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Migalhas Notariais e Registrais

Questões práticas e teóricas envolvendo o Direito Notarial e de Registro.

Izaías G. Ferro Júnior, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Hercules Alexandre da Costa Benício, Flauzilino Araújo dos Santos, Ivan Jacopetti do Lago e Sérgio Jacomino
O Brasil, em razão de sua vasta extensão territorial e da complexidade de sua estrutura fundiária, exige instrumentos técnicos e jurídicos capazes de garantir segurança na identificação e delimitação dos imóveis rurais. Afinal, como é notório, o processo histórico de ordenamento territorial brasileiro jamais foi dos mais tranquilos. Desde as primeiras povoações, passando pelo regime de sesmarias e pelas diversas formas de ocupação e titulação de terras, até alcançar o século XXI, o sistema sempre claudicou em oferecer um mínimo de segurança jurídica e de confiabilidade cadastral. É nesse contexto que o georreferenciamento se firmou como uma das mais relevantes conquistas do ordenamento jurídico contemporâneo, por permitir a integração entre o Direito Agrário, o Direito Civil e a tecnologia geoespacial, assegurando que cada imóvel rural possua uma posição inequívoca no território nacional, compatível com os princípios da publicidade, especialidade e continuidade registral1. 1. Conceito e fundamento legal Por definição, o georreferenciamento é o procedimento técnico destinado à identificação precisa do imóvel rural em suas dimensões, limites e confrontações, com base em coordenadas geodésicas oficiais. O instituto do georreferenciamento foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela lei 10.267, de 28/8/01, que alterou dispositivos da lei 6.015/1973 (lei de registros públicos) e da lei 4.947/1966, instituindo o CNIR - Cadastro Nacional de Imóveis Rurais. De acordo com o art. 176, § 3º, da lei 6.015/1973, a identificação do imóvel rural passou a ser realizada obrigatoriamente com base em levantamento georreferenciado, utilizando-se o SGB - Sistema Geodésico Brasileiro, sob a coordenação do INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. 2. Prazos de implementação A lei 10.267/01 instituiu o sistema de identificação geodésica dos imóveis rurais no Brasil, criando o marco jurídico do georreferenciamento. Tal lei foi regulamentada no ano seguinte pelo decreto 4.449, de 30/10/02, que estabeleceu um escalonamento gradual de exigência, conforme a dimensão da área do imóvel. Posteriormente, o decreto foi alterado por normas sucessivas - decreto 5.570/05, decreto 7.620/11, decreto 9.311/18 e, mais recentemente, pelo decreto 12.689/25 - sempre com o propósito de ajustar os prazos de implementação e adequar o sistema às realidades técnicas e regionais do país. Cumpre pontuar que, até a edição do decreto 12.689/25, as alterações promovidas tiveram caráter meramente prorrogatório, sempre bem-vindo e de natureza pontual, uma vez que buscavam exigir o georreferenciamento e a certificação prioritariamente das propriedades de maior extensão, postergando a obrigatoriedade para os imóveis de menor área. Conforme demonstrado no quadro a seguir, o cronograma manteve a lógica de progressividade, assegurando uma transição técnica e operacional compatível com a capacidade do sistema e dos profissionais habilitados. 3. Quadro cronológico dos prazos de exigência do georreferenciamento de imóveis rurais no Brasil Faixa de área do imóvel rural Prazo para exigência (a partir de 20/11/2003) Decreto que fixou ou alterou o prazo Acima de 5.000 hectares 90 dias ? 20/03/2004 Decreto nº 4.449/2002 (art. 10, I) De 1.000 até menos de 5.000 hectares 1 ano ? 20/11/2004 Decreto nº 4.449/2002 (art. 10, II) De 500 até menos de 1.000 hectares 5 anos ? 20/11/2008 Decreto nº 4.449/2002 (art. 10, III) com redação do Decreto nº 5.570/2005 De 250 até menos de 500 hectares 10 anos ? 20/11/2013 Decreto nº 4.449/2002 (art. 10, IV) com redação do Decreto nº 7.620/2011 De 100 até menos de 250 hectares 15 anos ? 20/11/2018 Decreto nº 4.449/2002 (art. 10, V) com redação do Decreto nº 9.311/2018 De 25 até menos de 100 hectares 20 anos ? 20/11/2023 Decreto nº 4.449/2002 (art. 10, VI) com redação do Decreto nº 9.311/2018 Inferior a 25 hectares 22 anos ? 