àquele que foi definido como responsável pelo ressarcimento.