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Caso Ever Given - Parte VII: Seguros marítimos

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Atualizado em 6 de abril de 2022 21:48

O encalhe do navio Ever Given no canal de Suez fez aniversário de um ano no último dia 23 de março. Deu (e ainda está dando) muito "pano pra manga", como se diz na expressão popular. Não era de se esperar outra coisa: a proporção do acidente (com a interrupção do fluxo no principal canal comercial do eixo Ásia-Europa), aliada ao complexo de questões despertadas, fez com que tivéssemos muito material para pensar. Food for thought, como costuma dizer nosso sócio Iwam Jaeger. Assim é que chegamos à sétima postagem sobre o caso Ever Given, trazendo para a cena um tema da ordem do dia: seguros marítimos1.

Como viemos tratando nos últimos artigos, um evento como esse traz uma repercussão em várias frentes do direito marítimo: quais são as autoridades competentes para investigar o acidente, e como essa investigação deve ser conduzida? Qual é o impacto contratual (e a responsabilidade) por conta do atraso na entrega ou da avaria à mercadoria a bordo? Como o incidente afetou outras esferas, como a relação de afretamento entre o proprietário do navio e o operador? Quais os efeitos da não repatriação dos tripulantes? Como as demandas por indenização de terceiros (embarcações que ficaram impedidas de navegar pelo canal, empresas que prestaram assistência e salvamento, autoridades locais) podem ser equacionadas?

Todas essas questões, que agitaram a comunidade marítima, deixam claro um ponto: a "aventura marítima", como se costuma dizer, traz, na essência, um risco (ou uma série de riscos). Ou seja, todo aquele que, seguindo a tradição das grandes navegações, se propõe a embarcar nessa aventura, tem que estar preparado para o pior. Em uma palavra, o risco é isso: a possibilidade de uma empreitada dar errado (e prejuízos serem amargados).

Sabendo disso, como os players do mundo marítimo podem atuar para prevenir (ou ao menos diminuir) esse risco? É claro que, uma vez que o estrago está feito, eles podem atuar no plano da contenção de danos (damage control), para reduzir, na medida do possível, o prejuízo sofrido. Ou para limitar esse prejuízo, como fizeram os proprietários do Ever Given ao ajuizar, perante as Cortes Inglesas, uma ação de limitação de responsabilidade, de acordo com a convenção internacional de Limitação de Responsabilidade de Reivindicações Marítimas de 1976 (Limitation of Liability of Maritime Claims Convention - LLMC), conforme explicamos antes nesta coluna2.

Agora, uma outra medida, propriamente preventiva, é a contratação de seguro para cobertura de riscos. Desde as grandes navegações do século XV, para lidar com os riscos que fazem parte da essência do negócio. Afinal, se, por um lado, grandes riquezas poderiam resultar das expedições marítimas (com a descoberta de novas rotas comerciais e a venda de produtos "exóticos" do Oriente), prejuízos enormes também poderiam vir à tona (como um naufrágio, para usar o exemplo mais emblemático), jogando por terra (ou por água, como queira) todos os investimentos feitos. Daí veio a ideia dos seguros marítimos, nos primórdios das coberturas de seguros da história3.

O que o seguro faz nada mais é do que operar uma transferência de risco. Ou seja, o segurador se obriga, nos limites do contrato (apólice), a garantir, ao segurado ou terceiro, o pagamento de uma indenização (cobertura securitária) na hipótese de concretização de um risco de dano (sinistro), mediante uma contraprestação (prêmio). Bem se vê que o segurador se substitui ao segurado, tomando para si a "fortuna e riscos do mar", para pegar emprestada a clássica expressão do Código Comercial (art. 666)4.

Todo seguro tem que observar alguns princípios básicos. O seguro marítimo não foge à regra. Assim, ele também se orienta pelo mutualismo, pela boa-fé e pela veracidade. O primeiro (mutualismo) é o princípio segundo o qual existe um pool de segurados, sendo que cada qual contribui, em alguma medida, para a formação de um fundo garantidor (ou reserva, como se queira) capaz de suportar os prejuízos que um (ou mais deles) possa vir a sofrer. O fracionamento na contribuição e a pulverização dos riscos garante que o fardo carregado pelo(s) segurado(s) seja menos pesado.