20/11/2025 Decreto nº 4.449/2002 (art. 10, VII) com redação do Decreto nº 9.311/2018 Se não fosse a edição do decreto 12.689/25, a partir de 21/11 deste ano qualquer movimentação envolvendo imóvel rural - seja transferência, desmembramento, remembramento ou retificação - estaria sujeita à exigência de certificação georreferenciada, independentemente do tamanho da área. 4. Levantamento geodésico x certificação  Antes de tecer comentários sobre o decreto 12.689/25, que é justamente o objeto deste artigo, é imperioso distinguir a diferença entre levantamento geodésico e certificação. O levantamento geodésico é o sistema ou universo geoespacial em que ocorre a coleta e inclusão de dados topográficos e geodésicos do imóvel, realizada por profissional credenciado - engenheiro agrimensor ou engenheiro agrônomo - utilizando métodos e precisão compatíveis com o SGB - Sistema Geodésico Brasileiro. Trata-se de uma exigência obrigatória para todos os imóveis sujeitos à regularização, inclusive quando a certificação ainda não for necessária, sendo realizado antes do envio das informações ao SIGEF. Já a certificação constitui a validação técnica e administrativa do levantamento, atestando que não há sobreposição com outros imóveis certificados e que o perímetro do imóvel está em conformidade com a base nacional de imóveis rurais. Importante observar que a certificação não foi concebida originalmente pela lei 10.267/01, mas sim instituída pelo decreto 4.449/02, que regulamentou a matéria. Em seu art. 9º e § 1º, o decreto atribuiu ao INCRA a competência para certificar que a poligonal constante do memorial descritivo não se sobrepõe a nenhuma outra existente em seu cadastro georreferenciado, e que o referido memorial atende às exigências técnicas estabelecidas em ato normativo próprio. Por essa razão, entendemos que a certificação passou a ser condição de eficácia plena do levantamento, para fins de registro de atos translativos e de retificação de área. Ainda que o próprio decreto ressalve, expressamente, que "a certificação do memorial descritivo pelo INCRA não implicará reconhecimento do domínio, nem exatidão dos limites e confrontações indicados pelo proprietário", é inegável que a norma elevou o papel do órgão fundiário a um patamar de controle prévio. Cumpre pontuar que, há muito tempo, defendemos a distinção entre levantamento geodésico e certificação, sustentando que o decreto não era ilegal por exigir a certificação, mas por tornar essa certificação condição de eficácia para a transferência de imóveis rurais. Em nossa visão, o decreto, ao exigir a certificação pelo INCRA como condição para a eficácia do memorial, extrapolou os limites da lei. Em artigo intitulado "Georreferenciamento - A exigibilidade indevida da certificação pelo INCRA"2, sustentamos que a obrigatoriedade da certificação não possuía amparo legal, pois a lei exigia apenas que os memoriais fossem elaborados conforme padrões técnicos - e não que fossem previamente chancelados pelo órgão fundiário. Essa indevida ampliação regulamentar, somada à incapacidade institucional do INCRA de cumprir prazos razoáveis, gerou um gargalo operacional que comprometeu a política fundiária por vários anos. 5. A morosidade pré-SIGEF Durante a primeira década de vigência da lei 10.267/01, o processo de certificação era realizado manualmente, mediante análise física das peças técnicas apresentadas em papel ou em arquivos digitais. Esse modelo analógico logo se mostrou inviável, gerando uma série de distorções práticas e administrativas: Filas intermináveis, com processos que aguardavam meses - ou até anos - para obtenção da certificação; Disparidades regionais, pois cada superintendência do INCRA aplicava critérios e prazos distintos; Judicialização recorrente, com inúmeros mandados de segurança determinando que o INCRA certificasse projetos dentro de prazos fixados pelo Poder Judiciário3; Desestímulo ao georreferenciamento formal, levando muitos proprietários a manterem descrições planimétricas antigas, o que perpetuava a insegurança jurídica e territorial. Esse cenário reforçou a crítica central: a exigência de certificação, tal como imposta pelo regulamento, era indevida e, na prática, inviabilizava o cumprimento do próprio mandamento legal de modernização cartográfica. 6. A virada digital: O SIGEF e a automação da certificação A criação do SIGEF - Sistema de Gestão Fundiária, lançado em 2013, representou um divisor de águas. O sistema passou a permitir que técnicos credenciados submetessem, de forma totalmente digital, plantas e memoriais descritivos, que eram confrontados automaticamente com a base nacional. As principais inovações incluíram: Validação automática de sobreposições e inconsistências; Geração eletrônica de plantas e memoriais padronizados; Assinatura digital com presunção de autenticidade; Consulta pública das parcelas certificadas; Interoperabilidade crescente com os registros imobiliários. Atualmente, já são mais de 1 milhão de imóveis certificados, cobrindo cerca de 262 milhões de hectares4. Além disso, em 2022 e 2023, o INCRA publicou novos manuais técnicos, incorporando metodologias modernas (uso de drones, PPP-RTK, fotogrametria) e simplificando exigências, como a dispensa de arquivos RINEX em levantamentos por RTK5. A redução dos prazos também foi significativa: hoje, em