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Migalhas de Responsabilidade Civil

Retrata os inúmeros desafios bioéticos, tecnológicos e ambientais da responsabilidade civil.

Fernanda Schaefer, Nelson Rosenvald, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Paulo Roque Khouri e Igor Mascarenhas
A sociedade contemporânea perpassou por diversas mudanças no contexto social, econômico, cultural e, sobretudo, tecnológico, as quais ensejaram o surgimento do fenômeno da hiperconexão e do hiperconsumo, que, por conseguinte, permitiram o incremento de um novo paradigma tecnológico digital.1   Com o advento das plataformas digitais - Facebook, Instagram, Youtube e Tik Tok, dentre outras - se alterou profundamente os padrões de comunicações previamente estabelecidos, permitindo-se que as referidas mídias sociais se transformassem em locus, para a implementação de uma comunicação interindividual e transfronteiriça, possibilitando assim a difusão de conteúdo de forma célere e simplificada, e, afetando, intensamente, a vida dos indivíduos em sociedade e o mercado de consumo, que diante dos avanços tecnológicos se transforma em um mercado de consumo digital. Nesse cenário, exsurgem personalidades digitais denominadas de digital influencers ou influenciadores digitais2, os quais passaram a produzir conteúdo temático em diversas áreas (entretenimento, moda, medicina, jurídico, pets, games, lifestyle, finanças, dentre outros) e a realizar atividade publicitária para marcas, produtos ou serviços nas redes sociais. A atuação dos influenciadores digitais, na última década, remodelou os padrões de comunicação, informação, opinião, comportamento e, especificamente, hábitos de consumo de seu público-alvo (seguidores-consumidores) no ambiente digital.  Dentre os diversos nichos de atuação dos influencers, assume especial destaque, o segmento dos influenciadores mirins, o qual atrai significativo contingente do público infantojuvenil, na qualidade de seguidores dessas webcelebridades, no âmbito das plataformas digitais. Com efeito, a fama, prestígio e rentabilidade econômica em se tornar um influenciador digital é um grande atrativo para inúmeras crianças e adolescentes, de modo que "ser um youtuber mirim de sucesso é um negócio bastante promissor, e isso se constata pelo comportamento da família diante da atividade desenvolvida pelos pequenos."3 Logo, não é incomum que os pais invistam na carreira digital de seus filhos, os quais, por vezes, se tornam a principal fonte de renda do núcleo familiar. Os influenciadores mirins se apresentam como crianças e adolescentes, que produzem conteúdo específico para o público infantojuvenil, com o objetivo de se alcançar engajamento e contrapartidas econômicas nas mídias sociais. Muitos destes influenciadores são representados, por seus pais ou responsáveis legais, que administram suas plataformas digitais e incentivam a produção de conteúdo reiterado e em larga escala. O tema em análise revela múltiplas problematizações, especialmente, no tocante à superexposição de crianças e adolescentes na Internet, se desdobrando tanto pelo excesso de compartilhamento - prática conhecida como (over)sharenting - quanto pela hipersexualização infantojuvenil no ambiente digital. Para uma correta compreensão da questão relacionada ao excesso de compartilhamento, se faz necessário proceder a análise da semântica do termo "sharenting", que segundo Fernando Büscher von Teschenhausen Eberlin se qualifica como: A prática consiste no hábito de pais ou responsáveis legais postarem informações, fotos e dados dos menores que estão sob a sua tutela em aplicações de internet. O compartilhamento dessas informações, normalmente, decorre da nova forma de relacionamento via redes sociais e é realizado no âmbito do legítimo interesse dos pais de contar, livremente, as suas próprias histórias de vida, da qual os filhos são, naturalmente, um elemento central. O problema jurídico decorrente do sharenting diz respeito aos dados pessoais das crianças que são inseridos na rede mundial de computadores ao longo dos anos e que permanecem na internet e podem ser acessados muito tempo posteriormente à publicação, tanto pelo titular dos dados (criança à época da divulgação) quanto por terceiros.4 Trata-se, de forma sintética, do ato ou prática dos pais ou responsáveis legais publicarem ou compartilharem, dados, imagens e demais formas de conteúdo relativos aos infantes, que estejam sob sua tutela, no ambiente digital. Destaca-se, por oportuno, que o compartilhamento realizado, nestes termos, não é, em princípio, considerado ilegal ou imoral. O problema, contudo, reside no compartilhamento excessivo, imoderado, desarrazoado, promovido pelos responsáveis legais dos infantes, que caracteriza a prática do (over)sharenting, que se configura como um exercício abusivo (disfuncional) da autoridade parental. Um dos casos de maior notoriedade relativamente à prática do (over)sharenting e do abuso da autoridade parental envolveu o canal do YouTube "Toy Freaks", o qual à época da controvérsia contava com mais de 8 (oito) milhões de seguidores. O referido canal publicou vídeos nos quais as crianças tinham que agir como se bebês fossem, inclusive, vestindo-as com roupas de bebês, forçando-as a mastigar e cuspir alimentos e, até mesmo, urinar nas próprias roupas. Logo, diante de inúmeras denúncias dos usuários da plataforma, o YouTube, em 2017, retirou o canal do ar, por violação às políticas internas de prevenção a abusos infantis.5-6 No Brasil, o canal do YouTube "Bel Para Meninas" (atualmente apenas "Bel"), com mais de 7 (sete) milhões de inscritos7, promovendo brincadeiras em família e relatos do cotidiano da jovem, que dá nome ao canal, gerou grande controvérsia nas redes sociais, em razão da excessiva exposição da criança na Internet, em diversas situações constrangedoras e vexatórias. A rotina da criança era transmitida com alta frequência por meio de vídeos filmados por seus pais. Em 2020, após uma série de vídeos publicados, contando, inclusive, com um episódio no qual a mãe da criança aparecia zombando da filha após esta vomitar diante das câmeras, a hashtag #SalvemBelParaMeninas ganhou evidência, com a finalidade de se questionar o comportamento da mãe em relação à criança.8 Destarte, se constata que a prática do (over)sharenting pode ser vislumbrada nas plataformas digitais de inúmeras crianças e adolescentes no ambiente digital. Entretanto, as que vivenciam o fenômeno em maior intensidade são aquelas que atuam nas mídias sociais como influenciadores mirins. Nesse giro, Renata de Oliveira Tomaz assevera, ainda, que "o processo por meio do qual as crianças vão da invisibilidade do ambiente doméstico para a visibilidade do espaço on-line é bastante complexo"9, ensejando, por conseguinte, inúmeros prejuízos ao desenvolvimento físico, intelectual e psicológico, bem como, a própria formação da personalidade das crianças e adolescentes que atuam como influencers.    Assim, constata-se que os pais ou responsáveis legais do infante podem exercer sua autoridade parental e, até mesmo, realizar o sharenting, mediante o compartilhamento de conteúdo diverso nas redes sociais, como forma de incentivo à carreira de influenciador, o que não configura conduta ilícita ou ilegítima. Não obstante, esse compartilhamento pode se tornar excessivo, imoderado e até abusivo, caracterizando o (over)sharenting, sem que a criança ou adolescente seja capaz de determinar os próprios atos e compreender as implicações dessa exposição desmedida nas mídias sociais. Outrossim, há de se destacar, ainda, que o (over)sharenting pode se consubstanciar ainda que os infantes consintam com a superexposição. Nessa linha de intelecção, a Constituição da República de 1988, em seu artigo 227,10 estabelece como dever dos pais zelar pela incolumidade psicológica, moral e física dos filhos, em consonância com o melhor interesse dos mesmos, de forma que, devem se abster de veicular postagens que possam, eventualmente, violar a integridade física, moral e psicológica de crianças e adolescentes, resguardando, inclusive, sua imagem, dados e demais conteúdos, com o objetivo de coibir possíveis reflexos danosos ao desenvolvimento de sua personalidade. Nesse mesmo sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente11, em seus artigos 15, 17 e 18, destaca como garantia fundamental aos infantes, o respeito e a primazia pela dignidade humana, assegurando-se, assim, um caráter protetivo especial estabelecido pelo referido Estatuto aos hipervulneráveis no ambiente digital.    Ademais, o que se objetiva coibir é o compartilhamento excessivo nas plataformas digitais, prejudicial à formação da própria criança/adolescente, uma vez que essa superexposição pode ensejar situações caracterizadas pelo desconforto, angústia, constrangimento, humilhação ou em alguns casos até mesmo se efetivar mediante a sexualização dos infantes. A erotização de crianças e adolescentes não é fenômeno recente, nem mesmo restrito às plataformas digitais, uma vez que as celebridades mirins, em decorrência da superexposição midiática, se tornaram alvo de uma adultização precoce, por meio da utilização de uma imagem sexualizada das mesmas promovida por terceiros.12 Exemplificativamente, pode-se citar o caso da atriz infantojuvenil Millie Bobby Brown, mundialmente conhecida pelo seu papel na série "Stranger Things", a qual foi listada pela Revista W, como uma das atrizes que "fazem a televisão estar mais sexy do que nunca"13, quando tinha apenas 13 (treze) anos de idade. Em relação aos influenciadores digitais mirins, verifica-se que os próprios influencers ou seus pais/responsáveis legais promovem a referida hipersexualização infantojuvenil. Nesse sentido, 2 (duas) situações se denotam no tocante a problematização em análise, quais sejam: i) os influencers mirins são obrigados pelos pais ou responsáveis legais a postarem conteúdo erotizado; ii) influenciadores mirins, em patente omissão dos deveres relacionados ao exercício da autoridade parental, contam com a anuência dos pais/responsáveis legais na veiculação de publicações erotizadas nas mídias sociais. Outrossim, não é incomum que influenciadores mirins postem vídeos e imagens ao som de músicas, com teor sensual ou explicitamente erótico, com objetivo de alcançar mais seguidores e um maior engajamento nas redes sociais. O caso de maior repercussão relacionado a erotização precoce de influenciadores mirins no Brasil, se refere à cantora Melody, outrora conhecida como MC Melody, nome artístico de Gabriella Abreu Severiano, a qual possui mais de 12 (doze) milhões de seguidores no Instagram.14 A influenciadora mirim, atualmente, com 16 (dezesseis) anos de idade, foi alvo de numerosos debates acerca da hipersexualização infantil, desde os seus 8 (oito) anos de idade, época em que o Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito para investigar o pai da influencer por suspeita de violação ao direito ao respeito e à dignidade de crianças e adolescentes.15 Nas mídias sociais da influenciadora mirim é possível vislumbrar a utilização de um visual adultizado nas postagens divulgadas pela cantora, bem como fotos com poses e clipes musicais com coreografias, letras e cenas com conteúdo erotizado. Outro caso de destaque em relação à temática, diz respeito à atriz Mel Maia, a qual possui mais de 19 (dezenove) milhões de seguidores no Instagram.16 A influencer, atualmente, com 18 (dezoito) anos de idade, protagonizou numerosas situações de erotização precoce em suas plataformas digitais, durante sua adolescência, ao publicar múltiplas fotos nas redes sociais com teor adultizado, gerando intensas polêmicas relativas à hipersexualização de crianças e adolescentes e o exercício abusivo da autoridade parental. Insta frisar que a atuação erotizada e hipersexualizada de influenciadores mirins contribui para que inúmeros prejuízos sejam causados ao desenvolvimento da personalidade dos mesmos. Ademais, as postagens erotizadas realizadas pelos influenciadores mirins, em função do seu alcance no ambiente digital, influência, credibilidade e engajamento que possuem junto ao seu público infantojuvenil (consumidores), possuem a potencialidade de gerar enormes danos aos seus seguidores, os quais reproduzem os referidos comportamentos, hábitos de consumo e lifestyle dos influencers. As crianças e adolescentes são considerados como hipervulneráveis, demandando, portanto, proteção especial do Estado, o qual restringe determinadas condutas da sociedade, dos pais/responsáveis legais e dos próprios infantes, com o intuito de se permitir o livre desenvolvimento de sua personalidade. No caso da hipersexualização dos filhos pelos próprios pais, nota-se grave disfunção da autoridade parental, pois os pais acabam excedendo a fronteira da proteção e promoção para a exposição. Com o intuito de ganhar seguidores, tornar-se popular, fazer publicidade e eventualmente até ter benefícios financeiros, desvirtua-se o próprio filho, antecipando fases significativas da vida.17 Em síntese, se impõe aos pais/responsáveis legais no exercício da autoridade parental, as plataformas digitais no estabelecimento dos termos de uso/utilização, ao Estado, por meio do Ministério Público e dos Conselhos Tutelares, e a toda a sociedade, que atuem no sentido de garantir a efetiva tutela dos infantes no ambiente digital, com a finalidade de se coibir situações relacionadas a hipersexualização infanto-juvenil, a erotização precoce e a adultização de crianças e adolescentes nas redes sociais.  Outra relevante questão é apontada por Ana Carolina Brochado Teixeira e Filipe Medon ao explicitarem que "nada obstante sejam inicialmente exibidas por seus pais, não raro a exposição online passa a ser em algum momento a vontade da própria criança/adolescente"18, de forma em que, os influenciadores mirins passam a desejar, autonomia digital de suas plataformas, com a postagem de conteúdo muitas vezes impróprio aos mesmos e aos seus seguidores. O trabalho infantil cibernético, também, pode levar as crianças a estarem sujeitas a transtorno psicológicos e associar-se à "cultura de likes", o vício em ser notado instantaneamente e se definir pelo número de interações dadas a uma publicação em uma rede social. A criança que depende de like é viciada como se fora dependente de qualquer outra droga, objetificando a criança, pois ela não é vista pelo que ela é, mas pelos likes que consegue.19 A cultura dos likes não apenas valoriza, como, também, fomenta a superexposição, dos mais diversos aspectos da vida pública e privada dos influenciadores mirins, sendo que todo conteúdo publicizado no ambiente digital parece se tornar válido para garantir o maior número de likes, de seguidores e de engajamento. Múltiplos são os impactos psicoemocionais advindos dessa exposição desmedida ou erotizada dos infantes, ao longo de sua vida, ensejando um processo de adultização precoce. Nesse giro, as fotos e os vídeos publicizados nas redes sociais, podem ser utilizadas de modo indevido e ilegal, como por exemplo, por pedófilos com a finalidade de satisfazer a lascívia, pelo roubo de identidade, pela criação de memes, dentre outras situações indesejadas. Neste interim, crianças e adolescentes devem ser resguardados de situações que possam implicar em riscos e danos psicoemocionais, bem como que deixem pegadas digitais que impactem o livre desenvolvimento de sua personalidade ao longo da vida. Logo, os pais e responsáveis legais, devem se abster de publicar, ou mesmo consentir que os infantes publiquem, conteúdos que ensejem a hipersexualização, posto que tais condutas configuram o exercício abusivo da autoridade parental. Por fim, salienta-se, ainda, que inexistem regramentos legislativos e jurídicos específicos para o tratamento da controvérsia relacionada à superexposição e a hipersexualização de crianças e adolescentes no Brasil. A despeito disso, as disposições previstas na Constituição da República de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, preconizam a primazia do melhor interesse das crianças e adolescentes, dos seus direitos fundamentais e da sua proteção integral, bem como o respeito a dignidade humana dos infantes, como pilares essenciais a serem observados pelos pais/responsáveis legais, pelas plataformas digitais, pelo Estado e por toda a sociedade, com a finalidade de se garantir a adequada tutela de crianças e adolescentes no ambiente digital. __________ 1 Para maiores informações acerca do novo paradigma tecnológico e do mercado de consumo digital se remete a leitura de: MIRAGEM, Bruno. Novo paradigma tecnológico, mercado de consumo e o direito do consumidor. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti (Coords.). Direito digital: direito privado e internet. 4. ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2021. 2 Para um estudo aprofundado sobre a temática dos influenciadores digitais, remete-se a leitura de: SILVA, Michael César; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira; BARBOSA, Caio César do Nascimento. Digital influencers e social media: repercussões, perspectivas e tendências da atuação dos influenciadores digitais na sociedade do hiperconsumo. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2023. [No prelo]. 3 ALMEIDA, Claudia Pontes. Youtubers mirins, novos influenciadores e protagonistas da publicidade dirigida ao público infantil: uma afronta ao Código de Defesa do Consumidor e às leis protetivas da infância. Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, v. VI, n. 23, 2016, p. 176. 4 EBERLIN, Fernando Büscher von Teschenhausen. Sharenting, liberdade de expressão e privacidade de crianças no ambiente digital: o papel dos provedores de aplicação no cenário jurídico brasileiro. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 7, n. 3, 2017, p. 258. 5 Canal de pai que constrangia e assustava filhas em vídeos é deletado do YouTube. Estadão. 2017. Disponível aqui Acesso em: 13 abr. 2023. 6 Insta frisar que o referido canal foi recriado na plataforma do YouTube, em 04 de março de 2023, e, desde então, está a publicar vídeos nos mesmos moldes anteriores. (YOUTUBE. Toy Freaks. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 21 abr. 2023). 7 YOUTUBE. BEL. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2023. 8 BATISTA JÚNIOR, João. A polêmica do canal 'Bel para meninas': "Exposição vexatória e degradante". VEJA. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 9 TOMAZ, Renata de Oliveira. O que você vai ser antes de crescer:  youtubers, infância e celebridade. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2017, p.199. 10 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 11 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 12 Exemplificativamente, tem-se casos notórios de celebridades mirins, que em decorrência de sua excessiva exposição ao longo de seu crescimento sofreram uma série de abalos psicológicos, como nos casos de Lindsay Lohan, Britney Spears, Demi Lovato e Miley Cyrus, dentre outros, que repercutem, ainda hoje. 13 De sexualização precoce a críticas de fãs, elenco de 'Stranger Things' vive pressão da fama. BBC Brasil. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 14 INSTAGRAM. Melodyoficial3. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 15 SENRA, Ricardo. Ministério Público abre inquérito sobre 'sexualização' de MC Melody. BBC Brasil. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 16 INSTAGRAM. Melissamelmaia. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 17 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MEDON, Filipe. A hipersexualização infanto-juvenil na internet e o exercício da autoridade parental na era da superexposição. Forum. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 18 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MEDON, Filipe. A hipersexualização infanto-juvenil na internet e o exercício da autoridade parental na era da superexposição. Forum. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. 19 LAS CASAS, Fernanda. O incesto financeiro de ativos digitais. Magis - Portal Jurídico. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2023. (destaques no original)
Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé. Desde agora, a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor,justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amarem a sua vinda. Paulo de Tarso, Bíblia, 2 Timóteo 4:7-8. Os autores da coluna Migalhas de Responsabilidade Civil me concederam a honra de escrever o artigo comemorativo dos três anos da coluna e o desafio de homenagear o meu querido professor, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Com grande pesar lamentamos o falecimento do Ministro Sanseverino, ocorrido no dia 8 de abril de 2023. De uma carreira exemplar no Poder Judiciário brasileiro, Sanseverino foi um destacado magistrado, excelente professor, competente jurista e, mais do que tudo, um grande ser humano. Paulo de Tarso nasceu em 16 de junho de 1959 em Porto Alegre, teve sua formação Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) em 1983. Tornou-se mestre (2000) e doutor (2007) em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). No primeiro ano de formado, Sanseverino passou no concurso do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) em 1º lugar e, depois, no concurso para magistratura estadual que lhe proporcionou a atuação como juiz de direito, a partir de 1986 em diversas comarcas gaúchas. Exerceu, ainda, a magistratura como juiz eleitoral entre 1998 e 1999. Em 1999 foi promovido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), atuando como desembargador até 2010, quando foi nomeado Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). No STJ foi um exímio magistrado nos colegiados de direito privado, se destacando como uma referência no país para os temas contratuais, de reponsabilidade civil, formação de precedentes, entre outros. Foi relator de inúmeros Leading cases, dos quais se destacam: a) Em 2011, o Ministro Sanseverino já mostra a força de sua atuação no STJ ao relatar e votar pela aplicação do método bifásico da mensuração das indenizações por dano moral (REsp 1.152.541). No caso, o Ministro confirma aplicação de sua tese de doutorado, unindo jurisdição e pesquisa acadêmica, para exarar o voto condutor e determinar a elevação do valor da indenização por dano moral considerando as duas etapas que devem ser percorridas no arbitramento de indenizações por danos morais. Na primeira etapa, deve-se estabelecer um valor básico para a indenização, considerando o interesse jurídico lesado, com base em precedentes para casos similares. Na segunda etapa, devem ser consideradas as circunstâncias específicas do caso para definição do valor da indenização com fundamento na determinação de arbitramento equitativo pelo juiz em interpretação analógica do da norma insculpida no art. 953 do Código Civil. b) Em 2012, no Recurso Especial nº 1.192.678-PR, o Ministro Sanseverino lidera o julgado pela aplicação da "teoria dos atos próprios" com base no princípio da boa-fé objetiva e nos institutos do "tu quoque" e "venire contra factum proprium" para reconhecer a validade de assinatura digitalizada aposta pelo próprio emitente em título de crédito. c) Sanseverino relatou o acórdão que julgou sistema credit scoring (Tema 710). Após realizar audiência pública no STJ, o Ministro Sanseverino votou pela validade do sistema desde que as instituições bancárias respeitem os direitos dos consumidores sob pena de responsabilização pelos danos causados. d) O Ministro Sanseverino relatou, em 2015, o acórdão do Tema Repetitivo 898, que julgou a controvérsia sobre a atualização monetária nas indenizações por morte ou invalidez do seguro DPVAT. Após mais uma audiência pública, o Ministro votou e foi seguido, unanimemente, pela atualização monetária da indenização do seguro DPVAT desde a data do evento danoso. e) Relatou o acórdão que definiu a legitimidade da Telebras para responder a processos sobre complementação de ações (Tema 910). f) O Ministro Sanseverino, também, liderou o precedente que definiu o caráter abusivo do ressarcimento, pelo consumidor, da comissão do correspondente bancário (Tema 958). g) Cabe citar, ainda, seu voto na decisão sobre a plena eficácia da sentença arbitral estrangeira no Brasil após a homologação (REsp 1.203.430). h) Outra decisão de grande repercussão foi a da definição da abusividade da negativa de cobertura de despesas com cirurgia de gastroplastia necessária à sobrevivência do paciente nos contratos de planos de saúde (REsp 1.249.701). i) Recentemente, o Ministro Sanseverino relatou e conduziu o julgado pelo reconhecimento de que o "Direito da Concorrência e Direito do Consumidor apresentam relação simbiótica, pois, em termos gerais, quanto maior a concorrência, maior tende a ser o bem-estar do consumidor e que, quanto maior a proteção do consumidor, mais justa e leal tende a ser a concorrência". Contudo, apesar dessa relação essencial entre proteção à livre-concorrência e proteção ao consumidor, não é possível à concorrente exigir a inversão do ônus da prova e impor ao concorrente a comprovação de afirmações publicitárias como "o melhor hamburguer do mundo" sob pena de abuso de direito e violação da própria livre-concorrência (REsp 1.866.232).1 O ministro Sanseverino, além de excelente magistrado, foi um grande professor de Direito na graduação, mestrado e doutorado, exercendo o nobre ofício na PUC-RS, no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) entre outras renomadas instituições de ensino. A atividade como professor foi coroada com uma relevante carreira como escritor e pesquisador jurídico. O jurista Sanseverino escreveu diversas obras que marcaram o direito privado brasileiro, especialmente, sobre o direito da responsabilidade civil e o direito dos contratos. Dentre os principais escritos se destacam: a) "Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil"2: Na obra, fruto de seu doutorado, o doutrinador Sanseverino destaca que o princípio da reparação integral procura colocar o lesado, na medida do possível, em situação equivalente à anterior ao fato danoso, concepção que não se revela viável, entretanto, em várias ocasiões. Diante da complexidade dos diversos elementos da responsabilidade civil, Sanseverino buscou defender a aplicação do princípio da reparação integral nos casos de danos extrapatrimoniais de forma mitigada para que se evite distorções como o enriquecimento injustificado. A teoria da diferença (aplicável aos danos patrimoniais) deve ser superada pela teoria do interesse, permitindo a ponderação do interesse jurídico do lesado. O exame deve ser feito em duas fases (método bifásico): primeiro, pela análise dos precedentes jurisprudenciais similares e, posteriormente, num segundo momento, pela valoração das circunstâncias especiais do caso. Como acima referido no julgamento do REsp 1.152.541, o Professor Sanseverino pode liderar a consolidação de sua tese nos tribunais pátrios. b) "Contratos nominados II: contrato estimatório, doação, locação de coisas, empréstimo (comodato-mútuo)"3: obra na qual Sanseverino comenta os principais dispositivos do Código Civil em relação aos contratos nominados, com especial destaque para o mútuo e as formas de responsabilidade contratual. c) "Responsabilidade civil no Código Do Consumidor e a defesa do fornecedor"4: Sanseverino examina a responsabilidade por acidentes de consumo e os seus pressupostos (defeito, dano, nexo causal e nexo de imputação). Defende a compreensão do defeito com base na teoria do risco criado e a sua compatibilidade com as excludentes de responsabilidade como a culpa concorrente da vítima, o caso fortuito e a força maior. Por tudo referido e muito além, o Ministro Sanseverino foi uma das estrelas da escola gaúcha e brasileira de direito privado, herdeiro e/ou parceiro intelectual de grandes juristas como Clóvis do Couto e Silva, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Judith Martins-Costa, Claudia Lima Marques, citando apenas alguns. Como advogado, tive muitas demandas julgadas pelo magistrado Sanseverino, ganhei e perdi, mas sempre fui tratado de forma justa. Contudo, foi nos bancos universitários que aprendi a admirar ainda mais o professor e acadêmico. Fui aluno do Professor Sanseverino na disciplina de Contratos no ano 1996 na PUC-RS e, pelo seu exemplo, comecei a me interessar pelo direito privado, o direito dos contratos e a responsabilidade civil. Desde então, passei a ter o Professor Sanseverino como referência e lhe segui no mestrado da UFRGS (minha dissertação chega a abordar o mesmo tema da dele). Posteriormente, tive a sorte de ser seu colega como docente na PUC-RS e receber suas turmas de contratos quando da sua nomeação para o STJ e mudança para Brasília. Digo isso, pois tenho certeza que, assim como para mim, o Professor Sanseverino foi para muitos um exemplo do exercício dos diversos ofícios jurídicos na busca do bem e da justiça. Sanseverino foi a prova de que não há grande magistrado, jurista ou professor, sem um grande ser humano. Assim, deixo aqui meu testemunho de que, como seu homônimo citado no início deste breve depoimento, Paulo de Tarso combateu o bom combate, acabou a carreira, guardou a fé e, assim, certamente, a coroa da justiça, que ele tanto defendeu, lhe foi, merecidamente, dada. __________ 1 Informações em parte obtidas no site do STJ, em notícia sobre o falecimento do Ministro Sanseverino intitulada "A despedida prematura de Paulo de Tarso Sanseverino": Acesso aqui. 2 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral: indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2010. 3 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Contratos nominados II: contrato estimatório, doação, locação de coisas, empréstimo (comodato-mútuo). Editora Revista dos Tribunais, 2006. 4 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade Civil no Código do Consumidor e a Defesa do Fornecedor. são Paulo: saraiva, 2010.
Um dos mais polêmicos pilares estabelecidos pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais foi o da responsabilidade civil dos agentes de tratamento. Ao regular as situações ilícitas, acidentais ou não, as normas dos artigos 42 a 45 da Lei 13.709/1 criaram um inusitado e desconfortável paradoxo: quais elementos levar em consideração para fixar os critérios do regime de responsabilização civil? Não há dúvida de que a reparação de danos decorrente do tratamento ilícito de dados pessoais há de ser examinada com extrema cautela. A ninguém interessa que o futuro se veja aprisionado em formas técnicas pertencentes ao passado e que possam se revelar insuficientes para compreender o significado das inovações que se apresentam atualmente (Rodotà,1997). Mas também é igualmente temerária a proposta alvissareira de revisão da tradição secular que firmou as bases da responsabilidade civil e que pode causar desproporcional insegurança jurídica para as relações civis e descortinar uma nova roupagem às afrontas à dignidade da pessoa humana. Interessa-nos compreender que o artigo 42 da LGPD estabelece que "o controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo". Verifica-se a clara alusão aos institutos do ato ilícito e do nexo de causalidade, não se identificando qualquer alteração em relação aos tradicionais elementos ensejadores do dever de indenizar a que aludem os artigos 186 e 927 do Código Civil. Cumpre observar, entretanto, que durante a tramitação do PL que deu origem à LGPD, havia a expressão "independentemente de culpa" que foi retirada do texto do artigo 42 exatamente para que não fosse consagrado o regime da responsabilização objetiva dos agentes de tratamento de dados pessoais. Disso, e ainda de forma superficial, pode-se apontar a primeira incoerência de uma pretensão de se postular a aplicação do regime da responsabilidade objetiva pela simples interpretação literal da norma. Porém, também é importante compreender e com amparo na lição de Anderson Schreiber (2021, p.324) que "[...] a parte final do art. 42 alude ao dano causado em violação à legislação de proteção de dados pessoais, expressão que sugere uma responsabilidade fundada na violação de deveres jurídicos (culpa normativa)". O critério de culpa normativa aqui mencionado por Schreiber diz respeito à conduta do bonus pater familias (ou do reasonable man no common law) e ao critério de culpa in abstracto, levando-se em consideração circunstâncias comuns inerentes ao "tempo, lugar, usos, costumes e hábitos sociais" (BANDEIRA, 2008, p. 231). Dito isso, interessa-nos, por conseguinte, alcançar aquilo que se encontra previsto no artigo 43 da LGPD, em especial pela aproximação de sua redação com o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor que traz consigo a fortíssima herança da responsabilização objetiva dos fornecedores de produtos e serviços: Art. 43. Os agentes de tratamento só não serão responsabilizados quando provarem: I- que não realizaram o tratamento de dado pessoais que lhes é atribuído; II- que, embora tenham realizado o tratamento de dados pessoais que lhe é atribuído, não houve violação à legislação de proteção de dados; ou III- que o dano é decorrente de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiro. De fato, a redação do indigitado dispositivo é bem próxima ao que dispõe o parágrafo terceiro do artigo 14 do CDC, o qual consagrou a sistemática da responsabilidade do fornecedor independentemente de culpa na reparação de danos causados aos consumidores. Essa comparação, potencializada pelo fato de que o tratamento de dados pessoais constituirá uma frequente relação consumerista, constitui um fator de razoável insegurança no estudo da matéria diante da constante relação de dialeticidade entre essas normativas. Vale dizer que a objetivação da responsabilidade consumerista não deve ser confundida com a regra geral. No domínio do CDC, que pode ser aplicado diretamente (art. 45, LGPD) em inúmeros casos do tratamento de dados pessoais caso presentes as figuras do consumidor (direto ou por equiparação) e do fornecedor, o artigo 14 da Lei 8.078/90 estabelece que há responsabilidade "independentemente da existência de culpa pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação de serviços". E o parágrafo terceiro deste dispositivo estabelece que o fornecedor somente se isenta da responsabilização quando comprovar a inexistência de vício no serviço prestado ou se o dano tiver sido causado pela culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. Na esfera da LGPD, como já se anotou, não foi adotada positiva e expressamente a expressão "independentemente da existência de culpa". No tocante ao mencionado artigo 43 da LGPD, aponta-se a prevalência da responsabilização do controlador, o qual estará isento do ressarcimento quando provar que não realizou o tratamento de dados pessoais (inciso I). Nesta hipótese, não haveria sequer a constituição de um liame a unir juridicamente o controlador ao titular, eis que em um primeiro momento aquele não seria sequer legitimado para responder por atos de terceiro1. É o típico caso da ausência do nexo de causalidade a impedir a responsabilização do controlador em relação ao qual, aliás, não se estabeleceu solidariedade como regra geral.2-3 A segunda hipótese contemplada no dispositivo diz respeito à inexistência de ato ilícito, isto é, embora o controlador tenha realizado efetivamente o tratamento de dados pessoais, e sua prática tenha sido respaldada por um dos fundamentos para o tratamento lícito inseridas no art. 7o da LGPD, ou em outro dispositivo correlato assim considerado pelo diálogo das fontes4. Nesta hipótese, não há ato ilícito e, consequentemente, não prospera o dever de indenizar entre o controlador e a pessoa lesada5-6. Houvesse o art. 43, II, da LGPD predeterminado a responsabilidade objetiva, não haveria motivo para se preocupar com a licitude ou não do ato praticado pelo agente de tratamento, já que bastaria, por si só, a existência de ato ou fato a ele atribuído que, em virtude de uma relação causal, houvesse causado danos à pessoa. A esse respeito, Gustavo Tepedino, Aline Terra e Gisela Guedes (2021, p.751) destacam que os incisos I e III se referem expressamente à relação de causalidade e que o inciso II remete claramente à ideia de culpa enquanto fundamento primário da responsabilidade. Neste particular, é essencial compreender que o ato que se reputar ilícito será praticado a título de culpa ou dolo. A responsabilidade objetiva, nada obstante, representa uma simplificação dos requisitos do dever de indenizar e do afastamento do elemento subjetivo da culpabilidade, bastando que exista ato praticado, dano e nexo de causalidade. Deste modo, é possível afirmar que o inciso II do art. 43 da LGPD constitui uma clara evidência da adoção do padrão subjetivo da responsabilidade civil pois, a se cogitar sua objetivação, seria irrelevante a comprovação do caráter lícito ou ilícito do ato praticado pelo respectivo agente de tratamento. Não há dúvida de que este dispositivo reclamou o cotejo do elemento culpa. A terceira hipótese estabelece que o controlador não será responsável, quando comprovar que o dano suportado pela pessoa foi causado exclusivamente por ela própria ou por terceiro. Mais uma vez, trata-se do reconhecimento da necessária relação de causalidade entre o ato que se reputa ilícito e o dano originado. Se o ato, ainda que ilícito, foi praticado pela própria pessoa ou por terceiro, há que se reconhecer o afastamento do nexo de causalidade e do dever de indenizar. A compreensão daquilo que está contido nos incisos do art. 43 da LGPD revela que o controlador será sempre responsabilizado, salvo nas hipóteses em que inexistir nexo de causalidade entre o ato por ele praticado e o dano suportado pela pessoa, assim como na ausência de antijuridicidade do ato realizado. Isso significa que o sistema adotado pela LGPD é o da culpa presumida em caráter relativo e não o da responsabilidade objetiva pura. Parte-se do pressuposto, portanto, de que a responsabilidade do agente de tratamento constitui uma regra geral que pode ser afastada mediante a demonstração de que sua conduta não incorreu em quaisquer das modalidades da culpa, o que ocorrerá notadamente através da demonstração da adoção dos deveres de cuidado inerentes ao bonus pater familias estruturalmente definidos pela lei. Acrescentem-se, ainda, os naturais obstáculos à comprovação da existência e da dimensão do dano, os quais podem excepcionalmente impedir o estabelecimento do liame obrigacional de ressarcimento e que historicamente justificaram a criação da teoria objetiva da responsabilidade civil. Taísa Maria Macena de Lima e Maria de Fátima Freire de Sá (2020), assim como Maria Celina Bodin de Moraes (2019), Laura Mendes e Danilo Doneda (2018) entendem que a objetivação da responsabilidade do controlador decorre da adoção da teoria do risco-proveito. Para tais autores, a responsabilidade civil pelo tratamento de dados pessoais prevista no art. 43 da LGPD estaria respaldada pelo parágrafo único do art. 927 do CC/02, segundo o qual o dever de reparar o dano não depende de culpa "quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". Porém, como observa Silvio Venosa (2010) "o que se leva em conta é a potencialidade de ocasionar danos; a atividade ou conduta do agente que resulta por si só na exposição a um perigo [...]". Em um mundo cada vez mais interconectado e em que o tratamento de dados pessoais se torna a pedra angular de qualquer atividade, não se pode presumir a prática da potencialidade danosa e acabamos por concordar com Leonardo Poli (2019): É lógico que a noção de risco criado deve ser relativizada, ou, caso contrário, a responsabilidade subjetiva não mais seria aplicável, visto que, em última análise, toda conduta humana em sociedade gera risco de dano para terceiros. Assim, tem-se que a teoria do risco criado não se aplica a qualquer atividade humana que gere risco, uma vez poder-se dizer que exista risco em qualquer atividade humana. A teoria se aplica apenas a atividades ditas perigosas, aquelas em que o risco é inerente, seja por sua natureza, seja pelos meios que utiliza. (POLI, 2019, p.575). Além disso, duas outras questões corroboram esse apontamento. A primeira, é que toda a LGPD é estruturada de acordo com uma complexa morfologia de práticas relacionadas ao dever de cuidado, transparência, informação, prevenção, segurança, responsabilização e prestação de contas e cujo cumprimento total ou parcial devem importar à gradação da responsabilidade do agente de tratamento. A simples atribuição da responsabilidade civil, independentemente do elemento subjetivo da culpa, significará que o cumprimento desses deveres estruturais será irrelevante para o agente de tratamento de dados pessoais, já que não resultaria em qualquer possibilidade de afastamento ou mitigação de sua responsabilidade. Dito de outra forma, nem mesmo existiria incentivo para a adoção das melhores práticas de governança de dados pessoais (art. 50, LGPD), da sua manutenção e melhoria contínua ao longo do tempo se, eventualmente, incapazes de evitar o ilícito, não pudessem atenuar total ou parcialmente a dimensão da responsabilidade do agente de tratamento. Se é certo afirmar que o instituto da responsabilidade civil tem passado por um deslocamento de seu eixo gravitacional, o qual se transfere de uma inicial incidência sobre o dano e, agora, tende para a reprovabilidade da conduta do ofensor (LEVY, 2012; ROSENVALD, 2010), seria igualmente apropriado também compreender que esse movimento deve ser levado em consideração, ao se interpretar a responsabilidade civil pelo tratamento de dados pessoais. A objetivação da responsabilidade civil, nessa esfera, embora possa constituir uma medida de facilitação da preservação dos direitos fundamentais da pessoa, não dispensa, a priori, a sua conjugação com o critério subjetivo. Para compreender a responsabilidade civil na LGPD é preciso ir além. Gustavo Tepedino, Aline Terra e Gisela Guedes (2021) chegam à mesma conclusão ao compararem a redação do art. 43 da LGPD com o art. 493, item 2, do Código Civil português e com o art. 2.050 do Código Civil italiano que acolheram exatamente a figura da culpa presumida em caráter relativo. No movimento histórico que levou ao desenvolvimento da responsabilidade civil enquanto presunção relativa de culpa e o dever de reparar, mediante presunção absoluta ou da adoção de medidas mitigadoras do dano, consolidara-se no CC/02 diversas disposições neste sentido, como é o caso da responsabilidade de pais, tutores, curadores, empregadores, donos de hotéis e hospedarias, casas ou estabelecimentos onde uma pessoa se abriga, mediante contraprestação pecuniária, em que a culpa por danos causados não é discutida pois dotada de presunção iure et de iure. O mesmo ocorre com a responsabilidade do fornecedor de produtos ou serviços pelos danos causados aos consumidores (art. 14, CDC).  Porém, em tais situações, houve expressa determinação prevista na legislação para a adoção desse tipo de obrigação. No desafio da construção de uma interpretação consentânea com a unidade da ordenação jurídica em um pensamento pós-abissal (SANTOS, 2007), sem descuidar da tendência antropocêntrica orientada pela dignidade da pessoa, de fato, não há sentido em se atribuir à parte lesada o ônus decorrente do tratamento indevido de seus dados pessoais, dificultando-lhe, sobremaneira, o exercício de seu direito de ação e o ressarcimento integral daquilo que suportou. Em inúmeras situações, a pessoa se torna verdadeiramente hipossuficiente em relação a qualquer prova do elemento subjetivo da culpa e da adoção das salvaguardas técnicas, de segurança e administrativas, a cargo do agente de tratamento, e às quais alude o art. 46 da LGPD. Porém, há aqui um problema relativo à prova do ato ilícito e da adoção das medidas de índole procedimental e estrutural previstas na legislação, como os deveres de cuidado, informação, transparência, segurança, prestação de contas e responsabilização e não, rigorosamente, uma discussão inerente ao regime de culpa. Para tais situações, a legislação processual estabelece a possibilidade de inversão do ônus da prova, seja pela aplicação do art. 6o, do CDC ou do art. 373 do CPC. O sistema da culpa presumida em caráter relativo, destarte, serve como instrumento de inversão da lógica de comprovação da culpa (e da sua gradação), ao atribuir ao agente de tratamento o dever de demonstrar a adoção das obrigações de cuidado, informação, transparência, segurança, prestação de contas e responsabilização, o que parece lógico e compatível com a disposição da LGPD. O mesmo se extrai do art. 44 da LGPD, segundo o qual haverá ilicitude no tratamento de dados pessoais, quando este não oferecer a segurança esperada, a se considerarem os seguintes vetores: o modo de sua realização, o resultado e os riscos razoavelmente esperados, e as técnicas de tratamento disponíveis à época. Aqui novamente se consagra a responsabilização decorrente da falta de demonstração da adoção de medidas de segurança. Presume-se, portanto, a culpa do agente de tratamento, até que haja demonstração da licitude dos atos por ele praticados, da inexistência de nexo causal entre o ato e o dano, assim como da suficiência dos deveres de cuidado, informação, transparência, segurança, prestação de contas e responsabilização, em sintonia com a cláusula geral da boa-fé objetiva. Situações consentâneas com a obrigação do agente de tratamento em demonstrar, ativa e claramente, as cautelas por ele observadas, envolvem a identificação do uso secundário de dados pessoais, o desvio de finalidade pautado em base legal que assim o permita (art. 7o, LGPD) e, neste ângulo, principalmente, a utilização do legítimo interesse do controlador (art. 7o, IX c/c art. 10, LGPD) e da proteção do crédito (art. 7o, X, LGPD). Essa conjuntura, que apresenta um maior grau de opacidade no tratamento de dados pessoais, tende a privilegiar a consecução de atividade meramente econômica e, em maior grau, a atender os interesses do controlador. Trata-se de situações concretas que eventualmente podem externar um verdadeiro risco assumido por este, em virtude de sua própria atividade, hipótese na qual a teoria do risco-proveito poderia se mostrar de adequada aplicação, sempre como regra de exceção. A proposição de que se reconheça a responsabilidade subjetiva com culpa presumida estabelecida pelo art. 43 da LGPD e a incidência da teoria do risco-proveito, apenas circunstancialmente e em decorrência da natureza extraordinária da atividade empreendida pelo controlador, leva em consideração não apenas um regime de incentivos econômicos e comportamentais a induzir um determinado padrão de comportamento responsável e zeloso pela dignidade da pessoa, mas, também, um profundo vetor de coerência da norma. Ao mesmo tempo em que os custos de transação associados ao tratamento de dados pessoais podem ser aumentados através do estabelecimento, por exemplo, da solidariedade entre operador e controlador, também se devem estabelecer verdadeiras salvaguardas, na concepção de um safe harbor, no sentido de se estabelecerem premissas para a ausência de responsabilidade civil, quando ausente o nexo de causalidade ou a própria ilicitude do ato, aspectos estes mencionados tanto pelo art. 42 quanto pelo art. 43, II, da LGPD. Bernardo Grossi é Doutor e Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Advogado. Professor da Pós-Graduação do IEC PUC Minas. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC), da International Association of Privacy Professionals (IAPP), do Instituto de Direito e Inteligência Artificial (IDEIA) e do Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG).  Referências CHAMON JÚNIOR. Lúcio Antônio. 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São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p.741-770. __________ 1 Conquanto não se tenha estabelecido a solidariedade como regra geral. 2 A exemplo do que se estabeleceu, por exemplo, no art. 18 do CDC e cujo teor é o seguinte: Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. 3 Ad cautelam, é importante relembrar que o nexo de causalidade rompe com o dever de indenizar mesmo nas situações de objetivação da responsabilidade civil, eis que esta diz respeito à presunção relativa ou absoluta da culpa de uma das partes, enquanto não se dispensa o dano e a respectiva relação de causalidade direta. 4 Como, por exemplo, o autêntico exercício regular de direito previsto no art. 188, I, do CC/02. 5 Salvo na hipótese do abuso de direito que, por si só, será considerado como uma espécie de ato ilícito na forma do art. 186 do CC/02. 6 Ainda que a responsabilidade objetiva trate do dever de indenizar sem culpa, ainda nela há ato ou fato atribuído ou inerente àquele que foi definido como responsável pelo ressarcimento.