Já o princípio da boa-fé se incorpora na noção geral de que as partes de um contrato devem, sempre, agir de forma leal, honesta e confiável5. No contrato de seguro, esse princípio assume as vestes da uberrima bona fides, ou seja, da máxima boa-fé. Isso porque a própria essência do negócio depende, justamente, desse "agir leal, honesto e confiável". Isso não apenas na execução do contrato propriamente dita (sede na qual, por exemplo, é dever do segurado comunicar, de imediato, a expectativa de sinistro ou a própria caracterização dele); mas também antes, quando têm lugar as tratativas que antecedem a própria celebração do contrato.

Afinal, para a montagem da equação econômico-financeira do acerto, as informações prestadas, de parte a parte, têm que ser absolutamente transparentes, precisas, corretas. É a partir dessas informações que a seguradora realiza uma série de cálculos atuariais, projetando a dimensão da eventual indenização securitária e a probabilidade de ocorrência do sinistro. Só assim é que ela estabelece (e contrata) o prêmio, ou seja, o valor cobrado do segurado pela cobertura.

Logo se vê que, se há (por má-fé ou não) uma desconformidade nas informações prestadas, a própria base do negócio é atingida. Quando falamos, para ilustrar, em um seguro marítimo sobre uma embarcação (como melhor veremos adiante), é absolutamente inconcebível que, por exemplo, o valor da embarcação segurada (em um contrato de casco e máquinas, digamos) esteja incorreto.

Daí é que vem, até por derivação lógica da boa-fé objetiva, o terceiro e último princípio: o da veracidade. O princípio é autoexplicativo, sendo que as declarações inexatas ou omissões do segurado, que possam ter vindo a comprometer a própria aceitação do contrato ou a estipulação do prêmio, por parte da seguradora, podem levar à própria perda da garantia securitária6. Isso sem prejuízo do pagamento do(s) prêmio(s) vencido(s) e de eventuais perdas e danos.

Muito bem. E os seguros marítimos? Quais são? O que eles, de fato, protegem? Eles têm alguma particularidade? Os chamados Clubes de Proteção e Indenização (P&I Clubs) são as "seguradoras" do mundo marítimo? Como funciona isso tudo? Essas perguntas vêm à cabeça, em um relance, quando nos deparamos com o assunto.

A primeira observação é que existe uma verdadeira miríade de seguros marítimos. Até porque, para além das coberturas tradicionais, existem mil e uma formas de "combinar" riscos segurados, principalmente através dos clubes de P&I. De qualquer maneira, para fins didáticos (e para não fugir da necessária objetividade), podemos trazer os seguintes tipos: o DPEM, o RCA-C, o seguro de carga, o seguro de casco e máquinas (H&M) e os seguros garantidos aos membros dos clubes de P&I.

Os primeiros dois tipos securitários, colocados nessa ordem já por proximidade taxonômica, por assim dizer, são seguros obrigatórios. O DPEM é o seguro obrigatório de danos pessoais, causados por embarcações ou por sua carga, a pessoas transportadas ou não, inclusive aos proprietários, tripulantes e/ou condutores das embarcações (ou seus beneficiários/dependentes), esteja a embarcação em operação ou não (art. 3º, lei 8.374/91).

Todos, sejam proprietários de embarcações brasileiras ou estrangeiras com inscrição nacional (nas Capitanias dos Portos), seriam obrigados a contratar esse seguro, cujas coberturas, reguladas por atos normativos do CNSP7, variam conforme o sinistro (morte, invalidez etc.). Em uma analogia fácil de visualizar, o DPEM é o DPVAT do mundo marítimo. No entanto, o seguro DPEM se encontra temporariamente suspenso desde 2016, uma vez que tal seguro não vem sendo comercializado no mercado.

Já o RCA-C é o seguro obrigatório de responsabilidade civil, que garante, ao transportador marítimo (segurado), até o limite da importância segurada8, o pagamento das reparações pelas quais ele vier a ser responsável, por danos às mercadorias de terceiros transportadas por ele, desde que causados por acidentes da navegação, tais como encalhe, incêndio, abalroação ou naufrágio (v. art. 14, L. 2.180/54)9. Esse tipo de seguro é regulado pelo decreto-lei 73/66, submetendo-se, também, aos atos normativos do CNSP (como a resolução 182/08).