casos sem sobreposição ou inconsistência, a certificação pode ocorrer de forma quase imediata. Isso contrasta com a morosidade pré-SIGEF, quando a espera era de meses ou anos. 7. O novo decreto 12.689/25 Saímos de uma verdadeira balbúrdia fundiária, marcada pela ausência de controle estatal sobre os imóveis rurais, para um sistema integrado que hoje dialoga com diversos atores públicos e privados. É fato que os avanços no combate ao desmatamento, no CAR - Cadastro Ambiental Rural, na verificação de áreas embargadas e em outras políticas de transparência territorial só foram possíveis graças à adoção do SIGEF, que congrega e compatibiliza informações de natureza fundiária, ambiental e registral, permitindo o compartilhamento eficiente de dados entre órgãos Federais, estaduais e municipais. Por essa razão, ainda que existam críticas de natureza técnica e jurídica - especialmente quanto ao entendimento de que a certificação não deveria ser condição para a transferência de imóveis, mas apenas o levantamento geodésico em si -, o fato é que o tempo demonstrou a relevância e a funcionalidade do sistema implantado pelo INCRA, que passou a conferir segurança jurídica mínima e fiscalização efetiva sobre os trabalhos profissionais de georreferenciamento, principalmente após a implementação do SIGEF. Com o SIGEF - Sistema de Gestão Fundiária, inaugurou-se uma nova fase na política de regularização territorial brasileira, marcada pela automação da certificação, pela verificação instantânea de sobreposições e pela integração entre as bases cadastrais, ambientais e registrais. O que antes dependia de análise humana e demorava meses passou a ser processado em minutos, com transparência e rastreabilidade. Essa transformação consolidou o georreferenciamento como instrumento essencial de governança fundiária digital e de modernização do sistema registral. Assim, esperava-se que o decreto 12.689/25 apenas prorrogasse o prazo de exigência para imóveis com área inferior a 25 hectares, mantendo a coerência histórica das prorrogações progressivas. No entanto, o decreto rompeu com essa tradição, optando por dispensar integralmente a certificação até 21/10/2029. Na prática, todos os prazos anteriores foram suprimidos, e é como se os proprietários passassem a ter a obrigação de realizar o levantamento apenas daqui a cinco anos. Segundo notícia publicada em site oficial do governo Federal, a extensão do prazo de adequação foi proposta pelo MDA - Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, sob o argumento de que os proprietários rurais, especialmente os pequenos produtores, enfrentam dificuldades financeiras e técnicas para se adequarem às exigências do processo de certificação.6 Ocorre que o decreto 12.689/25 não suspendeu apenas a certificação, mas também o próprio levantamento geodésico, promovendo um verdadeiro retrocesso institucional. É como se tivéssemos dado um salto para trás, desfazendo duas décadas de avanços tecnológicos e de controle fundiário. À luz da nova redação conferida ao art. 10 do decreto 4.449/02, pelo decreto 12.689/25, constata-se que o texto normativo posterga expressamente a exigência de identificação georreferenciada - tanto do levantamento quanto da certificação - até 21/10/2029. Ao dispor que "a identificação da área do imóvel rural (...) será exigida (...) a partir de 21/10/2029", o decreto deixa inequívoco que, até essa data, não há obrigação jurídica de promover o levantamento geodésico para os atos registrais mencionados (transferência, desmembramento, parcelamento ou remembramento). Trata-se, portanto, de uma dispensa expressa e temporalmente delimitada, que impede a imposição de exigências técnicas não previstas no texto normativo. Qualquer interpretação que pretenda restabelecer a obrigatoriedade de levantamento antes do termo legal viola o princípio da legalidade estrita (art. 5º, II, da CF/88), ao impor ao particular uma obrigação que o próprio decreto expressamente afastou. Em outras palavras, a literalidade do dispositivo conduz à conclusão de que, até 21/10/2029, não se exige levantamento geodésico nem certificação para fins registrais, devendo o oficial de registro de imóveis limitar-se à análise documental ordinária, sob pena de extrapolar sua competência legal. Nesse contexto, qualquer imóvel rural, ainda que não tenha observado os prazos anteriormente fixados, poderá ser transferido, remembrado ou desmembrado sem a necessidade de levantamento e certificação pelo INCRA. Em essência, o decreto suspende o próprio sistema de rastreabilidade territorial, abrindo um hiato normativo que fragiliza o controle técnico e a coerência cadastral construída ao longo dos últimos vinte anos. Esse ineditismo normativo precisa ser revisto com urgência, pois não há razoabilidade em dispensar um controle técnico e fiscalizatório tão relevante, justamente vinte e quatro anos após a edição da lei 10.267/01, que introduziu o georreferenciamento no ordenamento jurídico. Além disso, cumpre lembrar que, historicamente, apenas os imóveis de pequeno porte foram excepcionalmente dispensados da exigência - jamais o conjunto total das propriedades rurais, como agora estabelece o novo decreto. 