No livro recém-lançado pela Editora Foco e intitulado "Governança nos Grupos Societários: Inovações", o problema dos grupos de sociedades é tratado sob a perspectiva de uma específica estratégia regulatória: a que distingue os grupos segundo dois tipos, os grupos de direito e os grupos de fato. Embora outras estratégias da regulação sobre os grupos de sociedades sejam abordadas e problematizadas no curso da obra.  Como o leitor perceberá, não se parte da defesa da subjetivação ou da personificação dos grupos de sociedades, mas da sua compreensão por intermédio de um referencial teórico que possibilita, em um primeiro estágio, a identificação da empresa do grupo (a empresa grupal) e, em um segundo estágio, a elaboração de análises, de críticas e de propostas para os problemas apresentados na regulação dos grupos de sociedades.  A forma de compreensão dos grupos de sociedades encontra, numa primeira fase do desenvolvimento da pesquisa, suporte teórico nos modos de governança (empresa, mercado e híbrido) e à sua aplicação à organização grupal. Aqui, o conceito de hierarquia é trabalhado para a identificação da empresa que possui as suas fronteiras para além dos contornos da sociedade (a empresa grupal ou a empresa plurissocietária). Na regulação dos grupos de fato - mais presentes na realidade brasileira -, a estrutura orgânica da sociedade controladora, na visão dos autores, serve de estrutura ad hoc para a empresa grupal. Há uma marca coaseneana nessa abordagem.     Essa abordagem, mais identificada com a chamada Teoria dos Custos de Transação, é sucedida por uma análise dos conflitos de interesses presentes na sociedade isolada e naquelas grupadas. O potencial das teorias agencialistas (especializadas nos conflitos de interesses) é explorado. Gêneros de conflitos de agência são apresentados. É feito estudo acerca dos desenvolvimentos do agencialismo (com suporte em Jensen e Meckling) e, ao mesmo tempo, uma crítica da sua aplicação no plano normativo.  Identificados o potencial gerador de conflitos de interesses na estrutura societária e nas relações grupais, os autores avançam sobre a teoria do direito fiduciário. Se nos dois primeiros estágios, há forte influência de teorias econômicas, nessa terceira fase, busca-se por uma teoria jurídica. Avanços são propostos. Esse capítulo inicia-se com uma provocação sintetizada em duas perguntas: E quando os mecanismos de governança ex ante falham? E quando os interesses presentes no conjunto de contratos (nexus contratual) não são suficientes para resolver os conflitos de agência?  Ao fim e ao cabo do capítulo, o que se apresenta é o esforço, nos dias de hoje já ancorado em decisões judiciais estrangeiras, de compreender que a controladora possui deveres fiduciários para com os stakes das controladas. Jennifer Arlen, ao analisar três decisões recentes do Tribunal de Delaware, nos EUA, (Marchand v Barnhill; Teamsters Local 443 v Chou; e In re Boeing Company Derivative Litigation), propõe que:  Unlike other fiduciary duties, which are imposed to benefit the firm and its shareholders, directors should have duties to detect and terminate misconduct even when the firm profits from it. Thus, these duties should be used to create-rather than eliminate-an agency cost, by giving directors a personal incentive to implement measures likely to deter misconduct even when likely to reduce corporate profits.1  Depois de aplicada as três fases na análise da governança dos grupos societários - o método trifásico estruturado em outro texto, Governança Corporativa: a crise financeira e os seus efeitos (equívocos e possibilidades), publicado pela Editora Processo -, uma disfunção é especificamente estudada: é o que a literatura mais especializada denomina de "grupo de fato qualificado". O leitor, então, é apresentado à Teoria do Ilícito. Nos grupos de fato qualificados será necessário identificar tutelas adequadas que resguardem os direitos dos minoritários, pois o fato jurídico da tomada do controle se caracteriza por uma submissão econômica de uma sociedade, imposta à margem do direito. Uma alternativa viável é a de se estender ao minoritário a potestade de se retirar da sociedade mediante o pagamento de suas ações ou cotas, tal como se dá diante da formação de um grupo de direito.  Todavia, caso o minoritário decida prosseguir na sociedade, a tutela inibitória do ilícito pode conferir a ele ferramentas de contenção da atividade antijurídica, pela via de meios de coerção direta capazes de efetivamente proteger o seu direito à preservação substancial do direcionamento empresarial autônomo. Há coerção direta quando o direito é efetivamente tutelado independentemente da vontade do demandado, ou seja, quando puder ser dispensada a sua vontade. O direito será realizado em virtude da atuação de um auxiliar do juiz ou de um terceiro. Aqui cogitamos de uma intervenção judicial para o cumprimento de uma tutela específica. O magistrado nomeará administrador provisório para atuar no seio da sociedade controlada, à semelhança do que ocorre no Direito anglo-americano quando se pensa nas figuras do master ou administrator ou ainda do receiver.  Todo o conteúdo é elaborado em duas partes (contendo os capítulos respectivos) que tratam o problema sob duas perspectivas: a primeira é estrutural e procedimental e analisa a forma como o comando hierárquico, típico do modo de governança da empresa, se manifesta no interno dos grupos. A hipótese de que é necessária a internalização dos interesses das sociedades controladas pela forma e pelo conteúdo da sociedade controladora é construída ao longo do texto, sendo justificada nos vários conteúdos tratados, desde os fundamentos do modelo contratualista que defendemos até a análise do conteúdo da dogmática jurídica. Nessa primeira parte, é proposta como solução a abertura da estrutura orgânica da controladora para acomodar interesses dos minoritários das controladas.  Esse esquema metódico gravita em torno da nossa proposta sobre a relação entre empresa, sociedade e governança. O conteúdo da empresa é a hierarquia, a sua forma é o nexus (ou conjunto) de contratos. A sociedade, por sua vez, é um sistema de governança dos variados interesses presentes na empresa. Esses interesses serão internalizados pela forma jurídica com maior ou menor intensidade, a depender da abordagem escolhida (shareholder versus stakeholder). A sua forma, por outro lado, é a de um conjunto de contratos (em sentido econômico, compreendendo também os atos unilaterais de vontade).  A segunda parte é profilática porque identifica o problema, o grupo de fato qualificado, categoriza-o como ilícito e elabora soluções para serem mobilizadas antes mesmo da ocorrência de um eventual dano. Nessa parte, há um aprofundamento dos estudos sobre as possíveis estratégias regulatórias dos grupos de sociedades, é feita uma verticalização nos estudos da que é adotada pelo Brasil, o que nos possibilita entender mais claramente o problema que se manifesta nos chamados grupos de fato qualificados.  Esse percurso conduz à teoria do ilícito e a modulação de propostas para tratar a ilicitude dos grupos de fato qualificados. É o momento da utilização da tutela inibitória no contexto dos grupos societários. Essa hipótese também é construída e justificada ao longo do texto, desde os espaços dedicados aos fundamentos teóricos até aqueles outros destinados à aferição de sua viabilidade diante da dogmática jurídica.  A maneira como o tema é trabalhado, as influências teóricas utilizadas, os problemas formulados, assim como as soluções encontradas justificam o título do livro "Governança dos Grupos Societários: Inovações".    __________ 1 ARLEN, Jennifer. How Directors' Oversight Duties and Liability under Caremark Are Evolving. Disponível aqui. Acesso em: 04.03.2023.
Introdução  Anthony Giddens (2000), ao desenvolver uma teoria do risco, afirmou que este é intrínseco à sociedade de risco, utilizando o exemplo das mudanças climáticas para corroborar a sua afirmação. A comunidade internacional ainda vive a realidade da sociedade de risco, intensificada pela complexidade da era da modernidade, que preconiza a divisão do mundo entre países centrais e periféricos, ricos e pobres, sendo que os primeiros tomam as decisões que impactam no mundo todo e ficam com os lucros e, os últimos, suportam os prejuízos de referidas decisões, sem ter o direito de participar do debate. As mudanças climáticas e a degradação ao meio ambiente corroboram a tese da sociedade de risco, arraigada no contexto da globalização, uma vez que os efeitos dos danos ao meio ambiente estão sendo suportados de maneira exacerbada pelos países do Sul Global, bem como pelos países que pouco agridem o meio ambiente, a exemplo do Kiribati, que se vê diante da degradação de suas estruturas sociais, econômicas e culturais devido às consequências causadas pelo aumento do nível do mar, com a falta de empregos, a falta de estabilidade financeira, escassez de alimentos, de água potável, o que vem dando ensejo ao deslocamento forçado de seus cidadãos. Desde o Protocolo de Kyoto, de 1997, a comunidade internacional discute a participação e a responsabilização mais eficaz dos países que mais degradam o meio ambiente para a adoção de medidas de reabilitação, recuperação e restauração, sem muito êxito, uma vez que o próprio documento fora desqualificado pelos países centrais. Isso faz com que a comunidade internacional seja provocada a discutir com mais empenho a questão da responsabilização por danos ao meio ambiente, tanto no âmbito internacional, como no nacional, bem como para as atuais e para as futuras gerações. Nesse contexto, questiona-se por qual razão não se tem, ainda, um Pacto Global para o Meio Ambiente, de natureza hard law, obrigatório para todos os Estados, principalmente pelo fato de se conceber a proteção ao meio ambiente como interesse da humanidade. Talvez por isso as organizações internacionais estejam sendo provocadas a se manifestarem sobre a temática das mudanças climáticas registrando-se o pedido de duas solicitações de Opinião Consultiva a respeito deste tema, uma perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a outra, perante a Corte Internacional de Justiça as quais, em síntese, discutem as obrigações dos Estados em relação à proteção ao meio ambiente, tanto no âmbito do sistema regional, como no âmbito do sistema global de proteção aos direitos humanos. Não se pode deixar de consignar que, recentemente, no âmbito global, a Organização das Nações Unidas, pelo Conselho de Direitos Humanos, em 8 de outubro de 2021, adotou a Resolução A/HRC/48/13 (ONU, 2021) reconhecendo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito humano e o dever de devida diligência dos Estados de adotarem as medidas necessárias à proteção do meio ambiente. Um dos aspectos mais relevantes da Resolução em apreço é a possibilidade de proteção autônoma do direito ao meio ambiente, o que pode reforçar a litigância deste direito no âmbito nacional e internacional. Por sua vez, em 28 de julho de 2022, a Assembleia Geral das Nações Unidas emitiu a Resolução A/RES/76/300 (ONU, 2022), também sobre o direito humano ao meio ambiente limpo, sadio e sustentável, no mesmo sentido da mencionada Resolução do Conselho de Direitos Humanos. Apesar de não serem vinculantes, as Resoluções desencadeiam um movimento para que os Estados reconheçam o direito ao meio ambiente como direito humano em suas Constituições nacionais e para que as Organizações Internacionais também o façam em tratados internacionais globais e regionais. O reconhecimento do direito humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é consequência dos diversos movimentos sociais desencadeados na comunidade internacional para a proteção ao meio ambiente e vem num momento crucial para a proteção ao meio ambiente de perda considerável da biodiversidade do Planeta Terra, bem como após a COP 26, Conferência que ressaltou a necessidade de ações imediatas no sentido de conter o aquecimento global. Diante desse cenário, essa intervenção tem o objetivo de refletir a respeito da relação jurídica de direito ambiental constituída a partir da prática do ato ilícito de degradação ao meio ambiente, a fim de que se possa estabelecer os parâmetros para a responsabilização civil ambiental intergeracional. Nota-se que o foco dessa discussão reside nos elementos constitutivos de referida relação jurídica, em especial, na consideração da humanidade como sujeito de direito, compreendendo as atuais e as futuras gerações. A grande provocação desta análise concentra-se, portanto, em propor uma reflexão a respeito do conceito de gerações futuras e em apontar caminhos para a responsabilização. Clique aqui para conferir a coluna na íntegra.
A peculiaridade da IA na sua autoaprendizagem, com a necessidade conectada do algoritmo de autoaprendizagem de incorporar um código de máquina para "moralizá-los", traz à tona o que parece ser o maior problema em traduzir as necessidades tecnoéticas do setor em tecno direito correspondente. No plano ético, de fato, uma ênfase cada vez maior é colocada nas responsabilidades do "programador", ao lado - e equacionando - aos do produtor e do formador. Trata-se de uma antinomia solucionável, pois é possível configurar, mesmo de forma puramente interpretativa, uma "responsabilidade algorítmica", a partir de uma dupla consideração. Uma está relacionada ao salto qualitativo fundamental da IA e, portanto, à singularidade específica do algoritmo que atribui sua capacidade de aprendizado: a de determinar não apenas seu ser, mas também seu dever, tornando-o mutante capaz de auto-substituir e auto-refinar. O segundo está ligado à natureza do algoritmo, criação intelectual e ativo intangível que consiste na mera descrição de um procedimento, ou numa simples fórmula matemática, tão etérea que parece quase uma ideia abstrata. O algoritmo, no entanto, dá alma à IA, afetando decisivamente suas características e funcionamento, também pelas habilidades autocorretivas e evolutivas que gera. Assim entendido, o algoritmo, pelo menos o da aprendizagem - deve, portanto, poder ser considerado como uma componente distinta e autónoma da criação intelectual global a que acede (por exemplo, um software) e, como tal, autonomamente censurável. O que se diz reflete nas responsabilidades também do autor-criador do algoritmo, que pode ser (e muitas vezes é) diferente do produtor da IA ou, em todo caso, do dispositivo que a incorpora; e que deve, portanto, responder não apenas perante seu cliente, por via negocial, mas também por responsabilidade perante terceiros prejudicados pela IA self-learning. Na verdade, o algoritmo deu-lhe a aptidão para aprender e modificar o próprio comportamento; potencialmente, produzir resultados ou invadir malware como efeito do treinamento recebido, ou em qualquer caso, das experiências experimentadas após sua implementação. Caso contrário, o autor do algoritmo (que pode não coincidir com o do software, incorporado ao produto como seu componente) apareceria como um mero fornecedor de uma fórmula, projeto ou ideia, que não constitui um componente do produto para fins de regulação da responsabilidade do produto: e do fornecimento do qual, portanto, não derivaria nenhuma responsabilidade direta pela responsabilidade do produto. Assim, permaneceria a responsabilidade do fabricante do produto final, ou de seus componentes, perante terceiros danificados, mas ficaria excluída a do criador do algoritmo. A situação pode parecer semelhante à do fabricante de um bem de consumo cujo design foi concebido e fornecido por um designer terceirizado. O design diz respeito apenas à concepção abstrata do produto e não constitui um componente do mesmo. É o fabricante que dá substância a essa idéia abstrata e ele é o único responsável pelo produto assim concretizado, e apenas pensado pelo designer. Este, então, costuma responder apenas negocialmente ao comissário em caso de defeito do projeto, e não na via aquiliana ao terceiro lesado pelo produto consequentemente defeituoso. Mas o cenário é diferente quando o que é fornecido é uma criação intelectual constituída por um algoritmo, que, ao atribuir ao produto que incorpora a capacidade de se auto-modificar, condiciona profundamente tornando-se, a ponto de constituir sua alma. Seria, portanto, um prejuízo não técnico acreditar que o caráter puramente imaterial do algoritmo coincidiria com a incapacidade de afetar o mundo externo e, portanto, também de se elevar a uma causa mais ou menos autônoma de eventos danosos. De fato, uma IA maligna capaz de autopercepção (e evoluindo - com infinitas passagens - para entidades cada vez mais inteligentes, ou mesmo, em teoria, para superinteligência) seria suficiente para ter mero acesso à rede para poder controlar outras entidades robóticas e também humanas, à sua vontade, gerando até efeitos catastróficos. O algoritmo, portanto, molda, não apenas estática, mas também dinâmicamente, a configuração do produto final, dando-lhe um sopro de vida pulsante e forjando sua comunidade, assumindo assim um papel (con)causal em relação aos seus comportamentos futuro. Portanto, surgem sérias questões quanto à extensão do campo de ação da responsabilidade do produto, especialmente no que diz respeito a danos pessoais. Com efeito, por um lado surge a possibilidade de considerar como produtor de um componente do produto inteligente não só o produtor do software global que o incorpora, mas também - se não coincidente - o criador-autor da programação, do algoritmo de autoaprendizagem ou outras contribuições adequadas para influenciar o comportamento do produto. É importante refletirmos sobre o fato de que a falta de introdução, no componente algoritmo de autoaprendizagem, de blocos adequados para inibir futuros desvios da IA, pode constituir um defeito do próprio componente, bem como do produto geral . E acrescente a necessidade de se fazer também um censo do fenômeno das invenções e ideias da IA geradas especialmente para garantir os justos direitos, tanto no campo das patentes quanto dos direitos autorais, para este novo tipo de bens intangíveis, mas também para gerenciar as responsabilidades relacionadas desde o produto ou na produção. A adaptação à ocorrência de novos cenários foi, nos últimos dois séculos, quase sempre interpretativa, e não normativa. Para uma reflexão sobre as responsabilidades da IA como racionalizáveis em grande parte por via interpretativa, poder-se-ia, portanto, partir da proposta que responsabiliza o ser humano por causar danos a capacidade particular de ação das coisas, em relação à atividade que as emprega. Então, à luz do panorama delineado acima, devemos nos perguntar se, diante da perspectiva de que agora (não apenas animais e humanos, mas) também as "coisas" podem ter "inteligência" e autoaprendizagem; será assim suficiente para regular as novas responsabilidades das coisas equipadas com inteligência artificial? Os resultados podem ser satisfatórios e altamente inovadores, uma vez que o uso de ferramentas interpretativas em relação às regulamentações existentes aparece pelo menos em grande medida capaz de revolucionar e racionalizar as estruturas de risco e os custos corporativos da responsabilidade, bem como os níveis de proteção dos sujeitos expostos aos perigos do dano, de fato, uma vez despojados do tabu da primazia da culpa, que havia dominado no setor de responsabilidade civil até a primeira metade do século passado, a neutralidade das previsões ou interpretações das regulamentações como fontes de responsabilidade objetiva tornaria ótima a alocação do risco. A necessidade de quaisquer novas regras gerais poderia, então, dizer respeito apenas à revisitação (ainda que apenas em processo de interpretação evolutiva) da disciplina de danos ao produto e das proteções conexas, cumulativas (no caso de infração pluriofensiva).
Diante de notícia recentemente veiculada na imprensa no sentido de que o Poder Judiciário teria emitido uma ordem de bloqueio de bens de ex-administradores e conselheiros fiscais de uma grande varejista, em ação judicial proposta por um banco credor1, o tema da responsabilidade dos administradores e de conselheiros fiscais volta à tona. Toda empresa, para a sua adequada manutenção e operacionalização, depende de uma estrutura minimamente organizada. Conquanto a definição jurídica de "empresa" seja polissêmica e nem mesmo a doutrina seja uníssona a respeito, inegavelmente trata-se de uma locução que expressa um "fenômeno econômico poliédrico, o qual tem sob o aspecto jurídico, não um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que o integram"2. Como fenômeno econômico com veste jurídica, exerce uma função, de atuação encadeada que impulsiona e fomenta a atividade em todas as suas nuances (inclusive do trabalho e do capital empregado na operação tanto fática quanto jurídica), com finalidade econômica, caráter profissional e feição continuada. Todas as estruturas internas da empresa devem operar para atingir essa função. Nas empresas mais complexas, a estrutura empresarial pode ser formada internamente por diferentes classes profissionais - cada uma com a sua expertise -, que se encadeia e complementa com outras, com o objetivo de que a empresa obre eficientemente. Assim, não basta que a empresa seja notável no seu ramo especializado de atuação. Ela deve contar com uma estrutura administrativa, contábil e financeira eficaz. Essa estrutura deve estar apta a responder se a empresa está equilibrada, regular e saudável financeiramente, bem como se as operações efetivadas na sua marcha são transparentes e financeiramente sustentáveis, permitindo um adequado gerenciamento dos negócios empreendidos e das riquezas produzidas. Nesse contexto, registros e controles são essenciais, os quais somente atingem o seu objetivo se forem acessíveis, corretos, completos, dispostos de modo inteligente e transparentes, a permitir um exame adequado por aqueles que os acessam. Portanto, a transparência não beneficia apenas a empresa, seus acionistas, sócios ou empregados, mas sim todo o sistema econômico, cuja credibilidade é essencial para que, em última análise, a economia de um país funcione adequadamente3. Nas estruturas empresariais mais complexas e com sistema de governança corporativa implementado, permite-se a criação de um órgão específico chamado Conselho Fiscal, que é um órgão colegiado técnico permanente de supervisão, de funcionamento facultativo, composto de ao menos três membros (com suplentes)4, cuja finalidade precípua é a de fiscalizar os atos de gestão e de contabilidade da empresa, incluindo os "atos praticados por gerentes, supervisores e outros funcionários subordinados aos diretores"5, além da "legalidade e legitimidade das contas e a gestão financeira dos administradores"6. No âmbito de incidência do Código Civil (CC), estão incluídas as providências dispostas no art. 1.069 (inc. I), que dispõe sobre a obrigação do Conselho Fiscal de examinar ao menos trimestralmente "os livros e papéis da sociedade e o estado da caixa e da carteira". O resultado do trabalho executado pelo Conselho Fiscal deve ser registrado sob a forma de ata com respectivos pareceres, no livro próprio. Além disso, o órgão deve ter representação nas assembleias anuais para prestar esclarecimentos a respeito dos "negócios e as operações sociais do exercício em que servirem", a contemplar os trabalhos executados e resultados obtidos (art. 1.069, III, do CC). Sem prejuízo de outras atribuições que sejam estabelecidas no estatuto social da empresa ou que decorram da própria natureza da função, cabe ao Conselho Fiscal "denunciar os erros, fraudes ou crimes que descobrirem, sugerindo providências úteis à sociedade" (inc. IV do art. 1.069 do CC). No âmbito da Lei das Sociedades por ações (LSA), a competência do Conselho Fiscal está prevista no art. 163, o qual estabelece, dentre outras, as atribuições de "fiscalizar os atos dos administradores e verificar o cumprimento dos seus deveres legais e estatutários"; "opinar sobre o relatório anual da administração, fazendo constar do seu parecer as informações complementares que julgar necessárias ou úteis à deliberação da assembleia-geral"; "opinar sobre as propostas dos órgãos da administração, a serem submetidas à assembleia-geral, relativas a modificação do capital social, emissão de debêntures ou bônus de subscrição, planos de investimento ou orçamentos de capital, distribuição de dividendos, transformação, incorporação, fusão ou cisão"; "denunciar aos órgãos de administração e, se estes não tomarem as providências necessárias para a proteção dos interesses da companhia, à assembleia-geral, os erros, fraudes ou crimes que descobrirem, e sugerir providências úteis à companhia"; "analisar, ao menos trimestralmente, o balancete e demais demonstrações financeiras elaboradas periodicamente pela companhia" e "examinar as demonstrações financeiras do exercício social e sobre elas opinar". O Conselho Fiscal foi criado para ser um órgão autônomo e técnico, porquanto deva agir na fiscalização sem atender a interesses alheios aos legítimos propósitos da empresa como uma organização independente. Tanto assim é que a sua instalação se consolida como uma ferramenta à disposição de sócios ou acionistas minoritários representativos de ao menos um quinto do capital social (que podem eleger um dos membros do conselho), na defesa dos seus justos interesses e para evitar que a empresa seja utilizada para propósitos indevidos. Desse modo, o Conselho Fiscal atua no sentido de verificar a correção de condutas; de evitar erros e danos; de orientar para que condutas lesivas sejam sustadas e para denunciar práticas ilícitas (aqui abrangidas as abusivas e fraudulentas). Constata-se que a ideia de prevenção de danos ou de mitigação de danos está presente na atuação desse órgão. Não se pode tratar o Conselho Fiscal como um 'órgão inútil', pois é inegável a importância do seu trabalho, para obstar prejuízos evitáveis, denunciar prejuízos evitáveis, sustar prejuízos ou condutas danosas e  denunciar falhas para que possam ser corrigidas. Ao Conselho Fiscal compete fiscalizar a legalidade, a legitimidade e a gestão8. Para além da aferição contábil, incumbe-lhe a verificação financeira e econômica da companhia. No entanto, não lhe cabe orientar ou assessorar decisões da administração, tampouco julgar se uma decisão estratégica está certa ou errada9, ainda que posteriormente venha a acarretar resultado financeiro prejudicial, pois os seus exames não tratam das decisões de gestão do negócio, e sim das verificações de regularidade cabíveis. Destarte, as análises do referido órgão ocorrem na maioria das vezes a posteriori, no sentido de investigar se os deveres normativos, estatutários e regimentais dos administradores (conselheiros de administração e diretoria) foram satisfeitos. Conquanto o Conselho Fiscal seja um colegiado, pode operar "mediante atos singulares de seus membros"10, pois o órgão "atua em determinadas matérias por intermédio de seu presidente, de um ou mais membros especialmente designados ou por qualquer de seus membros."11 E, embora em geral opere e delibere como colegiado, é possível que, diante de dissidências entre os seus membros, qualquer conselheiro individualmente considerado possa denunciar as irregularidades que vier a constatar. Esse aspecto interfere na imputação na responsabilidade civil, pois a responsabilidade incidirá sobre um ou mais de seus membros, e não sobre o órgão. E a responsabilidade poderá ser solidária ou individual, a apurar conforme as circunstâncias de atuação de cada conselheiro.  Nesse sentido, os §§ 2o e 3º, do art. 165 da LSA confirmam que a responsabilidade dos conselheiros fiscais é solidária como regra, mas o conselheiro fiscal não é responsável pelos atos ilícitos de outros membros, salvo se com eles foi conivente, ou se concorrer para a prática do ato, o que ressalta a importância de registrar as suas divergências ainda que individualmente em voto apartado, em parecer ou mesmo de denunciar o que entender que esteja errado. Assim, poderá o conselheiro fiscal, isolada ou conjuntamente (conforme a sua atuação tenha sido individual ou conjunta com os demais conselheiros), ser responsabilizado pelos danos decorrentes da falha ou da falta de verificação da adequação das contas da empresa e seu controle12. Para alguns casos, a denúncia efetivada apenas por um dos conselheiros às autoridades ou aos destinatários cabíveis "aproveita" aos demais no âmbito da responsabilidade civil, porque o propósito da fiscalização e da denúncia foi cumprido pela conduta diligente de ao menos um dos componentes do órgão (embora nem sempre esse raciocínio possa ser aplicado no âmbito da responsabilidade administrativa, como no caso da CVM). Entender em sentido distinto equivaleria a punir civilmente o conselheiro omisso, que não parece ser o propósito da responsabilidade civil, ao menos para esses casos. Os membros do conselho devem ser responsabilizados caso ocorra algum dano decorrente de fato que deveria ter sido apurado no exercício das suas atividades de competência. A responsabilidade civil do conselheiro fiscal no âmbito da LSA está prevista no art. 165, o qual dispõe que ele responde "pelos danos resultantes de omissão no cumprimento de seus deveres e de atos praticados com culpa ou dolo, ou com violação da lei ou do estatuto". A vinculação aos deveres dos administradores prevista nos arts. 153 a 156 da LSA traz, por exemplo, o dever dos conselheiros fiscais de agirem com cuidado, diligência e lealdade, atendendo aos fins e interesses da companhia, de modo que não podem praticar ato de liberalidade em prejuízo desta ou receberem vantagem pessoal direta ou indireta em razão da sua função; não podem fazer mal uso de informações privilegiadas ou de oportunidades de negócios que tenham conhecimento em face do cargo exercido ou agirem em conflito de interesses. Como exemplo de possíveis condutas ensejadoras de responsabilidade, o conselheiro poderá ser responsabilizado ao deixar de fiscalizar ou se fiscalizar de modo incorreto a conformidade normativa dos atos da diretoria ou a adequação (legal e estatutária) das decisões do conselho de administração; se deixar de verificar ou se averiguar inadequadamente a compatibilidade entre o "mérito" dos negócios financeiros da companhia e o objeto e objetivos sociais; a conformidade das contas apresentadas em relação a aspectos técnicos de contabilidade, para que as demonstrações espelhem a saúde econômica e financeira da companhia, incluindo a exatidão numérica e adequação à lei, aos estatutos, às deliberações sociais e ao objetivo social13. Em síntese, os membros do conselho devem ser responsabilizados caso ocorra algum dano decorrente conduta que lhe seja atribuível por sua competência funcional e que não tenha sido executada, ou se, na sua execução, tenha ocorrido alguma falha, desde que estejam presentes os pressupostos da responsabilidade civil, que neste caso é subjetiva. Não poderá o conselheiro, para se eximir da responsabilidade, alegar que não teve acesso a documentos, pois cabe a ele solicitá-los. Isso vale para documentos ou providências  ordinárias e que costumeiramente são requisitadas. Para as incomuns, isso dependerá da maior ou menor necessidade, a ser avaliada in concreto.14 Havendo recusa, cabe ao conselheiro fazer as denúncias cabíveis, registrando as suas divergências em ata, inclusive sendo facultada a renúncia. No entanto, não pode ser responsabilizado por documento que lhe tenha sido ocultado quando, segundo apurado pelas circunstâncias concretas, não pudesse saber da sua existência. A responsabilidade do conselheiro fiscal se configura ao deixar de conferir, ou de conferir inadequadamente a existência, a propriedade e a exatidão dos registros (inclusive os contábeis e financeiros) da empresa, o emprego efetivo dos recursos, os lançamentos contábeis corretos, fidedignos e que espelhem a realidade dos créditos, estoque, endividamento e patrimônio; a conferência dos pagamentos realizados, inclusive a empregados administradores, acionistas, credores, fornecedores e fisco, examinando o atendimento da regulamentação incidente15. O conselheiro fiscal pode ser responsabilizado se deixar de apontar contingências passivas que tenha identificado ou que fossem identificáveis, ou de obrigações, inclusive contratuais, para que possa verificar se estão corretamente contabilizadas e se os seus impactos no resultado estão devidamente dimensionados nos registros pertinentes. Ainda, de acordo com o especificado na Resolução CVM n. 44/2021, o conselheiro pode ser responsabilizado se deixar de atentar ao dever de sigilo quanto a fato relevante de que tenha conhecimento ou de comunicar fato relevante às autoridades quando cabível, para os casos de sociedades por ações de capital aberto (art. 3º, § 1º e art. 8º). O conselheiro fiscal pode ser responsabilizado caso deixe de fiscalizar ao tempo cabível as questões que lhe competem. Assim, embora a LSA trate de análises trimestrais, há pontos cuja verificação recomendável é variável, desde a mensal (balancetes de grandes companhias, por exemplo) até a anual (v.g., DIRF e ITR). Por fim, convém alertar que não se pode exigir que os conselheiros fiscais sejam "super heróis" da fiscalização na busca da "agulha no palheiro" e que tenham olhos de lince para todas as operações, notadamente em grandes companhias que operam em substanciais volumes, pois isso significaria na prática tornar todo conselheiro fiscal um contínuo réu em ação de responsabilidade civil. Não cabe responsabilizar o conselheiro fiscal "pela vírgula" que ordinariamente não seria exigível de ser fiscalizada e que gere prejuízo desprezível, cabendo identificar o que realmente é relevante a ponto de ser considerado como um dano juridicamente qualificável (nesse sentido, disposições estatutárias específicas e seguros profissionais podem ser ferramentas úteis). Tampouco pode ser responsabilizado pelo ardil de terceiro que, praticando crime, tenha ocultado ou alterado dados para gerar falsos resultados, se esse ardil não puder ser descoberto por meios usuais disponíveis a um conselheiro fiscal. Deve-se acentuar a análise quanto ao resultado da conduta, de maneira que desatenções que gerem impacto inexpressivo no resultado da companhia não sejam classificadas como condutas lesivas juridicamente qualificadas16. Por outro lado, por vezes pequenos erros, quando repetidos, podem gerar grandes danos, os quais devem ser analisados individualmente quanto a facilidade ou dificuldade de identificação, para que se tracem os contornos de uma conduta exigível. Quanto maior for a facilidade de detecção prévia (inclusive por amostragem), maior será a possibilidade de responsabilização. Não se olvide, em matéria de responsabilidade, que o conselheiro pode contratar perito para auxiliar na apuração de fato cujo esclarecimento seja necessário ao exercício das suas atribuições, o que eleva o grau de exigência na análise da sua conduta17. Conselheiros fiscais não podem ser responsabilizados pelo prejuízo da falta de implementação de correções que tenham apontado como necessárias, porque a conduta exigível é a de fiscalização e de denúncia, e não de correção. Nesse caso, a análise volta-se à conduta do gestor omisso. Outras questões igualmente relevantes são a possibilidade de corresponsabilização de administradores e divisão de responsabilidade entre gestores, conselheiros fiscais e auditores internos ou externos, bem como a legitimidade para ajuizar uma ação indenizatória contra conselheiros fiscais e a extensão do dano indenizável, o que demanda estudo que ultrapassa os limites desta coluna.  ____________ 1 Disponível aqui. 2 ASQUINI, Alberto. Perfis da Empresa. Trad. por Fábio Konder Comparato. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo. Revista dos Tribunais. Ano XXXV, n. 104. Out.-dez. 1996. P. 108-126. 3 O controle sobre a administração serve aos legítimos interesses de acionistas e credores, "embora alcance também o interesse mais geral da proteção ao crédito público e aos investimentos". BULGARELLI, Waldírio. O Regime Jurídico do Conselho Fiscal das S/A. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 48-49. Dito de outro modo: "Como visto, há um duplo aspecto na atuação do conselho fiscal: uma vinculada a acionistas e credores, que almejam uma companhia saudável para cumprir seus compromissos e gerar lucros, e outra, que essa companhia seja profícua e confiável, como célula saudável dentro do corpo que forma um sistema econômico". SOARES, Flaviana Rampazzo; TEIXEIRA, Guilherme Puchalski. Apontamentos quanto à estrutura e funções do conselho fiscal brasileiro. Revista brasileira de Direito Comercial, v. 4, p. 85-108, 2018. 4 Nas Sociedades por ações o número de Conselheiros Fiscais é entre 3 e 5 (art. 161 da Lei das S.A.). 5 EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. Volume II - art. 121 a 188. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 426. 6 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 3º Vol. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 450. 7 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Vol. II. Rio de Janeiro, Editora Forense, 1977. p. 742. 8 CARVALHOSA, 2009. p. 450. 9 Não cabe ao conselheiro fiscal "recomendar aos administradores que pratiquem ou deixem de praticar determinados atos que entende mais ou menos adequado ao exercício da atividade empresarial". EIZIRIK, 2011. p. 444. 10 EIZIRIK, Nelson. 2011, p. 427. 11 LOBO, Carlos Augusto da Silveira. Conselho fiscal de sociedade anônima: atuação individual e autônoma de seus membros. In: WALD, Arnold (org.). Direito empresarial: sociedades anônimas. V. 3. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 357-378, trecho da p. 367. No mesmo sentido preleciona BATALHA, Wilson de Souza Campos. Sociedades anônimas e Mercado de capitais. V. 2. Rio de Janeiro: Editora Forense. 1973. p. 677. 12 CARVALHOSA, 2009, p. 450. 13 "Diante dessas premissas não há como deixar de concluir que os membros do Conselho Fiscal, especialmente os eleitos pelos dissidentes, podem, isoladamente, sem dependência de decisão da maioria do órgão, inspecionar os livros e documentos, o estado da caixa e o mais que for necessário para verificar se a administração da companhia cumpre com seus deveres legais e estatutários". Isso se estende inclusive à análise de documentos de sociedades controladas. LOBO, 2011. p. 363 e 375. 14 Veja-se a Cartilha da CVM com Recomendações sobre Governança Corporativa: "V.5. A companhia deve disponibilizar informações a pedido de qualquer membro do conselho fiscal, sem limitações relativas a exercícios anteriores, desde que tais informações tenham relação com questões atuais em análise, e a informações de sociedades controladas ou coligadas, desde que não viole o sigilo imposto por lei. A capacidade de fiscalização do conselheiro fiscal deve ser a mais ampla possível, em virtude inclusive das responsabilidades que a lei lhe impõe, em caso de má conduta. Desde que possam influenciar os números fiscalizados, todos os documentos e informações sobre os quais não recaia dever legal de sigilo devem ser disponibilizados". Disponível aqui. (acesso em 26.03.23) 15 "É importante que o conselho fiscal examine com acuidade os setores financeiramente "estratégicos" da companhia, como, por exemplo, o setor de compras, de vendas e o setor financeiro, especialmente quanto a sua composição, forma de atuação e trabalhos realizados. Os atos e processos internos que mais merecem atenção são: disponibilidades imediatas, expressas sob as rubricas de "caixas" e "bancos", e a conjugação dos saldos dos boletins de caixa com o razão geral; títulos vencidos e a vencer (analisando a situação da cobrança); fichas-razão de despesas (principalmente quanto à correta comprovação e a despesas que possam ser consideradas como benefício pessoal e indevido em favor de alguém em detrimento de outros, sem justificativa plausível), fazendo inclusive uma conferência quanto a sua correspondência com controles paralelos que sejam adotados na companhia; análise de processos internos de compras, contratação de prestadores de serviços (incluindo, mas não se limitando, a consultorias, propagandas e serviços de profissionais liberais), concessão de descontos ou benefícios a clientes; despesas relacionadas a produtos ou serviços que servem a mais de uma companhia; créditos tributários; ações judiciais e eventuais acordos e contratos (especialmente de mútuo e doação)." SOARES, Flaviana Rampazzo; TEIXEIRA, Guilherme Puchalski. Apontamentos quanto à estrutura e funções do conselho fiscal brasileiro. Revista brasileira de Direito Comercial, v. 4, p. 85-108, 2018. 16 "(...) qualquer dano, tanto a coisas como à pessoa, só será objeto de reparação se corresponder a um interesse que seja socialmente tido como sério e útil". NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 498. 17 Conforme prevê o art. 163, §5º e §8º, da LSA. Nesse sentido, vide FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito commercial. 4. vol. São Paulo: Saraiva, 1961. p. 515.
A fluid recovery no Brasil  Instituto audacioso e ainda enigmático, a fluid recovery (reparação fluída) foi inserida em 1990 no microssistema de tutela coletiva brasileira como mecanismo voltado à efetividade da responsabilidade civil no âmbito das relações de massa. O desenho processual originariamente previsto para as class actions no Brasil (ações coletivas de tutela de direitos individuais homogêneos) suscita duas fases. Inicialmente, os legitimados coletivos - agindo na qualidade de substitutos processuais das vítimas lesadas por uma origem comum -, requerem a fixação da responsabilidade civil do(s) réu(s) por meio de uma sentença condenatória genérica. Subsequentemente, espera-se que as próprias vítimas compareçam individualmente em juízo, demonstrando o nexo causal e o dano pessoal, objetivando liquidar os valores devidos e finalmente executá-los. Todavia, referido modelo processual pode se revelar extremamente ineficiente, na medida em que depende da ampla informação social a respeito das demandas coletivas propostas e das condenações obtidas, assim como da disseminada acessibilidade individual das vítimas ao sistema de justiça. Daí a enorme relevância do mecanismo previsto no art. 100 do CDC - autêntica ferramenta de fechamento do sistema de tutela coletiva -, que objetiva viabilizar a liquidação e execução das indenizações não buscadas a título individual pelas vítimas.1 A não ativação da pretensão de quantificação e execução da fluid recovery oportuniza o locupletamento ilícito dos demandados, frustrando a multifuncionalidade da responsabilidade civil no âmbito da tutela coletiva nacional.    Natureza jurídica  Os diversos obstáculos à plena operacionalidade da fluid recovery brasileira derivam da indefinição de sua natureza jurídica - até hoje discutida. A incompreensão do sistema de justiça a respeito do instituto acarreta reducionismo ou simplesmente inviabilização da sua realização concreta.    Fundamentalmente, duas correntes doutrinárias se formaram para tentar explicar o mecanismo versado pelo art. 100 do CDC, ora sustentando sua natureza reparatória residual, ora afirmando sua natureza sancionatória. Se a quantificação do montante a ser remetido ao Fundo reparatório previsto pelo art. 13 da LACP compreender a mera soma das indenizações devidas às vítimas que não procuraram o Poder Judiciário para executar a condenação genérica, a fluid recovery assumiria, então, natureza reparatória residual.2 Por outro lado, entendendo-se que a liquidação da fluid recovery não se restringe à quantificação das lesões individuais não reclamadas judicialmente, devendo levar em consideração também a necessidade de se imprimir aos demandados punição pedagógica para a não reiteração da conduta ilícita e lesiva aos direitos metaindividuais, então sua natureza jurídica seria sancionatória.3 Ambos os caminhos sugeridos, por certo, geram perplexidades. A tese da natureza reparatória residual da fluid recovery, por exemplo, sugeriria a necessidade da efetiva comprovação da existência e da extensão dos danos individuais não indenizados diretamente às vítimas - tarefa muitas vezes impossível ou extremamente onerosa às entidades colegitimadas à instauração do procedimento regulado pelo art. 100 do CDC.4 Para além disso, ainda que fosse viável provar e quantificar com exatidão os valores indenizatórios individuais não reclamados, sua destinação aos fundos reparatórios não se prestaria a desestimular a continuidade ou reiteração das práticas ilícitas e lesivas, ignorando, também, os lucros ilícitos auferidos pelos demandados. A tese da natureza sancionatória da fluid recovery, por sua vez, (res)suscita toda a difícil e ainda recente discussão que o sistema de justiça brasileiro vem travando a respeito da aplicação, limites e alcance da multifuncionalidade da responsabilidade civil. Nesse sentido, a literalidade do art. 100 do CDC não satisfaz à evidente necessidade de se ativar, para muito além da clássica função reparatória, as funções precaucional, preventiva, punitivo-pedagógica e restitutória, absolutamente imprescindíveis no campo das relações de massa e da proteção dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.        A atual orientação jurisprudencial do STJ a respeito da fluid recovery  No longo caminho já trilhado (e ainda por se trilhar) rumo à adequada compreensão e concretização da fluid recovery brasileira, o Superior Tribunal de Justiça já parametrizou importantes premissas, inclusive a respeito de sua natureza jurídica. Recentemente, definiu o STJ que o mecanismo pode assumir, dependendo do caso concreto, tanto natureza reparatória residual como punitiva. Em aresto relatado pela Min. Nancy Andrighi, afirmou-se: "Não é possível definir, a priori, a natureza jurídica desse instituto, que poderá variar a depender das circunstâncias da hipótese concreta. Se for viável definir a quantidade de beneficiários da sentença coletiva, bem como o montante exato do prejuízo sofrido individualmente por cada um deles, a fluid recovery terá caráter residual. De outro lado, se esses dados forem inacessíveis, a reparação fluida assumirá natureza sancionatória, evitando-se, com isso, a ineficácia da sentença e a impunidade do autor do ilícito.5 Conforme o STJ, ainda, o objetivo da fluid recovery "consiste, sobretudo, em impedir o enriquecimento sem causa daquele que praticou o ato ilícito", e que "A ausência das informações necessárias para a constatação dos prejuízos efetivos experimentados pelos beneficiários individuais da sentença coletiva não deve inviabilizar a utilização da reparação fluida. Nessa hipótese, a indenização poderá ser fixada por estimativa, podendo o juiz valer-se do princípio da cooperação insculpido no art. 6º do CPC/2015 e determinar que o executado forneça elementos para que seja possível o arbitramento de indenização adequada e proporcional."6 Dessa forma, o STJ não apenas reforçou seu entendimento a respeito da possível instrumentalização da fluid recovery para o fim de evitar o enriquecimento ilícito dos réus7 como, fundamentalmente, consagrou sua finalidade punitivo-pedagógica.     A proposta de nova regulação da fluid recovery no PL 1641/2021 Elaborado por uma comissão de juristas designada pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), o Projeto de Lei nº 1641/2021 objetiva aprimorar o sistema processual coletivo no Brasil.8 Dentre as inovações propostas, enuncia-se expressamente que a tutela coletiva é regida pelo princípio da "efetiva precaução, prevenção e reparação integral dos danos patrimoniais e morais, individuais e coletivos" e da "responsabilidade punitivo-pedagógica e restituição integral dos lucros ou vantagens obtidas ilicitamente com a prática do ilícito ou a ela conexas".9 Vale dizer, a multifuncionalidade da responsabilidade civil finalmente encontraria textura legislativa no ordenamento jurídico brasileiro, adequando-se seu regime jurídico às necessidades impostas pelas relações sociais do século XXI. Para além disso, referido Projeto de Lei reforma a fluid recovery, estabelecendo, como critérios para sua quantificação, não apenas a ausência de habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano (critério atualmente disposto pelo art. 100 do CDC), mas também "os lucros ou vantagens obtidas ilicitamente com a prática do ilícito ou a ela conexas".10 A inovação proposta atribui à fluid recovery a potencial função de neutralização dos ilícitos lucrativos (disgorgement), tanto cara à efetividade da tutela coletiva quanto esquecida até hoje pelo legislador brasileiro.11 Dessa forma, a partir da orientação jurisprudencial do STJ e da proposta de ressistematização da tutela coletiva engendrada pelo PL 1641/2021, extrai-se a conclusão de que o mecanismo da fluid recovery pode assumir naturezas tão diversificadas quantas forem as funções que, à luz do caso concreto, a responsabilização civil dos demandados nas ações coletivas exigir. __________ 1 Lei 8.078/90, art. 100 - "Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida. Parágrafo único. O produto da indenização devida reverterá para o fundo criado pela Lei n.° 7.347, de 24 de julho de 1985." 2 Nesse sentido, originariamente, GRINOVER, Ada Pellegrini. Código brasileiro de defesa do consumidor (comentado pelos autores do anteprojeto). São Paulo: Editora Forense, 4ª ed., 1995, p. 565. 3 Sustentamos a necessidade de se imprimir à fluid recovery uma função sancionatória (para além da reparatória) há mais de duas décadas: "Mais do que emprestar uma tutela coletiva à defesa de direitos individuais homogeneizados, o legislador do CDC acabou por, considerando a elevada relevância social não só da facilitação da defesa processual mas também da repressão efetiva aos responsáveis pela lesão à classe, o que inegavelmente condiz com o interesse social, ao mesmo tempo não deixa-los impunes (não se lhes permitindo enriquecimento ilícito) e propiciar mais uma fonte de captação de recursos ao Fundo criado pela LACP". VENTURI, Elton. Execução da tutela coletiva. São Paulo: Editora Malheiros, 2000, p. 154.  4 A título de exemplo, o STJ já decidiu pela necessidade de efetiva demonstração dos danos individuais para a liquidação e execução da fluid recovery: ""A simples identificação dos possíveis lesados não se mostra suficiente para a quantificação do dano individualmente suportado, elemento sem o qual não é admitida a propositura da execução, que exige liquidez e certeza, tampouco implica habilitação capaz de transformar a condenação pelos prejuízos globalmente causados em indenização pelos danos individualmente sofridos, haja vista a ausência de manifestação pessoal acerca da intenção de promover a execução do julgado" (REsp n. 1.610.932/RJ, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 27/4/2017, DJe de 22/6/2017.) 5 REsp n. 1.927.098/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22/11/2022, DJe de 24/11/2022. 6 Idem. 7 O STJ já houvera afirmado que "A recuperação fluida (fluid recovery), prevista no art. 100 do CDC, constitui específica e acidental hipótese de execução coletiva de danos causados a interesses individuais homogêneos, instrumentalizada pela atribuição de legitimidade subsidiária aos substitutos processuais do art. 82 do CDC para perseguirem a indenização de prejuízos causados individualmente aos substituídos, com o objetivo de preservar a vontade da Lei e impedir o enriquecimento sem causa do fornecedor que atentou contra as normas jurídicas de caráter público, lesando os consumidores" (REsp n. 1.955.899/PR, rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15/3/2022, DJe de 21/3/2022.) 8 Referido Projeto de Lei encontra-se atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, apensado ao PL 4441/2020. 9 Art. 2º, incisos V e VI, do PL 1641/2021. 10 PL 1641/2021 - Art. 45. Na ação civil pública para a tutela de direitos individuais homogêneos, a indenização determinada será revertida, quando esta for a solução mais adequada, às vítimas do evento. (...) §4º - Decorrido o prazo de dois anos contados do trânsito em julgado da decisão proferida na ação coletiva para a execução individual sem que tenha havido habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, ou dos lucros ou vantagens obtidas ilicitamente com a prática do ilícito ou a ela conexas, poderão os legitimados à ação civil pública promover a liquidação e execução da indenização devida. Os valores resultantes da execução da indenização devida nos termos do §4º serão depositados em juízo e, após o transcurso do prazo prescricional das pretensões individuais, revertidos a um fundo ou atividade, na forma desta Lei. §5º - Na definição da indenização prevista no § 4º, o juiz levará em consideração os valores já desembolsados pelo réu para pagamento das vítimas. §6º - Os valores liquidados serão depositados em juízo ou revertidos a fundos reparatórios, devendo ser aplicados, ouvido o Ministério Público, na recuperação específica dos bens lesados ou em favor da comunidade afetada. 11 Conforme Nelson Rosenvald, "O reconhecimento de que o resgate de lucros ilícitos é a resposta apropriada para certos tipos de ilícitos merece suporte normativo. Trata-se da necessidade de solucionar uma questão comum a diversos sistemas jurídicos sobre como canalizar os ganhos indevidos, sem que se tenha que recorrer ao raciocínio distorcido da 'cama de Procustes' pela indevida plasticização do cálculo da compensação dos danos patrimoniais ou pela inadequada hipertrofia da avaliação do dano moral". A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo. São Paulo: Editora JusPodivm, 2021, p. 314-315.