O seguro de carga, por sua vez, é talvez aquele em que pensaríamos primeiro. Como o próprio nome sugere, ele tem em vista garantir ao segurado (normalmente o comprador ou o vendedor da mercadoria) uma cobertura contra avaria, perda ou falta da carga, nas operações de transporte.

Em geral, a responsabilidade pela contratação desse tipo de seguro é estabelecida no próprio contrato de compra e venda da mercadoria, seguindo-se, em regra, os termos do comércio internacional (incoterms).

Existem várias modalidades de contratação (leia-se, apólices) para esse tipo de seguro: a apólice avulsa, para cobrir um único embarque/viagem; a apólice de averbação (ou aberta), para cobrir vários embarques, os quais são comunicados à seguradora por meio de averbações em formulários (daí o nome); a apólice anual, também voltada a cobrir diversos embarques, mas que apresenta prêmio fracionado (fixo ou ajustável). Geralmente, as empresas que possuem um fluxo significativo de negócios, que demandam transporte marítimo, valem-se dos dois últimos tipos.

O seguro de carga é regulado, de forma geral, pela circular SUSEP 354/07, a qual se aplica não apenas aos bens segurados em viagens aquaviárias, mas também terrestres e aéreas, nos percursos nacionais e internacionais. Ela apresenta, também, condições contratuais padronizadas. Essas condições apresentam tipos diferentes de cobertura, indo da mais ampla (all risks), até as mais restritas, que se limitam, por exemplo, aos acidentes da navegação.

Em regra, a importância segurada será, assim como no RCA-C, o valor da própria mercadoria, sendo que, em modalidades de cobertura adicional, outras verbas (frete, despesas, lucros esperados etc.) podem ser incluídas.

Indo adiante, o seguro de casco e máquinas (Hull & Machinery) busca garantir, ao segurado ou terceiro beneficiário, cobertura contra os danos que possam atingir, estritamente, a própria embarcação. Isso engloba não apenas o casco e as máquinas principais, mas todos os equipamentos (motores, instalações, peças, suprimentos, provisões etc.). E durante o transporte marítimo, propriamente dito, ou não (quando, por exemplo, a embarcação estiver atracada em algum porto).

A apólice do seguro de casco e máquinas, definindo condições gerais, cláusulas básicas e adicionais de cobertura, é disciplinada pela Circular SUSEP 001/85 (depois alterada pelas Circulares SUSEP 08/85, 40/85 e 27/87). Assim como na modalidade anterior (seguro de carga), esse tipo de seguro pode ser feito por viagem, ou ainda por tempo determinado. Os riscos cobertos também se relacionam, de forma geral, à fortuna do mar e aos acidentes da navegação, sem prejuízo da contratação de cobertura adicional.

Neste ponto (amplitude da cobertura), existem também diferentes modalidades de cobertura tratadas pela Circular SUSEP 001/85. A cobertura mínima (Cobertura 1) envolve a perda total (PT), a assistência e salvamento (AS) e a avaria grossa (AG). Os pacotes básicos vão, então, avançando, para abarcar, além desses três, a responsabilidade civil por abalroação (RCA) - na cobertura 2 - e a avaria particular (AP) - na cobertura 3.

Last but not least, temos os "seguros" ofertados pelos clubes de P&I. Dizemos "seguros", entre aspas, porque, a rigor, as garantias dos clubes de P&I não se confundem, propriamente, com um contrato de seguro. Mas antes de chegarmos lá, duas perguntas vêm logo à mente. A primeira é, bem... o que exatamente seria um clube de P&I? A segunda: por que a cobertura oferecida por eles seria, de fato, necessária, considerando todos os tipos securitários de que já tratamos (seguros obrigatórios, H&M, seguro de carga etc.)? Esses são bons pontos.

Quanto à primeira pergunta, podemos dizer, numa síntese apertada, que os clubes são associações formadas pelos players do mercado marítimo (proprietários, armadores, operadores, afretadores etc.), com o objetivo de proteger, a partir da constituição de um fundo de reserva, os interesses mútuos de seus membros contra os riscos da exploração comercial de navios.