8. O provimento 195/25 do CNJ. Mapa dos imóveis Contudo, é importante frisar em 3/6/25, o CNJ editou o provimento 195, instituindo o SIG-RI - Sistema de Informações Geográficas do Registro de Imóveis e o IERI - Inventário Estatístico Eletrônico do Registro de Imóveis. Esse provimento exige que os oficiais de registro de imóveis passem a alimentar dados geoespaciais, vinculando matrículas a geometrias certificadas e interoperáveis com o SIGEF e outros cadastros. Trata-se de verdadeira revolução paradigmática: o registro imobiliário deixa de ser apenas textual e passa a ter dimensão geoespacial integrada. A implantação do MAPA - Mosaico de Apoio à Regularização de Atos reforçará essa mudança, ao exigir que os registros utilizem plataforma georreferenciada obrigatória. Assim, os oficiais assumem papel ativo na governança territorial, e não apenas documental. Desta forma, ainda que persista o decreto atualmente em vigor, por força do poder normativo do CNJ, continuará sendo obrigatório, ao menos, o levantamento georreferenciado, de modo que os oficiais de registro de imóveis possam qualificar adequadamente os atos submetidos a registro. 9. Conclusão O percurso do georreferenciamento no Brasil revela a lenta, porém irreversível, transição de um sistema fundiário desordenado para um modelo de governança territorial digital, ancorado na precisão técnica e na interoperabilidade institucional. A lei 10.267/01 representou o marco inaugural dessa transformação, e, desde então, o país avançou significativamente na integração entre Direito, tecnologia e gestão pública. A criação do SIGEF foi o divisor de águas que consolidou essa modernização, permitindo a automação da certificação e a integração de bases cadastrais, ambientais e registrais. O resultado foi um salto de eficiência, transparência e segurança jurídica, que possibilitou avanços inéditos em políticas públicas - do combate ao desmatamento à rastreabilidade das propriedades rurais. Entretanto, o decreto 12.689/25 introduziu um ponto de inflexão preocupante. Ao suspender não apenas a certificação, mas também o próprio levantamento geodésico, o texto normativo esvaziou o controle técnico conquistado em mais de duas décadas. Ainda que a intenção declarada seja aliviar custos e simplificar exigências para pequenos produtores, o efeito prático é de retrocesso institucional, reabrindo brechas históricas de insegurança e informalidade fundiária. Não obstante, a normatividade do CNJ - especialmente após o provimento 195/25 - garante que a lógica do georreferenciamento continue viva e vinculante, ao menos no âmbito dos registros públicos. A implantação do SIG-RI e do IERI-e, interoperáveis com o SIGEF, consolida a transição para um registro imobiliário com base geoespacial, em que cada matrícula corresponde a uma geometria territorial certificada e verificável. Assim, mesmo diante das lacunas do novo decreto, o georreferenciamento permanece como pilar técnico e jurídico indispensável da regularização fundiária brasileira, não apenas por razões cadastrais, mas como instrumento de cidadania, de proteção ambiental e de efetivação da função social da propriedade. O futuro da política fundiária dependerá, portanto, de uma reconciliação entre eficiência administrativa e segurança jurídica, resgatando o equilíbrio originalmente proposto pela lei 10.267/01 e reafirmando o papel do SIGEF e dos registros de imóveis como elementos centrais da governança territorial do Estado brasileiro. _____________________ 1 SANTOS, Marcos Alberto Pereira. Georreferenciamento: dispensa da anuência dos confrontantes. Revista Anoreg Brasil, Brasília, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 24 out. 2025. 2 SANTOS, Marcos Alberto Pereira. Georreferenciamento - A exigibilidade indevida da certificação pelo INCRA. Diário das Leis, disponível aqui. 3 Exemplo: TRF-1, Processo nº 2007.36.00.009567-3/MT, que determinou ao INCRA a certificação de georreferenciamento em 15 dias, sob pena de multa. 4 BRASIL. INCRA. Sistema de Gestão Fundiária já certificou 1 milhão de imóveis rurais. Disponível aqui. 5 BRASIL. INCRA. Portaria nº 2.502/2022 - 2ª edição do Manual Técnico para Georreferenciamento. Disponível aqui. 6 BRASIL. Presidente em exercício amplia em quatro anos a obrigação de georreferenciamento em propriedades rurais. Agência Planalto, Brasília, 21 out. 2025. Disponível aqui.