As reflexões acerca da responsabilidade civil dos profissionais da saúde, e mais particularmente dos médicos, corriqueiramente giram em torno de se discutir se, em virtude de erro médico - isto é, sobretudo nos casos de desvios de conduta no decorrer de procedimentos cirúrgicos ou mesmo nas hipóteses de mau diagnóstico - caberá determinar que o próprio profissional venha a responder por danos causados aos pacientes e, eventual e reflexamente, aos seus familiares. O propósito deste texto, todavia, será diverso: cumprirá doravante averiguar de que modo os profissionais da saúde poderão ser responsabilizados pela violação à autonomia de seus pacientes. Noutros termos, debater-se-á a possibilidade de imputar responsabilização civil aos médicos que, ainda quando empreendam adequadamente as melhores técnicas disponíveis para preservar a vida e a saúde dos pacientes - isto é, independentemente do cometimento de erro -, vêm a atuar em contrariedade à livre expressão de vontade destes. No âmbito das relações estabelecidas entre médicos e pacientes, o consentimento informado é a expressão da autonomia que se lhes confere para aceitar ou recusar determinados tratamentos ou intervenções, com base nas informações prestadas acerca dos riscos e dos procedimentos a serem seguidos. Atualmente, prevalece a noção de que a declaração do paciente para consentir com o ato médico é obrigatória, qualquer que seja a magnitude da intervenção e seus procedimentos e riscos. Nas relações médico-paciente, a liberdade para tomar decisões acerca dos tratamentos aos quais o paciente deseja ou não se submeter contribui para nele reconhecer o status de pessoa, e não de mero objeto da atividade médica. Todavia, somente cabe falar em verdadeiro consentimento informado se o paciente for capaz de compreender o teor do Termo de Consentimento Informado, cujo vocabulário deve ser suficientemente preciso e compreensível ao paciente, para que proporcione completo entendimento sobre seus termos. É necessário, pois, que o médico promova uma efetiva interação com seus pacientes, observando as condições e as limitações concretas de cada um, explicando-lhes cada aspecto do conteúdo do Termo, para que este possa ser uma fonte de segurança para ambos. O postulado acabado de referir é imprescindível para estabelecer que o consentimento somente será como válido se as informações transmitidas aos pacientes forem bastantes para a formação da sua convicção. À míngua de informação, ou sendo ela incompleta ou imprecisa para sustentar um consentimento devidamente esclarecido, poder-se-á afirmar que, ainda que o paciente tenha aposto sua assinatura no Termo que lhe tiver sido apresentado, o consentimento obtido será considerado inválido, passando a conduta médica a ser tratada como um ato não autorizado,1 incidindo, a partir daí, as regras que imputem a ele a responsabilidade civil pela intervenção não permitida sobre a integridade física de terceiros. Do mesmo modo, caso reste demonstrado que o próprio médico levou o paciente a prestar o consentimento, valendo-se, para tanto, de artifícios indevidos, seja mediante o induzimento malicioso capaz de deturpar a realidade dos fatos (dolo), seja em virtude de ameaça de mal injusto (coação), poderá responder civil e criminalmente, em virtude de atuar mediante constrangimento ilegal, ao intervir sobre a integridade física do paciente sem que este tivesse manifestado validamente sua permissão para tal fim. A averiguação sobre quais circunstâncias se enquadrariam em um comportamento inadequado do médico, contudo, exige prudência. Não se pode acusar o profissional de agir mediante coação quando vier a sugerir fortemente que seu paciente se submeta a determinada intervenção médico-cirúrgica, desde que se reserve a este a liberdade suficiente para rejeitar o tratamento proposto. A mera tentativa de persuasão, enfim, não induz a presença de vício. Outra será a hipótese, entretanto, caso o médico venha a reduzir a capacidade de resistência do paciente, ao colher seu consentimento após a ingestão de analgésicos, sedativos ou outros produtos farmacêuticos que lhe comprometam o discernimento.2 Neste caso, será indubitável a ausência de voluntariedade na manifestação de vontade, ficando comprometida sua validade, o que, em última instância, revela inaceitável desrespeito à autonomia do paciente, capaz de gerar a responsabilização civil do profissional envolvido. Enfim, a inobservância dos requisitos necessários para a validade do consentimento informado não permite dizer que houve verdadeira anuência, o que poderá acarretar a responsabilidade civil do profissional, seja pelos danos provocados ao paciente, seja pela intervenção não consentida sobre a sua integridade física. Nestes casos, mesmo que não haja danos à incolumidade física, caberá atestar, quando menos, a existência de ato ilícito praticado contra o direito à autodeterminação do paciente. É preciso, pois, atestar um postulado essencial neste domínio: não é necessária a existência de danos à saúde do paciente para que o profissional incorra em responsabilização pessoal; o desrespeito à autonomia do enfermo já justifica o reconhecimento de um dano à liberdade de escolha do paciente. Em tais circunstâncias, ainda que se demonstre que o profissional atuou em estrita observância das normas e técnicas próprias de seu ofício, caberá atribuir-lhe o dever de reparar o dano, consistente na violação de um espaço necessário de autonomia do paciente, a quem competirá, em última análise, a decisão sobre os rumos a tomar em relação à sua saúde. Malgrado seja de se exigir a exteriorização do consentimento do paciente, como elemento primeiro para a prática de qualquer intervenção médica, há situações excepcionais que permitem ao médico agir de imediato, independentemente da anuência do próprio paciente ou da autorização de seus representantes legais. Com efeito, em caso de iminente perigo de vida ou de lesões graves e irreversíveis, quando o paciente não está apto a prestar o consentimento, a urgência para a tentativa de preservar a vida ou integridade física justifica a intervenção médica imediata. Trata-se do denominado privilégio terapêutico, que consiste na faculdade de atuação médica, diante de situações de mal iminente, sem que seja necessário recorrer previamente ao consentimento do paciente.3 Nas circunstâncias acima descritas, não caberá falar na prática de ato ilícito, seja nas esferas civil, penal ou administrativa. O médico estará amparado por figuras jurídicas, previstas no ordenamento brasileiro, que excluem a ilicitude - no caso, o estado de necessidade e o exercício regular de um direito reconhecido, que encontram guarida nos arts. 23 do Código Penal e 188 do Código Civil. Aqui, tampouco caberá falar na existência de dano, atuando o profissional amparado pelo consentimento presumido do paciente, afastando-se a própria responsabilidade civil. A propósito, cabe firmar a ideia de que a omissão do médico, nos casos em que lhe é possível salvar a vida do paciente, é que será passível de reparação civil. A decisão de agir de ofício, sem que se colha o consentimento do paciente para a intervenção sobre a sua integridade física, tem caráter eminentemente subsidiário: somente será legítima tal conduta se o paciente estiver verdadeiramente inabilitado para manifestar sua vontade. A urgência da medida, neste domínio, também desempenhará papel preponderante: não se admitirá a realização do procedimento médico caso seja possível esperar pela decisão daquele que, embora pudesse estar apto a consentir, em condições normais, se acha apenas momentaneamente privado de o fazer. Justifique-se que, nas aludidas situações, caberá atestar a presença de uma autêntica presunção de consentimento. Parte-se do pressuposto de que, caso o indivíduo estivesse em condições de se manifestar, autorizaria, à partida, a realização das intervenções necessárias para preservar-lhe a vida e a saúde. Este regime especialíssimo de ausência de ilicitude e também de responsabilidade, diante da falta de consentimento expresso, somente se justifica pela natureza dos bens jurídicos a preservar e pela extrema urgência de agir. Outra circunstância em que poderá ser legítima a conduta médica, independentemente da manifestação de prévio assentimento por parte do paciente, consiste nos casos em que se fizer imprescindível o alargamento da operação. WOLFGANG FRISCH4 esclarece que a medida será adequada quando o paciente prestar seu consentimento para uma intervenção médica de determinada natureza e dimensão, descobrindo-se posteriormente ao início da sua realização que seria recomendável alargar a operação, para estendê-la para além dos limites do consentimento dado, já não sendo mais possível obtê-lo, por estar o paciente sedado e sob o efeito de anestesia. O mesmo autor relata um caso, submetido ao Tribunal Federal alemão, em que o médico tinha obtido da sua paciente o consentimento para erradicar um tumor no útero; durante a operação, contudo, verificou-se ser imprescindível remover todo o órgão para conter o alastramento do tumor, informação não levada oportunamente à paciente, o que tornava o procedimento, portanto, não consentido. Nestas hipóteses de risco agudo de vida ou de grave lesão corporal, não havendo meios de comunicar ao paciente a necessidade de se alargar o procedimento, será possível admitir que o apelo ao consentimento presumido legitima a conduta do médico.  É preciso, cabe salientar, que o profissional da saúde atue com enorme cautela para aferir a presença de situações de justificado consentimento presumido: elas apenas se manifestam se restar incontroverso o fato de ser absolutamente necessária e urgente a intervenção, revelando-se ser inexigível ao médico conduta diversa. Quando o profissional atuar no estrito limite da necessidade terapêutica, será descabida a imputação de qualquer responsabilização por sua conduta, servindo o consentimento presumido, portanto, como um verdadeiro fator de exclusão da responsabilidade civil. Em vias de conclusão, restando incontroverso o respeito ao primado da liberdade do paciente, caberá reconhecer, como inarredável consequência, que o desrespeito às escolhas do paciente quanto aos procedimentos a adotar em relação à sua saúde acarretará um autêntico dano à autonomia, a provocar a verificação da responsabilidade civil do profissional, ainda que atue em estrito cumprimento das leges artis e que não haja qualquer prejuízo ou lesão à vida, à saúde e à incolumidade do enfermo. Há, todavia, que reconhecer o advento de circunstâncias em que a urgência na adoção de medidas médicas prepondera; em casos tais, sendo impossível colher do próprio paciente ou de seus responsáveis a manifestação de vontade, emergirá a figura do consentimento presumido, a isentar o profissional de qualquer responsabilidade por seu comportamento, ainda que reste provado, posteriormente, que a atuação médica contrariou, de algum modo, a verdadeira intenção do enfermo. O que se impõe, em todo caso, é o excessivo zelo com que cabe apreciar a questão. Profissionais da saúde lidam rotineiramente com incessantes situações delicadas e muitas vezes extremas, e sua responsabilização há de ser atribuída, se for o caso, com acurada parcimônia. De toda sorte, em se verificando o desrespeito aos limites do consentimento prestado pelos pacientes, será inevitável constatar verdadeira violação à liberdade destes, o que não deixa de se caracterizar como uma conduta de violência contra o sagrado espaço de manifestação da individualidade de pessoas que, mesmo em circunstância de extrema vulnerabilidade, deverão decidir os traços e rumos de seus próprios destinos. __________ 1 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento para intervenções médicas prestado em formulários: uma proposta para o seu controlo jurídico. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, v. LXXVI, 2000, p. 451. 2 SILVA, Marcelo Sarsur Lucas da. Considerações sobre os limites à intervenção médico-cirúrgica não consentida no ordenamento jurídico brasileiro. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, n. 43. Belo Horizonte, julho-dezembro de 2004, p. 100. 3 RODRIGUES, João Vaz. O consentimento informado para o acto médico no ordenamento jurídico português: elementos para o estudo da manifestação da vontade do paciente. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra: Centro de Direito Biomédico. Coimbra: Ed. Coimbra, 2001, p. 279. 4 FRISCH, Wolfgang. Consentimento e consentimento presumido nas intervenções médico-cirúrgicas. In: DIAS, Jorge de Figueiredo (Dir.). Revista Portuguesa da Ciência Criminal, a. 14, ns. 1 e 2. Coimbra: Ed. Coimbra, janeiro-julho de 2004, p. 110-112.
Nossa Constituição Federal condiciona proteção jurídica à família não importando o modelo do qual ela se reveste. O vértice legal é a proteção do núcleo familiar e, que tem como ponto de partida, e também seu término, a tutela da pessoa humana. Se é na família que se promove os valores afetivos e de solidariedade humana, não se deve conferir tratamentos diferentes às pessoas de seus membros seja de uma filiação advinda de forma biológica, civil ou socioafetiva. Por isso, os princípios inerentes à convivência familiar, baseada no afeto recíproco entre os integrantes deve se estender ao direito sucessório de forma igualitária, sob pena de contrariar o ditame constitucional. Para atribuição do devido a cada um dos herdeiros, para a prevenção por preterição entre co-herdeiros e ainda para diminuição de ações judiciais para acesso ao quinhão hereditário, seria importante haver mecanismo jurídico de imediata referência à filiação que associe os pais aos filhos biológicos, adotivos ou socioafetivos, declarados ou reconhecidos, porque assim, evitaria que alguns descendentes e sua estirpe, não tivessem acesso ao acervo hereditário a que tenham direito, por herança. E qual mecanismo poderia haver? Pela proposta da anotação registrária dos descendentes em assento de nascimento dos pais, lege ferenda. Reflexão inicial: a importância do registro civil reside na comprovação da autenticidade e publicidade sobre dados relativos ao estado da pessoa, cujos dados serão, na maioria das vezes, essenciais para eficácia da relação jurídica como se lê do próprio artigo 1º da Lei 6.015/73. Ele prepondera na preocupação com o tráfico de informações e no comprometimento com a garantia dos direitos fundamentais e ao final, aos próprios direitos da personalidade. Logo, o registro civil das pessoas naturais confere suporte legal à família, isso porque não existindo o registro, também juridicamente se tornam inexistentes as pessoas, as relações de parentalidade e seu acesso a todos os seus direitos subjetivos. A legalidade se dá por meio do registro, através do qual se atribuem os direitos e obrigações. Diante disso, vê-se que o registro civil confere acesso à busca da identidade familiar e, pelo registro de nascimento, surgirá documento originário da pessoa natural. Ele servirá de base para emissão de todos os demais assentos (casamento, óbito, etc.). Nele, se contém os elementos do estado da pessoa natural (estado individual) que individualizam a pessoa para a prática de atos e realização de negócios. E tão importante quanto ao registro de nascimento está o registro da extinção da pessoa natural, ou seja, a lavratura do registro de óbito conduzirá o acesso efetivo à legítima pelos descendentes do de cujus. E ainda. O sistema de registro civil se mantém também atualizado com outros atos que tornam o registro mais completo. Esses atos podem ser visualizados pelas averbações que alteram o conteúdo do estado da pessoa ou, os efeitos deste registro, mas também, pelas anotações as quais indicam que existe um outro ato de registro civil relativo à mesma pessoa, o que permite que a publicidade seja completa e que uma certidão atualizada indique a existência e a localização de atos registrários (registro ou averbação) posteriores que alteram o estado da pessoa natural. Essas anotações registrárias apenas produzem efeitos meramente publicitários e conduzem início de prova da existência de outro registro ou averbação. A anotação do óbito de uma pessoa no seu registro de nascimento e de casamento confere início à prova do óbito, mas não faz prova plena dele, isso só se dará com a certidão de óbito. Como se vê, as anotações formam uma "rede" que permite a busca por todos os registros de seus atos e fatos da vida civil. Elas são indispensáveis à plena publicidade, segurança e certeza dos assentamentos do registro civil. Na maioria das vezes, as alterações do estado civil das pessoas naturais não se verificam no mesmo local onde foi lavrado, originariamente, o assento de nascimento, e que devem constar averbações e anotações concernentes a todas as modificações do estado civil. As anotações eram comunicadas entre cartórios por meio de cartas, mas hoje é feito por meio da CRC-comunicações (artigo 106, § único da lei 6.015/73). A anotação registrária, portanto, é elemento de indicação que faz remissão a atos anteriormente praticados, através dela se faz o cruzamento das informações sobre os principais fatos da vida civil da pessoa natural. E aqui concentra-se nosso interesse neste ato registrário chamado anotação. Se a anotação registrária reserva a ideia de dar notícia de atos realizados no registro civil pela pessoa natural, mostrando os principais fatos que houveram em sua vida (meramente publicitários), mas que são considerados início de prova sobre a existência de outro registro ou averbação os quais produzem efeitos comprobatórios, por que então não se reconhecer e considerar a possibilidade do registro na sua inteireza e possibilitar a anotação dos filhos no assento de nascimento dos pais e, na de óbito ulteriormente, para que assim possa-se identificar de forma irrefutável quem são os descendentes para reconhecimento imediato das pessoas partícipes da sucessão legítima daquela pessoa natural que anotou (através do Oficial do Cartório) os filhos em seu livro de nascimento e, que posteriormente, após sua morte, poderão ser anotados, pelo registrador, no livro de óbito do de cujus? Caso haja a morte da pessoa natural, será realizado o registro do seu óbito com as anotações de sua morte em seu assento de nascimento e, no de casamento, se houver. Os filhos do de cujus, naturalmente serão os primeiros a receber a herança, mas para isso, deverão se apresentar em inventário a ser formalizado (judicial ou extrajudicial) por meio de suas certidões de nascimento ou casamento atualizadas. Caso alguns (ou todos) dos filhos não tenham conhecimento da morte do pai/mãe e, não foram declarados na certidão de óbito à época, pelo declarante, pois sequer os irmãos (bilaterais ou unilaterais, socioafetivo, reconhecidos) tios, avós, sobrinhos, se conhecem e nem possuem seus registros em cartório idêntico ao do de cujus, dificultará a esse descendente vivo e registrado de ter acesso à legítima quando desconhecido, culposa ou dolosamente, pelos outros descendentes, no momento da distribuição dos quinhões. Se não fosse só por este motivo que a anotação registrária oferece segurança jurídica de acesso à legítima, também pode servir de prevenção, pois, sabendo quem é o herdeiro, de imediato, evita que mais tarde aquele que não participou da partilha perca bens ou as rendas sobre os bens de sua legítima. E mais. Vale lembrar que todos os descendentes do doador, responderão pela contemplação do não favorecido, pois o herdeiro necessário não poderá ser prejudicado podendo buscar sua quota na herança de quem quer que seja (artigo 1.824 do Código Civil). De fato, como não é possível o conhecimento de todos os filhos/irmãos de plano, caso houvesse a possibilidade da apresentação de certidões - do transmitente/herdeiro de cota de sua herança - expedidas pelo Cartório de Registro Civil, potencialmente geraria a confiança e boa-fé ao adquirente resguardando-o de futuros pleitos judiciais, bem como ao herdeiro/vendedor de indenizações futuras dos outros co-herdeiros. Numa situação exemplificativa de ação investigatória de paternidade cumulada com petição de herança e, a paternidade sendo reconhecida, o bem imóvel alienado a terceiros de boa-fé pelos os outros co-herdeiros (consoante o disposto no art. 1.826 do Código Civil) só deveriam eles restituir os frutos percebidos aos outros herdeiros após caracterizada sua má-fé. Passados vários anos entre a abertura da sucessão e o cálculo da cota de cada herdeiro na herança, dever-se-á realizar perícia para avaliação dos bens segundo critérios atuais, tendo em vista a falta de certeza de correspondência dos montantes utilizados na partilha com os de mercado, assim como a ausência de parâmetros seguros para aferição dos valores históricos. Assim sendo, a apuração de perdas e danos será dificultosa e merecerá formulação jurídica de prevenção de dano em casos como esse. Se não fosse só pelos argumentos acima, também ainda é possível, pedido de indenização (pelos co-herdeiros preteridos) no tocante à utilização de bens alheios (artigo 186 Código Civil). As normas de enriquecimento injustificado, no que couber, também são aplicáveis (artigo 884 Código Civil) visto que se privou da posse os demais herdeiros do bem que faziam jus. E ainda que de ordem moral, havendo prejuízo ao herdeiro (relíquias de família, valor afeição) serão indenizáveis a título de perdas e danos. Sabendo-se, ainda, que a legítima dos herdeiros necessários, ou metade indisponível, enquanto vivo o doador, não pode ser atingida por nenhuma hipótese de liberalidade, às doações irregulares - após apuradas as falsas transferências onerosas - merecerão apuração de danos causados à privação dos bens. Diante disso, a anotação registrária dos filhos nos assentos de nascimento de seus pais ampliaria as chances de conhecer de plano, de forma irrefutável, os co-herdeiros. Ao conhecer de plano os co-herdeiros que, até aquele momento encontram-se registrados e anotados nos assentos de nascimento e de óbito dos pais, evitaria o dolo por parte de um deles em sonegar bens da legítima (art. 1.992 Código Civil) ao que caberia responder perante os demais co-herdeiros pelo valor do bem, mais perdas e danos (art. 1.995 Código Civil)1. __________ 1 VALESI, Raquel Helena. Efetividade de acesso à legítima pelo registro civil. Rio de Janeiro:Processo, 2019.
quinta-feira, 23 de março de 2023

Distanásia e responsabilidade civil médica*

Ao redor do mundo, os termos obstinação terapêutica, futilidade terapêutica e esforço terapêutico1 são, comumente, usados para nomear este o prolongamento artificial e indevido da vida biológica. Para fins didáticos, optou-se, neste artigo, por usar o termo distanásia posto que é o mais conhecido no Brasil. O neologismo distanásia foi criado a partir da junção de dois radicais gregos: "dis", que denota o que é disfuncional e "thanatos", palavra grega que significa morte.  Assim, a distanásia é o termo que nomeia a morte que ocorre de maneira anômala, o que, na contemporaneidade, é entendida como a morte postergada, em que suporte artificiais são usados "mesmo quando flagrantemente infrutíferos para o paciente, de maneira desproporcional, impingindo-lhe maior sofrimento ao lentificar, sem reverter, o processo de morrer já em curso."2 Em verdade, a distanásia é o oposto da eutanásia pois, enquanto nesta objetiva-se abreviar a vida biológica, naquela objetiva-se posterga-la. Assim, se na discussão da eutanásia a incurabilidade e a irreversibilidade são argumentos legítimos para que a morte seja antecipada, no que tange à distanásia, é exatamente o caráter incurável e irreversível da doença e/ou do estado clínico que deslegitima o prolongamento artificial da morte e do morrer. A disfuncionalidade da distanásia existe exatamente porque há a compreensão de que quando não é mais possível a cura, ao paciente devem ser prestados todos os cuidados para que o desfecho de sua morte ocorra com o menor sofrimento possível para ele e seus familiares. E a distanásia não é um cuidado, ela é um não cuidado. Os estudos comprovam que em termos de fim de vida a hora de parar de tratar é uma das mais tormentosas decisões para os profissionais de saúde3. Todavia, vem ganhando aceitação entre bioeticistas e paliativistas a ideia de que a futilidade terapêutica precisa ser combatida e que cabe ao médico a decisão de quando não investir mais no paciente4. A título de exemplo, o Código de Ética e Deontologia Médica da Organização Médica Colegial da Espanha estabelece que a prática do esforço terapêutico é infração ética, mas não há nenhuma lei punindo civil e criminalmente os médicos por essa prática5.  No Brasil, a palavra distanásia não é encontrada em nenhuma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), nem mesmo no Código de Ética Médica6, o que não significa que a prática seja permitida aos médicos brasileiros. A resolução n. 2.156/2016 do CFM trata dos critérios de admissão do paciente em Unidade de Terapia Intensiva, evidenciando que pacientes "com doença em fase de terminalidade, ou moribundos, sem possibilidade de recuperação, não são apropriados para admissão em UTI, cabendo ao médico intensivista analisar o caso concreto e justificar em caráter excepcional."7 O artigo 35 do Código de Ética Médica veda ao médico "(...)exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos", cabendo a interpretação a contrario sensu de que o médico que praticar o esforço terapêutico incorrerá em infração ética. O artigo 41, muito utilizado para averiguação de condutas éticas nos cuidados com o paciente em fim de vida, dispõe: Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. Há nesse artigo a figura de vários institutos atribuídos à discussão do fim de vida: a) eutanásia: prática vedada pelo caput; b) ortotanásia: prática permitida na primeira parte do parágrafo único: c) distanásia: prática vedada na segunda parte do parágrafo único, quando o CFM afirma que o médico não deve "empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas". Percebe-se assim que, apesar de o artigo 41 ser explícito quanto à proibição da eutanásia e deixar implícita a vedação da distanásia, uma interpretação conforme com a o artigo 35 permite a conclusão de que esta também é uma prática antiética. Deve-se, neste contexto, perquirir a existência de fundamentos jurídicos para responsabilizar civilmente o médico por ter agido para prolongar a vida do paciente fora de possibilidades terapêuticas de cura. Para tanto, é preciso averiguar se: (i) se o direito à vida é também um direito/dever de ser mantido vivo a qualquer custo; (ii) a distanásia é um tratamento desumano ou degradante. Quanto ao primeiro fundamento, Cynthia Pereira Araújo e Sandra Marques Magalhães8 afirmam que eventual reconhecimento de um direito à distanásia implicará no reconhecimento de que há direitos prejudiciais ao paciente e há salvaguardas à má prática médica, razão pela qual defendem a impossibilidade deste reconhecimento. Quanto ao segundo, é necessário retomar o conceito de distanásia e seu propósito: Trata-se do uso desproporcional do suporte avançado causando sofrimento ao paciente com o objetivo de prolongar o processo de morrer. Ou seja, está-se diante de um tratamento desumano e degradante que distancia o paciente de seu direito à morte digna reconhecido por Flávia Piovesan9 como um direito constitucional, decorrente do "direito à liberdade, à autonomia, ao respeito e à vida, no marco de um Estado laico, no qual impera a razão pública e secular." Historicamente, o ofensor é responsabilizado quando comprovado ato ilícito, dano, nexo de causalidade e culpa. Schreiber10 afirma que como resultado direto da erosão dos filtros tradicionais da reparação - ou, em outras palavras, da relativa perda de importância da culpa e do nexo causal como óbices ao ressarcimento dos danos sofridos - um maior número de pretensões indenizatórias passou a ser acolhido pelo Poder Judiciário. Diante desse cenário, a responsabilidade civil tem, cada vez mais, sido amparada no binômio dano/reparação. Nesse contexto, Rosenvald11 afirma que é preciso pensar que a responsabilização do ofensor tem a finalidade compensatória, mas também de prevenção de comportamentos. E, no caso em tela, resta claro a necessidade também prevenir o comportamento médico que - sob o pretexto de salvar a vida do paciente - acaba por prolongar danosamente o processo de morrer. __________ *O presente texto trata-se de uma atualização do artigo DADALTO, Luciana. Investir ou desistir: análise da responsabilidade civil do médico na distanásia. In: Nelson Rosenvald; Marcelo Milagre. (Org.). Responsabilidade Civil: Novas Tendências. 1ed.Inddaiatuba: Foco, 2017, v. 1, p. 487-497. 1 Para aprofundamentos nessas nomenclaturas recomenda-se: AMERICAN THORACIC DOCUMENTS. An Official ATS/AACN/ACCP/ESICM/SCCM Policy Statement: Responding to Requests for Potentially Inappropriate Treatments in Intensive Care Units. In: American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine. 2015. Vol. 191, n. 11. 2 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Eutanásia. In: GODINHO, Adriano Marteleto; LEITE, George Salomão; DADALTO, Luciana. Tratado Brasileiro sobre Direito Fundamental à Morte Digna. São Paulo: Almedina, 2017, p. 106. 3 WILKINSON, DJC; SAVULESCU, J. Knowing when to stop: futility in the intensive care unit. In: Current Opinion in Anaesthesiology. 2011 Apr; 24(2): 160-165. 4 AMERICAN THORACIC DOCUMENTS. An Official ATS/AACN/ACCP/ESICM/SCCM Policy Statement: Responding to Requests for Potentially Inappropriate Treatments in Intensive Care Units. In: American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine Volume 191 Number 11 June 1 2015. 5 Disponível aqui, acesso em 13 mar. 2023. 6 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.931, de 17 de setembro de 2009 (Código de Ética Médica). Disponível aqui, 13 mar. 2023 7 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.156, de 17 de novembro de 2016. Estabelece os critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva. Brasília, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 13 mar. 2023. 8 ARAÚJO, Cynthia Pereira; MAGALHÃES, Sandra Marques. Obstinação terapêutica: um não direito. In: DADALTO, Luciana. Cuidados Paliativos: aspectos jurídicos. Indaiatuba: Foco, 2022, p.331-344. 9 PIOVESAN, Flávia. Proteção jurídica da pessoa humana e o direito à morte digna. In: DADALTO, Luciana; GODINHO, Adriano Marteleto; LEITE, George Salomão. Tratado Brasileiro sobre o Direito Fundamental à Morte Digna. São Paulo, Almedina, 2017, p. 77. 10 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2013. 11 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p.91.
Diante dos nove anos em vigor do Marco Civil da Internet (lei 12.965/14 - MCI) e do crescente aumento do uso das redes no País, verifica-se a necessidade de se revisitar temas abordados pela norma. De fato, os ambientes online tornaram-se mais complexos e as interações ali promovidas vêm provocando repercussões sociais e políticas relevantes. Nesse sentido, a discussão do Recurso Extraordinário 1.037.396 pelo Supremo Tribunal Federal mostra-se essencial para a proteção de direitos na rede e a manutenção de uma internet livre, aberta e democrática. Discutir a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet1 envolve diretamente a análise de direitos fundamentais e de possíveis limites ao discurso e à liberdade de expressão na rede. A preocupação com a temática, vale lembrar, não se encontra restrita ao Brasil. A Suprema Corte dos Estados Unidos, no início de 2023, realizou uma série de audiências no contexto dos casos Gonzalez vs. Google e Twitter vs. Taamneh. Na Europa, em novembro de 2022, o Digital Services Act e o Digital Market Act entraram em vigor. As duas normas europeias visam a proteger os direitos dos usuários de serviços digitais e estabelecer condições adequadas para a promoção da inovação, do crescimento e da competitividade, tanto no mercado único europeu quanto globalmente. Elas impactam diretamente a atuação de agentes intermediários e de plataformas online. No debate, há também a Lei Alemã para as Redes Sociais (NetzDG) de 2018. Com base no panorama atual, é importante que a construção interpretativa do Marco Civil da Internet se dê em diálogo com as contemporâneas reflexões acerca da moderação de conteúdos online, as normas internacionais de direitos humanos e de governança da rede, a Lei Geral de Proteção de Dados brasileira (lei 13.709/18 - LGPD) e a estratégia nacional de inteligência artificial. Contudo, desenvolver tal interpretação traz mais dúvidas do que respostas ao intérprete. No presente texto, a partir de três eixos, pretende-se apresentar questões que envolvem a caracterização dos provedores, suas responsabilidades e deveres, seus papéis na moderação de conteúdos online e suas respectivas atuações no cenário público nacional. I) Em primeiro lugar, é necessário esclarecer a definição e quais plataformas e/ou sujeitos podem ser qualificados como provedores de aplicações de internet no MCI. Seria possível pensar em outras categorias de provedores, para além dos mencionados nos artigos 18 e 19 do Marco Civil da Internet (respectivamente, o provedor de conexão à internet e o provedor de aplicações de internet)? O artigo 19 seria uma norma prioritariamente estruturada para contemplar as atividades das redes sociais virtuais e de seus usuários? Em que medida a estrutura do provedor de aplicações, sua influência sobre o discurso público e sua possibilidade de exercer um controle prévio sobre os conteúdos postados pelos seus usuários podem impactar o tratamento legal a ele conferido? Como deverá ser desenhado o sistema de deveres e responsabilidades dos provedores de aplicações de internet? II) Acerca do regime de responsabilidade civil aplicável, parece adequado tecer as seguintes questões: a possibilidade de análise e edição do conteúdo de terceiro poderia tornar o provedor de aplicações, em alguma circunstância, corresponsável em caso de dano? A remoção de conteúdos questionados só deverá ocorrer após ordem judicial específica, como regra? Não são incomuns as críticas e falas diversas e plurais nas redes. Como situações com um grau maior de subjetividade devem ser tratadas pelos provedores e pelo Poder Judiciário? Não se pode perder de vista que entre as cores branca e preta, há vários tons de cinza... Quais exceções legais ao artigo 19 do MCI poderiam ser consideradas legítimas no ordenamento jurídico brasileiro? Seria possível aplicar outras exceções ao artigo 19, para além dos artigos 21 e 19, parágrafo 2º, do Marco Civil da Internet, os quais tratam, respectivamente, da divulgação não autorizada de imagens íntimas e de conteúdo protegido por direitos autorais? Essa é uma discussão extremamente interessante em nosso debate. É necessário frisar que a responsabilização dos agentes deve se dar de acordo com as suas atividades (Art. 3º, VI, do MCI). Portanto, eventual regime de responsabilidade civil deverá ser desenvolvido com base no serviço efetivamente prestado pelo provedor em questão, nos sujeitos envolvidos na relação e no poder e gerência que ele possui sobre o conteúdo que é disponibilizado em seu ambiente. O artigo 19 do Marco Civil da Internet - já aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em diversas situações que envolveram, especialmente, redes sociais e conteúdos lesivos a terceiros publicados por seus usuários - traz relativo equilíbrio ao regime de responsabilidade civil de provedores de aplicações de internet por conteúdo de terceiro, bem como segurança jurídica acerca da regra aplicável à relação. No caso, conforme o artigo 19 do Marco Civil, a responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet será subjetiva por omissão e derivará do não cumprimento da ordem judicial que determinou a remoção do conteúdo danoso (inserido por terceiro em seu ambiente). Foi estipulado que a retirada de conteúdo deverá ocorrer no âmbito e nos limites técnicos do serviço prestado, orientação importante que considera as peculiaridades de cada provedor. Ao colocar o Poder Judiciário como instância legítima para definir o que é ou não um conteúdo ilícito, passível de remoção, o MCI determinou que a responsabilidade civil do referido provedor não nasceria imediatamente após o descumprimento de uma notificação privada / extrajudicial. A lei 12.965/14 não impede que os provedores de aplicações possam determinar requisitos para a remoção direta de conteúdos em seus termos e políticas de uso e atendam a possíveis notificações extrajudiciais enviadas, quando serão responsáveis diretamente pela remoção e/ou filtragem do material. Ainda que essa perspectiva pareça interessante em certos casos, como nas questões envolvendo desinformação, deve-se evitar que os provedores abusem de suas posições e que venham a filtrar ou realizar bloqueios a conteúdos sem uma justificativa plausível (que deve estar de acordo com as normas constitucionais) e sem que sejam garantidos o contraditório e a ampla defesa às partes ali envolvidas.  Na ausência de um sistema adequado de responsabilização, serão enfrentadas consequências negativas pela sociedade, como, por exemplo, a diminuição da confiança de usuários e intermediários no uso e no desenvolvimento de ferramentas de comunicação na Internet, além do estímulo de ações governamentais e de agentes privados a estabelecerem mecanismos de controle e censura na Internet, o que levaria a processos arbitrários de remoção de conteúdos e excessiva vigilância dos cidadãos.   III) Diversos aspectos de nossa vida e sociedade vêm sofrendo interferências de algoritmos e serviços de plataformas. O mercado de tecnologia e seus sujeitos estabelecem continuamente tendências e necessidades, especialmente diante da concentração de players e atividades por eles desenvolvidas. Há, cada vez mais, tanto a análise e predição de comportamentos quanto a captura de nossa atenção. Nesse cenário, muito se tem questionado acerca do papel das mídias sociais e dos canais de comunicação no debate público. Acerca da moderação de conteúdos e do desenvolvimento de políticas internas e normas legais, cabe indagar: quais parâmetros as plataformas deveriam utilizar na elaboração de seus termos de uso e na sua atividade de moderação? Como tornar a moderação de conteúdo mais objetiva, precisa e contextual, especialmente nos casos que envolverem disseminação em massa de desinformação? Como desenvolver um processo mais responsivo, transparente e participativo?  Parece interessante, no cenário atual, que o controle acerca da moderação de conteúdos não seja integralmente transferido aos agentes de mercado. Cabe também ao Estado, às instituições públicas democráticas e entidades independentes apontarem premissas base e orientarem - de forma geral e mínima - plataformas e intermediários por meio, por exemplo, de políticas públicas, reuniões multissetoriais, resoluções e normas legais. Nesse sentido, debate-se hoje a possibilidade de uma autorregulação regulada. Haveria, assim, apoio a uma auto-organi­zação dos agentes privados, de acordo com a expertise e as dinâmicas próprias do mercado, mas também o estabelecimento de parâmetros gerais de inte­resse público importantes ao Estado democrático. Proteger os direitos humanos no ambiente digital mostra-se urgente e necessário, por meio de normas equilibradas e aplicáveis de forma ampla às diversas problemáticas. Normas e interpretações casuísticas, de viés autoritário ou meramente importadas sem um debate consistente, devem ser afastadas. É, aqui, que a discussão ampla, séria e acadêmica apresenta o seu relevo. Traçar as diretrizes desse debate é tarefa fundamental e exige uma reflexão constante, alinhada ao desenvolvimento tecnológico e às mudanças sociais, políticas e culturais. __________ 1 "Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. § 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material. § 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal. § 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais. § 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º , poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação."
Enquanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) discute a (relevante) possiblidade de compensação in re ipsa da perda indevida de tempo no Recurso Especial Repetitivo n. 1.962.275/GO, a teoria e os(as) julgadores(as) das instâncias ordinárias debatem há tempos a autonomia e a cumulação da compensação por lesão ou "dano" temporal. Obviamente, não é fato imputável ao STJ, pois este depende de Recursos Especiais manejados com observância dos requisitos constitucionais. Nesse contexto, a ministra Nancy Andrigui alertou em voto sobre o desvio produtivo que o "dano temporal" ainda não alcançou aquele Tribunal: "(...) não é objeto do presente recurso especial o exame da existência, no direito brasileiro, do chamado dano temporal, tampouco a sua possível indenização através do regime da responsabilidade civil prevista no Código Civil" (STJ, voto REsp n. 2.017.194/SP, j. 25/10/2022, g.n.). Na teoria, sinteticamente1, a proteção do tempo nasce como "novo" substrato fático dos danos morais em sentido amplo (extrapatrimoniais) em especial por André Gustavo Corrêa de Andrade2 (2005). Com efeito, a proteção temporal tem sua real expansão a partir dos estudos de Marcos Dessaune (2011), na popular "teoria do desvio produtivo". Contudo, na ocasião, Dessaune apresentou um óbice à emancipação e autonomia compensatória da tutela temporal: "(...) o 'tempo' (...) merece tratamento jurídico especial que o destaque, fora da mencionada cláusula geral de tutela da personalidade - a qual provavelmente aprisionaria o desvio produtivo a um mero 'novo fato gerador de dano moral'(...)".3 Desse modo, no avançar jurisprudencial da tutela do tempo pela responsabilidade civil, tal proteção surgiu como "ampliação dos casos de dano moral" e um "filtro relativo aos meros aborrecimentos", os quais muitas vezes impendem justas compensações morais - afirmou Flávio Tartuce4. Nesse cenário - com olhar protetivo aos mais frágeis e muito além da famigerada "guerra de las etiquetas" -, é possível avançar no abrandamento da vulnerabilidade temporal5 via responsabilidade civil, especialmente ao visualizar a conduta do fornecedor de impor a perda indevida do tempo como um fato transvestido de antijuridicidade - ou seja, de um "pressuposto do dever de reparar", uma palavra hábil para "adjetivar a conduta do causador do dano", como registrou Marcos Catalan6. Para sanear a questão do "aprisionamento" da lesão temporal como "mero novo fato gerador de dano moral", por volta de 20137-8 foi iniciado o debate sobre a autonomia da compensação da lesão temporal, sob o nome "dano temporal" para - aproveitando o "know-how" do STJ acerca da autonomia da compensação das lesões ou "danos" estéticos -, conferir maior visibilidade à proteção do tempo e, desse modo, alcançar maiores efeitos pedagógicos no mercado de consumo. Apesar da "timidez" da proposta interpretativa sobre a autonomia compensatória do tempo, o Poder Judiciário de 1º grau passou a dar, paulatinamente, feedbacks à tese. Nesse campo, o Juiz Fernando Antônio de Lima, em 28.8.2014, tangenciou a autonomia da compensação da lesão temporal: "Isso traduz hipótese de reparação, autônoma, se a parte-autora assim o desejasse, ou por danos morais, nos termos pleiteados na inicial em razão da perda de tempo produtivo ou útil direito (...)" (Jales-SP, Processo n. 0005804-43.2014.8.26.0297). Ou seja, o juiz paulista compreendeu que o pedido voltado à compensação autônoma poderia ser analisado, acaso fosse formulado. Em 17.12.2014, a Defensoria Pública do Amazonas (DPAM) propôs ação em prol de consumidor e, pela técnica da cumulação de pedidos, pleiteou as compensações por lesões morais e temporais. Em 19.8.2019, o Juiz Paulo Benevides dos Santos julgou procedentes os pedidos cumulados, condenando o fornecedor bancário ao pagamento de 20 (vinte) salários mínimos por danos temporais e 10 (dez) salários mínimos referentes aos danos morais. Pontuou ainda o juiz: "Aplica-se a ambos a súmula 362 do STJ (...); estende-se o raciocínio para os danos temporais, não obstante ter-se reconhecido sua autonomia em relação aos danos morais, pelo fato de se tratar de dano de natureza extrapatrimonial" (Maués-AM, Processo n. 0001622-07.2014.8.04.5800). Por outro lado - antes mesmo da condenação supracitada cumulando o dano moral "em sentido estrito" (da dor psicológica) com o "dano" temporal -, o juiz Rafael Cró homologou acordo nos autos com a mesma referida cumulação. Ao sentenciar, ponderou: "O acordo celebrado preenche todas as formalidades legais. Por oportuno, ressalta-se a posição deste Magistrado no sentido de que além de ser possível a reparação pelos danos moral e material, há nítida autonomia na reparação do dano temporal" (Maués-AM, Processo n. 0000265-21.2016.8.04.5800, j. 11.8.2016). Em sentença de 28.9.2020, a Juíza Maria Eunice Torres do Nascimento - por pedido expresso e cumulado da Defensoria Pública do Amazonas (DPAM) em prol de consumidor de 3.9.2018 -, condenou expressamente o fornecedor à compensação de danos morais (em dez mil Reais) e de danos temporais (em cinco mil Reais). A juíza, ao lado dos elementos geradores do clássico conceito de "dano moral" (sentido estrito), ressaltou "a perda desarrazoada do tempo útil do consumidor configurador de dano temporal" (Manaus-AM, Processo n. 0640771-53.2018.8.04.0001). Desse modo, o Judiciário brasileiro vem alertando sua posição ampliativa da proteção do tempo do consumidor. Mas não parou por aí... O juiz Fernando da Fonseca Gajardoni tem a lavra do (possivelmente) 1º acórdão de turmas recursais a reconhecer a compensação autônoma dos "danos" temporais. Assim pronunciou-se: "Há no caso, verdadeiro dano temporal. (...) A perda do tempo, por si só, não enseja a violação à psiquê humana. Todavia, o seu desperdício em vão, por causa de outrem, deve ser protegido pelo ordenamento jurídico". (1ª Turma Recursal Cível do Colégio Recursal - Franca/SP - Recurso Inominado Cível n. 1000847-46.2020.8.26.0434, j. 30.11.2020). Durante o período exposto, a teoria sobre a proteção do tempo avançou. Marcos Dessaune9, por exemplo, publicou duas edições de seu clássico livro aproximando o "dano por desvio produtivo" do "dano existencial"10, expandindo ainda o debate para o Direito do Trabalho. Por outro lado, a teoria produzida na UERJ, em especial por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho11, alertou sobre a problemática do termo "dano" temporal lançando sua opção técnica por "lesão temporal". Noutro passo, os estudos da UFSC, por Daniel Deggau Bastos12 e Rafael Peteffi da Silva13, apontam o cuidado teórico para não se criar uma nova (e desnecessária) categoria no mesmo nível que os danos patrimoniais e extrapatrimoniais. Na UFRGS, destaque especial à Laís Bergstein14, debatendo o "menosprezo planejado". Entre a UFAM e UFSC, Alexandre Morais da Rosa15 e Maia ressaltam que a "opção" por "lesão temporal" ou "dano temporal" depende de escolhas teóricas por um conceito "amplo" ou "restrito" de "danos morais". O STJ, v.g., possui tendência à especificação dos "danos" extrapatrimoniais em "subcategorias" - vide o verbete n. 387 de sua Súmula citando o "dano estético". Em tal período, o Poder Legislativo também caminhou. No Amazonas, editou-se o pioneiro "Estatuto do Tempo do Consumidor" (Lei Amazonense n. 5.867, de 29.4.2022; autor: dep. estadual João Luiz). A lei amazonense reavivou os debates legislativos e inspirou a Câmara dos Deputados (PL n. 1.954, de 8.7.2022; autor: dep. federal Carlos Veras). No Senado Federal há ainda o PLS n. 2.856, de 24.11.2022 (autor: Sen. Fabiano Contarato). O PLS citado recebeu a atenção de Alexandre Freitas Câmara (TJRJ), inclusive abarcando críticas16 à terminologia "desvio produtivo". Recentemente, em meio à "quentura" do debate, a solução do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) se voltou mais à substância constitucional-protetiva do consumidor (art. 5º, XXXII e art. 170, V) que à forma. Nos dizeres do desembargador Paulo Lima - relator do 1º acórdão de Tribunal catalogado a tutelar autônoma e cumulativamente as compensações por danos morais e temporais -, o importante está em compensar, de algum modo, a lesão temporal sofrida (TJAM, Ap. Cível n. 0679992-38.2021.8.04.0001, j. 9.2.2023). Nessa senda, inobstante a autonomia (e cumulação) compensatória da perda indevida de tempo ainda esteja longe do STJ, a Justiça Ordinária do Brasil não está "fechando os olhos" à vulnerabilidade temporal. Por outro lado, no momento, é mais urgente à responsabilidade civil e ao direito do consumidor a observação de como o Tribunal da Cidadania cumprirá, como intérprete da legislação federal, o mandamento constitucional de proteção do consumidor (inclusive através da dimensão temporal da vida) ao fixar tese no Recurso Especial Repetitivo n. 1.962.275/GO - atenção! __________ 1 São muitas as autoras e os autores atentos à evolução do debate sobre o tempo humano, alguns destaques, dentre outros: (1) BORGES, Gustavo. VOGEL, Joana Just. O dano temporal e sua autonomia na Responsabilidade Civil. Belo Horizonte: D'Plácido, 2021; (2) FARIAS, Cristiano de Farias. BRAGA NETTO, Felipe. ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. 7ª ed. Salvador: Juspodivm, 2022; (3) GAGLIANO, Pablo Stolze. Responsabilidade Civil pela perda do tempo. Revista Seleções Jurídicas, Rio de Janeiro, COAD, p. 29-32, Mai. 2013; (4) BRAGA NETTO, Felipe. Manual de Direito do Consumidor à luz da jurisprudência do STJ. Salvador: Juspodivm, 2021; (5) GUGLINSKI, Vitor Vilela. O Dano temporal e sua reparabilidade: aspectos doutrinários e visão dos tribunais. Revista de Direito do Consumidor, nº 99, São Paulo: RT, Mai.-Jun. 2015; (6) BORGES, Gustavo. MAIA, Maurilio Casas. (Org.) Dano Temporal: o tempo como valor jurídico. 2ª ed. São Paulo: Tirant, 2019; (7) CORRÊA, Bruna Gomide. Dano ao tempo do consumidor: autonomia do dano temporal e o direito fundamental de defesa do consumidor. Londrina(PR): Thoth, 2022; (8) AMORIM, Bruno de Almeida Lewer. Responsabilidade Civil pelo tempo perdido. Belo Horizonte: Plácido, 2018; entre outros. 2 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano moral em caso de descumprimento de obrigação contratual. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 8, n. 29, 2005, p. 134-148 3 DESSAUNE, Marcos. Desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado. São Paulo: Ed. RT, 2011, p 133-135, g.n.. 4 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. V. 2. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 423. 5 Sobre vulnerabilidade temporal: MAIA, Maurilio Casas. Vulnerabilidade Temporal e Estatuto do Tempo do Consumidor (ETC): Comentário à Lei Amazonense 5.867/2022 - um subsistema protetivo em diálogo das fontes. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 142, p. 307-326, Jul.-Ago. 2022. 6 CATALAN, Marcos. A morte da culpa na responsabilidade contratual. 2ª ed. Idaiatuba-SP: Foco, 2019, p. 41. 7 MAIA, Maurilio Casas. Dano Temporal, desvio produtivo e perda do tempo útil e/ou livre do consumidor: Dano cronológico indenizável ou mero dissabor não ressarcível? Revista Seleções Jurídicas, Rio de Janeiro, Mai. 2013p. 26 e 28. 8 MAIA, Maurilio Casas. O dano temporal indenizável e o mero dissabor cronológico no mercado de consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 92, p. 161-176, Mar.-Abr. 2014. 9 DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2ª ed. Vitória (ES): Edição Especial do autor, 2017; ______. Teoria ampliada do desvio produtivo do consumidor, do cidadão-usuário e do empregado. 3ª ed. Vitória (ES): Edição do Autor, 2022. 10 Sobre o dano existencial: SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade Civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. 11 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Rumos contemporâneos do Direito Civil: Estudos em perspectiva civil-constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 223. 12 BASTOS, Daniel Deggau. Responsabilidade civil pela perda do tempo: o dano ressarcível e as categorias jurídicas indenizatórias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. 13 BASTOS, Daniel Deggau. Silva, Rafael Peteffi da. A busca pela autonomia do dano pela perda do tempo e a crítica ao compensation for injury as such. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 9, n. 2, 2020. 14 BERGSTEIN, Laís. O tempo do consumidor e o menosprezo planejado: o tratamento jurídico do tempo perdido e a superação de suas causas. São Paulo: RT, 2019. 15 ROSA, Alexandre Morais da. MAIA, Maurilio Casas. Dano Temporal na Sociedade do Cansaço: uma categoria lesiva autônoma? In: BORGES, Gustavo. MAIA, Maurilio Casas. (Org.) Dano Temporal: o tempo como valor jurídico. 2ª ed. São Paulo: Tirant, 2019, p. 27-46. 16 CÂMARA, Alexandre Freitas. Uma crítica ao PL 2856/2002: o tempo como bem jurídico passível de lesão.