A entrada no clube se dá por meio do preenchimento e envio de um formulário (entry form), no qual a empresa "candidata" divide informações básicas (armador, frota, tripulantes) e indica a cobertura desejada, para a avaliação do clube e apresentação dos valores de contratação (ou seja, do "prêmio" a ser pago ao clube, chamado de call).

Uma vez aceito, o novo membro recebe um certificado de entrada (que faz as vezes da apólice), contendo as informações das embarcações seguradas, os detalhes da cobertura e o início da garantia de proteção. As demais questões são regidas pelas chamadas regras do clube (club rules), as quais devem ser lidas e interpretadas em conjunto com o formulário de entrada e com os atos constitutivos do clube (que regulam a relação entre membros e clube).

Em relação à segunda pergunta, o que justifica a existência dos clubes é basicamente o fato de que, até mesmo por conta do porte financeiro dessas associações, elas conseguem bancar (e abarcar) modalidades de cobertura securitária que podem ir muito além das apólices convencionais dos outros tipos de seguro10.

Nesse sentido, além de cobrir eventuais indenizações por cargo claims (demandas por avarias ou perda de mercadoria) e por danos pessoais (em valores muito superiores ao DPEM), a proteção dos clubes de P&I pode abranger, por exemplo, danos ambientais, multas aplicadas por autoridades administrativas e legal fees (com advogados ou peritos, digamos). E pode até mesmo chegar a envolver riscos não expressamente cobertos, se os diretores do clube entenderem por bem passarem para a aprovação uma certa demanda do membro, em uma situação excepcional. É o que se convencionou chamar de "omnibus cover".

E por que os clubes de P&I não se confundem com seguradoras tradicionais? Essa questão, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, não tem nada de trivial. E mais: entender essa diferença faz toda a diferença (com o perdão do trocadilho), principalmente quando temos em vista problemas específicos (como o regime de responsabilidade dos clubes). Então vamos lá.

Em primeiro lugar, os clubes de P&I são associações sem fins lucrativos, enquanto as seguradoras, evidentemente, desenvolvem atividade empresarial (voltada, por definição, à obtenção de lucro). A maior prova disso é a "omnibus cover", falada há pouco, que mostra que o fim primordial dos clubes é a proteção dos interesses dos membros (e não de interesses próprios), ou mesmo o fato de que os clubes podem inclusive devolver valores a seus membros (os chamados return-calls), caso o Clube, em razão de uma baixa sinistralidade dos membros, venha a ter um excesso de valores em caixa.

Em segundo lugar, a própria relação entre membros e clube é totalmente diferente. Como se disse, há uma relação de associação, e não um contrato bilateral de seguro. Essa associação, que forma o clube, é guiada por regras próprias (club rules), não existindo, ainda, uma verdadeira apólice para as coberturas. Além disso, as contribuições (calls) não se confundem com os prêmios securitários.

Em terceiro lugar (e de extrema importância), são os próprios membros que, reunidos em uma congregação de socorro mútuo, contribuem com o ressarcimento dos prejuízos sofridos pelos demais membros, por conta de uma ação de responsabilidade civil, por exemplo. E frise-se a palavra ressarcimento, posto que o Clube somente ressarce seu membro, após o mesmo ter primeiramente pago eventual indenização ao terceiro prejudicado. É o chamado princípio do "pay to be paid". O clube é, portanto, o simples administrador de um fundo, e não uma instância à parte que visa o próprio lucro, como acontece com as seguradoras tradicionais.

Por todas essas razões - e chegando agora ao regime de responsabilidade dos clubes -, não há qualquer cabimento em defender a solidariedade dos clubes e membros pelo eventual pegamento de indenização por perdas e danos sofridos por terceiro. Ainda que, por premissa básica, a solidariedade se presumisse (o que é expressamente vedado pelo art. 265, CC/02), o fato é que nada autorizaria essa presunção. A natureza jurídica dos clubes de P&I é simplesmente diversa daquela das seguradoras, sem contar que os fins visados não se confundem. Assim, forçar uma solidariedade é medida absolutamente contra legem.