Resumo O presente artigo analisa o instituto da TDA - Tomada de Decisão Apoiada, introduzido pela lei 13.146/15 no ordenamento jurídico brasileiro, e propõe sua aplicação analógica às pessoas idosas, mediante escritura pública de nomeação de apoiadores. Embora o art. 1.783-A do CC tenha sido concebido para atender às pessoas com deficiência, argumenta-se que seus fundamentos - autonomia, dignidade e apoio voluntário - também se aplicam ao idoso, especialmente diante da vulnerabilidade decorrente da idade. Defende-se, portanto, a possibilidade de formalização extrajudicial da TDA em favor de idosos plenamente capazes, sem necessidade de homologação judicial, em consonância com o movimento de desjudicialização e com o fortalecimento da função notarial como instrumento de cidadania. Palavras-chave: Tomada de decisão apoiada. Idoso. Escritura pública. Desjudicialização. Autonomia. Dignidade. 1. Introdução O envelhecimento populacional é um fenômeno irreversível e de grande impacto jurídico e social. No Brasil, a população idosa cresce em ritmo acelerado, o que demanda mecanismos de proteção que garantam a autonomia da vontade e a dignidade da pessoa humana. Busca-se, assim, a tutela da vulnerabilidade sem limitação da capacidade civil. A TDA - Tomada de Decisão Apoiada, prevista no art. 1.783-A do CC, surgiu como instrumento inovador para assegurar que pessoas com deficiência possam exercer sua capacidade civil com apoio, sem substituição de sua vontade. Eis a diferença terminológica essencial: apoio não é substituição. A presente proposta reflete sobre a ampliação do instituto às pessoas idosas, mediante escritura pública de nomeação de apoiadores, evitando a judicialização desnecessária e reforçando o papel da juridicidade notarial como meio de proteção preventiva. 2. A tomada de decisão apoiada no Direito Civil brasileiro A lei 13.146/15, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência, incluiu no CC o art. 1.783-A, criando a figura da Tomada de Decisão Apoiada - um modelo de suporte voluntário destinado à promoção da autonomia. Conforme o caput do dispositivo: "A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos duas pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade." (BRASIL, 2015) Trata-se, portanto, de um processo judicial, instaurado a pedido da própria pessoa interessada, com oitiva do Ministério Público e homologação judicial (§§ 1º a 3º). A decisão tomada pela pessoa apoiada, dentro dos limites do apoio acordado, tem validade e efeitos plenos perante terceiros (§ 4º). Homologada a nomeação dos apoiadores, esta deve ser levada a registro no Livro "E" dos Ofícios de Registro Civil das Pessoas Naturais com atribuição de Interdição e Tutelas, de modo que, emitida certidão para a prática de determinados atos, conste do documento a informação sobre a TDA e a exigência da presença dos apoiadores. A TDA representa um marco do modelo social da deficiência, inspirado na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (decreto 6.949/09), rompendo com a lógica da substituição da vontade, típica da curatela. 3. A vulnerabilidade do idoso e a proteção jurídica da autonomia O Estatuto do Idoso (lei 10.741/03), atualizado pela lei 14.423/22, estabelece a prioridade da proteção integral e da autonomia das pessoas idosas, reconhecendo a importância da liberdade de decidir e da participação ativa na vida social. Observa-se, contudo, que muitos idosos, ainda que plenamente capazes, enfrentam situações de vulnerabilidade, tais como: Declínio cognitivo leve; Dependência emocional ou física; Dificuldade em compreender contratos e atos financeiros complexos; Risco de manipulação por terceiros; Confusão mental temporária em determinadas circunstâncias. Essas situações não justificam curatela ou interdição, mas evidenciam a necessidade de instrumentos intermediários de apoio, que confiram segurança sem suprimir a autonomia. 