As repercussões dos múltiplos usos das técnicas de reprodução humana assistida no campo da responsabilidade civil são infindáveis, formando um mosaico de situações jurídicas existenciais, patrimoniais e dúplices1 que permitem a configuração de danos indenizáveis, que, de forma didática e sintética, podem ser categorizadas em três eixos centrais: (i) relações entre médicos, clínicas ou centros de reprodução assistida e seus pacientes, de índole existencial, eis que a tutela do corpo e da saúde se colocam em cena, mas com importantes reverberações patrimoniais, visto que geralmente são técnicas que envolvem custos dos mais diversos; (ii) impactos no direito ao planejamento familiar, uma vez que envolve a elegibilidade às técnicas e a formação de entidades familiares com o nascimento da futura prole; e, (iii) as questões relativas à criopreservação de embriões excedentários, incluindo a sua qualificação e destinação. A rigor, tais procedimentos conformam um conjunto de técnicas paliativas que permitem a concretização do projeto parental por aqueles que não podem ter filhos biologicamente vinculados naturalmente, seja em razão da infertilidade ou da elegibilidade individual ou por casais homoafetivos ou transgêneros. A inexplicável e persistente inexistência de lei específica sobre o tema no Brasil aprofunda os dilemas e as inseguranças em relação ao uso das técnicas de reprodução assistida. Com sua contumaz percuciência, Stefano Rodotà pontua que a responsabilidade civil é "como uma campainha de um alarme", uma vez que "se presta muito a seguir as novas tendências determinadas em uma organização social, e que oferece a elas uma primeira forma de tutela, que demandariam uma intervenção do legislador, que ainda não estão maduras e percebidas pela sociedade e pelos parlamentos."2  Decerto que a variada cartilha de problemas que rondam a reprodução humana assistida, ainda que infiram situações delicadas, não permite mais afirmar que não estariam devidamente sazonadas para deslinde pelo legislador. Pelo contrário, o "apagão" legal inunda cada vez mais o Poder Judiciário com demandas reparatórias, que poderiam ser evitadas com uma disciplina jurídica equilibrada, que contemplasse os múltiplos interesses e previamente balizassem os valores envolvidos a partir da moldura imposta pela legalidade constitucional. A responsabilidade civil no cenário atual funciona mais como um "extintor de incêndio" do que "campainha de alerta", de viés nitidamente paliativo, cuja tendência é o agravamento nos próximos anos, uma vez que inexiste mobilização congressual voltada à aprovação de uma lei sobre a matéria e mesmo que tal iniciativa se desenhasse nos próximos anos a composição da vigente legislatura não parece ter a sensibilidade necessária para legislar adequadamente sobre o assunto. As episódicas regras dispersas no direito brasileiro (como, por exemplo, o art. 1.597 do Código Civil, e o art. 5º, da Lei de Biossegurança) e as normas de caráter administrativo (como o Provimento n. 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça, que trata entre outros temas sobre o "registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida") e deontológico, estas editadas pelo Conselho Federal de Medicina, revelam a fragilidade das relações jurídicas e os dramáticos impasses frutos da escassa disciplina jurídica sobre a temática. Desde 1992, resoluções são publicadas pelo órgão fiscalizador com o objetivo de balizar as condutas médicas e resguardar sua atuação, embora, na prática, constituam o principal referencial ético, com repercussões no campo jurídico, sobre a reprodução humana assistida no Brasil, o que descortina a hipertrofia legislativa do CFM em temas bioeticamente sensíveis e carentes de produção legal no âmbito do Poder Legislativo brasileiro3. A acelerada sucessão de atos normativos nos últimos anos demonstra a urgente necessidade de regulamentação do tema e evidencia o déficit democrático na tomada de decisões sobre os mais variados dilemas que permeiam a procriação humana artificial.4 A Resolução n. 2.320, de 1º de setembro de 2022, do Conselho Federal de Medicina, repete diversas disposições já presentes nas resoluções anteriores, mas inova ao suprimir a disciplina de pontos importantes como, por exemplo, o descarte de embriões, antes, denominados abandonados, o que, a rigor, parecia afrontar a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.510. Por outro lado, permanece o limite etário de 50 anos às candidatas à gestação por técnicas de reprodução assistida, a vedação da redução embrionária na hipótese de gestação múltipla, a limitação da transferência de embriões de acordo com a idade das mulheres, bem como a proibição do caráter lucrativo da doação de gametas ou embriões e da cessão temporária de útero. Com isso, velhas questões ressurgem e geram impasses desconfortáveis para os pacientes de tais técnicas, notadamente no campo do diagnóstico genético pré-implantacional, da atual possibilidade de conhecimento dos doadores de gametas ou embriões com parentesco até o 4º (quarto) grau, desde que não incorra em consanguinidade, e, por fim, a destinação dos embriões após divórcio, separação, dissolução da união estável e falecimento. Sob o ângulo da relação entre clínicas, centros, serviços, médicos e pacientes envolvidos na aplicação e uso das técnicas de reprodução assistida, visualizam-se os elementos caracterizadores de uma relação de consumo que atrai, por conseguinte, a incidência da lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Cuida-se, por óbvio, de relação terapêutica na qual, além do diploma consumerista, incidem as normas éticas emitidas pelo Conselho Federal de Medicina, em especial, úteis para fixação dos deveres imputados aos médicos envolvidos, eis que, nos termos do art. 14, § 4º da Lei Protetiva, a responsabilidade dos profissionais liberais é de natureza subjetiva. Desse modo, à luz dos arts. 186 combinado com 927 do Código Civil, é indiscutível que a aferição da culpa é essencial para fins de configuração do dever de indenizar. Por outro lado, cabe destacar que o deslocamento da culpa subjetiva, calcada na análise do clássico tripé negligência, imprudência e imperícia, em viés psíquico, cede espaço, em especial em relação aos profissionais liberais, para a denominada "culpa normativa", extraída do comportamento esperado pelos pacientes a partir dos vetores ditados pela boa e ética prática médica, notadamente em situações nas quais há normas deontológicas previstas. Nesse cenário, em especial, as clínicas, centros ou serviços são responsáveis pelo "controle de doenças infectocontagiosas, pela coleta, pelo manuseio, pela conservação, pela distribuição, pela transferência e pelo descarte de material biológico humano dos pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida". Deve, ainda, manter registro permanente das "gestações e seus desfechos (dos abortamentos, dos nascimentos e das malformações de fetos ou recém-nascidos), provenientes das diferentes técnicas de reprodução assistida aplicadas na unidade em apreço, bem como dos procedimentos laboratoriais na manipulação de gametas e embriões"; "exames laboratoriais a que são submetidos os pacientes, com a finalidade precípua de evitar a transmissão de doenças" (Resolução n. 2.320 do CFM). Em relação, portanto, às clínicas, centros e serviços de reprodução humana assistida, ressalta-se que a responsabilização civil é de ordem objetiva, uma vez constatada a falha na prestação do serviço, independentemente de culpa. Cristaliza-se, ademais, a imputação de deveres específicos por meio da aludida resolução, além dos deveres atinentes à segurança, informação e diligência na prestação de tais serviços especializados. Instigante reflexão, com profunda implicação no campo da responsabilidade civil, relaciona-se com a natureza da obrigação concernente ao procedimento da reprodução assistida - se de meios ou de resultado. A rigor, a complexidade que envolve tais técnicas permite a exigência da máxima diligência dirigida ao emprego adequado das técnicas e do esclarecimento necessário em todos as etapas que envolvem os ciclos artificiais da procriação. Entretanto, a trajetória de mercantilização da reprodução artificial evidencia que o sonho de ter filhos foi capturado pela lógica do lucro,5 o que descortina práticas publicitárias que margeiam a ilicitude e mascara riscos que atingem especialmente mulheres na busca pela concretização do desejo maternal. Esse cenário desperta e incentiva expectativas desarrazoadas, descompromissada com os dados estatísticos, facilmente frustráveis, o que impõe identificar, com base na informação prestada na relação médico-paciente, mas também nos anúncios publicitários, o enevoado limite entre a obrigação de diligência e a de resultado, mas, em especial, pela violação do dever de informação e falhas no consentimento livre e esclarecido.  Cabe sublinhar que o "mercado" da reprodução assistida envolve recursos financeiros significativos, como já acentuado, o que inclusive descortina o problema do acesso da população que não tem condições econômicas e que recorrem ao Poder Público6 ou aos planos privados de saúde. Inclusive, após intensa controvérsia sobre o tema do custeio das despesas pelos planos de saúde, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do tema repetitivo 1067, firmou tese no sentido de, salvo disposição contratual expressa, os planos de saúde não são obrigados a custear tratamento médico de fertilização in vitro. A questão submetida ao julgamento residiu na definição em relação à obrigatoriedade ou não de cobertura, pelos planos de saúde, da técnica de fertilização in vitro.7 Para além da questão atuarial e jurídica, é fato que a decisão reforça a exclusão de um conjunto de pessoas que permanecerão com dificuldades e barreiras para a concretização do projeto parental, bem como não colocou em destaque a fundamentalidade do direito ao planejamento familiar. Se tais questões se revelam extremamente intrincadas, em especial se considerando o forte aumento pela busca das técnicas procriativas artificiais no Brasil,8 não restam dúvidas que a frustração ou desistência do projeto parental despertam como situações potencialmente lesivas a direitos fundamentais dos envolvidos, não raras vezes, configurando como verdadeiras violações ao direito ao planejamento familiar hábeis a serem suas pretensões indenizadas em razão do injusto dano provocado. A colisão de princípios constitucionais deflagra meticulosa atividade ponderativa trilhada pelo intérprete no itinerário que revele a máxima efetividade dos valores maiores em jogo. Convém identificar duas hipóteses para melhor enquadrar a responsabilização civil dos atores em cena. Em primeiro lugar, eclode a questão do destino dos embriões excedentários após o divórcio, separação, dissolução da união estável ou morte de um ou ambos os parceiros9. A relevância do tema impõe que o destino seja acordado entre o casal ainda durante a preparação para a realizações dos ciclos de reprodução assistida e antes da geração dos embriões por meio de manifestação de vontade nos termos de consentimento livre e esclarecido, específicos e revogáveis, por excelência, e, preferencialmente, renovados a cada tentativa, inclusive com a expressa declaração do desejo de doação. Vale salientar que a vigente Resolução n. 2.320/2022 estabelece que o consentimento livre e esclarecido é obrigatório e deve abranger todos os aspectos médicos, biológicos, jurídicos e éticos, de forma detalhada.10 Indispensável, portanto, que tais documentos sejam específicos sobre o destino dos embriões nas hipóteses mencionadas, sob pena de obtenção de um consentimento frágil a partir de uma informação inadequada e entremeada entre tantos outros dados e autorizações, conforme determina a própria resolução em seu item V.3.11 Por consequência, qualquer falha na obtenção segura e pormenorizada do consentimento gera a responsabilidade da clínica ou centro de reprodução assistida, de forma objetiva, uma vez que configurado a violação ao dever de informação, inclusive, com sensíveis repercussões que, a depender do caso, devem ser levados em consideração no momento da quantificação do dano. A revogabilidade do consentimento a qualquer tempo, desde que antes da implantação do embrião, provoca os mais calorosos debates em razão da possibilidade de desistência de um dos parceiros, geralmente causada em razão do divórcio ou da dissolução da união estável. Tal situação é tributária da intrínseca anatomia dos atos de autonomia existencial, uma vez que o consentimento há de ser contemporâneo, bem como suas repercussões impactem na esfera de interesses de terceiros, cuja titularidade sequer se iniciara, eis que pessoa futura, ainda a ser concebida e eventualmente nascida com vida. Em célebre caso, o ex-noivo processou a atriz colombiana Sofia Vergara para obter a custódia dos embriões e implantá-los em gestante substituta. A noticiada batalha judicial foi favorável à atriz, uma vez que a decisão determinou que os embriões apenas poderiam ser implantados mediante sua autorização. No Brasil, já há decisões judiciais favoráveis ao descarte de embriões excedentes no processo de fertilização in vitro na hipótese de divórcio, ainda que um dos parceiros tenha previamente manifestado a vontade de o embrião ser custodiado pelo outro.12 A situação é ainda mais dramática quando um dos parceiros, por motivos médicos, não mais pode ter filhos biologicamente vinculados, a não ser por meio do uso do embrião crioconservado. Discute-se se tal celeuma teria os rumos alterados neste caso, prevalecendo o direito ao planejamento familiar da mulher ou do homem impossibilitado de ter filhos biológicos por outros meios. A revogação do consentimento é um ato legítimo e compatível com a autodeterminação existencial, que exige sua atualidade para sua efetivação. Desse modo, é perfeitamente possível a desistência de um dos pares que haviam antes por meio de ciclos de fertilização in vitro gerado embriões excedentários e manifestado sua vontade para algum fim legalmente permitido. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais já examinou caso no qual entendeu como legítima a posterior recusa do ex-parceiro em autorizar o uso dos embriões após o término do relacionamento, mas que as consequências patrimoniais negativas do ato deveriam ser indenizadas, condenando-o em arcar com metade do custo do tratamento, uma vez que à época consentiu com a realização do procedimento, ainda que verbalmente. No caso em questão, uma mulher, após relacionamento extraconjugal mantido por aproximadamente 02 anos e planos de constituírem família, inclusive com futuros filhos, contratou os serviços de uma clínica de reprodução assistida, tendo suportado integralmente os custos. Após o término da relação, o parceiro revogou seu consentimento, impedindo o prosseguimento do tratamento. Inconformada, a mulher ajuizou ação declaratória com pedido de danos materiais e morais, argumentando, ainda, o fato de ter 46 anos e que a gestação poderia acontecer até completar os 50 anos. Observa-se, portanto, que não houve dano moral ressarcível na hipótese de posterior desistência após o término da relação afetiva, havendo discussão apenas em relação aos eventuais danos patrimoniais devidamente comprovados.13 Nessa linha, não parece razoável sequer invocar a possibilidade de indenização por perda de uma chance, uma vez que a revogação do consentimento antes da implantação no útero da mulher não configura ato ilícito e nem interrompe uma vantagem legitimamente esperada ou evita um prejuízo. A responsabilidade civil pela perda de uma chance descortina novas hipóteses fáticas deflagradoras do dever de indenizar por meio do reconhecimento de lesão injusta a um bem jurídico. Diante disso, não parece razoável que a possibilidade de revogação de uma situação existencial desperte uma frustração de acordo com premissas probabilísticas de uma chance séria e real, uma vez que a desistência não configura - permita-se a insistência - ato ilícito. A taxa de sucesso das técnicas de reprodução assistida, como já afirmado, é reduzida e a criopreservação de embriões, independentemente do destino acordado entre o casal, não gera legítima expectativa de concretização do projeto parental. Vale gizar que a possibilidade do nascimento de um futuro filho por meio de técnicas de reprodução assistida não caracteriza uma chance séria e real e nem é possível comprovar que tal resultado poderia ser esperado, salvo se por falha no dever de informação da equipe médica ou erro de diagnóstico, o que altera o bem jurídico lesado e os fundamentos da responsabilização civil. O pleito de indenização pelo insucesso da reprodução assistida já alcançou o Superior Tribunal de Justiça. No julgamento do AREsp. 178.254, um casal pleiteou a indenização por danos morais e materiais por imprudência e negligência do médico na condução do procedimento de reprodução assistida. Após 4 anos de tentativas sem êxito, o casal procurou outro médico que prescreveu o exame de cariotipagem, considerado de praxe em tais casos, no qual restou constatada uma anomalia em dois cromossomos. A alegação de que a conduta médica negligente impactou na decisão do casal de continuar com as tentativas não logrou sucesso na Corte Superior, que manteve a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, sob o argumento de que não houve omissão e os fundamentos do acórdão bastariam a justificar, encontrando óbice na súmula 7 do STJ.14 A reprodução humana assistida é tema que fascina, subverte com a ilusória imutabilidade da ordem natural e comprova a dessacralização da natureza. Não por outra razão, desafia, no campo da filiação, o estabelecimento da paternidade e da maternidade, passando em revista institutos centrais do direito das famílias e sucessório. Entretanto, repousa nos domínios da responsabilidade civil os fronteiriços dilemas da utilidade e dos limites do remédio indenizatório, que reverbera um nítido caráter paliativo, uma vez que embora possível, nem sempre se mostra como o antídoto adequado diante da frustração para os impasses dos desejos parentais. Mesmo com o progresso biotecnológico nem sempre conseguimos ser o timoneiro de nossas existências e nem sempre o recurso à responsabilidade civil servirá como instrumento satisfatório para compensar a violação ao projeto parental diante da "perda de uma chance" pela desistência de um dos envolvidos diante da revogação do consentimento ou a frustração em razão do descarte indevido ou falha do dever de informar a respeito da viabilidade de concretização do desejo de ter filhos, de alguma forma, biologicamente vinculados. __________ 1 Cf. BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução assistida e a proteção da pessoa humana nas situações jurídicas dúplices. In: ROSELVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana. Responsabilidade civil e medicina. 2. ed., Indaiatuba, SP: Foco, 2021. 2 Entrevista com Prof. Stefano Rodotà, publicada na seção Diálogos com a Doutrina, na Revista Trimestral de Direito Civil, ano 3, vol. 11, jul./set., 2022, p. 287-288. 3 As alterações das resoluções que disciplinam as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida vêm ocorrendo desde 1992, na seguinte ordem: Resolução CFM nºs 1.358/1992; 1.957/2010; 2013/2013; 2.121/2015; 2.168/2017; 2.283/2020, 2.294/2021 e 2.320/2022. 4 Sobre o tema, seja consentido remeter a PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos; ALMEIDA, Vitor. A reprodução humana assistida e a atuação do Conselho Federal de Medicina: as repercussões da nova resolução 2.294/21. In: DALSENTER, Thamis (coord.). Migalhas de Vulnerabilidade, jul., 2021. Disponível aqui. Acesso em 26 set. 2022. 5 Cf. FROENER, Carla; CATALAN, Marcos. A reprodução humana assistida na sociedade de consumo. Indaiatuba, SP: Foco, 2021, passim. 6 O Superior Tribunal de Justiça condenou o Estado do Rio de Janeiro a custerar tratamento de fertilização in vitro de uma mulher com dificuldade uma mulher que tinha dificuldade para engravidar em razão da endometriose e obstrução das trompas, mas não podia pagar pelos procedimentos. V. STJ, REsp. 1.617.970-RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, jul. 20 set. 2016. Em sentido contrário, o STJ ao analisar agravo regimental no REsp. 1.471.559 não reverteu a decisão do TJRJ que concluiu que não é razoável obrigar o Estado ao alto gasto com o tratamento. 7 Recursos Especiais ns. 1.822.420/SP, 1.822.818/SP e 1.851.062/SP. 8 Segundo dados do 13º Relatório do Sistema Nacional de Produção de Embriões - SisEmbrio, criado pela Resolução de Diretoria Colegiada/Anvisa RDC nº 29, de 12 de maio de 2008, em 2019 foram realizados 44.705 ciclos de fertilização in vitro, o que revela um aumento de 3,7% em relação ao ano anterior. 9 Cf. PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos; ALMEIDA, Vitor. Os desafios da reprodução assistida post mortem e o alcance do testamento genético: ampliando as formas de disposição do próprio corpo após a morte. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (Org.). Arquitetura do planejamento sucessório - Tomo III. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 159-174. 10 Resolução n, 2.320/2022, item I.4: "O consentimento livre e esclarecido é obrigatório para todos os pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida. Os aspectos médicos envolvendo a totalidade das circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA devem ser detalhadamente expostos, bem como os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com a  técnica  proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico e ético. O documento de consentimento livre e esclarecido deve ser elaborado em formulário específico e estará completo com a concordância, por escrito, obtida a partir de discussão entre as partes envolvidas nas técnicas de reprodução assistida". 11 "Antes da geração dos embriões, os pacientes devem manifestar sua vontade, por escrito, quanto ao destino dos embriões criopreservados em caso de divórcio, dissolução de união estável ou falecimento de um deles ou de ambos, e se desejam doá-los". 12 De acordo com a decisão da 5ª Turma Cível do TJDFT, que manteve a sentença que julgou procedente o pedido de descarte dos embriões após o divórcio, "a vontade procriacional pode ser alterada-revogada de maneira legítima e válida até a implantação do embrião crioconservado". Disponível aqui. Acesso em 25 jan. 2023. 13 TJMG, Ap. Civ. 1.0000.19.073065-5/001, 16ª Câm. Civ., Rel. Marcos Henrique Caldeira Brant, julg. 22 jan. 2020. 14 AREsp. N. 178-254-SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, julg. 23 mai. 2012.
Introdução  A relação entre médicos e pacientes, consoante às transformações sociais e tecnológicas, modificou-se com o passar do tempo. O paciente, que antes acreditava na dependência entre o comportamento errôneo segundo a moral e a doença, sendo esta uma punição, posteriormente observou a dessacralização da atividade médica, a modificação de paradigma hipocrático-paternalista, o aumento da capacidade humano-interventista, começa, então, a vivenciar a valorização do direito de receber informações e de participar nas decisões sobre sua saúde. Portanto, ao tentar resguardar o direito dos pacientes e garantir uma maior segurança jurídica, a atividade, o entendimento majoritário da doutrina e a jurisprudência brasileira enquadram o ofício médico como uma prática de consumo. Contudo, as modificações dessa relação tão singular fizeram com que o paciente conquistasse os valores da dignidade, autonomia e liberdade frente à proteção da sua saúde em sua integralidade. Diante disso, o elemento essencial da atividade médica e o elemento essencial da atividade consumerista se distinguem.  Breve abordagem histórica da relação médico-paciente                O cuidado à beira do leito e a fidúcia entre médicos e pacientes, segundo Vasconcelos (2020), já se fazia presente na Antiguidade, quando havia uma forte crença na ligação entre os humores da saúde humana e os humores dos deuses, época em que o exercício médico adotava meios peculiares de apresentação de diagnóstico e tratamento para a tentativa da cura. Por meio da observação física do paciente, seguida do assinalar da provável existência de doença que - enquanto mera consequência de atos anteriores - carecia da busca pelos erros cometidos pelo padecente com o intento de identificação da entidade mítica contrariada a que se deveria recorrer, evocando-se, a ela, a restauração da saúde. (VASCONCELOS, 2020) No momento atual da relação, faz-se necessário observar a vulnerabilidade do paciente. O ser vulnerável é um sujeito com susceptibilidade de ser ferido e um ser vulnerado é aquele que antes era susceptível, agora, efetivamente ferido. Segundo Patrão Neves (2006), a vulnerabilidade possui o sentido adjetivo e subjetivo, ambos formalmente na acepção do princípio. A vulnerabilidade no sentido subjetivo refere-se à condição humana, o reconhecimento da sua finitude, sendo uma condição inafastável. Já no sentido adjetivo, caracteriza-se por circunstâncias ou características "temporárias", podendo ser afastável. Como também, existe a vulnerabilidade social, onde um contexto torna grupos sociais desprotegidos, desamparados e/ou desfavorecidos, seja por exclusão social, dificuldade de acesso aos avanços e benefícios advindos do desenvolvimento, por estigmatização e vivências de preconceitos históricos, ou por uma redução de possibilidades de resguardo de direitos. E a vulnerabilidade enquanto princípio ético universal, disciplinado pela Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005, p.7). Desse modo, a relação entre médicos e paciente, assim como às transformações sociais e tecnológicas, modificou-se com o passar do tempo. O paciente que antes acreditava na dependência entre o comportamento errôneo segundo a moral e a doença, sendo esta uma punição, posteriormente observou a dessacralização da atividade médica, a modificação de paradigma hipocrático-paternalista, o aumento da capacidade humano-interventista, começa então, a vivenciar a respeito e reconhecimento da sua vulnerabilidade e valorização do direito de receber informações e de participar nas decisões sobre sua saúde. A atual aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor na atividade médica A relação médico-paciente, como observamos anteriormente, modificou-se como passar do tempo, assim, faz-se necessária identificar, inicialmente, a natureza jurídica desta relação, por existir uma correlação legal e interpretativa que envolve a responsabilidade civil; fazendo-se necessário, o estudo comparativo, dos integrantes dessa atividade obrigacional no universo legislativo eis que há divergência jurisprudencial sobre este vínculo. Atualmente, há uma corrente amplamente majoritária, que entende pela incidência do Código de Defesa do Consumidor à relação paciente-médico, que conforme Nilo (2020, p.83) preceitua, está sob dois argumentos: a) a subsunção dos conceitos de paciente e médico, aos conceitos de consumidor e fornecedor trazidos pelo artigo 3º do diploma consumerista; e b) a vulnerabilidade do paciente, cuja proteção encontraria guarida nesse diploma protetivo, em razão do Princípio da Vulnerabilidade, adotado expressamente pelo artigo 4º, inciso I, do Código (BRASIL, 1990). Em contrapartida, existe uma segunda corrente que entende pela incompatibilidade das regras do CDC a relação paciente-médico. Na aritmética da moral, que o professor Sander (2012) denomina como utilitarismos, existem bens da vida ou bens jurídicos que não podem ser submetidos à mesma escala de valor, dentre eles a vida e a saúde. No entendimento da medicina - e os juristas devem tentar imergir nesta alteridade - a saúde não é uma mercadoria, não podendo jamais ser enquadrada como objeto de consumo e, por via oblíqua, os próprios profissionais que não têm o lucro como seu objeto principal - mola propulsora de qualquer atividade empresarial (COELHO, 2015, p. 54) - não poderiam ser alocados na categoria de "fornecedores" ou "prestadores de serviço" comuns, como prescreve o art. 3º do Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990) No entanto, um olhar mais atento pode revelar que este enquadramento decorre muito mais de um mérito da proposital ampla definição legal oferecida pela normativa consumerista, do que pela correspondência prática efetiva da relação paciente-médico minimamente ética. Ademais, conforme leciona Gonçalves (2015, p. 205), apoiado em decisões do Superior Tribunal de Justiça, "a interpretação das leis não deve ser formal", assim como a "interpretação meramente literal deve ceder passo quando colide com outros métodos de maior robustez e cientificidade". Uma leitura sistemática do Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, revela que o art. 39, XII considera como prática abusiva "deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou deixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério". Entretanto, sob pena de incorrer em falta ético-profissional e, até mesmo por questões práticas, o médico não pode garantir um termo final para um tratamento (apesar de poder estabelecer um prognóstico), assim como não pode, por norma, ficar condicionado ao aperfeiçoamento de um acordo para estabelecer o termo inicial de tratamentos de urgência, emergência ou em algumas situações não eletivas associadas ao iminente perigo de vida (BRASIL, 1990). Ainda com relação às antinomias, a normativa consumerista determina que não se possa estabelecer um contrato em que o dano não seja indenizável, desta forma, aqueles casos de iatrogenia (dano médico justificável), não poderia ser aplicado. Segundo Nilo (2019, p. 84), um médico não pode exercer a promoção da saúde como uma mera prestação de serviço que vai ser trocada pelo dinheiro do seu paciente. Nem o paciente pode conceber que a sua própria saúde seja mero objeto de troca comercial numa relação de consumo. Em uma cadeia produtiva qualquer, todos os insumos, inclusive a própria mão de obra humana, são enxergados como mais uma despesa pelo empresário. Os custos que impactam no lucro interferem na estratégia. Na Medicina, essa lógica difere, já que, sobretudo está a saúde do paciente, pois, ao médico é vedado permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens do seu empregador, ou superior hierárquico, ou do financiador público, ou privado da assistência à saúde interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente, ou da sociedade, conforme está disposto no art. 20 do Código de Ética Médica (CFM, 2019). Em suma, não se pode imaginar que um típico fornecedor, exercendo livremente a sua atividade mercantil, seja impedido de fazer promoção de seus serviços. E mais, como poderia um "prestador de serviços comum" ser obrigado a trabalhar de forma gratuita, por dever profissional, independente de contraprestação acordada ou nomeação judicial? Contudo, os médicos, segundo a deontologia médica, não podem deixar de atender um paciente que procure seus cuidados profissionais em casos de urgência ou emergência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo. Desse modo, conforme Takahashi (2021, p. 282), não teve o legislador, ao elaborar o Código de Defesa do Consumidor, a intenção de reger a atividade médica, visto que, o interesse protegido foi o comercial, ou seja, difere do interesse que permeia a relação entre médico e o paciente, não podendo conceber que a saúde seja objetivada, em que estaríamos contrariamente aos próprios avanços e conquistas bioéticas. Outro ponto importante é a questão da vulnerabilidade do consumidor, conforme já elencado neste artigo. Em que, na incidência da norma consumerista, se fala de uma vulnerabilidade do consumidor perante o fornecedor, para que ele não seja lesado na aquisição de um produto/serviço, bem como, possua segurança jurídica dentro do contrato consumerista. A vulnerabilidade do paciente decorrente da sua patologia. Podendo ser reduzida através de um diálogo informacional. O médico está em posição de superioridade ao paciente, porém, a vulnerabilidade que afeta o paciente na relação com o seu médico é uma vulnerabilidade que decorre da informação acerca da sua patologia. Diante disso, é possível chegar a uma relação horizontal, a partir do momento que o médico cumprir um processo informacional, empoderando seu paciente de conhecimento, falando a linguagem do paciente de forma humanística, fazendo com que o enfermo compreenda de forma efetiva os riscos, objetivos e alternativas do tratamento que está sendo proposto.  Assim, o médico reduz a vulnerabilidade do paciente e ele tem sua autonomia e autodeterminação respeitada, podendo realizar uma escolha esclarecida, que pode culminar em uma aceitação ou em uma recursa de tratamento. Em contrapartida, observando a vulnerabilidade do consumidor, percebe-se que ela foi criada para protegê-lo da massificação da economia, uma vez que, foi elaborado em um momento de processos inflacionário e em uma consequente elevação do custo de vida, o qual desencadeou fortes mobilizações sociais no sentido de proteção do cliente. Logo, visa resguardá-lo dentro de uma relação mercantil, que tem o lucro como objeto principal, sendo contrária à vulnerabilidade do consumidor. Ademais, a teoria do risco, adotada pelo Código de Defesa do Consumidor para o regime de responsabilidade consumerista, não se mostra plausível com a natureza da relação paciente-médico. Na teoria do risco, o fornecedor responde objetivamente em função da prestação de um serviço que adiciona um risco ao consumidor, entretanto o médico não age no intuito de criar um perigo adicional para o paciente, mas atua sempre para redução do agravo na vida/na saúde do paciente que chega ao consultório.  (BRASIL, 1990).  Por fim, é notória diferença a hierarquia dos objetos na perspectiva deontológica e na perspectiva mercantil do CDC. Observa-se que, na relação médica regida pela deontologia, o ápice da pirâmide é a saúde e bem-estar do paciente. Já na perspectiva mercantilista, regida pelo Código de Defesa do Consumidor, o ápice da pirâmide está no lucro e no interesse comercial. Desse modo, pode-se concluir que a segunda corrente entende pela incompatibilidade das regras do CDC a relação paciente-médico, frente à divergência de hierarquia entre os objetos protegidos. Considerações finais  Concluímos que, a incidência da normativa consumerista, nessa relação, implica consequências processuais, como a inversão do ônus da prova, prazo prescricional maior, vedação à denunciação da lide. É admirável a proteção da vulnerabilidade do consumidor, quando estamos diante de um contrato de adesão, como nos casos de plano de saúde, em que temos o lucro como elemento essencial, visto que, nesse caso, o consumidor se encontra em uma situação desigual e para que tenha seus direitos reconhecidos necessita de instrumentos processuais protetivos. Entretanto, como observamos no decorrer desse artigo, a evolução da relação médico-paciente, não nos permite considerá-la desigual, pois o paciente que antes acreditava na dependência entre o comportamento errôneo, segundo a moral e a doença, sendo essa uma punição, posteriormente observou a dessacralização da atividade médica, a modificação de paradigma hipocrático-paternalista, o aumento da capacidade humano-interventista, começa, então, a vivenciar a valorização do direito de receber informações e de participar nas decisões sobre sua saúde. A valorização do direito de receber informações e de participar nas decisões sobre sua saúde demonstra o cumprimento do processo informacional do médico, não possibilitando uma presunção automática de vulnerabilidade do paciente. Uma vez que, pacientes informados/esclarecidos e com acessos aos documentos médicos, não é, parte vulnerável. Logo, é necessária uma análise do caso concreto antes de considerar o paciente hipossuficiente, se ele não teve acesso às mesmas possibilidades probatórias do médico, deve ser invertido o ônus da prova, mas caso, as possibilidades probatórias sejam as mesmas, não se deve redistribuir o ônus da prova, conforme é disciplinado no Código de Processo Civil, no seu artigo 373, §1, que a inversão deve ser justa e equânime. Desse modo, é necessária uma maior reflexão acerca da incidência das regras consumeristas, principalmente, por conta das especificidades que a cercam. Por fim, é fundamental um maior debate, uma mudança de interpretação, pois a relação médico-paciente não deve ser mercantilizada por se tratar de intimidade, de dignidade, em que as partes possuem o único objetivo, o restabelecimento da saúde do paciente.  Referências  BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 7ª edição. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2016. BRASIL, TJ-MG - Al: 10000191253137001 MG, Relator: Mariangela Meyer Data de Julgamento: 22/09/2020, Câmaras Cíveis/ 10ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 30/09/2020. BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF. Disponível aqui. Acesso: 23 de abril de 2021. BRASIL. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso: 23 de abril de 2021. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Penal e Processual Penal. Recurso Especial nº 466.730 - TO (2002/0109327-0). Órgão Julgador: Quarta Turma. Ministro Relator: Hélio Quaglia Barbosa. Data de Julgamento: 11/09/2007. Data de Publicação: DJU 23/09/2008. Disponível aqui. Acesso em: 23 de abril 2021. CFM. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica: Resoluções CFM 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificado pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019. Brasília. Conselho Federal de Medicina. 2019. DANTAS, Eduardo Vasconcelos dos Santos. Direito médico. 3. ed. Rio de Janeiro: GZ, 2014. JASPERS, Karl. La práctica médica em la era tecnológica. Madrid: Gedisa Editorial; 1987. KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil dos Hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor: 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters,2019. MINOSSI JG, SILVA AL. Medicina defensiva: uma prática necessária? Rev Col Bras Cir. [periódico na Internet] 2013; 40(6). Disponível aqui. Acesso em: 23 de abril 2021. MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 7ª ed. São Paulo: RT, 2018. NILO, Alessandro Timbó. A relação paciente-médico para além da perspectiva consumerista: uma proposta para o contrato de tratamento. 2019. NILO, Alessandro Timbó. Direito Médico: o contrato de Tratamento no Direito Brasileiro. Curitiba: Juruá, 2020. 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Não havia, até a chegada da lei 14.478/2022, regulamentação legal no Brasil para a prestação de serviços de ativos virtuais. As prestadoras de serviços de ativos virtuais são chamadas exchanges ou corretoras. A lei chega para tentar proteger os consumidores nesse mercado e implantar boas práticas de governança e, sobretudo, transparência. No passado - e ainda hoje de certa forma - ocorria certa assimetria informacional entre os dados que o consumidor conhece e os dados que a corretora dispõe. Para diminuir essa assimetria é importante que a corretora faça prova robusta de suas reservas, mediante auditoria independente. Fundamental é conhecer os mecanismos de salvaguarda dos ativos dos clientes. Tudo recomenda maior transparência nas relações informacionais. Aliás, essa é uma das diretrizes do direito privado no século XXI. Nesse contexto, a regulamentação era necessária e é bem-vinda. O colapso da FTX em 2022 - a segunda maior exchange do mundo - representou um dos maiores escândalos financeiros dos EUA (mais de 1 milhão de credores perderam dinheiro com a fraude na FTX). Em dezembro de 2022, o fundador da corretora de criptomoedas FTX, Sam Bankman-Fried, foi preso nas Bahamas tendo os EUA pedido sua extradição (ele, aliás, em 2022 foi o segundo maior doador para as campanhas eleitorais nos EUA, tendo doado cerca de 77 milhões de dólares). Foram surgindo, aos poucos, para espanto de muitos, notícias sobre os desvios - maliciosos e ilícitos - que a empresa realizava usando ativos de clientes. Talvez para esses e outros que agem assim caiba a frase perspicaz de San Tiago Dantas, notável civilista nascido no início do século passado, que escreveu que "nada é mais próximo do máximo da ingenuidade do que o máximo da esperteza".    O Marco cripto (lei 14.478/2022) é lei fundamentalmente voltada para regrar as empresas que operam neste mercado, alterando pouco a situação dos usuários (ainda que traga mais segurança para esses, pelo menos em tese). A grande questão em termos de segurança do usuário - chamada segregação patrimonial - ficou de fora do arcabouço legislativo, por conta de lobby de parte do setor, o que é de se lamentar. A custódia de ativos é um tema central nesse mercado (a forma mais segura é armazenar os ativos em cold storage, que são sistemas desconectados da internet). A segregação patrimonial consiste, essencialmente, na imposição de separar o que é patrimônio da corretora e o que é do cliente, não podendo a corretora (exchange) manejar o patrimônio do cliente em outras aplicações, por exemplo. Em outras palavras, havendo segregação, a exchange fica obrigada a manter o dinheiro dos usuários (consumidores) isolado dos ativos corporativos dela, corretora (exchange). Assim, caso a corretora fique insolvente, o consumidor poderá reaver seu patrimônio. Sem segregação patrimonial, as corretoras - um mercado que não tem as limitações legais aplicáveis aos bancos, por exemplo - podem aplicar e emprestar recursos dos consumidores, o que é perigoso, como a experiência recente demonstra. A lei 14.478/2022 (arts. 2º e 4º) não definiu qual órgão ou entidade da administração pública federal ficará responsável pela tarefa regulatória e fiscalizatória. O mais provável é que venha a ser atribuída ao Banco Central a complexa tarefa de regular a questão em termos infralegais. É até possível - embora polêmico - que a segregação patrimonial (antes mencionada) venha a ser imposta por ato normativo infralegal do BACEN. Aliás, o real impacto da legislação dependerá, em boa medida, da normativa infralegal que virá. A CVM também terá função relevante nesse painel regulatório. Aliás, segundo reportagem do Valor Econômico de 22/12/2022, "influenciadores digitais, temas relacionados a práticas ESG e ofertas de security tokens distribuídas pelas principais corretoras cripto entraram no radar da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para o biênio 2023-2024. O regulador incluiu esses tópicos no plano de supervisão baseada em risco para o próximo biênio, em que irá analisar os riscos ligados a tais atividades". O desafio das normas jurídicas nesse setor é imenso - deve o legislador, de um lado, conferir clareza ao mercado e segurança aos usuários. Por outro, deve evitar inibir inovações numa área essencialmente dinâmica e disruptiva. Aliás, em meio ao colapso da FTX - que trouxe imenso pânico, com sério abalo de credibilidade do mercado cripto como um todo - ocorreu algo inédito: os próprios players passaram a pedir que houvesse alguma regulamentação. Isso, antes, não ocorria: pelo menos a imensa maioria dos atores era contrário a qualquer regulamentação. O discurso contrário à regulamentação, no entanto, é ingênuo e pouco realista. A regulamentação é necessária não só para dar segurança aos consumidores como também para permitir a entrada de valores mais amplos nesse novo universo, valores provindos dos chamados institucionais - os grandes bancos, os fundos de investimento internacionais com reservas bilionárias. Regulação, se bem feita, rima com estabilidade e segurança jurídica. Assim, em termos econômicos, é possível que a regulação traga benefícios ao setor, havendo certa semelhança com o que aconteceu com as fintechs - termo que surgiu a partir da união entre as palavras finança e tecnologia, buscando soluções digitais de questões financeiras -, como o Nubank, por exemplo. Elas, as fintechs, ao serem regulamentadas, passaram a concorrer com os grandes bancos na prestação de serviços, ampliando consideravelmente sua carteira de clientes. Espera-se que a nova legislação traga ao mercado cripto brasileiro segurança, clareza regulatória, e maior adoção entre as pessoas. Afinal, trata-se de mercado que ainda é visto com desconfiança por muitos, confundido com fraudes e pirâmides financeiras (que existem, é bom que se diga). Trata-se de mercado que ainda sofre as dores do crescimento, que está aprendendo - através da dor e da perda patrimonial de muitos - a separar projetos sérios e fundamentados de outros sem lastro ou seriedade. É necessário ainda aprimorar os instrumentos de combate à lavagem de dinheiro através das criptomoedas. Olhando para a sociedade é fácil ver que vivemos dias em que os bens físicos perdem muito da primazia que tiveram nos séculos passados. Há uma clara desmaterialização dos bens. Paralelamente, os serviços ganham intensa, e progressiva, relevância econômica. Nossas profissões surgem a cada dia - ligadas, sobretudo, ao mundo digital - e muitas delas são financeiramente mais atrativas do que aquelas convencionais. Talvez não exageraríamos se disséssemos que muitos pais, hoje, não conseguem compreender bem o trabalho dos filhos. Enfim, podemos dizer, em autêntico truísmo, que o mundo mudou, está mudando. Além disso a tecnologia hoje permite organizar informações que antes se encontravam dispersas. O patrimônio, hoje, se virtualiza, perde a materialidade que tinha no passado. Hoje, aliás, não só os produtos e serviços migraram para o universo digital, mas também as fraudes e os crimes. Serviços que hoje são centralizados em instituições financeiras serão cada vez mais descentralizados. O sistema bancário assumirá outro perfil, novos e interessantes modelos de negócio chegam e outros chegarão - baseados em algoritmos, criptografia e blockchains. A figura do intermediário tende a perder importância, com modelos menos centralizados. Há também preocupações maiores em relação à privacidade dos usuários, buscando-se meios e modos de garanti-la com eficácia. Seja como for, algo é certo: vivemos um período histórico em que a velocidade da disrupção tecnológica não tem precedentes.  Há também preocupações maiores em relação à privacidade dos usuários, buscando-se meios e modos de garanti-la com eficácia. Seja como for, algo é certo: vivemos um período histórico em que a velocidade da disrupção tecnológica não tem precedentes1. Aliás, em meados do século passado Pontes de Miranda lembrava que a realidade dos direitos é independente da materialidade do objeto. As mudanças em hábitos sociais também são marcantes. Por exemplo, é interessante observar que novos tipos de sanções estão surgindo. Sanções sociais, amplamente difundidas por meio de mídias sociais. Também os mecanismos de avaliação através de clientes (Uber, por exemplo), sites de reclamação virtual, entre muitas outras. Os danos à imagem que podem ocorrer - seja a empresas, seja a pessoas físicas - são muito reais nesses casos. O curioso é que as novas gerações tendem a não buscar os mecanismos judiciais para resolver disputas (como compras que deram errado), mas costumam preferir caminhos ligados a algoritmos ou outras soluções digitais2. Talvez possamos acrescentar que as sanções sociais sempre existiram. Hoje, porém, atingem velocidade e difusão impressionantes. São muito mais temidas que outras sanções. Aliás, as mudanças que a internet trouxe - e continua trazendo - para a sociedade são tão intensas que impactam até a língua que é falada e escrita3. O século XXI tem redefinido muitas de nossas antigas certezas. Novas tecnologias renovam velhos hábitos. Um dos modos mais eficazes de criar valor no século XXI é unir criatividade à tecnologia. Aliás, podemos dizer que a pandemia fortaleceu - e acelerou - ainda mais a migração para o universo digital.  Luís Roberto Barroso lembra que a "conjugação da tecnologia da informação, da inteligência artificial e da biotecnologia produzirá impacto cada vez maior sobre os comportamentos individuais, os relacionamentos humanos e o mercado de trabalho, desafiando soluções em múltiplas dimensões"4. Em termos jurídicos, os desafios são muitos. Os princípios, valores e funções do direito privado são formados pelo espírito coletivo de determinada época. Eles traduzem fontes que dialogam e definem dinâmicas respostas. Nos dias em que vivemos - ultraconectados e velozes - o direito privado se vê desafiado a abraçar novos papéis e a aceitar novas funções. Ele dialoga com a sociedade complexa em que se insere, daí extraindo multifacetado perfil. Não nega a complexidade social e tecnológica, nem vira as costas para as profundas mudanças em curso - que repercutem profundamente na interpretação jurídica e na aplicação de suas normas. Tradicionalmente o direito costuma regular as relações sociais olhando para trás, para a tradição - mesmo diante das tecnologias. Acontece que isso não pode ser feito diante de tecnologias disruptivas. O direito, para permanecer relevante, precisa se adaptar dinamicamente às novas realidades. Convém relembrar da frase de George Ripert - professor e reitor da Faculdade de Direito de Paris - escrita nos anos 40 do século passado: "Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito". Em termos de criptoativos, muitos debates surgirão nos próximos anos (sobretudo sobre sucessão de ativos virtuais, sobre a penhora deles e, fora do campo do direito privado, a questão da tributação). Fora esses pontos específicos, talvez seja importante reconhecer que os potenciais regulatórios do direito são limitados (em relação às criptos). Se é verdade que o Estado pode regulamentar e até controlar as corretoras (exchanges), que nada mais são que empresas centralizadas (semelhantes a tantas empresas tradicionais do mercado financeiro), o mesmo não se pode dizer, por exemplo, do Bitcoin. Este é, por excelência, descentralizado, e nenhum governo ou qualquer outra entidade terá sucesso ao tentar controlá-lo, ao que nos parece. Aqui, portanto, o direito pode pouco, novas realidades se impõem e ninguém sabe ao certo os próximos passos disruptivos que virão. Cabe ainda uma palavra sobre a IA (Inteligência Artificial) neste contexto. Ninguém se atreve a negar quão fortes são os impactos da IA nas dinâmicas sociais atuais. Trata-se de algo que está profundamente vinculado à nossa (atual) vida diária, ainda que nem sempre percebamos5. A IA possui vasta conectividade e pode tomar decisões de forma muita rápida. É uma ferramenta com extraordinária capacidade de gestão, com potenciais notáveis, únicos (a lista de usos ocuparia muitas páginas, citemos apenas alguns: aplicativos variados de celular, operações bancárias, veículos, aviação, navegação, drones, medicina, educação, serviços de segurança, robôs industriais, operações na bolsa, turbinas eólicas, e até armas autônomas letais). Não é exagero afirmar que a IA, hoje, salva vidas nas múltiplas aplicações possíveis (pensemos na medicina, na aviação, em mecanismos variados de segurança). Aliás, a IA atinge hoje campos que sequer imaginamos (um exemplo trivial: a bola da Copa do Mundo de 2022 possuía sensores que enviavam dados 500 vezes por segundo para 26 antenas ao redor do campo, tudo comandado pela inteligência artificial). As funcionalidades algorítmicas são inestimáveis, assim negativas como positivas, cabendo ao direito reprimir umas e promover outras. O direito relativo à IA (Inteligência Artificial) deverá refletir um pouco o próprio campo tecnológico que pretende regrar. Será em certa medida complexo, dinâmico, terá tons profundamente atuais. Trará uma espécie de balanceamento entre ser estável e ser ágil. Terá que aprender a lidar com padrões técnicos e não com pura retórica. Precisará contar com padrões de avaliação que são constantemente revisados. Enfim, os desafios não são desprezíveis. Aliás, a  própria filosofia do direito terá que se debruçar sobre a normatividade tecnológica6. Requisitos e funções da ordem jurídica podem estar em jogo. Convém ao olhar doutrinário distinguir o essencial do acessório, o passageiro do permanente, tentar discernir as linhas de tendência mais relevantes. É dever do civilista do século XXI estar atento às novas relações sociais. Estamos mudando muito, e muito rápido. É preciso ter aquele senso, dizia Pontes de Miranda, para que o jurista não se apegue, demasiado, às convicções que tem, nem se deixe levar facilmente pelo novo. Voltando ao Marco da Criptos (lei 14.478/2022), este deve ser interpretado, em diálogo das fontes, juntamente com o CDC e a LGPD. Há uma convergência sistêmica entre os microssistemas, que resultam numa proteção privilegiada ao cidadão (seja como consumidor, como titular de dados, como investidor). O desafio, hoje, é concretizar os direitos fundamentais - e a solidariedade social - dentro do direito privado (mas não só nele). Não é desejável que haja burocracia, é preciso regras claras e fiscalização para salvaguardar os ativos dos clientes. A (difícil) fórmula é proteger o consumidor sem cercear o ambiente de inovação que existe nesse setor. Aliás, o art. 13 do Marco das criptomoedas prevê que se aplicam às operações conduzidas no mercado de ativos virtuais, no que couber, as disposições do CDC. Essa previsão didática, pedagógica, é importante - embora o CDC fosse aplicável ainda sem ela. De todo modo, com a dicção expressa da lei 14.478/2022, ficam previamente afastadas quaisquer discussões hesitantes: o CDC é aplicável ao serviços prestados pelas corretoras de criptomoedas7. Além de tudo isso, em outra situações, o fato de ser aplicar o CDC favorece, sem dúvida, uma interpretação integrada e herdeira de toda a principiologia construída ao longo de mais de 30 anos de sua vigência. O CDC é uma lei comprometida com os valores deste século, que dirige os olhos para os interesses da vítima, especialmente em condições de vulnerabilidade. É um microssistema que vem, ao longo das décadas, sendo em grande parte reconstruído e forjado por intensa construção jurisprudencial, superando uma concepção individualista em favor de uma visão aberta, dinâmica e funcional. As soluções que o direito privado precisa oferecer são mais complexas, porque a sociedade é mais complexa. Essa relação vai sempre existir. Sociedades marcadas por maior simplicidade e estabilidade nas relações sociais aceitam melhor soluções estáticas e relativamente simples. O século XXI exige, ao contrário, esquemas dinâmicos e funcionais, que devem refletir a pluralidade e os desafios imensos oriundos da revolução digital. Essas tecnologias cada vez mais farão parte de nossas vidas, e de modo profundo. A questão é compatibilizar isso com princípios éticos e respeito aos direitos fundamentais. O desafio é buscar soluções preventivas e funcionais. As reflexões contextualizadas, os diálogos entre as fontes normativas, a teoria dos direitos fundamentais redefinem as respostas jurídicas do século XXI, com forte tom ético e solidarista. O direito, hoje mais que ontem, é aprendizado constante. O que nos serviu ontem não necessariamente servirá hoje - e precisamos todos, individual e coletivamente, ter a sensibilidade para ouvir as respostas do amanhã. __________ 1 O Enunciado 687 das Jornadas de Direito Civil (CJF) enfatiza: "O patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido, admitindo-se, ainda, sua disposição na forma testamentária ou por codicilo". A justificativa do Enunciado aponta como exemplos dessa categoria: Bitcoins, direitos autorais sobre conteúdos digitais; perfis, publicações e interações em redes sociais e plataformas digitais com potencial valor econômico; arquivos em nuvem, sites, etc. Dizemos nós: qualquer outro criptoativo (altcoins) também entram nessa categoria, além dos NFTs e outras tantas possibilidades (como a propriedade intelectual dos códigos-fontes dos algoritmos). 2 MAGALHÃES, Matheus L. Puppe. Disruptive technologies and the rule of law: autopoiesis on an interconnected society. BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe; SILVA, Michael César; FALEIROS JR, José Luiz de Moura (Coords). Direito Digital e Inteligência Artificial. Diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 536. 3 McCULLOCH, Gretchen. Because Internet: understanding the new rules of language. Nova York: Riverhead Books, 2019. 4 BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia. Rio de Janeiro: História Real, 2020, p. 78. 5 PASQUALE, Frank. The Black Box Society: the secret algorithms that control money and information. Harvard University Press, 2016; SALES, Philip James. Algorithms, Artificial Intelligence and Law. Judicial Review, v. 25, n. 1, 2020; FRISCHMANN, Brett; SELINGER, Evan, Re-engineering Humanity, Cambridge University Press, Cambridge, 2018; BUCKLAND, Michael. Information and society. Cambridge: The Mit Press, 2017; FLASINSKI, Mariusz. Introduction to Artificial Intelligence. Cham: Springer, 2016; SARMAH, Simanta Shekhar. 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Diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, 6 PAGALLO, Ugo; DURANTE, Massimo.The philosophy of law in an information society. In: FLORIDI, Luciano (Ed.). The Routledge handbook of philosophy of information. Londres: Routledge, 2016. 7 Sendo aplicável o CDC, concretamente falando, o usuário das corretoras poderá se valer, por exemplo: a) da possibilidade de solicitar a inversão do ônus da prova (CDC, art. 6º, VIII); b) da possibilidade de propor a ação em seu domicílio, ainda que outro seja o domicílio da corretora (CDC, art. 101, I); c) do prazo prescricional mais amplo (5 anos, segundo o art. 27 do CDC, ao invés de 3, do Código Civil, para a prescrição da pretensão da reparação civil); d) as corretoras não podem ser valer da denunciação da lide (o art. 88 do CDC veda em algumas hipóteses, mas o STJ foi além, afirmando: "Não é possível, em nenhum caso, nos processos que têm como objeto relações de consumo, haver denunciação à lide (STJ, AgRg no AREsp 157.812); e) sem falar que são inválidas as cláusulas contratuais que excluam ou mesmo atenuem o dever de indenizar, em caso de dano (CDC, art. 51, I). Convém lembrar ainda que os deveres de informação, por parte dos fornecedores de produtos e serviços, no âmbito do CDC, são singularmente fortes".