Felizmente, esse tem sido o entendimento que vem se consolidando na jurisprudência, de que dão notícia os precedentes abaixo:

"APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO MARÍTIMO. AÇÃO DECLARATÓRIA. SEGURADORA. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE SOLIDARIEDADE DO CLUBE DE PROTEÇÃO E INDENIZAÇÃO (P&I CLUB) DEMANDADO E O ARMADOR INTEGRANTE DA ASSOCIAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. [..]
O cerne da controvérsia reside em definir se a Ré, assim entendida como associação de mútuo auxílio formada por armadores/transportadores, pode ser considerada devedora solidária de um de seus membros em condenação judicial oriunda de sinistro envolvendo o transporte marítimo de cargas. Com efeito, busca a parte Autora ver reconhecida a qualidade de seguradora da Ré e, assim, obter a sua responsabilização direta pelas obrigações inadimplidas pelo segurado. 4. P&I Club. Clube de proteção e indenização de natureza associativa dirigida ao mútuo auxílio econômico-financeiro formada por armadores/transportadores de carga por via marítima, que tem por objeto segurar, mutuamente, responsabilidades, perdas, custos e despesas incorridos pelos membros com relação direta à operação das embarcações registradas na associação e participar de outras atividades relacionadas. [...]Por fim, como já descrito alhures, o vínculo jurídico que liga o armador (causador do dano) e a Ré não constitui liame contratual bilateral, como ocorre nos contratos de seguro, entre a seguradora e o segurado. Antes, cuida-se de vínculo associativo entre particulares que constituem uma corporação de mútuo auxílio. Resulta dessa forma de organização algumas regras próprias que se distinguem sobremaneira daquelas vigentes nos contratos de seguro de dano tradicionais. A primeira delas diz respeito à forma de contribuição para a associação, que diversamente das prestações pagas nos contratos de seguro, servem exclusivamente para constituir um fundo garantidor, que eventualmente, pode ser suplementado pelas designadas chamadas ou calls (regra 13 do estatuto da Ré fl. 380), no caso de necessidade de cobrir eventos que superem o montante do fundo. Uma vez que caso tais contribuições superem o sinistro, os valores aportados pelos membros são reembolsados (regra 17 do estatuado da Ré fl. 381). Por seu turno, no caso dos prêmios pagos à seguradora, além de remunerarem a própria atividade desempenhada pela seguradora, vige o princípio da indivisibilidade do prêmio, que preconiza que os riscos devem ser considerados não isoladamente tal como no caso dos P&I Clubs mas no seu conjunto, pois os riscos não se distribuem igualmente por todo período de vigência do contrato. (...). De outro lado, nos P&I Clubs, a regra associativa consubstancia-se no dever de ressarcimento do membro integrante do clube. A norma cristaliza-se a partir do axioma pay to be paid, ou em tradução livre, pague para ser pago, isto é, o dever de ressarcir institui-se em relação ao próprio integrante do clube e somente a partir do momento em que ele efetua o pagamento da indenização ao terceiro, terá direito ao reembolso. Regra 87 do estatuto da associação. Como se pode notar, sob qualquer aspecto que se analise a questão, a pretensão autoral está fadada ao insucesso. 9. Sentença mantida. 10. Recurso desprovido.
(TJRJ, 6ª Câmara Cível, Apelação Cível 0189045-59.2016.8.19.0001, Desa. Relatora Teresa de Andrade, j. 23/05/2018)

"Agravo de instrumento - Ação ordinária de indenização - Cumprimento de sentença - Pretensão da credora de redirecionamento da execução - Descabimento - Clube de P&I que se caracteriza como associação de armadores/transportadores marítimos que atuam no sentido de dar proteção mútua aos associados no exercício de suas atividades de transportadoras de cargas via marítima - Não verificada a existência de vínculo jurídico entre as partes que pudesse autorizar sua inclusão no polo passivo, a fim de ser responsabilizado pelo pagamento do débito - Ademais, não há como estender a coisa julgada para parte que sequer figurou na demanda original - Decisão mantida - Recurso desprovido."
(TJSP, Agravo de Instrumento 2254137-84.2018.8.26.0000, Relator Des. Sergio Gomes, 37ª Câmara de Direito Privado; j. 31/01/2019)

Aliás, a temática específica dos clubes de P&I já foi palco de um bem completo artigo prévio nesta coluna, o qual merece novamente destaque11.