4. A desjudicialização e a função notarial como caminho de efetivação A desjudicialização é uma diretriz consolidada no ordenamento jurídico brasileiro, promovendo a transferência de determinados atos da esfera judicial para a via notarial e registral, sob o controle de legalidade e fé pública do tabelião e do registrador. Exemplos marcantes incluem o inventário e o divórcio extrajudiciais (lei 11.441/07), a usucapião administrativa (lei 13.105/15, art. 1.071) e, mais recentemente, os inventários com incapazes (resolução CNJ 571/24). No Estado do Rio de Janeiro, o Código de Normas da CGJ/RJ (2022) - cuja relatoria tivemos a honra de exercer - consagrou expressamente a desjudicialização como instrumento de cidadania efetiva, prevendo não apenas o inventário com incapazes (art. 447), mas também a escritura pública de autocuratela (art. 396) e a DAV - Diretiva Antecipada de Vontade. Em outubro de 2025, o provimento CNJ 206/25 ratificou tais avanços, consolidando o modelo carioca como referência nacional. Nesse contexto, propõe-se que o idoso, plenamente capaz, possa lavrar uma escritura pública de nomeação de apoiadores, na qual: Indique ao menos duas pessoas de sua confiança para prestar-lhe apoio; Delimite o escopo do apoio (decisões patrimoniais, médicas ou contratuais); Defina prazos e possibilidade de revogação; Declare expressamente que mantém plena capacidade civil. A fé pública do tabelião assegura a segurança jurídica necessária ao ato, conferindo celeridade e economicidade, sem necessidade de intervenção judicial - que deve permanecer restrita às hipóteses do art. 1.783-A, voltadas às pessoas com deficiência. 5. Fundamentos jurídicos da proposta A aplicação extrajudicial da TDA a idosos encontra respaldo em diversos princípios e normas do ordenamento jurídico, destacando-se: Dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) - a autonomia é expressão essencial da dignidade, e o apoio visa preservá-la, jamais restringi-la. Autonomia privada e liberdade contratual (CC, art. 421) - a escritura pública apenas formaliza, com segurança jurídica, a manifestação legítima de vontade de partes plenamente capazes. Eficiência e desjudicialização (CF, art. 5º, LXXVIII) - a atividade notarial concretiza o princípio da razoável duração do processo e da celeridade procedimental. Proteção ao idoso (lei 10.741/03, art. 3º) - a escritura pública é meio idôneo de efetivação dessa proteção estatal. Competência notarial (lei 8.935/94, art. 6º) - cabe ao tabelião, como agente estatal imparcial, dar forma legal à vontade das partes, prevenindo litígios e garantindo segurança jurídica. Dessa forma, a escritura pública de nomeação de apoiadores configura instrumento voluntário, flexível e preventivo, que permite ao idoso exercer sua autonomia com o apoio necessário, sem intervenção judicial. 6. Efeitos práticos da proposta A prática notarial revela inúmeras situações de vulnerabilidade do idoso que, embora lúcido e orientado, demonstra insegurança na celebração de atos jurídicos. Essa realidade preocupa não apenas os familiares, mas também o tabelião, cuja responsabilidade civil e criminal pela higidez dos atos é expressa, inclusive no art. 108 do Estatuto do Idoso. A presença de apoiadores, designados previamente em escritura pública, traria maior segurança jurídica e emocional às partes envolvidas, prevenindo abusos e garantindo a autenticidade da manifestação de vontade. A interdição, nesses casos, não é solução adequada - vulnerabilidade não se confunde com incapacidade. O idoso deve ser protegido e apoiado, não substituído. A TDA, por escritura pública, apresenta-se como instrumento jurídico ideal para tanto. Sugere-se, ainda, que as Corregedorias-Gerais de Justiça e o CNJ regulamentem a matéria, prevendo o registro das escrituras de nomeação de apoiadores no RCPN com atribuição de Interdição e Tutelas, garantindo publicidade e a exigência de participação dos apoiadores sempre que necessário. 7. Conclusão A Tomada de Decisão Apoiada representa um avanço essencial na consolidação da capacidade legal universal e na promoção de um Direito Civil inclusivo. Sua adaptação às pessoas idosas, por meio da escritura pública, coaduna-se com o movimento de desjudicialização e com o fortalecimento da função notarial como instrumento de cidadania e segurança jurídica. Permitir que o idoso - capaz, porém vulnerável - designe apoiadores de confiança sem processo judicial é assegurar-lhe o direito de decidir com apoio e não sob tutela, constituindo mais uma camada de proteção à velhice digna e autônoma. Tal proposta reforça a cidadania, valoriza o notariado e reafirma que a autonomia com responsabilidade é o verdadeiro eixo da dignidade humana.