Com a aprovação da lei 14.470/2022, que alterou a lei 12.529/2011 (a Lei de Defesa da Concorrência), objetivou-se o fortalecimento do arcabouço jurídico para propositura de ações de reparação por danos concorrenciais pelas vítimas de condutas praticadas por agentes econômicos que ofendem a livre concorrência. Trata-se da velha conhecida ação indenizatória, respaldada no instituto da responsabilidade civil, estrutural e funcionalmente disciplinado pelo Código Civil, que assegura o exercício da pretensão reparatória em qualquer hipótese de dano indenizável. No âmbito das infrações econômicas, a ação indenizatória ganhou alguns contornos próprios, especialmente a partir da recente alteração da Lei de Defesa da Concorrência, que adotou sistemática incomum na nossa tradição jurídica, diante da possibilidade de dobra no valor da indenização em algumas hipóteses (conforme o §1º adicionado ao artigo 47 da Lei). Tal possibilidade, agora expressamente prevista em nosso ordenamento, constitui exceção ao princípio da reparação integral, este que funciona como piso e teto no valor da indenização, ao determinar a reparação na medida da verificação dos prejuízos, nem menos, nem mais. Para o melhor aproveitamento das potencialidades da ação indenizatória, inclusive para sua efetiva contribuição, juntamente com as respostas administrativa e criminal também existentes para o aprimoramento do ambiente concorrencial brasileiro, é fundamental que os jurisdicionados bem conheçam o ferramental relacionado às ações de reparação (em geral), e também bem compreendam as questões que exsurgem na seara concorrencial. Dentre elas, uma que se destaca é a dificuldade de distribuição das responsabilidades, tanto de quem quanto para quem.  Isto é, uma vez conhecidos os fatos violadores da concorrência e sua autoria, há ainda o desafiador trabalho de calcular os prejuízos decorrentes da infração, a proporção devida a cada vítima, e quem deve responder por cada fração, uma vez que os danos concorrenciais, por sua própria natureza, são espraiados, sempre impactam a coletividade - não à toa esta é expressamente referida no artigo 1º da Lei de Defesa da Concorrência como a titular dos bens jurídicos protegidos pela norma concorrencial. Diante da perspectiva coletiva, é possível compreender mais facilmente que agentes econômicos que atuam em cadeia de distribuição podem ser vítimas de outro(s) agente(s), mas ao mesmo tempo repassar os prejuízos sofridos nas relações de mercado, tornando-se, a um só tempo, vítimas e autores de danos. Em tais situações, o intérprete deverá analisar o caso sob a perspectiva do nexo de causalidade entre os danos sofridos e a conduta do(s) agente(s) econômico(s). Com efeito, em sede de reparação de danos, inclusive os concorrenciais, a apuração do nexo de causalidade importa para dois desafios principais: o primeiro relacionado à dificuldade da prova da existência de vínculo entre a conduta imputável (com ou sem culpa, conforme a responsabilidade seja subjetiva ou objetiva) e o dano sofrido e, notadamente, a suficiência do vínculo para fins de imputação do dever de indenizar.  Lembre-se que em sede de infrações econômicas, se o conhecimento da conduta ilícita não é levado a público, por vezes eventuais partes prejudicadas sequer terão ciência do vínculo entre eventual lesão econômica sofrida e o ato ilícito que lhe deu origem, tampouco terão acesso aos meios de comprovação para fins de obtenção de posterior reparação. Mas, apesar das (enormes) dificuldades com a prova do vínculo entre o dano e o ilícito, ela deve ocorrer, pois a responsabilidade civil tem seus próprios pressupostos, que devem ser observados. O segundo desafio tem relação com a definição da proporção exata da contribuição da conduta lesiva para o resultado danoso, afinal qualquer prejuízo econômico pode ser causado por múltiplas variáveis, havendo prejuízos que podem ser provocados por fatores externos à ação do agente infrator, mas que se somam à sua conduta, dando novos contornos aos danos, mas não necessariamente imputáveis ao agente.  Esta questão fica mais delicada em situações de crises sucessivas como as que temos vivido, como a de origem sanitária iniciada em 2020, a política que começou até antes da sanitária, e, mais recentemente, o impacto da guerra da Ucrânia em todas as economias conectadas em cadeia global. As questões que se relacionam ao tema do adequado sopesamento das causas, e, mais especificamente, ao tema do eventual rompimento do nexo de causalidade, exigem dos intérpretes especial atenção ao que seja causa juridicamente relevante para imputação da responsabilidade civil a qualquer agente infrator. Afinal, o autor do dano deve sempre responder na medida de sua efetiva participação para o resultado, seja nas hipóteses em que tem culpa, ou mesmo quando não tem, quando a responsabilização é objetiva e a culpa não é condição para a imputação de responsabilidade. A vítima de danos concorrenciais pode buscar, em princípio, sua reparação junto a mais de um agente econômico envolvido na produção do resultado danoso - devendo, entretanto, as partes ter cuidado com as inovações legislativas trazidas pela Lei 14.470/2022, que, também de maneira excepcional no ordenamento brasileiro, mudou substancialmente a regra sobre a solidariedade dos agentes (em situações ligadas à assinatura, junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica, de um acordo de leniência ou um termo de compromisso de cessação de prática, conforme o novo §3º incluído no artigo 47 da Lei de Defesa da Concorrência).  Sem prejuízo das questões atinentes à solidariedade, especialmente nas relações em cadeia vertical, o elemento causal deve ser objeto de atenção tanto das vítimas, para que possam obter o ressarcimento pelos danos sofridos, quanto do agente econômico que se insere na cadeia de distribuição, pois este pode ser, como mencionado, vítima e também causador de danos a terceiros, ao repassar adiante os prejuízos sofridos. É possível cogitar da responsabilização solidária em alguns casos, sendo o agente aí entendido como coautor que pode ser acionado pela(s) vítima(s).  Mas em outros casos, ele será mais uma vítima, que se soma a outras na coletividade, considerando os possíveis impactos nos seus próprios resultados econômicos.  Daí a importância dos estudos sobre a causalidade, sobre a qual várias teorias já foram desenvolvidas pela doutrina, em esforço contínuo de dar solução aos problemas de distribuição de responsabilidades e quantificação do valor indenizatório.  Nessa temática, de acordo com a previsão legal contida no artigo 403 do Código Civil, confirma-se a adoção, pelo legislador brasileiro, da teoria da causa direta e imediata, a qual, temperada pela teoria da causalidade necessária, permite apontar mais de um responsável em situações jurídicas complexas, tais como as relacionadas aos danos concorrenciais. Em um artigo desenvolvido para a Revista IBERC, editada pelo Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil, busquei apresentá-las e apontar, seguindo a contribuição de diversos autores que me precederam, como as teorias podem funcionar para a atribuição, ou, no sentido inverso, para o afastamento do dever de indenizar por um agente econômico inserido em relações de cadeia com outros agentes infratores. O nexo causal acaba sendo elemento chave para dar tratamento adequado a muitas situações, dentre as quais, aquelas conhecidas como de pass-on defense, ou defesa por efeito repasse no curso das cadeias verticais de produção, que vem à tona quando um agente econômico que sofre prejuízos em suas operações em decorrência de conduta lesiva de outro agente eventualmente os repassa adiante ao longo da cadeia produtiva, integral ou parcialmente.   No julgamento de condutas de qualquer agente no mercado, inclusive eventuais repasses de prejuízos, a racionalidade econômica impõe reconhecer oscilações que podem ocorrer nos preços e nas práticas comerciais por múltiplas razões, e, justamente há que se identificar razões e práticas legítimas, considerando que nosso sistema jurídico é orientado pela livre iniciativa e operante pela lógica de mercado.  Mas isto não equivale a reconhecer que quaisquer oscilações possam ser justificáveis, fazendo com que, em alguns casos, o repasse seja antijurídico e interpretado de diferentes maneiras, conforme a perspectiva do sujeito cujos interesses se busca tutelar. Assim, em sede de danos concorrenciais, além do cuidado com as inovações trazidas pela Lei 14.470/2022, é preciso, antes, atentar à normativa geral trazida pela Código Civil referente ao instituto da responsabilidade civil.  Ao estabelecer um sistema jurídico que aponta o nexo causal como elemento que opera de um lado como pressuposto constituinte e quantificador, mas de outro também regulador do dever de reparação, em verdadeira função dúplice, o legislador na prática em algumas situações facilitou a reparação, em outras impôs limite à pretensão reparatória.  Fica o convite para a abordagem mais aprofundada sobre o tema na primeira edição de 2023 da Revista IBERC.  Boa leitura!
Recorrentemente o Poder Judiciário é acionado em demandas judiciais propostas por adquirentes ou condomínios que, alegando a ocorrência de vícios construtivos nas edificações (unidades autônomas ou áreas comuns), requerem a condenação das empresas para a realização dos reparos devidos (indenização pecuniária ou obrigação de fazer). Não se negue que aquele que adquire uma unidade autônoma em construção tem o direito de receber o imóvel em regulares condições de uso e habitabilidade e com a observância do escorreito atendimento às boas práticas da engenharia civil. Todavia, reconheça-se que boa parte das edificações (sobretudo aquelas de grande porte) está sujeita à necessidade de alguns ajustes quando da sua conclusão, dada as complexidades que envolvem a construção civil. Nesse sentido, é comum às construtoras manterem um departamento de assistência técnica cujo objetivo é atender aos diversos chamados que podem surgir imediatamente após a entrega da edificação. Isso porque ao receber a sua unidade autônoma, o adquirente pode notar, por exemplo, mau acabamento da pintura, incorreto funcionamento de instalações elétricas ou hidráulicas ou a necessidade de ajustes diversos. O condomínio, representado pelo síndico, também costuma solicitar reparos, principalmente após a ocupação do edifício, oportunidade em que a edificação é efetivamente testada em sua plenitude. Mas além dos defeitos construtivos aparentes e simples, mesmo após determinado período de ocupação, os adquirentes e síndicos podem se deparar com vícios ocultos, ou seja, aqueles que somente serão efetivamente constatados meses ou até mesmo anos após a entrega da edificação. Cite-se, nessa esteira, infiltrações em paredes e subsolos, problemas estruturais, inadequação de materiais empregados na obra, erros do projetos, dentre outras questões. A partir do aparecimento dos vícios e havendo relação de consumo, os consumidores possuem pretensões distintas. Sendo a hipótese de vícios aparentes e de fácil constatação, o Código de Defesa do Consumidor confere ao consumidor o prazo de 90 dias para reclamá-los (art. 26, inciso II). O mesmo CDC também estabelece que na hipótese de os vícios serem ocultos, o prazo para a reclamação inicia-se a partir do momento em que o defeito ficar evidenciado (art. 26, § 3º). O Código Civil, a seu turno, também dispõe a respeito dos prazos conferidos ao adquirente na hipótese do aparecimento de vícios construtivos. Como medida mais drástica, o Código permite que o adquirente possa redibir o contrato (ou obter o abatimento no preço) no prazo decadencial de um ano, contado da entrega efetiva (art. 445). Contudo, caso o vício, por sua natureza, só possa ser conhecido mais tarde, o prazo conta-se do momento em que dele tiver ciência o adquirente (art. 445, § 1º). Discute-se, todavia, qual a extensão do vício que permitiria a redibição do contrato, com a devolução integral dos valores pagos pelo adquirente. Embora a parte lesada pelo inadimplemento possa escolher entre a indenização (e, consequentemente, manutenção do contrato) ou resolução do vínculo (art. 475, do Código Civil), diversos autores entendem que se o descumprimento contratual não for relevante o suficiente, não cabe a opção do mecanismo resolutório, tal como defendem Araken de Assis1 e Ruy Rosado de Aguiar Júnior2. Na doutrina mais contemporânea, Giovanni Ettore Nanni3 destaca que "[...] para fins de resolubilidade [...] o inadimplemento perpetrado no caso concreto deve ser não apenas incurável como também necessita de qualificação adicional: ser severo"4. O debate doutrinário leva em consideração a ausência de regra específica no Código Civil brasileiro (contrariamente à legislação italiana5 e portuguesa6) de dispositivo que inadmita a resolução quando o inadimplemento contratual tiver escassa importância (scarsa importanza). Por outro lado, o artigo 395, parágrafo único, determina que "se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos". Justamente por isso é que se defende que se o vício construtivo for sanável e não impactar na habitabilidade da edificação, o pleito resolutório deve ser afastado, para que o contrato seja mantido, sem prejuízo da possibilidade de propositura de ação indenizatória para o reparo. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já entendeu que a inadequação do sistema de ar-condicionado em empreendimento hoteleiro não admite a redibição do contrato, considerando que perícia prévia reputou o vício como sanável e quantificou o valor de reparo7. Mas se não é o caso de redibição do contrato, seja porque os requisitos para tanto não estão previstos, seja porque a opção do lesado é o reparo e a manutenção do contrato, qual o prazo prescricional para a propositura da ação indenizatória? Não obstante certa hesitação da jurisprudência (em especial dos tribunais estaduais), o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento que, a partir da constatação do vício, o prazo prescricional para a propositura da ação indenizatória (e não redibição contratual, reitere-se) é decenal8. Esse entendimento foi reforçado a partir do EREsp nº 1.280.825/RJ que considerou que nas controvérsias relacionadas à responsabilidade contratual, aplica-se a regra geral do art. 205 do Código Civil9. Ocorre que o prazo decenal, estabelecido genericamente para a pretensão referente à indenização dos vícios construtivos, talvez deva ser repensado pela doutrina, assim como o "prazo quinquenal de garantia" normalmente referido pela jurisprudência10 e localizado no artigo 618, do Código Civil. Tal como já asseverado por Nelson Rosenvald e Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho11, o fato de o contrato de compra e venda poder ser considerado de longa duração não significa que o fornecedor está obrigado a uma garantia ad eternum12.  Há que se pensar que toda edificação é formada por diversos sistemas e materiais construtivos distintos. A fundação de uma edificação deve ser projetada para que resista por muitos e muitos anos e, portanto, o prazo de vida útil deve ser extenso. Contudo, a pintura da fachada normalmente tem prazo de vida útil de até três anos e, após tal interregno, há perda da garantia do sistema e a edificação deve ser repintada. Como se nota, na construção civil há sistemas que são feitos para perdurarem no tempo por longo prazo, enquanto a pintura, o rejunte dos pisos, as lâmpadas, dentre outros elementos ou componentes possuem prazo de vida útil inferiores. Não é possível, portanto, atribuir genericamente o prazo de cinco anos como a "garantia" da construção, seja porque esse prazo é insuficiente para garantir a estabilidade da fundação que, por exemplo, possui prazo de vida útil superior a trinta anos, seja porque o prazo é extenso demais para garantir componentes e sistemas mais simples. A prática no contencioso envolvendo ações de vícios construtivos demonstra que dentre as diversas demandas propostas, algumas ações pleiteiam o reparo de sistemas cujo prazo de vida útil já foi exaurido, há anos. Normalmente acompanhada de um parecer técnico de engenharia, são apontados diversos vícios construtivos, mas não se demonstra que o sistema reclamado ainda possui prazo de vida útil vigente ou que a manutenção predial foi realizada, tal como determina o Manual de Uso e Operação da edificação. Não há separação entre o que efetivamente é vício construtivo (de responsabilidade do construtor) e o que pode ser considerado vício decorrente (i) da ausência de manutenção; (ii) da irregularidade de uso ou (iii) do transcurso do prazo de vida útil do sistema, o que poderia afastar a responsabilidade do construtor. Nesse sentido, é necessário maior debate acadêmico sobre questões técnicas envolvendo a construção civil. A manutenção predial, por exemplo, é indispensável a qualquer construção e engloba um plexo de cuidados técnicos aptos a preservar o bom desempenho de uma edificação13. Sem que a manutenção predial seja realizada, não há como se atingir a vida útil e o desempenho dos sistemas, elementos e componentes construtivos. Assim, "a manutenção não pode ser feita de modo improvisado e casual. Ela deve ser entendida como um serviço técnico, cuja responsabilidade exige capacitação apurada"14. Inexiste no Brasil legislação federal que obrigue expressamente os condomínios a realizarem as manutenções prediais devidas, bem como registrarem em livro próprio as ações adotadas. A regra genérica que obriga o síndico a diligenciar a conservação e guarda das partes comuns estabelecida no art. 1.348, inciso V, do Código Civil, em nosso ver, é insuficiente. É verdade que a Lei Estadual (RJ) nº 6400/2013 foi um passo importante, porque determina a realização periódica de autovistoria nos condomínios, bem como a emissão de laudo técnico cujos apontamentos obrigam o Condomínio. Lamenta-se, contudo, que a legislação tenha aplicação regional, apenas no estado do Rio de Janeiro. Diante da ausência de legislação federal que regule questões envolvendo manutenção predial, prazos de vida útil e garantias da construção civil, algumas normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) foram editadas nos últimos anos. Tais normas possuem papel relevante no âmbito da engenharia civil, mas também poderiam ter relevância no direito. A NBR 5674 de 2012 dispõe dos requisitos para a gestão da manutenção em edificações de forma a preservar as características originais da edificação e prevenir a perda de desempenho decorrente da degradação dos sistemas, elementos ou componentes da construção civil. Referida norma, portanto, estabelece um conjuntos de ações e registros que devem ser realizados pelos condomínios para o bom atendimento da manutenção predial. Já a ABNT 15575-1 de 2013, conhecida como "norma de desempenho", estabelece os prazos de vida útil dos sistemas construtivos e os prazos mínimo de desempenho, bem como destaca a importância da manutenção predial para que a construção possa atingir referidos prazos. Mais recentemente, a NBR 17170 de 2022 estabeleceu prazos recomendados de garantia que, segundo a norma, deve ser [...] o tempo em que o fornecedor é responsável perante o consumidor por corrigir falhas nos produtos por ele fornecidos e originados no processo de sua concepção e produção, desde que seja realizada a manutenção devida, os produtos sejam corretamente utilizados e observadas as demais condições prevista no manual de uso, operação e manutenção deste produto. Como exposto acima, é verdade que as referidas normas técnicas, embora relevantes no âmbito da construção civil, nem sempre são levadas em consideração pelo intérprete do direito brasileiro. Apesar do artigo 39, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor determinar que é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços colocar no mercado qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas da ABNT, não obriga o consumidor a atender às disposições das referidas normas. O objetivo do presente artigo é apontar que nas ações indenizatórias envolvendo vícios construtivos, não deve o intérprete se valer de soluções genéricas e simples. O Código Civil, em nosso ver, não é suficiente para estabelecer as regras necessárias envolvendo os prazos para tais ações e é papel da doutrina o melhor desenvolvimento da matéria. Como defende José Carlos Puoli15, os prazos estabelecidos no Código Civil deveriam ser alterados. Enquanto a matéria não é suficientemente tratada pelo legislador, é necessário que o juiz, nas ações envolvendo vícios construtivos, atente-se para saber se (i) o sistema sobre o qual se reclama está (ou não) dentro do prazo de vida útil; (ii) se o usuário (adquirente ou condomínio) observou as determinações relacionadas à manutenção predial. Na hipótese de ambas as respostas serem afirmativas, a responsabilidade civil do construtor estará mais evidenciada, facilitando a prova pericial normalmente produzida nesse tipo de demanda. Esperamos que a doutrina reconheça que no âmbito do direito imobiliário, o conhecimento técnico de engenheiros, arquitetos e órgãos técnicos, tal como é o caso da Associação Brasileira de Normas Técnicas, podem contribuir muito na resolução de conflitos e na melhor elaboração das leis. __________ 1 Segundo o Autor o "[...] inadimplemento relativo impede, irrevogavelmente, o acesso ao mecanismo resolutório [...]. Por conseguinte, o inadimplemento deverá se revestir de características muito relevantes para autorizar a resolução. A existência se manifesta nas várias modalidades de descumprimento. Sua reiteração constante, nessas áreas, indica talvez o interesse na preservação do vínculo, em detrimento do seu desfazimento, e aponta o inadimplemento absoluto, porque, elimina em definitivo a possibilidade de o obrigado prestar, como única modalidade admissível em sede resolutiva". (ASSIS, Araken de. Resolução do contrato por inadimplemento. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 114). 2 "[...] para a dissolução do vínculo e quebra do contrato, certamente há de se exigir um incumprimento mais forte e qualificado, que esteja, assim, a atingir o contrato na sua substância, e não em simples acidente ou qualidade. Para o cumprimento fora do tempo, referido no art. 394 como causador de perdas e danos, o art. 395, parágrafo único adjetiva-o como inútil, para só então autorizar a resolução. Analogicamente, se há de considerar as demais espécies de incumprimento: para resolver, a falta deve atingir substancialmente a relação, afetando a 'utilidade' da prestação. Como a utilidade deriva da capacidade da coisa ou do ato em satisfazer o interesse do credor, temos que a prestação inútil - que pode ser enjeitada e levar à resolução do contrato e mais perdas e danos - é a feita com atraso ou imperfeições tais que ofendam substancialmente a obrigação, provocando o desaparecimento do interesse do credor, por inutilidade. Ao reverso, quando, não obstante a mora, o cumprimento ainda é possível e capaz de satisfazer basicamente o interesse do credor ou quando, apesar da imperfeição do cumprimento, parcial ou com defeitos, foram atendidos os elementos objetivos e subjetivos a serem atingidos pelo cumprimento, diz-se que o adimplemento foi substancial e atendeu às regras dos arts. 394, 395 e 389 do Código Civil, afastando-se a resolução." (AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: AIDE, 2004. p. 132). 3 NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 580. 4 No mesmo sentido vide BIAZI, João Pedro de Oliveira de. Resolução do contrato de compra e venda na incorporação imobiliária: breves considerações sobre o art. 43-A da Lei 4.591/1964. Migalhas. Publicado em 09/02/2023. Disponível aqui. Acesso em: 16 fev. 2023. 5 Art. 1.455. Il contratto non si può risolvere se l'inadempimento di una delle parti ha scarsa importanza, avuto riguardo all'interesse dell'altra (1522 e seguenti, 1564 e seguente, 1668, 1901). Tradução livre: "O contrato não pode ser resolvido se o inadimplemento de uma das partes for de pouca importância, resguardado o interesse da parte contrária". 6 Artigo 802.º (Impossibilidade parcial) 1. Se a prestação se tornar parcialmente impossível, o credor tem a faculdade de resolver o negócio ou de exigir o cumprimento do que for possível, reduzindo neste caso a sua contraprestação, se for devida; em qualquer dos casos o credor mantém o direito à indemnização. 2. O credor não pode, todavia, resolver o negócio, se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância. Artigo 808.º (Perda do interesse do credor ou recusa do cumprimento) 1. Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação. 2. A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente. 7 "[...] MÉRITO. Insurgência que prospera. Existência de vício no sistema de ar-condicionado que, no caso em tela, não autoriza a resolução contratual. Vício que é passível de reparação e não há comprovação de que obsta o exercício da atividade hoteleira, finalidade da contratação. Autores que, ao contrário, afirmaram que não questionam vícios na prestação de serviços hoteleiros e o resultado financeiro da exploração hoteleira [...] Sucumbência dos autores. RECURSOS PROVIDOS." (TJSP, Apelação Cível 1024047-23.2019.8.26.0562, 3ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Viviani Nicolau). 8 DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS E COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. DEFEITOS APARENTES DA OBRA. PRETENSÃO DE REEXECUÇÃO DO CONTRATO E DE REDIBIÇÃO. PRAZO DECADENCIAL. APLICABILIDADE. PRETENSÃO INDENIZATÓRIA. SUJEIÇÃO À PRESCRIÇÃO. PRAZO DECENAL. ART. 205 DO CÓDIGO CIVIL. 1. Ação de obrigação de fazer cumulada com reparação de danos materiais e compensação de danos morais. 2. Ação ajuizada em 19/07/2011. Recurso especial concluso ao gabinete em 08/01/2018. Julgamento: CPC/2015. 3. O propósito recursal é o afastamento da prejudicial de decadência e prescrição em relação ao pedido de obrigação de fazer e de indenização decorrentes dos vícios de qualidade e quantidade no imóvel adquirido pelo consumidor. 4. É de 90 (noventa) dias o prazo para o consumidor reclamar por vícios aparentes ou de fácil constatação no imóvel por si adquirido, contado a partir da efetiva entrega do bem (art. 26, II e § 1º, do CDC). 5. No referido prazo decadencial, pode o consumidor exigir qualquer das alternativas previstas no art. 20 do CDC, a saber: a reexecução dos serviços, a restituição imediata da quantia paga ou o abatimento proporcional do preço. Cuida-se de verdadeiro direito potestativo do consumidor, cuja tutela se dá mediante as denominadas ações constitutivas, positivas ou negativas. 6. Quando, porém, a pretensão do consumidor é de natureza indenizatória (isto é, de ser ressarcido pelo prejuízo decorrente dos vícios do imóvel) não há incidência de prazo decadencial. A ação, tipicamente condenatória, sujeita-se a prazo de prescrição. 7. À falta de prazo específico no CDC que regule a pretensão de indenização por inadimplemento contratual, deve incidir o prazo geral decenal previsto no art. 205 do CC/02, o qual corresponde ao prazo vintenário de que trata a Súmula 194/STJ, aprovada ainda na vigência do Código Civil de 1916 ("Prescreve em vinte anos a ação para obter, do construtor, indenização por defeitos na obra"). 8. Recurso especial conhecido e parcialmente provido. (STJ, REsp n. 1.721.694/SP, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 03/09/2019, DJe de 05/09/2019.) 9 STJ, EREsp n. 1.280.825/RJ, Segunda Seção, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 27/06/2018, DJe de 02/08/2018. Ainda a respeito dos prazos envolvidos na construção civil, vide GUERRA, Alexandre. Incorporações imobiliárias. In: GUERRA, Alexandre; PENACCHIO, Marcelo (coord.). Direito Imobiliário Brasileiro: Novas Fronteiras na Legalidade Constitucional. São Paulo: Quartier Latin, 2.011. p. 649 e seguintes; GHEZZI, Leandro Leal. A incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 649 e seguintes; BDINE JÚNIOR, Hamid Charaf. A responsabilidade civil do incorporador imobiliário. In: GUERRA, Alexandre; PENACCHIO, Marcelo (coord.). Direito Imobiliário Brasileiro: Novas Fronteiras na Legalidade Constitucional. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 681 e seguintes. 10 TJSP, Apelação Cível 1004648-61.2020.8.26.0048, 1ª Câmara de Direito Privado, rel. Augusto Rezende; j. 27/10/2022; Data de Registro: 27/10/2022. 11 ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsability. Conjur. Publicado em: 02/03/2022. Acesso em 17 fev. 2023. 12 No mesmo sentido, José Carlos Puoli aduz: "É dizer, não pode ser eternizado, nem tampouco desarrazoadamente grande, o período dentro do qual um construtor/incorporador irá responder pela construção realizada. É que, se assim acontece, eleva-se a insegurança, estimulam-se conflitos e, ainda, é acarretado relevante aumento no custo da produção, com efeitos deletérios não apenas para construtores/incorporadores, mas também para contratantes e consumidores de 'produtos imobiliários', que acabam tendo que conviver com preços mais elevados no mercado". (PUOLI, José Carlos Baptista. Capítulo 15. Vícios construtivos. In: BORGES, Marcus Vinícius Motter (coord.). Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 670. 13 GOMIDE, Tito Lívio Ferreira. A manutenção das obras de construção civil deve ser obrigatória e periódica? Blog do Instituto de Engenharia. Disponível aqui. Acesso em: 25 jan. 2020. Como bem destacado por Carlos Pinto Del Mar "Nenhum edifício é imune à degradação provocada pelo ambiente, pelo uso ou pelas características intrínsecas de seus materiais constituintes. Mesmo que tenha sido concebido, projetado e construído corretamente, devem ser esperados problemas causados pelo desgaste normal dos produtos de construção utilizados. A negligência nas atividades de manutenção provoca degradação do edifício construído, gerando consequentemente uma também crescente insatisfação de seus usuários". (DEL MAR, Carlos Pinto. Direito na construção civil. São Paulo: Pini/Leud, 2015. p. 184). 14 NBR 5.674: Manutenção de Edificações - Procedimento, p. 02. 15 Segundo o autor: "[...] parece necessário que a verificação destes prazos seja alterada, para que não mais prevaleça a generalização que tem sido verificada na prática, cumprindo que se contemple leitura conjunta de fatores jurídicos e técnicos, de forma que se possa ter mais uma justa solução destes caso, seja para prestigiar o dono de uma edificação que precisa obter o justo 'reparo' das decorrências de um vício construtivo, seja para não onerar desarrazoadamente o construtor/incorporador que deve se ver isento da obrigação de responder pelo bem, desde que ultrapassado um prazo razoável de tempo, o qual varia em vista do tipo de construção que se estiver tratando". (PUOLI, José Carlos Baptista. Capítulo 15. Vícios construtivos. In: BORGES, Marcus Vinícius Motter (coord.). Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 670.
O Direito de Danos no Brasil tem como um de seus princípios basilares a regra insculpida pelo artigo 935 do Código Civil, que fixa a independência entre as esferas cível e criminal. Pela máxima contida no dispositivo, certas condutas poderão corresponder à sanção estatal pela aplicação da pena aos fatos considerados típicos e também poderão culminar na responsabilização civil em favor da vítima. A independência permite que as jurisdições caminhem por vias próprias. É porque a responsabilidade jurídica, como gênero, admite fontes diversas, como bem observa Maria Helena Diniz "Na responsabilidade penal o lesante deverá suportar a respectiva repressão, pois o Direito Penal vê, sobretudo, o criminoso; na esfera civil, ficará a obrigação de recompor a posição do lesado, indenizando-lhe os danos causados, daí tender apenas à reparação, por vir principalmente em socorro da vítima e de seu interesse, restaurando seu direito violado"1. Por esta mesma razão é que a parte ofendida, embora não seja obrigada, pode aguardar que todo o trâmite processual penal seja concluído para que somente depois proponha a respectiva ação de reparação de danos. Garantem-lhe tal faculdade a suspensão da prescrição prevista pelo artigo 200 do Código Civil, mas também a previsão do artigo 63 do Código de Processo Penal, o qual prevê a chamada ação civil ex delicto, isto é, execução da reparação de danos mediante apresentação de título consistente em sentença penal condenatória transitada em julgado2. Todavia, em celebração ao princípio da segurança jurídica e também da prevenção às decisões conflitantes, há exceção à independência prevista no corpo do artigo 935 do Código Civil. Isso porque, uma vez decididos no juízo criminal, a autoria e o fato não mais poderiam ser objeto de discussão no juízo cível. Em outros termos, transitada em julgado uma sentença penal condenatória ou absolutória, não mais se faria necessário o reexame de fato e autoria no juízo cível, que restaria adstrito, quando o caso, à discussão do quantum indenizatório. A ressalva é compatível com a previsão do artigo 315 Código de Processo Civil3, que autoriza a suspensão do processo até que se resolva no juízo criminal a verificação da existência de fato delituoso, complemento ao que já constava do parágrafo único do artigo 64 do Código de Processo Penal. Feita a ressalva é preciso reconhecer, portanto, que havendo sentença penal condenatória, pouco se pode fazer em matéria de instrução probatória no juízo cível que extrapole o debate da extensão dos danos. Hipótese distinta quando ocorre sentença absolutória. Afastada a participação do autor da suposta ofensa ou, ainda, ocorrendo excludentes de ilicitude como o reconhecimento de estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de um direito, não há como persistir em demanda reparatória no juízo cível4. De outro lado, nos casos de arquivamento de inquérito ou se a absolvição decorre, por exemplo, do reconhecimento da atipicidade do fato ou da extinção da pretensão punitiva, mantém-se a independência das jurisdições e será possível ao ofendido a propositura da ação civil para a rediscussão de fato e autoria. Confirmam essas conclusões a questão levada, por intermédio do Recurso Especial nº 1.802.170/SP5, ao julgamento da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu a independência das jurisdições, quando a sentença absolutória decorre da ocorrência da prescrição da pretensão punitiva. No caso, a Relatora Nancy Andrighi destaca que "a decretação da prescrição da pretensão punitiva do Estado impede, tão-somente, a formação do título executivo judicial na esfera penal, indispensável ao exercício da pretensão executória pelo ofendido, mas não fulmina o interesse processual no exercício da pretensão indenizatória a ser deduzida no juízo cível pelo mesmo fato". Em suma, a prescrição na seara criminal não exaure o debate quanto à autoria ou existência do evento, mantendo hígida a regra da independência. Ocorre, porém, que o avanço da técnica processual tem implementado métodos alternativos de resolução dos litígios, incluindo a esfera criminal, como se extrai do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), regulamentado no Brasil por ocasião do chamado Pacote Anticrime (Lei nº 13.964 de 2019) e incluído no Código de Processo Penal pela disciplina do artigo 28-A6. Em apertada síntese, o ANPP é oferecido pelo Ministério Público como substitutivo da denúncia quando, não cabendo arquivamento do feito, tratar-se de infração penal sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, desde que o acusado aceite confessar circunstancialmente (a autoria do fato supostamente delituoso), fixando-se uma medida de reparação e reprimenda alternativa, tal qual elencado nos incisos do dispositivo legal regulamentador. É possível dizer que mecanismos de tal estirpe possuem natureza de negócios jurídicos pré-processuais, isso porque ao aceitar essa posição idealmente mais benéfica instituída com a formalização do acordo, o acusado suprime o "processo, a produção da prova e o contraditório em troca de um sancionamento mais célere e consentido pela defesa"7. A questão que se coloca é, havendo ANPP e eventualmente esbarrando a conduta tanto na esfera criminal quanto na cível, é possível a utilização do acordo homologado para afastar a independência das jurisdições, partindo da premissa de que a autoria e existência do fato encontram-se resolvidas na justiça penal? Em outros termos, qual seria o alcance de um ANPP homologado para além da esfera criminal e como isso impacta na prática o debate da responsabilidade civil? A questão merece algum aprofundamento. Inicialmente, como mencionado, a interpretação sistemática do artigo 935 do Código Civil pressupõe, como exceção à regra da independência das jurisdições, a existência de sentença penal transitada em julgado. O diálogo entre tal dispositivo e o artigo 63 do Código de Processo Penal ao prever a ação civil ex delicto não revela interpretação diversa. Ou seja, apenas e tão somente a sentença penal condenatória transitada em julgado legitima, neste ponto, o exercício de uma pretensão executória. Ocorre que o ANPP tem características próprias de negócio jurídico prévio ao processo, ou seja, oriunda da renúncia ao enfrentamento da persecução e suas repercussões; dele não decorre sentença penal condenatória transitada em julgado. Significa também dizer que não há um mínimo de instrução probatória, uma vez que tudo resolve-se antes mesmo de eventual denúncia8, da qual o parquet abre mão pela realização do acordo. Em oportunidades pregressas, o Superior Tribunal de Justiça já pôde manifestar-se quanto à imprescindibilidade da sentença penal condenatória como pressuposto para afastar a regra geral de independência entre as jurisdições nas ações civis ex delicto. A lição fica evidenciada na análise do Recurso Especial nº 678.143/MG, sob a Relatoria do Ministro Raul Araújo9: [...]No entanto, a executoriedade da sentença penal condenatória (CPP, art. 63) ou seu aproveitamento em ação civil ex delicto proposta no juízo cível (CPP, art. 64; CPC, arts. 110 e 265, IV) depende da definitividade da condenação, ou seja, da formação da coisa julgada criminal, até mesmo pela máxima constitucional de que ninguém poderá ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória (CF, art. 5º, LVII)10. Em aprofundamento daquilo que fundamentou o Ministro Raul Araújo, talvez seja possível concluir que a repercussão da aplicação do ANPP em esferas diversas da criminal toca pontos de relevância constitucional, aos quais é possível agregar o devido processo legal, a presunção de inocência e o direito à não autoincriminação, como se verá. Não se pode perder de vista que a confissão circunstancial é elemento objetivo para a realização do acordo, pelo que consta do artigo 28-A do Código de Processo Penal. Questiona-se, portanto, se essa confissão teria o condão de cravar a existência do fato e sua autoria, tornando-os incontroversos para o juízo cível e permitindo a excepcional quebra da independência entre as jurisdições. Primeiro, é preciso refletir sobre a natureza desta confissão tomada a termo pelo Ministério Público como elemento essencial à realização do acordo. O legislador, não por acaso, escolhe a expressão confissão formal e "circunstancial". Palavras não são em vão e neste caso a circunstancialidade decorre daquilo que se extrai do dicionário, ou seja, episódico, incidental, casual11. Não se confunde com o termo "circunstanciado", que, ao contrário, remete àquilo que é enunciado de forma pormenorizada, em todas as circunstâncias12. A confissão obtida no ANPP, pela letra fria da lei, tem finalidade exclusiva e limitada ao acordo, com objetivo evidente da obtenção do benefício identificado pela supressão do processo e suas eventuais consequências. Ainda são residuais os debates no ambiente cível, muito embora o Supremo Tribunal Federal já tenha analisado questões similares em oportunidades recentes, notadamente vinculadas ao uso de acordos de leniência na esfera administrativa ou no aproveitamento de outras ações penais. Analisando a questão, Sílvio Luis Ferreira da Rocha e Oswaldo Henrique Duek Marques13 destacam o fato de que a obtenção extraprocessual da confissão não deveria, em princípio, prejudicar o confitente em outras esferas "pois o valor probatório da confissão seria nulo, pelo fato de não ter sido obtido em procedimento judicial". Nos autos de Agravo Regimental Pet. nº 7065-DF14, sob a relatoria do Ministro Edson Fachin, há interessante posicionamento de divergência adotado pelo Ministro Gilmar Mendes quanto ao compartilhamento de termos obtidos em colaboração premiada, que vai ao encontro da posição de Rocha e Duek Marques acima colacionada. Em sua análise, o Ministro destaca que o compartilhamento de declarações obtidas consensualmente em acordos de leniência para outras searas não incluídas expressamente no acordo podem condenar institutos de acordo ao seu esvaziamento, colocando em risco a sua própria efetividade, assim como possibilitaria a vulneração de direitos daquele que consentisse colaborar. Neste sentido, é preciso reconhecer que a confissão obtida circunstancialmente nos casos de ANPP decorre de uma declaração episódica, cujo objetivo revela-se na busca do sujeito em ver-se à salvo da persecução penal o que, após o balizamento das consequências, lhe pareceu mais favorável do que suportar o peso do processo. Entender de forma diversa, em casos similares, seria como atribuir ao colaborador o inconstitucional ônus da produção de provas contra si mesmo. Ademais, como bem destaca o Ministro Gilmar Mendes na mencionada divergência, "a utilização de tais elementos probatórios, produzidos pelo próprio colaborador, em seu prejuízo, de modo distinto do firmado com a acusação e homologado pelo Judiciário é prática abusiva, que viola o direito à não autoincriminação". Extrai-se daí que, uma vez entabulado o ANPP, em decorrência da própria publicidade do ato homologatório15, ficaria difícil frear que interessados dele tomassem conhecimento, todavia, nestes casos a utilização do termo serviria não para afastar a independência das jurisdições, mas para dar corpo e força às alegações da vítima na eventual instrução processual civil. Não é demais destacar que nem mesmo como prova emprestada o ANPP poderia ser usado com o fito de afastar o debate da autoria e da existência do fato, visto que o Código de Processo Civil exige a observância do contraditório16, atributo consolidado como requisito primordial pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial de nº 617.428-SP17; condição esta ausente nos negócios jurídicos pré-processuais, como o acordo de não persecução penal. Dito isso, longe de encerrar o debate, parece que, para fins de excepcionar a regra da independência das jurisdições cível e criminal contida no artigo 935 do Código Civil, o acordo de não persecução penal não preenche requisitos adequados, seja como título apto à ação civil ex delicto, seja para tornar incontroverso o fato e autoria, pois lhe faltam característica de sentença transitada em julgado: devido processo legal e ampla dilação probatória, sustentando-se sobre uma confissão, que nos próprios termos da lei, é específica para o ato e não pormenorizada e ampl. Conclui-se, destarte, havendo ANPP mantém-se necessária a instrução probatória quanto ao fato e autoria na esfera cível, sob pena de colocar em posição de vulnerabilidade não apenas a finalidade do instituto de transação em si, mas também direitos e garantias fundamentais a serem observados no estado democrático de direito e pela desejável interpretação civil-constitucional dos institutos jurídicos. __________ 1 Curso de Direito Civil Brasileiro. vol. 7. 26.ed. São Paulo: Saraiva. 2012, p. 40. 2 Em sentido convergente é a posição de Cláudio Luiz Bueno de Godoy in Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. PELUSO, Cezar (Coord.). São Paulo: Manole, 2007, p. 779. 3 Disponível em aqui. 4 CPP. Art. 65. Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Disponível aqui. 5 REsp n. 1.802.170/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/2/2020, DJe de 26/2/2020. 6 Disponível aqui. 7 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. O acordo de não persecução penal na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em 2020 e 2021. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 191/2022, p. 93/120. Jul-Ago de 2022. 8 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Acordo de não persecução penal e a expansão da justiça criminal: natureza, retroatividade e consequências ao descumprimento. Boletim Revista do Tribunais Online, vol. 27/2022. Maio de 2022: "Por outro lado, mecanismos como a transação penal e o acordo de não persecução penal possuem natureza distinta, ao passo que não são direcionados à produção de provas, mas exatamente à exclusão completa do processo e de sua finalidade cognitiva epistêmica. Enquanto a colaboração premiada busca, de certo modo, produzir provas para se verificar os fatos imputados, a transação penal e o ANPP excluem por completo o processo e qualquer pretensão cognitiva." 9 REsp n. 678.143/MG, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 22/5/2012, DJe de 30/4/2013. 10 No mesmo sentido: REsp n. 1.829.682/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 2/6/2020, DJe de 9/6/2020. 11 Confira aqui. 12 Confira aqui. 13 Acordo de não persecução penal e suas repercussões no âmbito administrativo. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n. 95, Abr-Mai de 2020, p. 15. Os autores bem explicam sua posição: "Milita a favor dessa ideia o princípio do devido processo legal, pois evidente que a confissão teve por propósito beneficiar-se do acordo de não persecução penal. Ademais, a confissão obtida seria de natureza extraprocessual, prestada perante a Polícia ou Ministério Público, e, portanto, destituída de valor probatório, conforme se verifica do próprio sistema, ao admitir como provas emprestadas apenas aquelas submetidas ao crivo do devido processo legal judicial". 14 Pet 7065 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 30/10/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-037  DIVULG 19-02-2020  PUBLIC 20-02-2020. 15 Admite-se que no bojo do acordo sejam inseridas cláusulas de sigilo ou limitação de acesso. 16 CPC. Art. 372. O juiz poderá admitir a utilização de prova produzida em outro processo, atribuindo-lhe o valor que considerar adequado, observado o contraditório. 17 EREsp n. 617.428/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 4/6/2014, DJe de 17/6/2014.