Como se vê, o tema dos seguros marítimos, aparentemente simples, traz uma gama complexa de questões e abre portas para um estudo em várias frentes. E o exemplo do Ever Given certamente toca, em diversas frentes, questões atinentes a alguns dos seguros marítimos acima narrados e, mais, também envolve possíveis riscos e coberturas relativas não ao navio encalhado, mas a todas as outras quase quatrocentas embarcações que ficaram impossibilitadas de trafegar pelo Canal de Suez durante longos dias, fato este que pode gerar perdas de frete, perdas comerciais, coberturas de bloqueio, entre outras.

E as repercussões do referido incidente no meio securitário ainda devem repercutir por mais alguns anos, o que também propicia que este caso concreto, além de trazer oportunidades didáticas, também contribua para o aprimoramento sempre contínuo do instituto do seguro marítimo e uma maior reflexão do mercado acerca das coberturas disponíveis, o que, acompanhado da boa jurisprudência, será capaz de garantir (ou ao menos contribuir para) que a "aventura marítima" seja, cada vez mais, segura.

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1 Caso queira rememorar os temas anteriormente tratados, vide: aqui; aqui; aqui.

2 Vide aqui.

3 Com o passar do tempo, o seguro foi se profissionalizando e ganhando um mercado internacional. Já no séc. XVII, surgia uma das primeiras companhias de socorro mútuo da história: o Lloyd's. Fruto da troca efervescente entre navegadores e negociantes do mundo marítimo, tidas na taberna do sr. Edward Lloyds, o Lloyds é, hoje, uma verdadeira bolsa de seguros, agregando companhias de seguro, resseguradoras e corretores.

4 De forma geral, o contrato de seguro é disciplinado pelo CC/02 (art. 757 e segs.). No entanto, os seguros marítimos encontram regulamentação especial no Código Comercial de 1850 (art. 666 e segs.), em normas esparsas (decreto-lei 73/66, por exemplo) e em atos normativos expedidos por agências especializadas de fiscalização (SUSEP, CNSP etc.).

5 O princípio da boa-fé, cheio de história, ganhou corpo dogmático principalmente a partir da experiência jurídica germânica, primeiro com o §242 do BGB, e depois com a construção jurisprudencial. Hoje, tem-se consolidado a ideia, posta elegantemente, da "tríplice função" da boa-fé objetiva: (1) função interpretativa dos contratos; (2) função criadora de deveres anexos ou acessórios à prestação principal; (3) função proibitiva do exercício abusivo de direitos contratuais. De toda forma, a ideia-síntese continua a ser a de que a boa-fé impõe um dever geral de agir conforme standards de lealdade, honestidade e confiança recíprocas. Sobre o ponto, cf.  TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 29-44; e NEGREIROS, Teresa. O princípio da boa-fé contratual. In: BODIN DE MORAES, Maria Celina. Princípios do Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Renovar, 2006, p. 221-223.

6 É o que dispõe o art. 766 do CC/02: "Se o segurado, por si ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido. Parágrafo único. Se a inexatidão ou omissão nas declarações não resultar de má-fé do segurado, o segurador terá direito a resolver o contrato, ou a cobrar, mesmo após o sinistro, a diferença do prêmio".

7 Vale conferir, além da lei 8.374/91, a resolução CNSP 128/05, bem como as que a depois vieram a alterá-la (resoluções CNSP 152/06 e 237/11).

8 A importância segurada corresponde, aqui, ao valor integral indicado no conhecimento de embarque, sendo que o limite máximo de cobertura securitária tem maior elasticidade, sendo estipulado na própria apólice.

Note-se que a resolução CNSP 182/08 prevê riscos não cobertos (como o mau acondicionamento da mercadoria) ou expressamente excluídos (como os danos morais).

10 É curioso ver que, na origem, a proteção dos clubes de P&I surgiu, principalmente, para levar uma cobertura securitária para a lacuna de 25% dos danos causados a outra embarcação em razão de abalroação (cobertura RCA), que o seguro de casco e máquinas não garantia. Depois, até pela projeção e crescimento dos clubes, o escopo da proteção foi se expandindo cada vez mais.

11 Disponível aqui.