No PCA - Procedimento de Controle Administrativo 0001611-12.2023.2.00.0000, oriundo do Paraná, de relatoria do conselheiro Marcello Terto, cujo julgamento se deu em 15/8/2025, o CNJ firmou a seguinte tese: "É vedado aos Tribunais, às Corregedorias-Gerais de Justiça e às serventias extrajudiciais exigir a apresentação de certidões negativas de débitos tributários - federais, estaduais ou municipais - como condição à lavratura, registro ou averbação de escritura pública de compra e venda de imóvel, por configurar sanção política tributária, em afronta à jurisprudência do STF e do CNJ. Nada impede, porém, que se imponha a exigência de certidões, ainda que positivas, a título de informativo, de transparência, de segurança e de eficácia jurídica do negócio escriturado ou registrado perante terceiros, especialmente a Administração Tributária." O motivo da fixação dessa tese é porque diversas leis e normas infralegais, mais especificamente os arts. 47 e 48 da lei 8.212/1991, condicionam a prática de atos de constituição, transmissão e modificação de direitos reais imobiliários à prévia comprovação de regularidade fiscal do transmitente, relativamente a tributos sobre o imóvel e outros tributos sem qualquer vinculação direta com o negócio jurídico objeto do ato notarial ou registral a ser praticado. As referências jurisprudenciais e normativas utilizadas pelo CNJ no referido julgado foram as seguintes: STF, ADI 394/DF, rel. min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 25/9/2008. STF, ARE 914.045 RG, rel. min. Edson Fachin, julgado em 15/10/2015. STF, súmulas 70, 323 e 547. CNJ, PP 0001230-82.2015.2.00.0000, rel. min. João Otávio de Noronha, 28ª Sessão Virtual, julgado em 11/10/2017. CNJ, Recurso Administrativo no PP 0001230-82.2015.2.00.0000, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, 92ª Sessão Virtual, julgado em 10/9/2021. Conselho Nacional de Justiça, PCA 0010545-61.2020.2.00.0000, rel. cons. Jane Granzoto, 104ª Sessão Virtual, julgado em 29/4/2022. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 5º, incisos XXXV e LIV; art. 22, XXV; e art. 170, parágrafo único. Lei 8.212/1991, art. 47, I, "b". Lei 7.711/1988 (revogada parcialmente). Provimento 314/22-CGJ/PR. Considerando a competência constitucionalmente estabelecida para o CNJ, nos termos do §1º do art. 236 combinado com o inciso I-A e §4º do art. 92 da Carta Magna, segundo a qual compete ao referido órgão o controle da atuação e legalidade dos atos administrativos praticados por todos os órgãos do Poder Judiciário, inclusive seus serviços auxiliares, prestadores de serviços notariais e de registro, entendemos que a tese fixada no supracitado PCA tem natureza cogente para todos os tribunais, corregedorias-gerais e serventias extrajudiciais do país, inobstante ter sido originada em procedimento de controle administrativo de ato do Judiciário paranaense, afastando peremptoriamente a incidência das normas estabelecidas nos arts. 47 e 48 da lei 8.212/1991 e todas as demais normas com o mesmo teor e objetivo. Todavia, a aplicação dessa tese na atividade notarial (tabelionato de notas) é diferente da aplicação na atividade registral (registro de imóveis), isso porque são serviços de naturezas distintas, apesar de correlatos e complementares. De maneira simplificada, objetivando apenas tratar do tema proposto, que é a dispensa das certidões tributárias para a prática de atos notariais e registrais imobiliários, é certo dizer que o notário ou tabelião tem a função de assessorar as partes do negócio imobiliário, a fim de que possam manifestar suas vontades de forma esclarecida e livre, lavrando o competente e hígido instrumento contratual (escritura pública), conferindo segurança jurídica ao direito em movimento (segurança jurídica dinâmica). Nesse mister de dar segurança ao tráfico jurídico imobiliário, o notário deve ter o cuidado para que nulidades não se aninhem no instrumento lavrado, assim como deve esclarecer e orientar as partes a respeito de possíveis anulabilidades ou ineficácias que poderiam fragilizar a transação, caso algumas situações ou circunstâncias estejam presentes. Como bem alertado no voto-vogal do min. Mauro Campbell Marques no referido PCA, deve o notário recomendar às partes contratantes, especialmente o adquirente do direito imobiliário transacionado, que sejam apresentadas as certidões tributárias em nome do transmitente, em observância aos princípios da boa-fé objetiva e segurança jurídica, pois caso haja débito tributário inscrito em dívida ativa em nome do transmitente o negócio pode ser considerado fraude à execução fiscal, tornando-o ineficaz perante o ente público credor. Entretanto, é importante ressaltar que a existência de dívida tributária em nome do transmitente não invalida a transação, apenas pode torná-la ineficaz perante o erário, caso o respectivo ente fiscal demonstre que a transmissão ou constituição do direito sobre