A morte é vida intensa demais para quem fica1, e ela, em um certo dia de 2003, cindiu sem cerimônia um casal de catarinenses. Ainda em luto, Sebastião foi ao INSS solicitar sua pensão. Ao final de um tempo, entretanto, seu pleito foi rejeitado, porque no registro do óbito, e por consequência na certidão a partir dele tirada, o sobrenome de sua falecida esposa estava lamentavelmente errado. Se a morte, especialmente para quem ama, já é uma ofensa, um dano irreversível, um erro alheio é sempre capaz de piorar as coisas. Na época, chegando ao cartório, o viúvo soube que somente o juiz poderia reparar o erro. E assim se fez. O sobrenome foi retificado, porém não antes de três longos anos. Nesse período, Sebastião ficou sem a pensão. Indignado, mais uma vez bateu à porta do Poder Judiciário, desta vez querendo, em face do Estado de Santa Catarina, a indenização do seu prejuízo. O Estado resistiu, isentando-se de culpa instância após instância, até que a história chegou ao Supremo Tribunal Federal, por meio do RE 842.846. O Ministro Luiz Fux, percebendo que a pendenga extrapolava, até com folga, a perda individual do viúvo, afetou o julgamento ao sistema da repercussão geral, criando-se o Tema 777. O que fosse ali decidido repercutiria nos quatro cantos do país, servindo de regra, dali em diante, para os demais casos semelhantes, e vinculando as futuras decisões judiciais. Historicamente, em situações assim, os donos de cartório, mesmo quando não tinham culpa, muitas vezes viravam réus, e precisavam enfrentar duas correntes adversas que lhe atribuíam responsabilidade objetiva perante o usuário: (i) Uma primeira corrente defendia existir relação de consumo, fazendo incidir o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor2, o que não soa correto, já que os emolumentos têm natureza tributária (taxa), e os usuários são contribuintes, e não consumidores; e (ii) A segunda corrente baseia-se no art. 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal3: sendo prestadores de serviço público, os titulares de cartórios, em nome da coerência do sistema, devem respondem objetivamente. Esta não parece ser a melhor interpretação, ante a literalidade do texto constitucional, que utiliza a expressão "pessoas jurídicas". Ora, os delegatários são pessoas naturais, que prestaram concurso público (art. 236, parágrafo 3º, da Constituição Federal4), e pagam seus impostos nesta condição. Tal dispositivo, assim, aplica-se ao Estado (pessoa jurídica de direito público), mas não aos cartórios. Claramente este era um cenário de insegurança jurídica e ineficácia judicial que demandava uma solução. Então, em 2019, tantos anos depois, o julgamento do RE 842.846 finalmente aconteceu. Como a unanimidade em assuntos polêmicos é algo mesmo raro, os Ministros se dividiram em três correntes: - para os Ministros Luiz Fux, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli, o Estado, mesmo sem culpa, responde objetiva e diretamente pelo erro do delegatário, desde que demonstrados o dano e o nexo de causalidade; - os Ministros Edson Fachin e Luis Roberto Barroso, a seu turno, concordaram que a responsabilidade do Estado é objetiva, porém subsidiária; ou seja, primeiro responde o titular do cartório que errou, também independentemente de culpa, e somente então, se este não tiver bens penhoráveis, o Estado vira o alvo, devendo cobrir o prejuízo; - finalmente, o Ministro Marco Aurélio Mello isentou o Estado de qualquer responsabilidade, cabendo esta unicamente ao delegatário. Com oito votos, a primeira corrente foi a vencedora, sendo criada a tese segundo a qual "O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa". Em outras palavras, desde então, de forma vinculante, no país inteiro, a pessoa que sofreu o dano não precisa acionar o cartório; ela pode simplesmente demandar o Estado, sem precisar provar sua culpa, tendo apenas que provar a ocorrência do erro, o dano sofrido e o nexo causal entre o erro e o prejuízo. Ainda conforme a tese, o Estado, se condenado, tem não só o direito, mas o dever, sob pena de improbidade administrativa, de exigir o reembolso do titular do cartório, sempre que, e somente se, constatar a existência de dolo ou culpa. Tal suprema decisão, na prática, tirou os cartórios da linha de fogo a que sempre foram arrastados. Como visto, quando algo se passava, mesmo sem culpa da serventia, a tendência era sua inclusão no polo passivo da ação judicial. Só uma minoria, como Sebastião, se aventurava a mirar o Estado, enfrentando os riscos do dissenso jurisprudencial. A nova tese, contudo, chacoalhou a antiga equação de risco-benefício. Desde então, o que se vê nos tribunais estaduais foram decisões em sintonia, como ilustram os acórdãos a seguir, proferidos em sete Estados diferentes: Mato Grosso: "Ação de retificação de registro civil e indenização por dano moral. Transtornos causados pela serventia e pelo tabelião ... Tema 777 do STF... A serventia e os tabeliães não têm responsabilidade civil pelos atos praticados no exercício de sua função pública que causem prejuízo a terceiros, e são delegatários do Estado. Portanto, este é que deve figurar no polo passivo da demanda em que se discute o dano moral, e tem assegurado o direito de ajuizar ação regressiva".5 Mato Grosso do Sul: "O Supremo Tribunal Federal, ao... reconhecer a responsabilidade civil objetiva do Estado para reparar danos causados a terceiros pelo tabeliães, assegurando o dever de regresso contra o responsável, consignou que a responsabilidade do Estado, é direta, primária e solidária, premissa que permitia concluir que, além da já reconhecida possibilidade de questionamento da responsabilidade subjetiva do delegatório, a responsabilidade objetiva do Estado incidiria na modalidade solidária", sendo "indiscutível a legitimidade do Estado para figurar no polo passivo da lide".6 Paraná: "Extravio de registro de nascimento em cartório. Falha na prestação do serviço. Responsabilidade objetiva do Estado... Tema 777 do STF".7 Santa Catarina: "Entendimento em divergência com a tese jurídica firmada no Tema 777 do STF, tão somente quanto à fundamentação, para fazer constar o dever de regresso contra o responsável, em homenagem ao tema 777 do STF".8 Rio Grande do Sul: "Recorre o estado sustentando que foi incluído no polo passivo da demanda unicamente em vista da responsabilização solidária por ato do Tabelionato de notas. Destaca que os oficiais de registro não estão submetidos ao regime jurídico disciplinado pelo artigo 37 da Constituição Federal. ... delineando que os oficiais de registro são responsáveis pelos danos que eles e seus prepostos causarem a terceiros. Entretanto, no julgamento do tema 777 o STF (RE 842.846) fixou a tese de que o Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa".9 São Paulo: (i) "Nulidade de escritura pública de venda e compra de imóvel... Reconhecimento judicial de falsidade da procuração apresentada, porque o outorgante já era falecido ao tempo da lavratura desse ato notarial... O Estado responde pelos danos decorrentes de ato dos delegatários de serviço público, quando praticados no exercício da função. Tema 777 do STF"10; (ii) "Conforme restou decidido no julgamento do RE nº 842.846/SC, a responsabilidade do Estado é objetiva, sendo cabível o direito de regresso nos casos em que a conduta tiver sido praticada com culpa ou dolo. Reforma da r. sentença para afastar a condenação solidária do tabelião (e seus herdeiros), de modo a se restringir a condenação apenas em face da Fazenda do Estado de São Paulo"11; e (iii) "O tabelião interino não deve responder solidariamente, apenas resguardado à Fazenda possibilidade de regresso em face do tabelião interino à época dos fatos. ... recurso da Fazenda Pública não provido, com observação quanto à aplicação do Tema 777, do E. STF ao feito, caracterizando a responsabilidade objetiva da Fazenda e, portanto, excluindo a responsabilidade solidária do corréu".12 Rio de Janeiro: "Responsabilidade objetiva e solidária do ente público em relação aos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções delegadas, causem danos a terceiros. Incidência do Tema 777 do STF".13 Como se vê, a antiga discussão acima está ficando no passado. Desde 2019 não há mais dúvida: em regra é melhor acionar o Estado, sem ter que provar culpa ou dolo, do que correr o risco numa ação contra o tabelião ou registrador, cuja responsabilidade é subjetiva. O sistema ficou mais coerente e justo, afinal. Pois não custa sublinhar, um imenso conjunto de delegatários em todo o país é formado por verdadeiros heróis da resiliência, que lutam diariamente para não terminarem o mês no vermelho, sem estrutura, com um caminhão crescente de regras e procedimentos a seguir, e com a espada da Corregedoria Geral de Justiça do Estado sobre as suas cabeças. Acionar tais pessoas significa correr um grande risco, mesmo em caso de sentença favorável, de não encontrar patrimônio penhorável. Assim, sendo mais difícil ganhar; e mesmo ganhando, sendo arriscado não levar, porque acionar o delegatário? Daí que a tendência, com a estabilização da jurisprudência, é que as ações futuras passem a ser dirigidas contra o Estado, e este, nas ações de regresso, quando ajuizadas, terá o ônus da prova contra o delegatário14, pois a Tese 777 é explícita em restringir a responsabilidade destes "aos casos de dolo ou culpa". O tempo revelará se a alvissareira decisão do STF será, em definitivo, motivo de alívio para notários e registradores. __________ *Este artigo é o desenvolvimento de outro publicado originalmente no Jornal do Notário nº 190, mar/abr 2019, pp. 26-27. Agradeço penhoradamente a Beatriz Delgado pelo trabalho de pesquisa jurisprudencial. 1 MADEIRA, Carla. Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record, p. 152 2 Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. 3 Art. 37 (...) §6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. 4 Art. 236 (...) §3º. O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. 5 TJ-MT 10031402620178110041 MT, Relator: RUBENS DE OLIVEIRA SANTOS FILHO, Data de Julgamento: 25/08/2021, Quarta Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 26/08/2021 6 TJ-MS - AC: 08004608920208120018 MS 0800460-89.2020.8.12.0018, Relator: Des. Geraldo de Almeida Santiago, Data de Julgamento: 16/09/2021, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: 21/09/2021 7 TJ-PR - RI: 00008090820198160194 Curitiba 0000809-08.2019.8.16.0194 (Acórdão), Relator: Aldemar Sternadt, Data de Julgamento: 31/08/2021, 4ª Turma Recursal, Data de Publicação: 31/08/2021 8 TJ-SC - APL: 00030413520108240016 Tribunal de Justiça de Santa Catarina 0003041-35.2010.8.24.0016, Relator: Carlos Adilson Silva, Data de Julgamento: 09/11/2021, Segunda Câmara de Direito Público 9 TJ-RS - AC: 70083822106 RS, Relator: Gelson Rolim Stocker, Data de Julgamento: 04/11/2020, Décima Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: 20/11/2020 10 TJ-SP - AC: 10198261720148260224 SP 1019826-17.2014.8.26.0224, Relator: J. M. Ribeiro de Paula, Data de Julgamento: 22/01/2021, 12ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 22/01/2021 11 TJ-SP - AC: 10008600220188260568 SP 1000860-02.2018.8.26.0568, Relator: Camargo Pereira, Data de Julgamento: 04/05/2021, 3ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 04/05/2021 12 TJ-SP - AC: 10057242020178260568 SP 1005724-20.2017.8.26.0568, Relator: Leonel Costa, Data de Julgamento: 27/04/2020, 8ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 27/04/2020 13 TJ-RJ - APL: 00067341720168190061, Relator: Des(a). MARGARET DE OLIVAES VALLE DOS SANTOS, Data de Julgamento: 12/06/2019, DÉCIMA OITAVA CÂMARA CÍVEL 14  Enunciado 77 da I Jornada de Direito Notarial e Registral, realizada em mai/22: "As atividades notariais e de registros públicos são desempenhadas em caráter privado, sendo pessoal a responsabilidade civil e criminal do tabelião e ou do registrador por seus atos e omissões, de modo que as serventias extrajudiciais não possuem capacidade processual e são desprovidas de personalidade jurídica".
Em 27 de dezembro de 2022, foi publicada a lei 14.510, que "altera a lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, para autorizar e disciplinar a prática da telessaúde em todo o território nacional". De imediato, é necessário fazer três observações. A primeira nota dirige-se à parte inicial da ementa dada à norma: "autorizar a prática de telessaúde". A prática da telessaúde, inclusive dentro do Sistema Único de Saúde, já era adotada em diversas ações e serviços de saúde antes mesmo da crise sanitária decorrente da Covid-19 ou de regulamentações do Conselho Federal de Medicina. A histo'ria da telemedicina na~o e' ta~o recente quanto se imagina. O seu surgimento, assim como os questionamentos e'ticos e juri'dicos que de sua pra'tica decorrem, remontam ha' mais de um se'culo, confundindo-se com o pro'prio desenvolvimento das tecnologias de comunicac¸a~o e informa'tica. No Brasil, embora tenha chegado tardiamente em razão do pouco acesso às novas tecnologias e do alto custo de implantação e utilização, o uso da telemática em saúde teve início na década de 80, quando começaram a ser desenvolvidos diversos projetos de informática em saúde. Desde então, ações e serviços de telessaúde e de telemedicina são desenvolvidos nos sistemas públicos e privados de saúde e, durante a pandemia de Covid-19, confirmaram a sua importância e aniquilaram muitas resistências (em especial da classe médica). A segunda observação dirige-se ao fato de estar a revogar lei já revogada: a lei 13.989/201, que autorizou o uso da telemedicina, em caráter emergencial, durante a crise causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2). Há duas imprecisões importantes: a primeira é de que não havia lei anterior proibindo o uso da telemedicina no Brasil, portanto, não era necessária uma lei para autorizar o seu uso durante a pandemia, bastava que os conselhos profissionais a ela não se opusessem. O próprio Conselho Federal de Medicina autorizava o uso da telemedicina para a realização de alguns atos médicos desde 2002 (Resolução n. 1.643, CFM, revogada pela Resolução n. 2.314/22, CFM2-3). Segundo, ao que tudo indica, a vigência da lei 13.989/20 não estava propriamente condicionada à existência "da crise" provocada pelo SARS-Cov-2, mas sim, parece estar subordinada à vigência do estado de emergência sanitária de importância internacional no Brasil, o que seria tecnicamente mais apropriado. Em 30 de janeiro de 2020 a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o estado de emergência4 sanitária, definido como "uma situação extraordinária que constitui um risco de saúde pública para outros Estados através da disseminação internacional de doenças e por potencialmente exigir uma resposta internacional coordenada" (Regulamento Sanitário Internacional5 - RSI)6. A categorização da Covid-19 como uma emergência de saúde pública internacional possui não apenas um caráter sanitário, mas também político, servindo de alerta à comunidade internacional sobre as necessárias medidas de cooperação para contenção da doença. No Brasil, o fundamento constitucional do estado de emergência está previsto nos arts. 136 e 141, CF e, na área sanitária, também no Decreto Legislativo n. 395/20097, que ratificou o RSI, e no decreto 7.616/118, que dispõe sobre a declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional - ESPIN e determina que a declaração será efetuada pelo Poder Executivo federal, por meio de ato do Ministro de Estado da Saúde, o que de fato foi feito com a publicação da Portaria n. 1889, GM/MS, de 4 de fevereiro de 2020, seguida da lei 13.979/2010, que dispôs sobre as medidas de enfrentamento da Covid-1911. Apenas em 22 de abril de 2022, por meio da Portaria n. 91312, GM/MS, declarou-se o encerramento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (2019-nCoV). Com vacatio legis de 30 dias, oficialmente o ESPIN foi encerrado em 23 de maio de 2022 e, por consequência, todas as normas cuja vigência era excepcional (vinculadas ao ESPIN) automaticamente foram revogadas. Portanto, desnecessário que a lei 14.510/22 fizesse qualquer menção à revogação da lei 13.979/20, porque ela já não estava mais vigente. A terceira observação refere-se aos conceitos de telessaúde e de telemedicina constantes na lei 14.510/22. A Telemática13 em Saúde caracteriza-se pela utilização de meios de telecomunicação e informática para a prática de atividades sanitárias que tenham por objetivo promover, prevenir ou recuperar a saúde individual e coletiva. Didaticamente, pode-se dividir as finalidades da Telemática em Saúde em dois grandes grupos (espécies) que reúnem uma multiplicidade de técnicas de práticas de saúde a distância que variam conforme o seu objetivo. Adotando-se essa orientação tem-se, então, dois grandes grupos: a Telessaúde que engloba todas as ações voltadas para a prevenção de doenças (Medicina Preventiva), educação e coleta de dados e, portanto, direcionadas a uma coletividade, a políticas de saúde pública e disseminação do conhecimento. E o segundo grupo que é denominado Telemedicina e abarca toda a prática médica à distância voltada para o tratamento e diagnóstico de pacientes individualizados (identificados ou identificáveis)14. Assim, são exemplos de Telessaúde: a teledidática; a telefonia social; as comunidades; bibliotecas virtuais e videoconferências; os aplicativos didáticos para smartphones. Já os procedimentos mais utilizados pelas redes de Telemedicina (resolução 2.314/22, CFM) são: teleconsulta ou consulta em conexão direta; teleatendimento; teletriagem; telepatologia; telerradiologia (resolução 2.107/2014, CFM); telemonitoramento ou televigilância (homecare); telediagnóstico; telecirurgia (resolução 2.311/2022, CFM); teleterapia; sistemas de apoio à decisão; aplicativos de atendimento para smartphones15. As revogadas resoluções 1.643/2002 e 2.227/18, CFM, incorreram na mesma confusão conceitual tratando sob o mesmo guarda-chuva telemedicina diferentes tipos de procedimentos, inclusive os tipicamente de telessaúde. A confusão persiste com a resolução 2.314, CFM, publicada em 5 de maio de 2022, que em seus considerandos afirma que "o termo telessaúde é amplo e abrange outros profissionais da saúde, enquanto telemedicina é específico para a medicina e se refere a atos e procedimentos realizados ou sob responsabilidade de médicos"; e define no art. 1° a "a telemedicina como o exercício da medicina mediado por Tecnologias Digitais, de Informação e de Comunicação (TDICs), para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões, gestão e promoção de saúde". Perpetuando o mesmo equívoco e ainda confundindo as modalidades com as técnicas e os instrumentos utilizados, a lei 14.510, define no art. 1°, a telessaúde como sendo aquela que "abrange a prestação remota de serviços relacionados a todas as profissões da área de saúde regulamentadas pelos órgãos do Poder Executivo federal", sendo "modalidade de prestação de serviços a distância, por meio da utilização das tecnologias da informação e da comunicação, que envolve, entre ouros, a transmissão segura de dados e de informações de saúde, por meio de textos, de sons, de imagens ou outras formas adequadas" (art. 26-B, da lei 8.080/90). Para alguns pode parecer bobagem discutir esses conceitos. Mas, na prática, as implicações são diferentes16. É preciso compreender corretamente o que se está a regular e autorizar a fim de se garantir mínima segurança jurídica. Feitas essas breves considerações iniciais, é necessário também analisar o que é o princípio da responsabilidade digital, apontado como princípio da telessaúde no art. 2°, da lei 14.510/22 (art. 26-A, IX, da lei 8.080/90). Verificadas as justificativas do projeto de lei17, parece o princípio conduzir mais a um ideal bioético de adoção responsável da telemática em saúde, do que propriamente tem um conteúdo jurídico, embora desse não possa se desvencilhar. Segundo Cláudio Choen18 "a ética é algo de dentro do indivíduo (dever com); a moral é imposta pela sociedade (tenho que respeitar as normas); somos julgados pelas atitudes (o que fazemos, o que optamos); e essa atitude será sua responsabilidade (responder por ela). Assim, a moral digital tem como finalidade melhorar a sociedade, trazendo inovações, otimizando processos, possibilitando vantagens e até melhorando a qualidade de vida. Sem esse propósito, seu uso não é ético". Portanto, sob o ponto de vista ético ou de cultural organizacional, a responsabilidade digital estaria associada a práticas e estratégias adotadas para usar os meios telemáticos de forma mais segura e eficaz, além de torná-los mais acessíveis. No entanto, a ausência de técnica legislativa ou de traduções imprecisas de princípios contidos em normas estrangeiras19, como é o caso da inclusão do princípio da "responsabilidade digital" como princípio da telessaúde na lei 14.510/22, pode confundir em vez de auxiliar. Do ponto de vista jurídico, o tal princípio parece estar mais direcionado ao que se entende por accountability20, parte importante da governança de dados (plano ex ante21no qual se insere o compliance) e que amplia as zonas de incidência da responsabilidade civil também para os parâmetros regulatórios preventivos. A Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/18/LPGD) estabeleceu como um de seus princípios, o da responsabilidade (art. 6o., X, LGPD), que reafirma a responsabilidade dos agentes de dados pelo tratamento de dados pessoais e consequente conformidade com os marcos legais (art. 50, LGPD). "É esse o espírito do princípio da accountability descrito no art. 6°, inciso X! O foco é a ampliação do espectro da responsabilidade, mediante a inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, que promovem uma interação entre a liability do Código Civil com uma regulamentação voltada à governança de dados, seja em caráter ex ante ou ex post"22. Sendo a LGPD inafastável da telemática em saúde (qualquer que seja a sua espécie), a Lei n. 14.510/22, ao estabelecer o princípio da responsabilidade digital como princípio informador da telessaúde no Brasil, parece estar a determinar que todos aqueles que utilizem sistemas telemáticos nas ações e serviços de saúde (públicos ou privados) são obrigados a fornecer segurança aos seus titulares e adotar boas práticas de governança capazes de garantir a privacidade sobre os dados tratados. Para a aplicação dos diversos princípios estabelecidos na LGPD (art. 6°), "caberá ao controlador dos dados pessoais, observados a estrutura, a escala e o volume de suas operações, bem como a sensibilidade dos dados tratados, a probabilidade e a gravidade dos danos para os titulares dos dados, implementar programas de governança em privacidade de dados que, no mínimo, possuam as seguintes características: a) demonstre o comprometimento do controlador em adotar processos e políticas internas que assegurem o cumprimento, de forma abrangente, de normas e boas práticas relativas à proteção de dados pessoais; b) seja aplicável a todo o conjunto de dados pessoais que estejam sob seu controle, independentemente do modo como se realizou sua coleta; c) seja adaptado à estrutura, à escala e ao volume de suas operações, bem como à sensibilidade dos dados tratados; d) estabeleça políticas e salvaguardas adequadas com base em processo de avaliação sistemática de impactos e riscos à privacidade; e) tenha o objetivo de estabelecer relação de confiança com o titular, por meio de atuação transparente e que assegure mecanismos de participação do titular; f) esteja integrado a sua estrutura geral de governança e estabeleça e aplique mecanismos de supervisão internos e externos; g) conte com planos de resposta e incidentes de remediação; e h) seja utilizado constantemente com base em informações obtidas a partir do monitoramento contínuo e avaliações periódicas"23. A falta de um marco legal mais claro acerca da proteção de dados na telemática em saúde (para além da LGPD) exige um esforço redobrado para se compreender o seu alcance. Por isso, "padrões de segurança da informação precisam ser estabelecidos de forma segura diante dos graves riscos de incidentes de segurança de dados pessoais sensíveis24", qualquer que seja o sistema de saúde ou a ação e o serviço em que se adote a telemática em saúde. A segurança de dados exige conduta proativa e mitigação de riscos25 (accountability), ainda mais quando se está a realizar tratamento de dados sensíveis (como os dados de saúde). Portanto, quando se estabelece como princípio da telessaúde no Brasil a responsabilidade digital, não se está a falar apenas de otimização e transparência de processos, mas especialmente, se está a impor "um circuito decisório justo sobre o fluxo informacional. Essa deve ser a essência do princípio da accountability no campo da proteção de dados"26, dever geral de segurança capaz de proteger a autodeterminação informativa como principal fundamental que é (art. 5°, LXXIX, CF/88). __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui e aqui. 3 Vide também, Portaria n. 1.348/2022, Ministério da Saúde. Disponível aqui. 4 Disponível aqui e aqui. 5 Implementação do RSI - 58o. Conselho Gestor - 72a. Sessão do Comitê Regional da OMS para as Américas. O RSI entrou em vigor no dia 15 de junho de 2007. Disponível aqui. 6 No entanto, a declaração de pandemia só foi feita pela OMS em 11 de março de 2020. 7 Disponível aqui. Tradução do RSI aprovada pelo Congresso Nacional. Disponível aqui. "Emergência de saúde pública de importância internacional" significa um evento extraordinário que, nos termos do presente Regulamento, é determinado como: (i) constituindo um risco para a saúde pública para outros Estados, devido à propagação internacional de doença e (ii) potencialmente exigindo uma resposta internacional coordenada". 8 Disponível aqui. 9 Disponível aqui. 10 Disponível aqui. 11 Portaria n. 356, 11 de março de 2020, Ministério da Saúde - Dispõe sobre a regulamentação e operacionalização do disposto na lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (COVID-19).  12 Disponível aqui. 13 Telemática é o resultado das expressões telecomunição e informática que engloba sistemas, processos, procedimentos e instrumentos. Telecomunicações, na definição de Ralph M. Stair e George W. Reynolds "referem-se à transmissão eletrônica de sinais para as comunicações, incluindo meios como telefone, rádio e televisão. [...]. A comunicação de dados, um subconjunto especializado das telecomunicações, refere-se à coleta eletrônica, ao processamento e à distribuição dos dados - geralmente, entre os dispositivos de hardware do computador. A comunicação de dados é completada por meio do uso da tecnologia de telecomunicação" (STAIR, R.M.; REYNOLDS, G.W. Telecomunicações e redes. In: _____. Princípios de sistemas de informação. Trad. Alexandre Melo de Oliveira. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2002. p. 172). Informática é a junção dos termos informação + automática, sendo considerada "a ciência que estuda o tratamento automático e racional da informação".  Termo utilizado pela primeira vez em 1957 pelo alemão Karl Steinbuch, em artigo publicado sob o título Informatik: Automatische Informationsverarbeitung (Informática: Processamento de Informação). Mas o termo se popularizou a partir de 1962 quando foi empregado pelo francês Philippe Dreyfus (informatique) na designação da sua empresa "Sociedade de Informática Aplicada" (SIA). Em 1967 a Academia Francesa adotou o termo para designar a "ciência do tratamento da informação" e a partir de então o termo se difundiu por todo mundo (LANCHARRO, E.A.; LOPEZ, M.G.; FERNANDEZ, S.P. Informática básica. São Paulo: Pearson Makron Books, 1991. p. 01). 14 SCHAEFER, Fernanda; GLITZ, Frederico (Coords.). Telemedicina: desafios éticos e regulatórios. Indaiatuba, SP: Foco, 2022. 15 SCHAEFER; GLITZ (Coords.), ibid. 16 Exemplo claro da confusão ocorreu durante a pandemia de Covid-19. O Ofi'cio n. 1726/20, CFM, encaminhado ao Ministério da Saúde solicitava a liberação de teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta, para o período de emergência sanitária. Procedimentos bem diversos daquele liberado pela Portaria n. 467/20, MS (que autorizava a teleconsulta, embora se refira à telemedicina de maneira genérica) e pela Lei 13.989/20, que autorizava a telemedicina (também em conceito tecnicamente errado) durante a situação de emergência em saúde pública de importância internacional. Resultado, o que se pediu estava muito aquém do que foi liberado. O que ocorreu na prática estava muito além do que se pretendia autorizar. Daí a importância de se delimitar corretamente telemedicina e telessaúde e todas as suas variáveis, para se compreender sobre o que se está a legislar. 17 Disponível aqui. 18 Disponível aqui. 19 Como, por exemplo, A HIPAA (Health Insurance Portability and Accountability Act, 1996) americana.   20 "Na língua inglesa, entretanto, há outros termos representativos de outros sentidos para o conceito jurídico de responsabilidade. Ao lado de liability, colocam-se três outros vocábulos: responsability; answerability e accountability. Os três podem ser traduzidos para a língua portuguesa como 'responsabilidade', mas seus sentidos, em verdade, diferem do conteúdo monopolístico que as jurisdições da civil law conferem à liability, como palco iluminado da responsabilidade civil (arts. 927 a 954, do Código Civil). Em comum, os três vocábulos transcendem a função judicial de desfazimento de prejuízos, conferindo novas camadas à responsabilidade, capazes de responder à complexidade e à velocidade dos arranjos sociais contemporâneos. Enfim, tem-se a accountability, e a partir dela ampliamos o espectro da responsabilidade, mediante a inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, que promovem uma interação entre a liability do Código Civil e a regulamentação voltada à governança de dados, seja em caráter ex ante ou ex post" (ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JUNIOR, José de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados. In: FRAZÃO, Ana; CUEVA, Ricardo Villas Bôas (Coords.) Compliance e políticas de proteção de dados. São Paulo: Thomas Reuters, 2022). 21 No plano ex post "a accountability atua como um guia para o magistrado e outras autoridades, norteando a identificação e a quantificação de responsabilidade e lastreando o estabelecimento de remédios mais adequados (e sua gradação/dosagem)" (id., p. 779). 22 (id., p. 791-792). 23 GIOVANNINNI JUNIOR, Josmar Lenine. Fase 4: governança de dados pessoais. In: MALDONADO, Viviane Nóbrega (Coord.). LGPD. Manual de Implementação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 167-188). 24 PEREIRA, Alexandre Libório Dias. Patient Safety in e-Health and Telemedicine. Lex Medicinae - Revista de Direito da Medicina, n. Especial (2014), p 95-106. Disponível aqui. World Health Organization (WHO). Global Observatory for eHealth [Internet]. Geneva: WHO; 2005. Disponível aqui. 25 MORAES, Maria Celina. LGPD: um novo regime de responsabilização civil dito proativo. Editorial. Civilistica. Rio de Janeiro: a. 8, n. 3, 2019. 26 DIAS, Daniel. Notas sobre o princípio da accountability. Disponível aqui.
O artigo se propõe a debater a existência da lista bancária proibida como uma forma de retaliação pelo exercício do direito de ação dos consumidores que acionam os bancos e, em razão das ações favoráveis, são penalizados com restrição de crédito. Ações contra bancos e financeiras não são incomuns. De acordo com dados consolidados no CNJ e também pelas próprias cortes Estaduais1, ao lado de empresas de transporte aéreo, concessionárias e telefonia celular, os bancos estão no ranking de maiores acionados por consumidores no Judiciário. Se, como já abordado na Coluna do IBERC2, o excesso de processos é, em parte, uma falha no controle regulatório, na medida em que 40% das ações decorrem de relação de consumo entre consumidores e bancos/telefonia que nem sequer precisariam chegar ao Judiciário, a litigância excessiva apenas prejudica o próprio desenvolvimento das atividades jurisdicionais. Ocorre que, é isso um dado concreto, os processos chegam ao Judiciário. Consumidores que entendem que foram lesados buscam o Judiciário para defesa dos seus interesses. O presente texto se propõe a analisar o pós-processo. Consideremos o seguinte caso hipotético: João litiga judicialmente em face de Banco X e a ação é julgada procedente com o reconhecimento de que a conduta do Banco foi ilícita. Dois meses após o pagamento da indenização arbitrada, João é cientificado pelo Banco que seu limite do cartão de crédito será, no prazo de 60 dias, reduzido em 40% em decorrência de análise interna. Inconformado com a redução de limite, o consumidor questiona a razão da redução, porém não recebe nenhuma resposta esclarecedora. Em não raras situações, os bancos têm promovido retaliações, sob o argumento de exercício regular de direito, em prejuízo daqueles que acionam o Judiciário. Nesse sentido, consumidores que já possuem um histórico de litigância contra bancos são notificados de uma redução de limites no cartão de crédito ou acesso ao crédito, por exemplo. Em um cenário de redução de crédito, mostra-se fundamental verificar os elementos objetivos e subjetivos do caso. São exemplos recorrentes as situações de redução de crédito em desfavor de consumidores com alta pontuação no Serasa Score, sem variação de renda e adimplentes com suas obrigações. Se, por um lado, é direito subjetivo dos bancos promover uma análise do crédito e, eventualmente, reduzir ou majorar os limites disponíveis, tem-se que as empresas precisam motivar essa redução de crédito justamente para afastar eventual revanchismo pelo exercício do direito de ação dos consumidores. O fato de a redução de crédito ser unilateral não afasta o dever de motivação e transparência, notadamente por representar uma consolidação do dever de informação. A inversão do ônus da prova e a distribuição dinâmica do ônus da prova exigem que o Banco prove, administrativa ou judicialmente, a razão da redução do limite de crédito, sob pena de presunção de que se trata de uma retaliação em decorrência do ajuizamento, pelo consumidor, de uma ação judicial. Assim, surge a existência de uma lista proibida bancária, uma espécie de relação de personae non gratae. O consumidor não consegue provar a existência da lista, mas a falta de motivação e uma atuação direcionada em prejuízo, curiosamente, daqueles que já litigaram em face da Instituição bancária apenas reforça a hipótese de que ela existe. Nesse sentido, a jurisprudência já se manifestou sobre a existência da lista proibitiva3: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. NEGATIVA DE CONCESSÃO DE FINANCIAMENTO BANCÁRIO EM RAZÃO DO AJUIZAMENTO DE AÇÃO JUDICIAL CONTRA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. DESCABIMENTO. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. QUANTUM MANTIDO. Trata-se de recurso de apelação interposto contra sentença de procedência exarada na ação de indenização por dano moral decorrente da não concessão de crédito em razão do ajuizamento de ação judicial contra instituição bancária. A prática de elaboração e consulta de "lista" com nomes de consumidores que buscaram tutela judicial em face de abusividades que entendiam presentes em contratos bancários são atos flagrantemente ilegais e abusivos. As instituições financeiras negam sua existência, pois cientes da impossibilidade de registro de tais fatos, que atenta, inclusive, contra o direito constitucionalmente assegurado de acesso ao Judiciário, na forma do artigo 5º, XXXV, da CF. Nenhuma lista negativa pode ser criada, fomentada ou consultada se o seu conteúdo for a restrição de crédito a quem ingressou com ação judicial contra empresa integrante do sistema financeiro, por seu caráter limitador de direitos e discriminatório. In casu, logrou a parte autora produzir prova dos fatos constitutivos do seu direito, demonstrando suficientemente os fatos narrados na exordial. As testemunhas ouvidas no feito apontaram que a lista existe e a demandante teve o crédito negado por conta de sua inclusão. Em razão... disso, responde o segundo requerido por ter alimentado o sistema com a informação, que no caso concreto ainda encontrava-se equivocada, já que não ajuizou a parte autora ação revisional, mas demanda declaratória de inexistência de débito. Por sua vez, a responsabilidade do segundo requerido decorre do fato de ter acessado o cadastro e negado crédito à parte demandante. Outrossim, não há que se falar em descabimento de aplicação de pena de multa para fins de dar efetividade ao provimento cominatório dirigido à exclusão do cadastro, que encontra previsão legal no art. 461 do CPC. Sentença de procedência mantida. APELAÇÕES DESPROVIDAS. (Apelação Cível Nº 70050395730, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio José Costa da Silva Tavares, Julgado em 01/10/2015). DANO MORAL Responsabilidade Civil "Restrição Interna" do banco contra o autor, em razão de débitos em uma conta bancária que não contratou. Informação que, apesar de não acessível a terceiros, limita o acesso do correntista à plenitude dos serviços oferecidos pela Instituição Financeira aos consumidores nas mesmas condições - A existência de restrições internas ou outras espécies de "listas negras", consiste em prática ilegal, uma vez que, pelo art. 43 e seu § 1º da Lei n. 8.078/90, o consumidor tem direito a ter acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes, e os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão - Clandestinidade e abusividade O conhecimento da existência de informações depreciativas, ainda que inverídicas e reservadas, traz ao negativado mais que mero aborrecimento ou dissabor, mas verdadeiro constrangimento e ofensa à honra, por ser considerado mau pagador, sendo desnecessárias maiores provas disso, o que se presume. Fixação. Razoabilidade - Recurso do réu e apelo adesivo desprovidos. (TJ-SP - APL: 03195829820098260000 SP 0319582-98.2009.8.26.0000, Relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior, Data de Julgamento: 18/06/2013, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 20/06/2013) RECURSO INOMINADO. PEDIDO INDENIZATÓRIO CUMULADO COM EXTINÇÃO DE DÍVIDA. NEGATIVA DE FORNECIMENTO DE SERVIÇO BANCÁRIO EM RAZÃO DA EXISTÊNCIA DE RESTRIÇÃO CREDITÓRIA INTERNA, EM "LISTA NEGRA" MANTIDA PELAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS ENVOLVIDAS. SENTENÇA QUE AFASTOU A PRETENSÃO DO CONSUMIDOR. PROVIMENTO DO RECURSO PARA RECONHECER A ILICITUDE DAS RESTRIÇÕES CREDITÓRIAS, COM ARBITRAMENTO DE INDENIZAÇÃO PELOS DANOS MORAIS CONFIGURADOS, CANCELANDO AINDA A DÍVIDA IMPUTADA AO CONSUMIDOR SEM PROVA DA ORIGEM. (TJ-BA 103898220081 BA, Relator: WALTER AMÉRICO CALDAS, 5ª TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E CRIMINAIS, Data de Publicação: 16/07/2010) RELAÇÃO DE CONSUMO - INDENIZATÓRIA - INGRESSO EM LISTA NEGRA COMO REPRESÁLIA - APONTAMENTO INDEVIDO DO NOME DO CONSUMIDOR NO SERASA - ÔNUS DA PROVA - INVERSÃO OPE LEGIS - INÉRCIA DA INSTITUIÇÃO RÉ - FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO - OCORRÊNCIA - LISTA NEGRA QUE TERIA SIDO CRIADA A PARTIR DE PROPOSITURA DE AÇÃO JUDICIAL ANTERIOR CONTRA A INSTITUIÇÃO - CONDUTA ILEGAL, ABUSIVA E DISCRIMINATÓRIA - SITUAÇÃO VIVENCIADA PELA AUTORA QUE ULTRAPASSA A SEARA DO MERO DISSABOR - PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO - DANOS MORAIS CONFIGURADOS. Alegação de negativa de crédito decorrente de inserção do nome da correntista em lista negra dos bancos, além do apontamento do nome da autora em cadastros de inadimplentes. A lista negra configura instrumento ilícito de retaliação, pelo simples fato de o consumidor ter ingressado com demanda judicial contra instituição financeira, desestimulando o exercício do direito de ação garantido constitucionalmente. Dever de indenizar com base na responsabilidade objetiva atrelada à teoria do risco do empreendimento. A inclusão do nome da parte em cadastro de inadimplentes, por si só, gera, independentemente de prova, o dano moral in re ipsa. Verbete Sumular 89 do TJ/RJ. Negado provimento ao apelo principal, restando improvido o recurso adesivo. (TJ-RJ - APL: 00112421020188190037, Relator: Des(a). EDSON AGUIAR DE VASCONCELOS, Data de Julgamento: 07/07/2020, DÉCIMA SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 2020-07-10) É sabido, contudo, da existência de decisões em sentido contrário que apontam para a existência de listas de restrição não públicas não geram o dever de indenizar, porém o cerne de debate não se trata da publicidade ou não da lista, mas sim da impossibilidade do banco de reduzir o limite de crédito por razão revanchista. É cristalino que, a partir de critérios técnicos, o banco tem o direito subjetivo de reduzir limites de cartão de crédito ou negar acesso ao crédito. O problema jurídico reside no uso dessa redução / limitação como uma punição pelo direito de ação, o que deturpa o instituto. O art. 187 do Código Civil dispõe que: Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. "O abuso de Direito está caracterizado como o exercício de um direito em contrariedade aos limites da prerrogativa individual"4. Isto posto, é preciso perceber que a redução/limitação de acesso ao crédito quando não baseada em critérios técnicos, viola a eticidade e a própria finalidade econômica do contrato, violando-se, portanto, a função social do contrato. Os bancos simplesmente não podem dizer que farão determinadas condutas baseadas em critérios unilaterais e arbitrários. Discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. A instituição bancária tem a discricionariedade de analisar se deve manter, reduzir ou majorar o acesso ao crédito, porém essa decisão é técnica, não podendo jamais ostentar um critério punitivo. Reduções e limitações ao crédito enquanto resposta punitiva ao direito de ação não podem existir em um ordenamento em que o acesso ao Judiciário deve ser garantido. Ser penalizado com redução/limitação ao crédito em decorrência de ter provocado o Judiciário não se mostra compatível com os valores que regem o Direito Civil e, sobretudo, o Direito Constitucional. O exercício legítimo do direito de ação não pode ser obstaculizado ou penalizado por restrições ao crédito, de modo que a redução ao crédito, enquanto direito subjetivo dos bancos, não pode ser deturpado ou transformado em instrumento de vingança, retaliação ou mesmo de ameaça. Essa conduta das instituições financeiras é um claro exemplo de abuso de direito e, pior, violador não apenas do Código Civil, mas também uma espécie de penalização do exercício do direito constitucional de ação. A verdade é que esta conduta - além de ilícita - cria uma dupla judicialização, pois todos aqueles que litigaram uma vez e foram inseridos na "Lista Proibida" buscarão o Judiciário novamente para serem reparados pelo novo dano causado, o que apenas aumenta o número de processos e fomenta uma litigância que seria evitável. Desta feita, será preciso garantir condenações exemplares, significativas e efetivamente punitivas com o condão de eliminar a existência da referida lista e, consequentemente, garantir o direito constitucional de ação, além da proteger o livre exercício de direitos do consumidor, sem que ele sofra restrições e/ou retaliações. __________ 1 Conheça as 30 empresas mais acionadas na Justiça do Rio de Janeiro em 2018. 2018. CONJUR. Acesso em 07 de fev. 2023; TJAM. "Mutirão dos Grandes Litigantes" começa com total de 80 processos analisados pelo 3.º Juizado Especial Cível. 2022. Disponível aqui. Acesso em 07 de fev. 2023; MIGALHAS. Órgãos Federais e estaduais lideram 100 maiores litigantes da Justiça: Setor público Federal e bancos respondem por 76% dos processos em tramitação. Disponível aqui. Acesso em 07 de fev. 2023. 2 KHOURI, Paulo R. Roque A. Litigância no Brasil, relação de consumo a falta de eficiência dos aparelhos estatais. 2020. Disponível aqui. Acesso em 07 de fev. 2022 3 Algumas decisões e autores tratam da lista proibitiva como "lista negra", porém, por uma questão de respeito e atualização vocabular, entendemos que a lista proibitiva ou lista de restrição se mostra mais adequado. 4 MASCARENHAS, Igor de Lucena; BAHIA, Saulo José Casali. O exercício da Medicina Defensiva enquanto reação às decisões judiciais: o papel do Judiciário na construção de uma postura ética no exercício médico. Revista de Direito do Consumidor, v. 141, p. 339-355, 2022.
A recém-promulgada Lei da Telessaúde (lei 14.510, de 27 de dezembro de 2022) acrescentou artigos à Lei do Sistema Único de Saúde (lei 8.080, de 19 de setembro de 1990), especificamente quanto ao uso das tecnologias digitais nos atendimentos médicos. Os arts. 26-D e 26-E, introduzidos pela nova lei, impõem o dever de observância às normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde e às normas deontológicas baixadas pelo Conselho Federal de Medicina. Além disso, por tratar-se de atendimento médico prestado por meio virtual, a nova lei elencou, entre os seus princípios, o da confidencialidade dos dados e o da responsabilidade digital (art. 26-A, IX). Diante dessa terminologia trazida pela nova lei, cumpre indagar sobre o que vem a ser essa tal "responsabilidade digital" e sobre como ela se harmoniza com as demais formas de responsabilidade jurídica. Dentro do panorama de uma teoria geral da responsabilidade, podemos dizer que há um princípio geral, segundo o qual "somos responsáveis pelo que possa suceder ao outro". A responsabilidade jurídica é uma das manifestações desse princípio, ao lado da responsabilidade moral, da social e da política. Ao longo da Era Moderna, houve uma discriminação das várias espécies de responsabilidade jurídica, iniciando pelo desmembramento da responsabilidade civil em relação à penal e prosseguindo com o surgimento da responsabilidade administrativa e da política em sentido estrito. Desde que alcançou sua emancipação dogmática, no início da Era Moderna, a responsabilidade civil é um campo que se expande continuamente, na medida em que se modificam os relacionamentos sociais e surgem novas estruturas danosas. Hodiernamente, diante da passagem da sociedade da informação para a sociedade digital, as preocupações se voltam para os danos que possam surgir como decorrência do tráfego de dados e informações nos ambientes virtuais da Internet, controlados pelas plataformas digitais e com emprego de inteligência artificial. A maioria dos estudiosos está de acordo em que a primitiva função reparatória da responsabilidade civil é insuficiente para enfrentar os problemas que surgem na sociedade contemporânea, notadamente em matéria de tecnologias digitais. A busca por soluções para os problemas que surgem das constantes transformações sociais tem aproximado os estudiosos do sistema do Common Law, que admite outras funções para a responsabilidade civil, além da função reparatória que é marcante no sistema do Civil Law. Uma das constatações realizadas nos últimos tempos é no sentido de que a palavra "responsabilidade" possui diversos significados análogos nos idiomas de origem latina, como é o caso do português, ao passo que o idioma inglês apresenta diversos termos para as distintas formas de responsabilidade jurídica. Elena Simina Tanasescu explica que há três expressões no idioma inglês que exprimem a ideia de responsabilidade: responsibility, que corresponde a um preceito ético com status de princípio, como o da igualdade e o da liberdade, que envolve o cuidado que a pessoa deve ter com as consequências de suas ações; liability, que é a responsabilidade legal, implementada na lei, a fim de viabilizar a responsabilização individual; e accountability, que se refere aos deveres de quem desempenha algum tipo de atividade de cumprir as normas e regulamentos, bem como de prestar contas de seus atos1. Semelhante entendimento pode ser encontrado nos recentes estudos de Nelson Rosenvald, Carlos Edison Monteiro Filho e José Luiz Faleiros Filho, para quem o termo responsibility designa o sentido moral de responsabilidade, que é voluntariamente aceito, sem necessidade de imposição legal, ao passo que a liability corresponde ao sentido clássico da responsabilidade civil no Civil Law, com função estritamente compensatória dos danos. Já a accountability envolve deveres de prestação de contas sobre a adoção e a observância de normas regulatórias de governança e boas práticas que estabeleçam padrões técnicos e de segurança. Em complemento, a answerability consiste no dever de transparência e explicabilidade quanto aos processos que envolvem determinada atividade2. Os deveres de cumprimento de normas técnicas, de explicabilidade e de prestação de contas (accountability e answerability) se manifestam em diversos campos de atividade, inclusive no âmbito do direito público, conforme apontado por Elena Simina Tanasescu e por José Faleiros Júnior3. Podemos citar como exemplo o dever de cumprir as normas da ABNT, por parte das empresas de construção civil, sob pena de multa ou até mesmo rescisão do contrato público ou particular. Outro exemplo é o dever imposto aos profissionais de saúde de cumprir os Protocolos Clínicos de Diretrizes Terapêuticas - PCDT e as Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas - DDT, baixados e atualizados pelo Ministério da Saúde, com o objetivo de orientar e padronizar o atendimento, diagnóstico e tratamento no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Ou ainda os deveres impostos a diversas categorias profissionais quanto às normas deontológicas baixadas pelos respectivos conselhos. Entretanto, a mais recente legislação sobre tratamento de dados pessoais tem dado ênfase à prevenção e à precaução contra danos, impondo deveres de boas práticas e compliance aos agentes de tratamento de dados pessoais, conforme consta do art. 6º da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD e dos arts. 12 e seguintes do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho - RGPD, de 27 de abril de 20164. De acordo com Bruno Bioni, a LGPD adota uma lógica eminentemente precautória, que "aposta na capacidade dos agentes de tratamento de dados de adotarem medidas preventivas de danos"5. Todos esses deveres de adotar medidas voltadas para a prevenção de danos se inserem em um campo de responsabilidade abrangidos pela rubrica da accountability e da answerability. A questão é saber por qual modo esses deveres se relacionam com as demais formas de responsabilidade jurídica, particularmente com a responsabilidade civil. Se tomarmos este instituto como sistema amplo e multifuncional, a accountability e a answerability integram o sistema, como camadas da responsabilidade civil, conforme lembrado por Nelson Rosenvald. Se entendermos o mesmo instituto em seu sentido clássico e estrito, com a função primordial de reparar os danos causados, os deveres compreendidos pela accountability e pela answerability se encontram na antessala do sistema, atuando ora na prevenção ao dano ex ante, ora na determinação do nexo de causalidade ex post factum. Não podemos perder de vista o mencionado fenômeno da expansividade da responsabilidade civil ao longo da modernidade. A busca constante por novas soluções diante das transformações sociais e do surgimento de outras estruturas danosas conduz ao elastecimento da responsabilidade civil que, com isso, vai se afastando pouco a pouco de sua conformação inicial, cuja única função era a de possibilitar a reparação dos danos causados. No momento atual, diante da necessidade de fortalecimento da função preventiva e precaucional, toma corpo esse conjunto de deveres compreendido pela accountability e pela answerability, os quais são voltados para impedir a ocorrência do dano6. Nelson Rosenvald e José Faleiros Júnior explicam que, em matéria de proteção de dados pessoais, a accountability e a answerability atuam ex ante e ex post factum. Na fase anterior ao dano, servem como guia para os agentes de tratamento de dados, os quais podem inclusive estabelecer regras de governança e boas práticas com a finalidade de evitar a ocorrência de danos. Na fase posterior, servem como guia para o reconhecimento do nexo de causalidade entre o dano e a atividade, norteando a identificação e a quantificação da responsabilidade civil e administrativa7. Ao que tudo indica, porém, a accountability e a answerability não se confundem com a responsabilidade civil em sentido estrito (civil liability), uma vez que que esses deveres existem a despeito da existência de um dano a ser reparado. São deveres que devem ser cumpridos com a finalidade de evitar a ocorrência do dano, mesmo que este jamais se concretize. Todavia, uma vez concretizado o dano, o cumprimento dos deveres de accountability e de answerability são determinantes para verificação do nexo de causalidade, podendo afastar ou mitigar a responsabilidade do agente (LGPD, art. 44). Em contrapartida, o dever de reparar o dano (civil liability) existe em incontáveis situações independentes dos deveres de accountability e de answerability. A compreensão da polissemia do termo "responsabilidade" nos idiomas de origem latina e da multiplicidade de expressões análogas no idioma inglês certamente é útil para o entendimento da estrutura e do funcionamento do sistema contemporâneo de responsabilidade civil, especialmente diante do surgimento das tecnologias digitais. Uma conclusão possível é que os deveres de accountability e answerability aos poucos se constituem em um campo de responsabilidade jurídica, consistente nos deveres de cumprir normas técnicas, de prestação de contas e de explicabilidade, cujo descumprimento produz consequências próprias, no âmbito regulatório, podendo também ensejar responsabilidade civil, administrativa e criminal. Outra conclusão possível é que, ao menos em tema de tratamento de dados, o sistema de responsabilidade civil (civil liability) funciona de maneira articulada, de sorte que o cumprimento ou descumprimento dos deveres abrangidos pela accountability e pela answerability são determinantes para caracterização do dever de indenizar. Disso resulta que, ao referir-se à responsabilidade digital, entre os princípios que norteiam a telessaúde, a lei 14.510/2022 emprega o termo "responsabilidade" no sentido de accountability. Com efeito, a responsabilidade digital, na verdade accountability digital, refere-se aos deveres de cuidado que se deve ter, tanto em relação às condutas (postar, curtir, comentar e compartilhar) quanto em relação ao tráfego de dados e informações no ambiente virtual da Internet8. A responsabilidade digital está relacionada ao exercício da cidadania digital, no sentido de que os usuários devem contribuir para que a tecnologia seja utilizada de forma adequada, responsável e não criminosa9. No âmbito corporativo, a responsabilidade digital pode ser entendida como um desdobramento da responsabilidade social aplicada ao contexto das tecnologias digitais10. Desse modo, a responsabilidade digital ou accountability digital mencionada na Lei da Telessaúde se refere à observância às normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde e às normas deontológicas baixadas pelo Conselho Federal de Medicina, além das normas sobre proteção de dados pessoais, a fim de evitar a ocorrência de danos. Se, a despeito de todos esses cuidados, o dano se concretizar, o descumprimento dessas normas é determinante para configuração do nexo de causalidade para efeito do dever de reparação. __________ 1 TANASESCU, Elena Simina; Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP. On responsibility in public law. Cadernos de Pós-Graduação em Direito: estudos e documentos de trabalho. Revista da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, n. 1, 2011, mensal. 2 ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na lei geral de proteção de dados pessoais. In: FRAZÃO, Ana; CUEVA, Ricardo Villas Bôas (coord.). Compliance e políticas de proteção de dados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 771-807, especialmente p. 773-779; ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados, [s. l.], 6 nov. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 30 out. 2022; ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility. Revista Consultor Jurídico, 2 mar. 2022. Acesso em: 30 out. 2022. 3 TANASESCU, Elena Simina. On responsibility in public law, cit., p. 6; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Administração pública digital: proposições para o aperfeiçoamento do regime jurídico administrativo na sociedade da informação. Indaiabuba: Foco, 2020. p. 130-147. 4 BIONI, Bruno Ricardo. Regulação e proteção de dados pessoais: o princípio da accountability, cit., p. 18-20. 5 BIONI, Bruno Ricardo. Regulação e proteção de dados pessoais: o princípio da accountability, cit., p. 41. 6 ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na lei geral de proteção de dados pessoais, cit., p. 771-807, especialmente p. 773-779; ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD, cit.; ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility, cit. 7 ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na lei geral de proteção de dados pessoais, cit., p. 777-779. 8 Disponível aqui. Acesso em: 27 dez. 2022. 9 NUNES, Danilo Henrique; LEHFELD, Lucas Souza. Cidadania digital: direitos, deveres, lides cibernéticas e responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Estudos Jurídicos da UNESP, [S. l.], v. 22, n. 35, 2019. DOI: 10.22171/rej.v22i35.2542. Disponível aqui. Acesso em: 29 dez. 2022. 10 LONDOÑO-CARDOZO, José; PÉREZ DE PAZ, Maria. A responsabilidade digital organizacional: fundamentos e considerações para seu desenvolvimento. Revista de Administração Mackenzie, 22(6), 1-31, 2021. doi:10.1590/1678-6971/eRAMD210088. Disponível aqui. Acesso em: 28/12/2022.
Algum tempo atrás, escrevi aqui sobre um julgamento do Superior Tribunal de Justiça (Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze), que, num caso bastante sensível, majorou o valor de indenização por danos morais fixado nas instância inferiores. Um homem matou um psicólogo, em seu consultório, com três tiros, motivado pela descoberta de uma suposta traição de sua esposa com o terapeuta. A indenização pelo dano moral (houve condenação por danos materiais também) foi fixada, no 1º grau, em R$ 120 mil para cada uma das autoras da ação (esposa e filha da vítima). As autoras não recorreram da sentença, mas o réu sim. O Tribunal estadual reduziu a indenização para R$ 30 mil para cada uma delas (25% do valor fixado pelo Juízo) por conta da "contribuição causal da vítima no evento trágico" e do "comportamento da vítima". As autoras (esposa e filha da vítima) e o réu recorrem ao STJ. Elas para aumentar o valor da indenização moral (e outras discussões quanto aos danos patrimoniais). Ele, para diminuir ainda mais o valor da indenização dos danos morais. O Superior aumentou a condenação, e fixou a indenização para R$ 150 mil para a esposa e R$ 150 mil para a filha da vítima. Esse foi o percurso do valor da indenização pelo dano moral: de R$ 240 mil para R$ 60 mil e, depois, para R$ 300 mil. Destaco: o valor fixado pelo STJ foi superior ao indenizado pelo 1º grau, contra cuja sentença as autoras não recorreram. O julgamento dos recursos foi monocrático, por aplicação da súmula 7. As partes manearam agravos, que foram julgados conjuntamente. Transcrevo a ementa na parte que interessa (a fixação do quantum indenizatório pelo dano moral): RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. EXCESSO DE LINGUAGEM. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356/STF. JUNTADA DE NOVOS DOCUMENTOS. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO AOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA 283/STF. PRINCÍPIO DA DEVOLUTIVIDADE. NÃO VIOLAÇÃO. HOMICÍDIO. DEVER DE REPARAR O DANO. RECONHECIMENTO. LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA. INCONSTITUCIONALIDADE. VALOR INDENIZATÓRIO. MAJORAÇÃO. PENSÃO ALIMENTÍCIA. ILEGITIMIDADE ATIVA. RECURSO DO RÉU DESPROVIDO. RECURSO DA AUTORA CONHECIDO EM PARTE PARA, NESSA EXTENSÃO, DAR-LHE PARCIAL PROVIMENTO. ... 7. Inaceitável, portanto, admitir o revanchismo como forma de defesa da honra a fim de justificar a exclusão ou a redução do valor indenizatório, notadamente em uma sociedade beligerante e que vivencia um cotidiano de ira, sob pena de banalização e perpetuação da cultura de violência. 8. A fixação da verba indenizatória em R$ 30 mil viola os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da reparação integral, devendo ser majorada para R$ 150 mil, a ser corrigida a partir desta data e incidindo juros de mora desde o evento danoso. Na época em que publiquei a primeira parte desse artigo, não havia sido disponibilizada a íntegra dos acórdãos, mas eu já pude destacar alguns pontos importantes, do ponto de vista da prestação jurisdicional e da reflexão doutrinária. Repito-os: (i) a variabilidade do valor da indenização (de R$ 120 mil para R$ 30 mil e depois para R$ 150 mil); com a consequente insegurança ao jurisdicionado; (ii) o papel do STJ na discussão de valores indenizatórios (com sua jurisprudência firme no sentido de que o valor da indenização por danos morais será revisto somente nas hipóteses em que a condenação se revelar irrisória ou excessiva, em desacordo com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade); (iii) o alcance da súmula 7 em casos tais; (iv) a limitação que o pedido recursal pode impor ao valor da indenização; e (v) o papel dos juros e correção monetária na composição da fixação do valor da condenação. Agora, os acórdãos foram publicados, e confirma-se que eles constituem um ambiente privilegiado para o estudo do direito civil e processual civil, bastando ver alguns temas que acresço aos itens antes indicados. A alegação de negativa de prestação jurisdicional. O excesso de linguagem no acórdão. A juntada de novos documentos no curso da ação. O dano em ricochete. A legitimidade ativa. A legítima defesa da honra como matéria de defesa processual ("...uma retórica odiosa, desumana e cruel, com a repulsiva tentativa de se imputar à vítima a causa de sua própria morte"). Culpa concorrente. A relação entre as responsabilidades civil e criminal. O julgamento em perspectiva de gênero: o STJ disse: "A adoção de pensamento diverso contribui para a banalização e perpetuação de violência (principalmente contra as mulheres), cabendo do Poder Judiciário atuar como contrafator a essa cultura antiquada, impondo a vigência da lei a fim de se evitar a perpetração de comportamentos bárbaros"). O método bifásico para a fixação da indenização. O termo final da condenação ao pagamento de pensão alimentícia. Em suma, para aqueles professores e estudiosos que trabalham com a metodologia de estudo de caso (para ensinar e para aprender), o acórdão é um ótimo exemplo do direito teórico e prático. Destaco, entre as várias temáticas suscitadas pelo julgamento, uma que me parece muito relevante, e que diz respeito à variabilidade do valor da indenização. O STJ fixou a indenização em valor maior do que aquele fixado pelo 1º grau, de cuja sentença as autoras não recorreram. Pode isso? E se isso pode, qual o fundamento técnico para tanto? Quer me parecer que a questão pode ser respondida a partir de três razões: A um, a própria ontologia do dano moral e dos critérios da fixação de sua indenização. Na espécie, seguindo uma sólida tradição, o STJ utilizou o método bifásico. Na 1ª fase, remeteu ao valor de 300 a 500 salários-mínimos no caso de evento morte e, na 2ª fase, levou em conta as peculiaridades do caso concreto (gravidade do fato, culpabilidade do agente, condição econômica das partes etc); os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade foram utilizados também como argumento para cassar a decisão do Tribunal estadual. A dois, as perspectivas horizontal e vertical do princípio da devolutibilidade recursal. Se a dimensão horizontal desse princípio diz respeito à extensão do efeito devolutivo (o quanto da decisão foi impugnada, a extensão do recurso), a dimensão vertical diz respeito a quais matérias sobem ao exame do órgão superior (a profundidade). Bem por isso o acórdão assentou "nota-se que, no caso vertente, a apelação devolveu ao Tribunal a questão referente à configuração, ou não, dos danos morais em razão da concorrência de culpas (dimensão horizontal). [...] Assim, ao analisar a matéria a ele devolvida, o Tribunal estadual argumentou que [...] a vítima foi responsável por gerar um sentimento de revolta, o que configura a sua culpa concorrente (dimensão vertical)". Não há, então, erro do STJ, mesmo que as autoras não tivessem recorrido da decisão do 1º Grau (isto é, tivessem acolhido a indenização de R$ 120 mil para cada). A três, os papéis e a dinâmica da responsabilidade civil, numa sociedade em constante mudança. No dizer do acórdão, "Por conseguinte, a responsabilidade civil assume um papel mais flexível, menos dogmático e com maior atenção aos reais anseios da sociedade, com a difícil tarefa de distinguir aquilo que deverá, ou não, ser reparado". Tentei responder apenas uma das inquietações que surgem a partir do acórdão. As outras ficam para o leitor pensar e responder. Assim se estuda o Direito. Assim se aprende o Direito.
A fisioterapia e a terapia ocupacional são duas importantes profissões inseridas dentro da área da saúde, segundo o que consta nas Resoluções nº 04/20021 e 06/20022, ambas do Conselho Nacional de Educação - Conselho Pleno (CNE/CP). Os fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais tiveram sua profissão reconhecida por meio do Decreto-Lei nº 9383, de 13 de outubro de 1969. Entretanto, o Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (COFFITO), trata-se de uma Autarquia Federal, constituída em 1975, por meio da Lei nº 6.3164, que normatiza ambas as profissões, bem como exerce o controle ético, científico e social. O Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia, aprovado por meio da Resolução nº 4245, de 08 de julho de 2013 estabelece que: "o fisioterapeuta presta assistência ao ser humano, tanto no plano individual quanto coletivo, participando da promoção da saúde, prevenção de agravos, tratamento e recuperação da sua saúde e cuidados paliativos, sempre tendo em vista a qualidade de vida, sem discriminação de qualquer forma ou pretexto, segundo os princípios do sistema de saúde vigente no Brasil" (artigo 4º). A atuação dos fisioterapeutas tem um papel fundamental na qualidade de vida das pessoas, pois trabalha diretamente com o bom funcionamento do corpo, evitando ou melhorando disfunções que causam dor, desconforto ou interferem nas capacidades motoras. Na atualidade, a prevenção de acidentes e a promoção da saúde primária são as principais funções da fisioterapia. Por sua vez, o Código de Ética e Deontologia da Terapia Ocupacional, aprovado por meio da Resolução nº 4256, de 08 de julho de 2013 estabelece que: "o terapeuta ocupacional presta assistência ao ser humano, tanto no plano individual quanto coletivo, participando da promoção, prevenção de agravos, tratamento, recuperação e reabilitação da sua saúde e cuidados paliativos, bem como estabelece a diagnose, avaliação e acompanhamento do histórico ocupacional de pessoas, famílias, grupos e comunidades, por meio da interpretação do desempenho ocupacional dos papéis sociais contextualizados, sem discriminação de qualquer forma ou pretexto, segundo os princípios do sistema de saúde, de assistência social, educação e cultura, vigentes no Brasil" (artigo 4º). A terapia ocupacional traz inúmeros benefícios para a vida diária das pessoas, de todas as idades que possam apresentar dificuldades para realização das atividades comuns da rotina diária. Na atualidade, a terapia ocupacional desempenha um papel importantíssimo, vez que auxilia tanto nos aspectos físicos como psíquicos do ser humano. Conclui-se que a atividade do fisioterapeuta visa a execução de métodos e técnicas fisioterapêuticas, para possibilitar a restauração, desenvolvimento e conservação da capacidade física do paciente; enquanto a atividade do terapeuta ocupacional visa a execução de métodos e técnicas terapêuticas e recreacionais, para possibilitar a restauração, desenvolvimento e conservação da capacidade mental do paciente (Decreto-Lei n. 938/69, artigos 3º e 4º7). O Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, com a finalidade de cumprir o propósito legal para o qual foi constituído, vem aprovando várias Resoluções e regulamentando as matérias necessárias para as duas profissões. No entanto, algumas dessas Resoluções foram objeto de análise pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) recentemente, em 22/11/22, dentre elas a Resolução nº 808, de 09 de maio de 1987, que prevê o direito dos fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais de diagnosticar, prescrever tratamentos e dar alta ao paciente, de forma autônoma e sem qualquer vínculo com o médico. Esta é uma celeuma antiga que envolve médicos e fisioterapeutas. Por isso, a matéria foi analisada pelo STJ em 2005, momento no qual a Ministra Nancy Andrighi decidiu que: "Nos termos da legislac¸a~o que regula a mate´ria - Decreto-Lei nº 938/69 e Lei nº 6316/75, os profissionais de fisioterapia e terapia ocupacional esta~o habilitados, ta~o somente a executar os me´todos e te´cnicas indicados pelos me´dicos especializados, de acordo com a a´rea afetada que necessite de recuperac¸a~o, sendo-lhes vedado fazer o diagno´stico e indicar o tratamento a ser realizado, atividade esta reservada aos profissionais da medicina"9. Na época, a Ministra citou a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Representação nº 1.056 - DF, que declarou a constitucionalidade dos artigos 3º e 4º do Decreto-lei nº 938/69 e do art. 12 da lei nº 6.316/75, constando na referida fundamentação da Suprema Corte: "a) ao me'dico cabe a tarefa de diagnosticar, prescrever tratamentos, avaliar resultados; b) ao fisioterapeuta e ao terapeuta ocupacional, diferentemente, cabe a execuc¸a~o das te'cnicas e me'todos prescritos". Mesmo com o mencionado entendimento do STJ e do STF, tramitava desde 2004 uma ação ordinária ajuizada perante a 9ª Vara Federal de Porto Alegre - RS (Processo nº 2004.71.00.0039.549-1), pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul em face do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional e do Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, visando declarar a ilegalidade ou inconstitucionalidade de alguns direitos assegurados aos respectivos profissionais, previstos por algumas resoluções do COFFITO, além de obrigação de fazer. O principal fundamento para o ajuizamento da ação foi o de que alguns dos termos utilizados na referida resolução concedem direitos que extrapolam a competência profissional primária fixada pelo Decreto-Lei nº 938/69 e invadem a esfera profissional e privativa atribuída aos médicos, o que colocaria em risco a saúde e a vida da coletividade. Para os autores da ação, o diagnóstico é ato privativo do médico, nos termos da Lei nº 12.842/201310 e, portanto, seria ilegal ser esse direito assegurado aos fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. A ação principal foi extinta sem julgamento do mérito, uma vez que o juiz Candido Alfredo Silva Leal Junior, acolheu a preliminar da defesa quanto à ilegitimidade ativa do Sindicato e a inadequação da via eleita, configurando a falta de interesse processual. Em sede recursal, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF 4) cassou a decisão de primeira instância e determinou a remessa dos autos à Vara Federal de origem para nova decisão de mérito. Com isso, foi interposto Recurso Especial (REsp), que restou inadmitido, fazendo com que o processo retornasse e, após os trâmites legais, fosse novamente sentenciado em outubro de 2012, pela M.M. Juíza, que julgou improcedentes os pedidos formulados, após rejeição das preliminares. Da nova sentença mencionada, foi interposto um novo Recuso de Apelação, do qual foram opostos embargos, que foram rejeitados. Com isso, a parte recorrente interpôs REsp11, que foi admitido pelo fato de não terem sido acolhidos os embargos, restando matéria a ser decidida. Posto isso, a matéria chegou ao STJ após mais de 17 anos de tramitação e da última decisão do Superior Tribunal sobre o tema. Mesmo com várias discussões abordadas no REsp, o foco principal se deu quanto ao questionamento formulado pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul quanto à possível ilegalidade ou inconstitucionalidade da previsão contida no artigo 1º da Resolução nº 80, de 09 de maio de 1987 do COFFITO, pelo fato de constar: "é competência do FISIOTERAPEUTA, elaborar o diagnóstico fisioterapêutico compreendido como avaliação físico-funcional, sendo esta, um processo pelo qual, através de metodologias e técnicas fisioterapêuticas, são analisados e estudados os desvios físico-funcionais intercorrentes, na sua estrutura e no seu funcionamento, com a finalidade de detectar e parametrar as alterações apresentadas, considerados os desvios dos graus de normalidade para os de anormalidade; prescrever, baseado no constatado na avaliação físico-funcional as técnicas próprias da Fisioterapia, qualificando-as e quantificando-as; dar ordenação ao processo terapêutico baseando-se nas técnicas fisioterapêuticas indicadas; induzir o processo terapêutico no paciente; dar altas nos serviços de Fisioterapia, utilizando o critério de reavaliações sucessivas que demonstrem não haver alterações que indiquem necessidade de continuidade destas práticas terapêuticas" (grifos nossos). O julgamento do Recurso Especial ocorreu em 21 de junho de 2022, cujo Ministro Relator Gurgel de Faria entendeu pela ilegalidade de "elaborar o diagnóstico fisioterapêutico; prescrever e dar altas nos serviços de Fisioterapia" - previstos no citado artigo 1º da Resolução nº 80, de 09 de maio de 1987 do COFFITO - em consonância com o citado entendimento do STF. Ficou claro que as profissões do fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e médico são autônomas, mas interdependentes. Em que pese a inexistência de hierarquia, ambas atuam em conjunto e em benefício do paciente, mas o diagnóstico, a prescrição e a alta são atos privativos dos médicos, em conformidade com a Lei nº 12.842/2013. Todavia, houve oposição de Embargos de Declaração12 contra a decisão mencionada, com efeitos infringentes, no qual o Ministro Benedito Gonçalves, em decisão diametralmente oposta ao que havia sido decidido, proferiu voto para dar provimento ao recurso do CREFITO-5/RS e COFFITO e rejeitar o recurso do CREMERS e SIMERS. Com isso, a Primeira Turma do STJ, por maioria, vencida a Ministra Regina Helena Costa, decidiu em consonância com o voto vista citado, acolhendo os embargos de declaração do CREFITO-5/RS e COFFITO, permanecendo incólume a previsão acerca da possibilidade de os fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais para "elaborar o diagnóstico fisioterapêutico; prescrever e dar altas nos serviços de Fisioterapia". Do exposto, conclui-se que a demanda chegou até o STJ pela existência de um conflito real sobre a correta interpretação e alcance do termo diagnóstico, contido na Resolução nº 80, de 09 de maio de 1987 do COFFITO. Entretanto, a recente decisão do STJ não foi suficiente para solucionar o tema diante da divergência das decisões proferidas pela própria Turma Julgadora. Isso porque incialmente entenderam pela ilegalidade do diagnóstico realizado pelos fisioterapeutas, conforme decisão proferida no Recurso Especial. Contudo, poucos dias após, eles mudaram a decisão quando do julgamento dos Embargos, opostos em face da decisão do Resp, para considerar legal o diagnóstico realizado pelo fisioterapeuta. Obviamente que é assegurado ao judiciário decidir de forma contrária. No entanto, a fundamentação para a mudança não foi suficientemente clara, permitindo a manutenção das dúvidas. E isso pode ser constatado através de algumas matérias noticiadas após o julgamento dos embargos, dentre elas a publicada com o título "STJ permite que fisioterapeutas elaborem diagnóstico e formulem tratamento"13. Por outro lado, a notícia veiculada pelo site oficial do STJ, datado de 24.11.22, intitulada como: "Para Primeira Turma, fisioterapeuta e terapeuta ocupacional podem diagnosticar e indicar tratamentos"14, traz a seguinte narrativa: "Ao julgar os embargos de declaração no REsp 1.592.450, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, concluiu que é permitido ao fisioterapeuta e ao terapeuta ocupacional diagnosticar doenças, prescrever tratamentos e dar alta terapêutica" (grifos nossos). Não sei se os leitores observaram de forma atenta, mas destacamos em negrito os termos utilizados na matéria veiculada no próprio STJ, que, inadequadamente e, ampliando a interpretação judicial e, a previsão contida na Resolução analisada prevê que: os fisioterapeutas podem diagnosticar doenças e dar alta terapêutica. Evidente a não compreensão sobre o real alcance e interpretação da Resolução, mas, principalmente, o entendimento do STJ sobre a matéria. Inobstante a inequívoca dúvida quanto a legalidade ou não do fisioterapeuta diagnosticar, temos ainda que compreender qual o conteúdo inserido dentro desse possível diagnóstico atribuído ao fisioterapeuta. Para isso, iniciaremos através dos ensinamentos trazidos pelo fisioterapeuta João Noura15, que fundamentado no dicionário médico explica que diagnóstico é "ato de determinar se uma condição está ou não presente, e Avaliação (cuja tradução mais aproximada, na ausência de assessment, é evaluation) é definida como o ato de examinar e, consequentemente, determinar o nível ou quantidade de algo (que podemos entender como sendo uma abordagem probabilística à presença de uma condição)". Ele explica que o diagnóstico, conduta privativa do médico, visa a identificação da condição do paciente (presença ou não de lesão muscular, por exemplo) através da "avaliação, prescrição e interpretação de exames complementares". Por outro lado, ao fisioterapeuta compete a função de mera avaliação dos sinais e sintomas, bem como histórico do paciente constatar: a condição diagnosticada pelo médico, a necessidade de encaminhamento ao médico ou prescrever as técnicas próprias da fisioterapia ao caso concreto. Em resumo, o diagnóstico só poderá ser realizado pelo médico, pois consiste na identificação da patologia primária do paciente. Conduta essa que exige conhecimentos específicos estudados na Medicina, dentre eles a "fisiopatologia, patocronia e literatura associada às condições de saúde", como explica o citado autor. Por outro lado, a avaliação, pode ser realizada tanto por médicos como por fisioterapeutas, razão pela qual o artigo 1º da Resolução nº 80, de 09 de maio de 1987 do COFFITO, estabelece: "é competência do FISIOTERAPEUTA, elaborar o diagnóstico fisioterapêutico compreendido como avaliação físico-funcional...". Contudo, chamem o diagnóstico, como aquele relacionado com a identificação da doença (diagnóstico médico) ou com sinais e sintomas relacionados com a mesma - como é o caso do comprometimento motor ou limitações funcionais, que são denominados de "diagnóstico fisioterapêutico" - deve ser realizado com o máximo de cautela e conhecimento técnico, para viabilizar o alcance da expectativa pretendida, segurança e bem estar do paciente. Inobstante à existência das duas espécies de diagnósticos apresentadas, conclui-se que a Resolução analisada faz uso da terminologia diagnóstico de maneira equivocada, considerando o real propósito ser a mera avaliação, como consta do texto da própria resolução. Sendo assim, o STJ perdeu uma grande oportunidade de distinguir o conceito de ambas as expressões, delimitá-lo e estabelecer a abrangência das atividades de ambas as profissões, sem que se possa falar em invasão de competências e possibilitar a identificação clara das responsabilidades incidentes. Sem a especificação quanto ao limite de atuação de cada profissional e a existência inequívoca das dúvidas quanto ao diagnóstico, teremos consequências para ambos os profissionais. Primeiramente, se o fisioterapeuta pode diagnosticar, seja exclusivamente a avaliação físico-funcional ou a doença, terá como ônus inerente a responsabilidade civil e penal pelos atos por ele praticados. Por outro âmbito, quando o fisioterapeuta apenas realiza a avaliação físico funcional, fundamentando-se em laudo e exames fornecidos pelo médico responsável pelo diagnóstico, toda e qualquer conduta do fisioterapeuta estará justificada na documentação médica. Portanto, na hipótese de tratamento fisioterapêutico inadequado, mas em consonância com o laudo, a responsabilidade civil pelos danos por ventura ocasionados será atribuída ao médico, com base na responsabilidade de terceiro. De modo que o fisioterapeuta só será responsabilizado por danos decorrentes dos seus atos exclusivos, como escolha da técnica ou método inadequados, forma de realização da fisioterapia ou mesmo período de tratamento. Jamais por diagnóstico errado praticado pelo médico. Importante lembrar que é muito complicado para o fisioterapeuta assumir os riscos decorrentes do diagnóstico, especialmente diante de possíveis intercorrências da doença, pelo fato de não ser capacitado tecnicamente. Além disso, o fisioterapeuta deve ter em mente o ônus que está atraindo para si, quando poderia estar isento, caso reconheça tratar-se de um conhecimento específico dos médicos, haja vista o aprofundamento nos estudos necessários para um diagnóstico mais seguro, seja para hipóteses de meras entorses ou casos mais complexos. Portanto, antes das comemorações por parte dos fisioterapeutas em decorrência da decisão proferida pelo STJ, muita cautela é necessária, pois esse é o primeiro passo de um caminho longo a ser percorrido, pois muitos fatos serão desencadeados diante das omissões que deveriam ter sido supridas para obtenção da efetiva segurança, seja para o paciente, ou mais especialmente para os profissionais envolvidos.  Por fim, não se pretende delimitar totalmente o alcance prático do que fora decidido, mas trazer um alerta para estes profissionais, demonstrando que o momento é de extrema atenção e comedimento redobrado, em relação à responsabilidade civil inerente aos direitos supostamente reconhecidos, que poderiam ser atribuídos com exclusividade aos médicos, considerando a maior capacitação técnica, como bem explicado no artigo do fisioterapeuta João Noura. __________ 1CNE/CES. Resolução nº 4, de 19 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduac¸a~o em Fisioterapia. Disponível aqui. 2 CNE/CES. Resolução nº 6, de 19 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduac¸a~o em Terapia Ocupacional. Disponível aqui. 3 Decreto - Lei nº 938, de 13 de outubro de 1969. Disponível aqui. 4 Lei nº 6.316, de 17 de dezembro de 1975. Cria o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Fisioterapia e Terapia Ocupacional e dá outras providências. Disponível aqui. 5 COFFITO. Resolução nº 424, de 08 de Julho de 2013. Estabelece o Código de Ética e Deontologia da Fisioterapia. Disponível aqui. 6 COFFITO. Resolução nº425, de 08 de Julho de 2013. Estabelece o Código de Ética e Deontologia da Terapia Ocupacional. Disponível aqui. 7 Decreto - Lei nº 938, de 13 de outubro de 1969. Art. 3º É atividade privativa do fisioterapeuta executar métodos e técnicas fisioterápicos com a finalidade de restaurar, desenvolver e conservar a capacidade física do ciente. Art. 4º É atividade privativa do terapeuta ocupacional executar métodos e técnicas terapêuticas e recreacional com a finalidade de restaurar, desenvolver e conservar a capacidade mental do paciente. 8Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Resolução n. 80, de 9 de maio de 1987. Disponível aqui. 9 STJ, REsp nº 693.466- RS, Relatora Ministra Eliana Calmon. Segunda Turma.  Julgado em 03.11.2005, DJ. 14.11.2005.  10 Lei nº 12.842, de 10 de julho de 2013. Art. 4º São atividades privativas do médico: § 1º Diagnóstico nosológico é a determinação da doença que acomete o ser humano, aqui definida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes critérios: I - agente etiológico reconhecido; II - grupo identificável de sinais ou sintomas; III - alterações anatômicas ou psicopatológicas. Disponível aqui. 11 STJ, REsp nº 1.592.450 - RS, Relator Ministro Gurgel de Faria. Primeira Turma.  Julgado em 21.06.2022, DJ. 30.06.2022. 12 STJ, EDcl no REsp nº  1.592.450 - RS, Relator Gurgel de Faria. Primeira Turma.  Julgado em 22.11.2022. 13 VITAL, Danilo. "STJ permite que fisioterapeutas elaborem diagnóstico e formulem tratamento". 14 STJ. "Para Primeira Turma, fisioterapeuta e terapeuta ocupacional podem diagnosticar e indicar tratamentos". Disponível aqui. 15 NOURA, João. O "Diagnóstico", e porque é que não o queremos na Fisioterapia. Publicado em 19.07.22. Disponível aqui.
O Direito Ambiental tem como objeto de estudo a proteção do meio ambiente visando a sadia qualidade de vida dos cidadãos. O preceito está positivado no art. 225 da Constituição Federal, que garante a todos o meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo ao Poder Público e à sociedade o dever de preservá-lo. Didaticamente, divide-se a proteção ao meio ambiente em quatro partes que são integradas e interdependentes: natural, artificial, cultural e do trabalho. Em qualquer dos aspectos, há sempre o foco no controle da poluição com vistas a garantir um meio ambiente seguro e adequado aos que aqui habitam. A poluição sonora em ambientes urbanos (meio ambiente artificial) é um grande desafio às autoridades e pessoas que moram nas cidades e metrópoles. A razão é clara: exposto à polução sonora o indivíduo tende a ter piora sensível na qualidade de vida, aumentando o estresse, trazendo dificuldades para dormir, entre outras consequências danosas daí advindas. Tanto assim que a lei brasileira é farta em regulamentar o tema da poluição sonora para minimizar os prejuízos evidentes à saúde humana. Cite-se a regulamentação pela lei 6.938/1981, passando pela Lei de Contravenções Penais (art. 42, incisos I e III), Lei dos Crimes Ambientais (art. 54) e pelo art. 1.277 do Código Civil. Ademais, as leis municipais também estabelecem limites de emissão de ruídos conforme o zoneamento desenhado pelo Plano Diretor. No caso específico da cidade de São Paulo o tema é trazido pela lei municipal 16.402/2016 e decreto municipal 57.443/20161. Os níveis de ruído são, em regra, definidos pelas leis municipais, sempre observando dados científicos sobre o tema, que sugerem limite máximo até 60 (sessenta) decibéis durante o dia de até 50 (cinquenta) decibéis após 22 horas. A Organização Mundial de Saúde apresenta escala de decibéis relativa à emissão de ruídos e suportabilidade humana. Por outro lado, a Associação Brasileira de Normas Técnicas propõe escala de decibéis de níveis de ruídos aceitáveis em espaço urbano e rural. Vejamos1: O art. 3º da lei 6.938/1981, define em seu inciso III a poluição como sendo "a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos". Por outro lado, a mesma lei define poluidor como sendo "a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental" (inciso IV). Portanto, a emissão de ruído acima do indicado pela ABNT ou pela lei municipal pode ser considerado poluição sonora. Ademais, sendo "poluidor" aquele que direta ou indiretamente causa a degradação ambiental, o poluidor pode ser aquele tem a posse do imóvel (locatário ou comodatário) e o proprietário, que seria considerado poluidor "indireto" em razão do uso nocivo da propriedade. Vale lembrar que a responsabilidade civil do poluidor, nesse caso é objetiva, com fundamento no § 1º do art. 14 da lei 6.938/1981: "(...) Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade". A questão seria, então, solucionada pelas regras e princípios do Direito Ambiental, diante da característica de direito ou interesse difuso e/ou interesse individual homogêneo, cabendo a interposição de Ação Civil Pública por qualquer dos legitimados definidos no art. 5º da LACP, para a responsabilização civil dos poluidores, além das imposições de sanções administrativas e penais cabíveis. Trata-se, portanto, de responsabilidade civil objetiva e solidária, obrigando ao ressarcimento dos danos materiais e morais. Caberia pedido de tutela de urgência ou emergência para cessar o ruído, bem como pedido de indenização por dano moral coletivo pela via difusa, devendo o valor ser destinado ao fundo de direitos difusos e coletivos. Na mesma ação coletiva, seria possível o legitimado formular pedido fundamentado em direito individual homogêneo (indisponível, nesse caso, por se tratar de direito à saúde) para indenização aos moradores prejudicados pela poluição sonora. No entanto, conceituada a poluição sonora e definidos os seus parâmetros, resta saber se caberia (além da propositura de ação civil pública) ação individual fundamentada no direito de vizinhança, para responsabilizar os poluidores. A regra geral da tutela coletiva de direitos é clara: a propositura de ação coletiva não induz litispendência para as ações individuais (art. 104 do CDC), devendo ser observada a interpretação do Superior Tribunal de Justiça para a ocorrência de suspensão das ações individuais até a o julgamento da ação coletiva (Tema 923). Direitos de vizinhança Os denominados direitos de vizinhança são direitos de convivência decorrentes da proximidade ou interferência entre prédios, não necessariamente da contiguidade. As regras de vizinhança têm por objetivo harmonizar a vida em sociedade e o bem-estar, sem deixar à margem as finalidades do direito de propriedade3. Além disso, o Direito de Vizinhança é marcado por uma relação jurídica fática: não há uma relação jurídica especial que liga os proprietários vizinhos, a relação é, portanto, propter rem, vinculando o proprietário ou o possuidor do imóvel perante seus vizinhos. Trata-se de situação jurídica de direito das coisas. O conflito de vizinhança deve ser solucionado pelo Código Civil quando um dos proprietários ou possuidores de prédios vizinhos exerce atividade sobre o seu próprio imóvel a qual repercute em outra propriedade. Sílvio Rodrigues destaca que três espécies de ato são capazes de provocar conflito de vizinhança: os ilegais, os abusivos e o lesivos4. Os atos ilegais ocorrem quando um vizinho prejudica o outro praticando um ato ilícito, respondendo pelos danos causados nos termos dos art. 186 e, se o caso, do art. 927, ambos do Código Civil. Já o abuso de direito pode ocorrer nas relações de vizinhança quando um proprietário, mesmo no exercício do seu direito, se dele usar abusivamente. Os atos lesivos dizem respeito ao uso da propriedade de forma irregular, desrespeitando a legislação vigente, em especial as regras estabelecidas pelo Código Civil e do Estatuto das Cidades, ou restrições advindas de licenças ambientais conforme o Estudo de Impacto de Vizinhança para obras de maior potencial ofensivo. A par das discussões sobre a responsabilidade civil objetiva ou subjetiva em direito de vizinha, a poluição sonora pode ser considerada ato lesivo, que diz respeito ao uso da propriedade de forma irregular, devendo seguir a regra da responsabilidade civil objetiva do possuidor e do proprietário, na forma do art. 14 da Lei 6.938/1981 acima transcrito. Ressalta-se, por fim, que o art. 1.277 do Código Civil autoriza o proprietário ou possuidor do prédio a fazer cessar as interferências prejudiciais causadas por outro vizinho: "O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha". Breve conclusão Não resta dúvida, portanto, que nas hipóteses de poluição sonora a via adequada para que haja a cessação da emissão de ruído, bem como a indenização pelo desrespeito ao meio ambiente sadio, é a Ação Civil Púbica, por ser mais abrangente e adequada à defesa dos interesses difusos. É cabível, na mesma ação, pedido individual homogêneo para o ressarcimento dos prejuízos dos moradores e outras pessoas que foram afetadas pela emissão de ruídos. Por outro lado, havendo uso nocivo da propriedade, o proprietário ou possuidor lesado tem legitimidade para estar em juízo, em ação individual, para pleitear a cessação da emissão de ruído, danos materiais e morais advindos da poluição sonora, sem prejuízo de eventual ação coletiva em andamento.  Referências bibliográficas DANTAS, San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972. PEREIRA. Caio Mário. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002. RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito das coisas. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: obrigações e responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2018. __________ 1 Importante notar que o tema está em ebulição na cidade de São Paulo, tendo sido aprovado projeto de lei que aumentou o limite máximo para 75 decibéis em eventos e nos espaços denominados "dark kitchens" (vale notar, a regra geral continua sendo 65 decibéis o volume máximo de ruído tolerado até às 22 horas, passando para 55 decibéis após esse horário). Sobre o assunto, veja aqui. 2 Disponível aqui. 3 San Tiago Dantas, em sua clássica obra sobre Direito de Vizinhança, explica que, para que haja "conflito de vizinhança", é sempre necessário "que um ato praticado pelo possuidor de um prédio, ou o estado de coisas por êle mantido, vá exercer os seus efeitos sôbre o imóvel vizinho, causando prejuízo ao próprio imóvel ou incómodos ao seu morador. Essa "interferência", essa repercussão in alieno, é o elemento fundamental do conflito. O rumor que se propaga, a fumaça que se espalha no ar, a umidade que se infiltra no solo, tudo que atinge um prédio em consequência de um fato, ocorrido em outro, constitui "interferência" e pode motivar a reclamação do proprietário incomodado, dando nascimento, assim, ao conflito. Não basta, porém, que se verifique "interferência" num prédio, para a colisão de interesses daí resultante ser chamada "conflito de vizinhança". Esta última expressão tem compreensão mais limitada, abrange espécies mais precisas e menos numerosas, e é essencial lhe fixemos a amplitude, antes de avançar no estudo dos problemas que temos de considerar". O conflito de vizinhança e sua composição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972. p. 20. 4 RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito das coisas. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 125.
A partir da edição do Código Civil de 2002, poucas foram as categorias jurídicas que denotaram tamanha expansão quanto o direito à privacidade. Em duas décadas, testemunhou-se o deslocamento do espaço lateral que a privacidade ocupava para a centralidade de discussões em diversas áreas: de certo modo, tratar da dimensão normativa das relações jurídicas (em seus diversos matizes) passou a significar, também, a tratar do alcance normativo da privacidade. É possível identificar diversas causas para este movimento centrípeto da privacidade; porém, uma delas parece expressar particular importância: o desenvolvimento potencializado da tecnologia da informação, que promove o uso incessante de algoritmos para a coleta e processamento de dados e viabiliza o predomínio, hoje percebido, das plataformas digitais. Surge disso, nas palavras de Ana Frazão, "[...] a ideia de uma economia movida a dados [...], já que os dados pessoais são hoje o novo 'petróleo' ou principal insumo das atividades econômicas"1, perspectiva que globalmente vem sendo denominada como data-driven economy.2 De modo similar, Shoshana Zuboff, professora da Harvard Business School, afirma que esse predomínio das plataformas digitais implica na consolidação da "era do capitalismo de vigilância" ("The Age of Surveillance Capitalism"), que caracteriza "[...] uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como material livre para práticas comerciais ocultas de extração, previsão e venda"3. Tal modelo compreende a estruturação das plataformas digitais para além de simples ferramentas de usuários, porquanto, ao erigirem-se como verdadeiro modelo de negócios, criam um ecossistema de interação entre agentes empreendedores que viabiliza substanciais trocas econômicas. Essas trocas, ao seu turno, consubstanciam-se por meio da colheita de dados pessoais dos usuários das referidas plataformas e, do mesmo modo, da expansão da utilização de produtos e objetos dotados de interfaces tecnológicas (smartwatches, termostatos informatizados, palmilhas inteligentes, etc) que os conectam com a internet e a outros dispositivos, otimizando o dia a dia de consumidores em ambiente doméstico e profissional. É nesse espaço de inovação que Eduardo Magrani define a consolidação da chamada "Internet das Coisas", globalmente referida pela sigla IoT (Internet of Things), como "[...] um ecossistema de computação onipresente [...] voltado para a facilitação do cotidiano das pessoas [...]. O que todas as definições de IoT têm em comum é que elas se concentram em objetos que interagem uns com os outros e processam informações/dados em um contexto de hiperconectividade"4. Apesar de atrativo, todo esse cenário parece colocar em xeque a definição da privacidade balizada exclusivamente no paradigma da autodeterminação informativa, que a compreende a partir do controle de dados e informações pessoais por cada sujeito - paradigma esse que, apesar de relevante, já se mostra insuficiente em face dos desafios contemporâneos. É necessário, portanto, ir além, justamente porque a privacidade expressa importante valor normativo se reconhecida como eixo para o exercício das liberdades, sendo o vetor de projeção e gênese dos direitos da personalidade na medida em que se reconhece que as expressões de nossa existência dela (da privacidade) surgem. E, se assim o é, a privacidade pode também servir como chave de configuração de um sistema normativo desinente de institutos correlacionados do Direito Civil que possam contribuir com os mecanismos de tutela da personalidade humana já encetados na ordem jurídica. Esse viés abre espaço para uma compreensão renovada da Responsabilidade Civil e de seu contributo à proteção da privacidade como vetor de projeção dos direitos da personalidade e exercício de liberdades, justamente a partir do reconhecimento do traçado multifuncional que vem sendo a ela atrelada. De plano, cumpre destacar que desde a primavera de 1988, a Responsabilidade Civil no Brasil tem sido objeto de crescentes modificações e flexibilizações, inicialmente derivadas do giro conceitual que fixou na vítima do evento lesivo o foco de maior atenção5. Bem por isso é que Nelson Rosenvald afirma que a Responsabilidade Civil expressa contemporaneamente uma face multifuncional, envelopando funções de reparação, punição e precaução, acabando por se mostrar "[...] dúctil e maleável às exigências de um direito civil, comprometido com as potencialidades transformadoras da Constituição Federal."6 Esse traçado multifuncional da Responsabilidade Civil pode se mostrar útil ao desafio de tutela da personalidade humana inaugurado pela data-driven economy a partir do crescente interesse verificado na doutrina nacional para uma melhor compreensão sobre a restituição derivada de lucros ilícitos, corporificadas normativamente a partir de duas figuras oriundas do common law: o disgorgement (estruturado como a remoção dos lucros ilícitos) e o restitutionary damages (delineado com a restituição dos lucros ilícitos). Em recente obra sobre o tema, Nelson Rosenvald explica que a restituição pelo lucro ilícito é usualmente encarada por meio do modelo fragmentado erigido pelo instituto do enriquecimento sem causa, alicerçado no art. 884 do CC/20027. Em um comparativo com o sistema normativo alemão, o autor sustenta8 que o instituto do enriquecimento sem causa pode funcionar como "[...] fonte de obrigações, apto a ocasionar o exercício da ação in rem verso" em hipóteses de enriquecimento obtido por fato injusto; enriquecimento pela frustração negocial indevida descrita no art. 885 do CC/20029; e o enriquecimento decorrente da prestação de terceiro, hipótese regulada pelo art. 305 do diploma material cível em vigor.10 Adiante, é forçoso reconhecer que o modelo de restituição pelo lucro ilícito, se melhor explorado nos limites da Responsabilidade Civil brasileira, poderá servir como um mecanismo de tutela restitutória em face da apropriação indevida de dados pessoais por meio de plataformas digitais, aplicativos e dispositivos de IoT. Ora, se mesmo com os escândalos de hackers e coleta não autorizada de dados pessoais o Facebook arrecadou lucro recorde no último trimestre de 2018, alcançando a cifra de US$ 6.800.000.000.000,00 (seis bilhões e oitocentos milhões de dólares)11, a restituição pelo lucro ilícito poderia ser compreendido como uma contribuição adequada da Responsabilidade Civil (i) ao desestímulo gradual da continuidade da atual tecnorregulação da coleta de dados pessoais e (ii) à possível restituição e consequente tutela concreta da privacidade erodida pelas plataformas digitais que protagonizam a atual economia movida a dados. Neste ponto, é necessário sublinhar que o dano caracterizado pelas plataformas digitais possui feições singulares no âmbito da data-driven economy. Ainda que a captura e processamento incessante e não autorizados de dados pessoais atinja interesses juridicamente tutelados (como bem categoriza Anderson Schreiber ao tratar da definição jurídica de dano12), verificados na personalidade humana e privacidade, a mera eficácia indenizativa do ato ilícito não se mostra, a rigor, adequado ao propósito de uma tutela e reparação efetivas. Há que se melhor investigar a projeção da eficácia restitutória derivada dos atos ilícitos praticados em tal âmbito, justamente para que se alcance o contributo acima assinalado. Ponderando sobre a definição de civilização vertida por Mario Vargas Llosa e a tutela da propriedade imaterial, Nelson Rosenvald afirma hipótese que bem se amolda ao cenário da data-driven economy: a ampliação incalculável de possibilidade de novas violações aos direitos da personalidade e o estabelecimento de lucros consideráveis a partir dessas condutas ilícitas. Em suas palavras: A par de todas estas vicissitudes - inerentes à civilização do espetáculo -, comparados aos direitos das propriedades intelectuais, vê-se que os direitos da personalidade apresentam similar necessidade de tutela. Um infinito número de violações é possível, não existe tutela preventiva efetiva e a proteção oferecida pelo direito penal é insuficiente. Ademais da consolidada reparação do dano moral, o resguardo de situações existenciais pode ser implementado por tutelas inibitórias e pretensões desmonetizadas, como retratações e direito de resposta. Todavia, esses remédios são inadequados para levar em consideração o alto nível de proteção que estes direitos demandam. Além disso, consideráveis lucros podem ser produzidos pela violação de atributos intrínsecos à pessoa, em quantias muito superiores aos danos estimados, especialmente pela inerente dificuldade de sua avaliação. Essa combinação de fatores, torna atrativa sob o cálculo matemático a reiteração dessas violações [...]13.  Assim, no estabelecimento da Responsabilidade Civil inserta no sistema normativo fundado na privacidade e esteado no Direito Civil, mostra-se possível identificar na investigação comprometida do instituto estabelecido no art. 884 do CC/2002 a trilha de contributo que possa nos levar ao estabelecimento concreto da restituição do lucro derivado de práticas ilícitas aos titulares dos dados pessoais que tiveram sua privacidade, em sentido além da autodeterminação informativa, erodida. Eis, então, um primeiro passo para (re)pensarmos qual é o papel que a Responsabilidade Civil efetivamente poderá desempenhar na tutela da privacidade compreendida como eixo principal do desenvolvimento da personalidade humana (e de seus direitos correlatos), bem como para o exercício de liberdades por cada sujeito. Referências CORRÊA, Rafael. Os plúrimos sentidos da privacidade e sua tutela: a questão da proteção de dados pessoais e sua violação na atual construção jurisprudencial brasileira. In: FACHIN, Luiz Edson et al [Coords.] Jurisprudência Civil Brasileira. Métodos e problemas. Belo Horizonte: Fórum, 2017. DONEDA, Danilo. Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil. Sentido, transformação e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. FRAZÃO, Ana. Plataformas digitais, big data e riscos para os direitos da personalidade. In: TEPEDINO, Gustavo; MENEZES, Joyceane Bezerra de [Coord.]. Autonomia Privada, Liberdade Existencial e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2019. MAGRANI, Eduardo. A Internet das Coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018 [livro eletrônico]. PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos Fundamentais do Direito Civil e Liberdade(s).Repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ Editora,2011. RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade de Vigilância. A privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil. A reparação e a pena civil. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2012. ______. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo. O disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.  WAHLSTER, Wolfgang et al [Editors]. New Horizons for a Data-DrivenEconomy. Roadmap for usageandexploitationof Big Data in Europe [livro eletrônico]. Springer InternationalPublishing, 2016.  WALDMAN, Ari Ezra. Privacy as Trust. Informationprivacy for aninformation age [livro eletrônico]. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.  ZUBOFF, Shoshana. The Age ofSurveillanceCapitalism. The fight for a human future atthe new frontierofPower [livro eletrônico]. New York: PublicAffairs, 2019. __________ 1 FRAZÃO, Ana. Plataformas digitais, big data e riscos para os direitos da personalidade. In: TEPEDINO, Gustavo; MENEZES, Joyceane Bezerra de [Coord.]. Autonomia Privada, Liberdade Existencial e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 333. 2 WAHLSTER, Wolfgang et al [Editors]. New Horizons for a Data-Driven Economy. Roadmap for usage and exploitation of Big Data in Europe. Springer International Publishing, 2016 [livro eletrônico]. 3 ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism. The fight for a human future at the new frontier of power. New York: Public Affairs, 2019 [livro eletrônico]. Já na abertura da obra, Zuboff assim consigna o primeiro verbete definidor do "capitalismo de vigilância": "1. A new economic order that claims human experience as free raw material for hidden comercial practices of extraction, predictions, and sales." Posição 102. 4 MAGRANI, Eduardo. A Internet das Coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018 [livro eletrônico]. 5 Tais perspectivas redundam, inclusive, em alteração da nomenclatura do instituto, passando a ser encarado como "direito de danos" ou "responsabilidade por danos". A perspectiva do giro paradigmático é espelhada com clareza na reflexão de Luiz Edson Fachin: "Situação que também emerge como exemplar é a imputação sem nexo de causalidade na responsabilidade por danos. [...] A imputação tem no centro a preocupação com a vítima; a imputação é a operação jurídica aplicada à reconstrução do nexo. Da complexidade e da incerteza nascem fatores inerentes à responsabilização por danos. É de alteridade e justiça social que deve se inebriar o nexo de causalidade, atento à formação das circunstâncias danosas." FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil. Sentido, transformação e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. p. 113-114. 6 ROSENVALD, Nelson. As Funções da Responsabilidade Civil. A reparação e a pena civil. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 5-6. 7 Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.  Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido. 8 ROSENVALD, Nelson. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo. O disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. p. 325-328. 9 Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir. 10 Art. 305. O terceiro não interessado, que paga a dívida em seu próprio nome, tem direito a reembolsar-se do que pagar; mas não se sub-roga nos direitos do credor. Parágrafo único. Se pagar antes de vencida a dívida, só terá direito ao reembolso no vencimento. 11 Em ano de crise, Facebook ganha usuários e lucro bate recorde. Folha de São Paulo. Disponível aqui. Acesso em novembro de 2022. 12 SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil. Da erosão dos filtros de reparação à diluição dos danos. 5ª Edição. São Paulo: Atlas, 2013. 13 ROSENVALD, Nelson. A Responsabilidade Civil pelo Ilícito Lucrativo. O disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. p. 437-438.
No último dia 6 de dezembro, a Comissão de Juristas do Senado Federal, da qual tive a honra de fazer parte como membro, entregou ao Presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco, o anteprojeto do texto para regular a Inteligência Artificial no Brasil. Sob presidência do Ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva e relatoria da Professora Laura Schertel Mendes, o texto é fruto do intenso trabalho da Comissão ao longo dos últimos meses, contando com ampla participação de diversos setores da academia, mercado e sociedade civil por meio de audiências públicas e seminário internacional. O presente artigo não se revela, sob nenhuma circunstância, em manifestação de caráter institucional, nem pretende fazer uma defesa do texto apresentado. Seu único objetivo é fornecer alguns subsídios para o debate que continua agora que o anteprojeto foi entregue ao Senado Federal. O texto, como dispõe seu artigo 1º, "estabelece normas gerais de caráter nacional para o desenvolvimento, implementação e uso responsável de sistemas de inteligência artificial (IA) no Brasil, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais e garantir a implementação de sistemas seguros e confiáveis, em benefício da pessoa humana, do regime democrático e do desenvolvimento científico e tecnológico." Tem-se, assim, como grandes pilares a centralidade da pessoa humana e a preocupação com a concretização de direitos, ao mesmo tempo em que se busca estabelecer diretrizes mínimas para a governança em relação à utilização desta tecnologia que se espraia pelos mais diversos meios da vida social. Ao longo da atuação da Comissão, um dos pontos mais discutidos foi, sem dúvidas, o da Responsabilidade Civil. A importância deste assunto se deve, sobretudo, ao fato de que o Projeto de Lei 21/2020, aprovado pela Câmara dos Deputados, previa a adoção preferencial do regime de responsabilidade de natureza subjetiva, o que atraiu forte onda de críticas por parte da doutrina especializada, tendo sido esta discordância uma das razões preponderantes para a própria instalação da Comissão de Juristas. Especialistas ouvidos nas audiências públicas, como Anderson Schreiber, Caitlin Mulholland, Gisela Sampaio e Nelson Rosenvald, apontavam para os perigos de uma regulamentação descuidada do tema, sob pena de se acabar gerando verdadeira fratura no sistema de Responsabilidade Civil brasileiro. Ao mesmo tempo, representantes de inúmeros setores, especialmente daqueles ligados à indústria e ao mercado, se manifestaram na defesa da regulamentação da matéria, a fim de favorecer a segurança jurídica e permitir a criação de um ecossistema de governança mais adequado. Diante de opiniões tão radicalmente contrárias, a opção escolhida pela Comissão parece tender ao equilíbrio. Com nítida inspiração nas recentes propostas de regulamentação do tema pela União Europeia, especialmente na Resolução de 20 de outubro de 2020 do Parlamento Europeu, o anteprojeto busca regular o tema a partir dos riscos gerados pelos diversos sistemas de Inteligência Artificial, evitando o perigo - e a tentação - de conferir resposta única para um problema multifacetado. Se muitos são os sistemas de IA e os riscos a eles associados, muitos devem ser os regimes de Responsabilidade Civil. Da mesma forma, para além deste aspecto objetivo, o anteprojeto faz um recorte subjetivo, diferenciando as soluções de acordo com os sujeitos envolvidos na causação do dano. Atenta-se, assim, para os critérios da tipologia, autonomia, riscos e sujeitos da IA, como já tivéramos a oportunidade de identificar como tendência mundial para o tema ainda no ano de 2019.1 O recorte feito pela Comissão se estrutura, então, em dois aspectos centrais: sujeitos e tipos de IA, a depender do tipo de risco envolvido. Em relação aos sujeitos, o regime de responsabilidade proposto só seria aplicável aos chamados "agentes de IA" (art. 4º, inciso IV), que são, respectivamente, o "fornecedor de sistema de IA" (art. 4º, inciso II) e o "operador de sistema de IA" (art. 4º, inciso III). No entanto, antes de analisar as figuras, necessário dar um passo atrás para compreender o que são sistemas de IA. Na definição do inciso I do art. 4º, sistema de inteligência artificial (IA) é todo "sistema computacional, com graus diferentes de autonomia, desenhado para inferir como atingir um dado conjunto de objetivos, utilizando abordagens baseadas em aprendizagem de máquina e/ou lógica e representação do conhecimento, por meio de dados de entrada provenientes de máquinas ou humanos, com o objetivo de produzir previsões, recomendações ou decisões, que possam influenciar o ambiente virtual ou real." O conceito - em atenção a críticas feitas por especialistas ao longo das audiências públicas - não se restringe às técnicas de aprendizado de máquina (machine learning), projetando-se, também, para outras técnicas de IA. Em relação aos agentes, tem-se que o fornecedor de sistema de IA é toda "pessoa natural ou jurídica, de natureza pública ou privada, que desenvolva um sistema de IA, diretamente ou por encomenda, com vistas à sua colocação no mercado ou sua aplicação em serviço por ela fornecido, sob seu próprio nome ou marca, a título oneroso ou gratuito" (art. 4º, inciso II). Já o operador de sistema de IA é toda "pessoa natural ou jurídica, de natureza pública ou privada, que empregue ou utilize, em seu nome ou benefício, sistema de IA, salvo se o sistema de IA for utilizado no âmbito de uma atividade pessoal de caráter não profissional." No fundo, a figura dos fornecedores se confunde, em grande medida, com a dos desenvolvedores de tecnologias, seja para colocação no mercado, seja para utilização própria, ainda que a título gratuito. Por outro lado, os operadores são aqueles sujeitos que utilizem a tecnologia, desde que não o façam para fins de atividade pessoal de caráter não profissional. Além disso, em seu artigo 29 - e na mesma direção do artigo 45 da LGPD -, o anteprojeto excluiu da incidência do regime criado pela lei as hipóteses de responsabilização civil decorrentes de danos causados por sistemas de IA no âmbito das relações de consumo, as quais "permanecem sujeitas às regras previstas no Código de Defesa do Consumidor, sem prejuízo da aplicação das demais normas desta Lei." Como se pode perceber, o anteprojeto optou por uma regulação com âmbito de incidência mais restrito, eis que ficaram de fora, por exemplo, os usuários de IA de caráter não profissional, o Estado - cujo regime de responsabilidade tem sede constitucional -, bem como os fornecedores previstos pelo CDC, ainda que profissionais liberais. Exemplificativamente, o regime previsto no anteprojeto não é aplicável (i) ao proprietário de carro autônomo ou de robô doméstico que cause acidente em atividade não profissional; (ii) ao Estado quando utilize IA e venha a causar danos; (iii) ao hospital que realize cirurgia robótica com IA e cause dano estético ao paciente; e, enfim, (iv) ao médico, quando profissional liberal, que cause dano ao paciente após se valer de alguma ferramenta de IA. Tais situações continuarão sendo regidas pela legislação pertinente, cabendo à doutrina e à jurisprudência a definição dos regimes de responsabilidade aplicáveis a cada hipótese. Por outro lado, o regramento proposto seria aplicável aos contextos de relações interempresariais, quando, por exemplo, uma empresa desenvolva um software de IA para outra e tal software venha a causar algum tipo de dano. Observe-se, contudo, que será preciso, ainda, verificar, no caso concreto, se existe ou não vulnerabilidade apta a atrair a aplicação da legislação consumerista. Há, contudo, situações que estão numa zona cinzenta. Veja-se, nessa direção, o caso do condomínio que utilize sistema de IA e cause dano a condômino. Por certo, não se trataria, em princípio, de relação de consumo, mas ainda haveria dúvidas em relação ao elemento "atividade pessoal de caráter não profissional" para se determinar se o condomínio se enquadraria como operador ou não. Em relação ao recorte objetivo, isto é, os tipos de IA, o artigo 27 diferencia em seus parágrafos 1º e 2º o regime aplicável a depender se o sistema de IA é de alto risco e risco excessivo ou não. Como regra geral, o caput dispõe que: "o fornecedor ou operador de sistema de IA que cause dano patrimonial, moral, individual ou coletivo é obrigado a repará-lo integralmente, independentemente do grau de autonomia do sistema." A reparação integral evidenciada no dispositivo também consta do rol de princípios do anteprojeto, que em seu art. 3º, inciso X, elenca "prestação de contas, responsabilização e reparação integral de danos." Outrossim, a fim de se evitar a irresponsabilização em casos de delegação ou supervisão, o caput traz o aposto explicativo de que os agentes serão responsáveis não importando qual seja o grau de autonomia do sistema de IA. Conforme o parágrafo 1º, "[q]uando se tratar de sistema de IA de alto risco ou de risco excessivo, o fornecedor ou operador respondem objetivamente pelos danos causados, na medida da participação de cada um no dano." E, de acordo com o parágrafo 2º, "[q]uando se tratar de IA que não seja de alto risco, a culpa do agente causador do dano será presumida, aplicando-se a inversão do ônus da prova em favor da vítima." Ou seja: para IAs de alto risco ou risco excessivo, a responsabilidade será objetiva e, em atenção ao nexo de causalidade, dependerá da participação de cada um na causação do evento lesivo, não havendo que se falar em solidariedade. Já em relação aos demais tipos de IA, o regime será de natureza subjetiva, com presunção de culpa e inversão do ônus da prova em favor da vítima. O artigo 28 destaca, na sequência, que os agentes de IA não serão responsabilizados quando "I - comprovarem que não colocaram em circulação, empregaram ou tiraram proveito do sistema de IA;" e "II - comprovarem que o dano é decorrente de fato exclusivo da vítima ou de terceiro, assim como de caso fortuito externo." Destaca-se que as excludentes se aplicam para todos os tipos de sistemas de IA, independentemente do risco. Resta, por derradeiro, explicar, resumidamente, as classificações de IA em risco excessivo e alto risco. Em linhas gerais, as IAs de risco excessivo são aquelas proibidas pela lei. No fundo, risco excessivo é o risco inaceitável (utilizando-se a terminologia europeia) e sua disciplina se concentra nos artigos 14 a 16. O artigo 14 traz em seu caput que "[s]ão vedadas a implementação e uso de sistemas de IA: I - que empreguem técnicas subliminares que tenham por objetivo ou por efeito induzir a pessoa natural a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança ou contra os fundamentos deste lei; II - que explorem quaisquer vulnerabilidades de um grupo específico de pessoas naturais, tais como associadas à sua idade ou deficiência física ou mental, de modo a induzi-las a se comportar de forma prejudicial à sua saúde ou segurança ou contra os fundamentos desta lei; III - pelo poder público para avaliar, classificar ou ranquear as pessoas naturais, com base no seu comportamento social ou em atributos da sua personalidade, por meio de pontuação universal para o acesso a bens e serviços e políticas públicas, de forma ilegítima ou desproporcional." De nítida inspiração na proposta do AI Act europeu, ficaram de fora, de forma explícita, a proibição a armas letais autônomas e as restrições às deepfakes. No artigo 15, buscou-se disciplinar a vigilância de massa, isto é, o chamado mass surveillance: "Art. 15. No âmbito de atividades de segurança pública, somente é permitido o uso de sistemas de identificação biométrica à distância de forma contínua em espaços acessíveis ao público, quando houver previsão em lei federal específica e autorização judicial em conexão com a atividade de persecução penal individualizada, nos seguintes casos: I -para persecução de crimes passíveis de pena máxima de reclusão superior a dois anos; II - busca de vítimas de crimes ou pessoas desaparecidas; III - crime em flagrante. Parágrafo único. A lei a que se refere o caput deverá prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal e o controle judicial, bem como os princípios e direitos previstos nesta Lei, especialmente a garantia contra a discriminação e a necessidade de revisão da inferência algorítmica pelo agente público responsável antes da tomada de qualquer ação em face da pessoa identificada." Por fim, dispôs o artigo 16 que "[c]aberá à Autoridade Competente regulamentar os sistemas de IA de risco excessivo." Em relação ao alto risco, a disciplina se resume aos artigos 17 e 18. O primeiro traz um rol taxativo: "Art. 17.  São considerados sistemas de IA de alto risco aqueles utilizados para as seguintes finalidades: I - aplicação como dispositivos de segurança na gestão e funcionamento de infraestruturas críticas, tais como controle de trânsito e redes de abastecimento de água e eletricidade; II - de educação e formação profissional, incluindo sistemas de determinação de acesso a instituições de ensino e formação profissional ou para avaliação e monitoramento de estudantes; III - de recrutamento, triagem, filtragem, avaliação de candidatos, tomada de decisões sobre promoções ou cessações de relações contratuais de trabalho, repartição de tarefas e controle e avaliação do desempenho e do comportamento das pessoas afetadas por tais aplicações de IA nas áreas de emprego, gestão de trabalhadores e acesso ao emprego por conta própria; IV - avaliação de critérios de acesso, elegibilidade, concessão, revisão, redução ou revogação de serviços privados e públicos que sejam considerados essenciais, incluindo sistemas utilizados para avaliar a elegibilidade de pessoas naturais quanto a prestações e serviços públicos de assistência e seguridade; V - avaliação da capacidade de endividamento das pessoas naturais ou estabelecer sua classificação de crédito; VI - envio ou estabelecimento de prioridades para serviços de resposta a emergências, incluindo bombeiros e assistência médica; VII - administração da justiça, incluindo sistemas que auxiliem autoridades judiciárias na investigação dos fatos e na aplicação da lei; VIII - veículos autônomos quando seu uso puder gerar riscos à integridade física de pessoas; IX - aplicações na área da saúde, inclusive as destinadas a auxiliar diagnósticos e procedimentos médicos; X - sistemas biométricos de identificação; XI - investigação criminal e segurança pública, em especial, para avaliações individuais de riscos pelas autoridades competentes, a fim de determinar o risco de uma pessoa cometer infrações ou de reincidir, ou o risco para potenciais vítimas de infrações penais ou para avaliar os traços de personalidade e as características ou o comportamento criminal passado de pessoas singulares ou grupos; XII - estudo analítico de crimes relativos a pessoas naturais, permitindo às autoridades policiais pesquisar grandes conjuntos de dados complexos, relacionados ou não relacionados, disponíveis em diferentes fontes de dados ou em diferentes formatos de dados, no intuito de identificar padrões desconhecidos ou descobrir relações escondidas nos dados; XIII - investigação por autoridades administrativas para avaliar a credibilidade dos elementos de prova no decurso da investigação ou repressão de infrações, para prever a ocorrência ou a recorrência de uma infração real ou potencial com base na definição de perfis de pessoas singulares; XIV - gestão da migração e controle de fronteiras." Apesar de taxativo, o rol poderá ser atualizado pela Autoridade Competente, figura esta criada pelo anteprojeto e que deverá ser escolhida em momento posterior. Segundo o artigo 18: "[c]aberá à autoridade competente atualizar a lista dos sistemas de IA de risco excessivo ou de alto risco, identificando novas hipóteses, com base em pelo menos um dos seguintes critérios: a)  a implementação ser em larga escala, levando-se em consideração o número de pessoas afetadas e a extensão geográfica, bem como a sua duração e frequência; b) o sistema puder impactar negativamente o exercício de direitos e liberdades ou a utilização de um serviço; c) o sistema tiver alto potencial danoso de ordem material e moral, bem como discriminatório; d) o sistema afetar pessoas de um grupo específico vulnerável. e)  serem os possíveis resultados prejudiciais do sistema de IA irreversíveis ou de difícil reversão; f) um sistema de IA similar já ter causado danos materiais ou morais; ou g) baixo grau de transparência, explicabilidade e auditabilidade do sistema de IA, que dificulte o seu controle ou supervisão; h) alto nível de identificabilidade dos titulares dos dados, incluindo o tratamento de dados genéticos e biométricos para efeitos de identificação única de uma pessoa singular, especialmente quando o tratamento inclui combinação, correspondência ou comparação de dados de várias fontes; i) quando existirem expectativas razoáveis do afetado quanto ao uso de seus dados pessoais no sistema de IA, em especial a expectativa de confidencialidade, como no tratamento de dados sigilosos ou sensíveis. Parágrafo único. A atualização da lista pela autoridade competente deve ser precedida de consulta ao órgão regulador setorial competente, se houver, assim como de consulta e audiência públicas e de análise de impacto regulatório." Outra norma de grande relevância está contida no artigo 41 do anteprojeto, que se insere na disciplina do ambiente regulatório experimental para inovação (sandbox regulatório) em IA. Segundo o dispositivo: "Os participantes no ambiente de testagem da regulamentação da IA continuam a ser responsáveis, nos termos da legislação aplicável em matéria de responsabilidade, por quaisquer danos infligidos a terceiros em resultado da experimentação que ocorre no ambiente de testagem." A regra, de inspiração imediata em disposição semelhante na Proposta do AI Act europeu tem por finalidade evitar a irresponsabilização por danos no âmbito das sandboxes. Dito diversamente: o fato de haver eventuais atenuações no rigor de normas regulatórias não implicaria a ausência de responsabilidade por danos eventualmente causados. Em linhas finais, cumpre pontuar que o regime de Responsabilidade Civil proposto pelo anteprojeto tem âmbito de aplicação bastante limitado e manifesta clara tendência pela objetivação da responsabilidade, considerados os inegáveis riscos de danos causados pelos sistemas de Inteligência Artificial. Caberá ao Congresso Nacional, em aprofundamento dos trabalhos da Comissão, refletir de modo mais detido em relação a temas como securitização obrigatória e fundos compensatórios, que têm se revelado como tendência global na matéria. E, à doutrina, caberá aprofundar as discussões em relação à gestão de riscos - incluindo precaução e prevenção -, governança, boas práticas e medidas de accountability, à luz dos diversos dispositivos sugeridos pelo anteprojeto. O texto traz, inequivocamente, importantes avanços não apenas em matéria de Responsabilidade Civil, como em outros temas centrais para o desenvolvimento da IA, com a inclusão da pessoa humana em seu epicentro. No entanto, não se trata de um trabalho pronto e acabado, mas de um pontapé inicial para o jogo que recomeça agora no campo do Congresso. E, aproveitando o clima de Copa e a inspiração "galvanesca": segue o jogo, amigo! __________ 1 MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade. São Paulo: Juspodivm, 2022, 2. ed.
Introdução Com mais de 500 mil médicos no Brasil1, a maioria dos acadêmicos e profissionais optam por fazer Residência Médica - com duração de 2 a 5 anos - e tornarem-se especialistas em determinada área do corpo humano. Atualmente o CFM2 reconhece 55 especialidades médicas e 59 áreas de atuação. Dentre as 55 especialidades oficiais existem algumas que ainda podem ser pouco conhecidas pelo público em geral, como a acupuntura, a medicina de emergência ou a medicina preventiva e social. Interessante expor que o CFM não reconhece "medicina estética" e "medicina integrativa" como especialidades médicas. Aos médicos que não cursaram uma residência ou não possuem um título de especialista, a nomenclatura correta é "médico generalista" e não "clínico geral" como comumente são chamados, haja vista que "clínico geral" é o título do médico especialista em Clínica Médica. Pediatria Aqueles que optam por fazer a especialidade mais fofa de todas cursam um programa de residência médica com duração de 3 anos. A pediatria é a opção de 10,1% dos médicos brasileiros e 74,4% deles são mulheres3. Dentre as atribuições de um pediatra está o dever de cuidado, principalmente em casos de suspeita de abusos sexuais e maus-tratos com contra seus pequenos pacientes. Nestes casos cabe ao especialista a notificação obrigatória ao Conselho Tutelar e em alguns casos ao Ministério Público, como dispõe o artigo 13 do ECA4. Mesmo que o público-alvo desses especialistas sejam menores de idade, o Código de Ética Médica enfatiza a importância de manter o sigilo profissional entre o médico e o paciente. Dispõe o artigo 745 que é vedado ao médico: Revelar sigilo profissional relacionado a paciente criança ou adolescente, desde que estes tenham capacidade de discernimento, inclusive a seus pais ou representantes legais, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente. Sendo assim, se o pediatra quebrar o sigilo fora das hipóteses que lhe são permitidas, poderá haver responsabilidade civil. Considerando a natureza da atividade do médico pediatra, os erros mais comuns dentro desta especialidade são a negligência e o erro de diagnóstico. A negligência, nas palavras de França6, se caracteriza pelo não fazer, pela inércia, pela indolência e como exemplo podemos citar: não requerer exames pré-operatórios, não requisitar exames complementares, não considerar o relato dos pais/responsáveis ou não fazer perguntas aos pais/responsáveis. Compreendendo que a maioria dos pacientes possuem dificuldade em verbalizar por conta da própria idade, aos pediatras cabe colher informações suficientes dos pacientes e dos pais/responsáveis para fechar um diagnóstico correto. E é então que surge o erro de diagnóstico. Kfouri7 leciona: Sobretudo na Pediatria, quando o paciente, de tenra idade, não pode dizer o que sente - e o médico, muitas vezes, guia-se por observações transmitidas pela mão da criança - o diagnóstico fica ainda mais difícil. O exame do pequeno paciente deve ser minucioso, detalhado, sem descurar o mau mínimo indício que sirva à identificação da patologia. O erro de diagnóstico escusável não gerará dever de indenizar porque não constitui culpa médica. Porém, se o erro for resultado de negligência ou ignorância, haverá responsabilidade civil médica. Ortopedia A ortopedia e traumatologia é a segunda especialidade médica mais masculina de todas, com 93,5% dos médicos homens8, perde apenas para urologia. Outro importante segundo lugar que esta especialidade ocupa é no ranking do STJ das especialidades médicas mais processadas no Brasil, fica atrás apenas da G.O. A ortopedia tem um importante traço: a subespecialização extrema. Só em relação aos membros superiores, podem existir as seguintes subespecialidades: cabeça, pescoço, ombro, cotovelo e mãos. O ortopedista, via de regra, contrai obrigação de meio com seu paciente, mas possui uma importante exceção. Kfouri9 aduz: Isso significa não existir a imposição de curar sempre, de obter êxito em todas as intervenções, mas sim de aplicar os conhecimentos da ciência médica contemporânea, dispensar cuidados atentos e de boa qualidade ao paciente, enfim, de envidar os melhores esforços no sentido de atingir o resultado esperado, mas sem garantia plena de sucesso. Cirurgias como artroplastias, fixação interna de fratura óssea e colocação de próteses são exemplos de procedimentos cirúrgicos comuns para os ortopedistas e consideradas como obrigação de meio. Uma perguntinha rápida: Já quebrou o braço? Já assinou o gesso de um colega que quebrou o braço? Pois bem, a doutrina compreende que a colocação de aparelho gessado é obrigação de resultado, haja vista a simplicidade da tarefa. A ortopedia é uma especialidade majoritariamente cirúrgica e como todas as intervenções no organismo humano apresenta riscos considerados habituais, entre eles: lesão do nervo radial, reoperação e infecções. Kfouri10 sintetiza "na ortopedia cada caso deve ser examinado segundo um modelo abstrato, encontradiço na literatura médica, mas que varia segundo os ditames da ciência, a prática comum ou o que seja desejável, naquele tipo de atividade". Nesta especialidade o erro mais comum consiste no erro de diagnóstico na leitura de exames de imagem e eventual falha na identificação de fraturas. A lógica da indenização segue a mesma: se for escusável não haverá dever de indenizar, contudo, se decorrer de ignorância ou negligência, haverá responsabilidade civil médica. Oftalmologia A visão está entre os sentidos mais importantes do ser humano e ao oftalmologista cabe atuar no cuidado clínico e cirúrgico dos olhos. No país, 3,6% dos médicos optaram por esta especialidade que possui mais de 16 subespecialidades, como por exemplo: retina, catarata, glaucoma, lente de contato, córnea, oncologia ocular entre outras. Dentre os especialistas, 60% dão homens. A obrigação contraída pelo oftalmologista é de meios, não de resultado e vale expor que não se pode comparar a cirurgia destinada a corrigir disfunção visual, ainda que leve, à cirurgia embelezadora. Nesse sentido, alerta Kfouri11: Toda cirurgia realizada no olho, seja na parte externa, câmara média ou posterior, envolve risco ao paciente, que deve ser alertado sobre tal circunstância, e a finalidade da intervenção é o ganho funcional, a melhora da acuidade visual. A catarata é a maior causa de cegueira no Brasil, por isso está entre as cirurgias oftalmológicas mais comuns no país. Este procedimento cirúrgico consiste em substituir o cristalino opaco pelo implante de uma lente intraocular com o uso de laser. Mesmos nesses casos não há que se falar em obrigação de resultados, continua sendo uma obrigação de meio. Uma questão de ordem prática consiste em responder duas perguntas curiosas: 1. O oftalmologista pode ser dono de uma ótica? 2. O oftalmologista pode indicar uma ótica específica? A resposta é não para ambos os questionamentos e estão, respectivamente, respaldadas nos artigos 12 e 16 da lei 24.492/34. Considerações finais Nota-se que a maioria dos médicos brasileiros optam por tornar-se especialista e que cada especialidade médica exige do especialista cuidados próprios que variam conforme o perfil do seu paciente. A escuta atenciosa e a anamnese completa continuam sendo meios importantes para chegar a um diagnóstico correto. A obrigação nas três especialidades médicas aqui citadas são de meio, como aduz a regra geral dentro da responsabilidade civil médica, a exceção do procedimento de colocação tala gessada dentro da ortopedia. Yasmin Folha Machado é Professora universitária. Advogada. Doutoranda em Direito pela PUCPR. Mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUCPR. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Médico pela UNICURITIBA. Integrante do Grupo de Pesquisas de Direito da Saúde e Empresas Médicas dirigido pelo Prof. Dr. Desembargador Miguel Kfouri Neto. Membro titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Referências bibliográficas KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 11 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. SCHEFFER, M. et al., Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, SP: FMUSP, CFM, 2020. 312 p. ISBN: 978-65-00-12370-8 Resolução CFM nº2.221/2018. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. RESOLUÇÃO CFM Nº22 17 DE 27/09/2018. Código de Ética Médica. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. __________ 1 SCHEFFER, M. et al., Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, SP: FMUSP, CFM, 2020. 312 p. ISBN: 978-65-00-12370-8 2 Resolução CFM nº2.221/2018. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. 3 SCHEFFER, M. et al., p. 69 4 Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. 5 RESOLUÇÃO CFM Nº22 17 DE 27/09/2018. Código de Ética Médica. Disponível aqui. Acesso em 22 nov. 2022. 6 P. 259 7 KFOURI, 2019, p. 252 8 SCHEFFER, M. et al., p. 72 9 KFOURI, 2021, p. 363 10 2021, p. 364. 11 2021, p. 369
Resenha: Este artigo apresenta críticas ao PL 2856/2022, do Senado Federal, que propõe incluir no CDC a regulamentação do "desvio produtivo do consumidor". O texto dialoga criticamente com a obra de Marcos Dessaune, autor da "teoria do desvio produtivo do consumidor", e aponta uma série de falhas do projeto, esperando assim contribuir para seu aperfeiçoamento. Tive minha atenção recentemente chamada para um projeto de lei que está em trâmite no Congresso Nacional: o PL 2.856/2022, apresentado pelo Senador Fabiano Contarato. Segundo sua epígrafe, o projeto propõe alterar o Código de Defesa do Consumidor, "para dispor sobre o tempo como um bem jurídico, aperfeiçoar a reparação integral dos danos e prevenir o desvio produtivo do consumidor". Li o projeto e o considerei muito ruim. Daí esse breve trabalho, destinado a apresentar minhas críticas ao texto projetado.1 Inicio descrevendo o projeto, que é composto de três artigos, sendo o primeiro para determinar seu objeto ("Esta Lei altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para dispor sobre o tempo como um bem jurídico, aperfeiçoar a reparação integral dos danos e prevenir o desvio produtivo do consumidor") e o terceiro para estabelecer que a lei, caso aprovada, entrará em vigor na data da publicação. A inovação normativa, portanto, viria do art. 2º do projeto, que propõe a inserção, no Código de Defesa do Consumidor, de uma nova Seção ("Da Responsabilidade pelo Desvio Produtivo do Consumidor"), formada pelos arts. 25-A até 25-F). Pois já tenho, aqui, uma crítica, de ordem terminológica: fala o texto do projeto em "desvio produtivo do consumidor". E essa expressão é equivocada. Vale registrar, porém - e antes de tudo - que a expressão só aparece na epígrafe da Seção que se pretende acrescentar ao texto do Código de Defesa do Consumidor, não sendo empregada em nenhum dos artigos projetados. A expressão "desvio produtivo" tem sido empregada para fazer alusão à lesão sofrida por alguém que tem de gastar parte de seu tempo para resolver (ou tentar resolver) um problema causado por outro sujeito de uma relação jurídica, especialmente em relações de consumo. O autor da expressão assim se refere ao fenômeno: "evento danoso que acarreta lesão ao tempo existencial e à vida digna da pessoa consumidora, que sofre necessariamente um dano extrapatrimonial de natureza existencial, que é indenizável in re ipsa".2 E sobre a expressão, diz Dessaune: "Inicialmente, denominei o fenômeno socioeconômico em análise "desvio dos recursos produtivos do consumidor", por ser um nome mais completo e autoexplicativo. Porém, a necessidade de dispor de um nome menor e mais simples, tanto para o título do livro quanto para as inúmeras citações ao longo da obra, levou-me a simplificá-lo e a reduzi-lo para "desvio produtivo do consumidor". Note-se, contudo, que nessa nova expressão cunhada não empreguei o adjetivo "produtivo" para qualificar o desvio do consumidor como sendo um ato "producente" ou "improducente". Diversamente, utilizei tal adjetivo em sua acepção de "relativo à produção", indicando tão somente que, em situações de mau atendimento e de omissão, dificultação ou recusa de responsabilidade pelo fornecedor, o consumidor se vê forçado a desviar seus recursos "que produzem" (tempo e competências) de suas atividades geralmente existenciais, objetivando enfrentar os mais variados problemas de consumo".3 O fato de o criador da expressão ter de explicar que ao falar em "desvio produtivo" não emprega o adjetivo produtivo para qualificar o substantivo desvio já é suficiente para mostrar como a expressão é falha. E ainda afirma que o fez em razão de uma suposta "necessidade de dispor de um nome menor e mais simples". Com todas as vênias, mas ciência não se faz por simplificações, ainda que terminológicas. Vale, aqui, a mesma afirmação que - sobre a expressão "exceção de pré-executividade" - fez José Carlos Barbosa Moreira: "Está claro que o ponto não interessará a quem não dê importância à terminologia - a quem suponha, digamos, que em geometria tanto faz chamar triângulo ou pentágono ao polígono de três lados, e que em anatomia dá na mesma atribuir ao fígado a denominação própria ou a de cérebro. Mas - digamos com franqueza - tampouco interessará muito o que esses pensem ou deixem de pensar".4 Mesmo depois da explicação dada pelo autor da expressão, porém, as coisas não melhoram. Diz Dessaune que usou o adjetivo produtivo no sentido de "relativo à produção", para indicar que, "em situações de mau atendimento e de omissão, dificultação ou recusa de responsabilidade pelo fornecedor, o consumidor se vê forçado a desviar seus recursos 'que produzem' (tempo e competências) de suas atividades geralmente existenciais, objetivando enfrentar os mais variados problemas de consumo".5 O que se percebe, então, é que o adjetivo produtivo estaria a qualificar o substantivo (omitido na expressão) recursos. Haveria, portanto, um desvio de recursos produtivos do consumidor, especialmente de seu tempo. É preciso considerar, porém, que não só o tempo "produtivo" pode ser perdido quando se tenta resolver um problema como esses descritos pelo autor da expressão. Aliás, para a imensa maioria da população brasileira, o tempo a ser empregado na tentativa de resolução de problemas causados por fornecedores é, exatamente, um tempo que não seria dedicado a atividades produtivas, já que as pessoas em geral não podem simplesmente dedicar parte do tempo que dedicam a suas atividades profissionais para isso. É no tempo de folga, que poderia ser dedicado a atividades nada produtivas, que em geral se pode tentar resolver esses problemas. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Esse texto pretende ser um diálogo com as ideias sobre o tema de Marcos Dessaune, autor da assim chamada "teoria do desvio produtivo do consumidor" e integrante da comissão responsável pela redação do anteprojeto que resultou no projeto de lei aqui criticado. Ao aludido autor, de cujas ideias divirjo, fica aqui a manifestação de meu respeito, convencido de que é pelo confronto de ideias, especialmente das divergentes, que a Ciência Jurídica pode evoluir. 2 DESSAUNE, Marcos. Teoria Aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: um panorama. Revista Direito em Movimento. Rio de Janeiro: EMERJ, vol. 17, n. 1, 2019, pág. 15-16. 3 Idem, pág. 23, nota de rodapé n. 19. 4 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Exceção de Pré-Executividade: uma denominação infeliz. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual - Sétima Série. São Paulo: Saraiva, 2001, pág. 121. 5 DESSAUNE, op. cit., pág. 23, nota de rodapé n. 19.