o imóvel acarretou a insolvência do devedor transmitente. É o que diz o art. 185 do Código Tributário Nacional, com redação dada pela LC 118/05. Por isso que o negócio imobiliário não pode ser impedido caso não sejam apresentadas as certidões tributárias do transmitente, ou quando estas forem positivas. O negócio jurídico celebrado nessas condições não será nulo nem anulável, será válido. Todavia, se demonstrados os requisitos fáticos do art. 185 do CTN, o negócio não terá eficácia apenas e tão somente com relação ao fisco credor do alienante. Nesse diapasão, não há motivo jurídico para que se proíba a celebração da transação imobiliária, pois o fisco permanecerá com a possibilidade de excutir a propriedade para pagamento do tributo, mesmo que ela esteja nas mãos de terceiro. Por outro lado, o adquirente deve ter consciência dos riscos do contrato celebrado com a dispensa das certidões ou quando elas forem positivas. Essa função de informar e assessorar sobre os riscos da ineficácia do contrato perante o fisco deve ser exercida pelo notário, antes de lavrar o instrumento negocial. Uma vez orientadas as partes, especialmente o adquirente, e mesmo assim persistindo a vontade consciente de celebrarem o negócio, o notário deverá lavrar o competente instrumento público. Nesse caso, é recomendável e salutar que conste da escritura a dispensa das certidões pelo adquirente ou a existência de certidões positivas, conforme o caso, com o alerta do tabelião a respeito das possíveis consequências adversas, demonstrando assim o devido exercício da função notarial. Nisso consiste a aplicação pelo notário da tese fixada pelo CNJ no PCA em referência. Parte-se, então, para a análise da aplicação da tese do CNJ pelo registrador imobiliário. Uma vez celebrado o negócio jurídico de constituição, transmissão, modificação ou extinção do direito imobiliário com a dispensa das certidões tributárias ou apresentação de certidões positivas ou mesmo sendo omisso o instrumento contratual com relação a tais certidões, é certo que o registrador não poderá impedir o registro do título, pois ele é plenamente válido, na esteira dos precedentes acima elencados, independentemente de o negócio ter sido formalizado por notário ou não. Caberá ao fisco, se for o caso, demonstrar a existência dos pressupostos fáticos da fraude à execução fiscal, na forma do art. 185 do CTN, pleitear a declaração judicial da fraude, e, consequentemente, a ineficácia da alienação, para em seguida penhorar a propriedade do imóvel pertencente ao terceiro adquirente, o qual, querendo, poderá inclusive pagar a dívida do antigo proprietário e seguir como proprietário pleno do imóvel, provando que a declaração de fraude à execução não anula ou invalida o negócio jurídico. Percebe-se, portanto, que a alienação da propriedade ou qualquer direito real imobiliário com conteúdo econômico pelo devedor tributário não impede que o fisco satisfaça seu crédito com a excussão do direito alienado, independentemente de quem seja seu atual titular, desde que se comprove a fraude à execução. É por isso que o notário deve orientar e informar as partes a respeito da dispensa das certidões e suas consequências, mas não pode exigir sua apresentação. Com muito mais razão, uma vez lavrado ou celebrado o ato translativo do direito, não há fundamento algum para que o registrador exija as certidões. De fato, conforme deixou claro o CNJ, o registrador não pode exigir a apresentação de certidões negativas ou positivas de débitos tributários para registrar ou averbar qualquer ato ou negócio jurídico imobiliário, salvo duas exceções que trataremos mais adiante. Assim, como regra, para se registrar um título de compra e venda, hipoteca, alienação fiduciária, partilha de inventário ou dissolução de sociedade conjugal/união estável, promessa de compra e venda, instituição de usufruto, instituição ou transmissão de superfície e outros títulos de constituição ou transmissão de qualquer direito sobre imóvel, o registrador não deve exigir certidões como: IPTU, ITR, CND da Receita Federal e INSS, CND do INSS de obra de construção civil, CND do IBAMA, enfim, qualquer outra certidão tributária. Por óbvio, caso sejam apresentadas essas certidões, negativas ou positivas, isso não deverá influenciar a qualificação do título. Antes mesmo da decisão do CNJ, alguns Códigos de Normas do Serviço Extrajudicial de alguns estados, como é o caso de Goiás, já autorizavam o adquirente de direitos imobiliários a dispensar todas as certidões fiscais de natureza municipal, estadual e federal do transmitente pessoa física ou jurídica, assumindo eventual responsabilidade por débitos porventura existentes. E vamos falar a verdade, essa assunção de responsabilidade nem precisaria estar escrita, haja vista que o próprio regramento legal da fraude à execução fiscal impõe tal consequência, uma vez comprovados todos os requisitos da fraude. De qualquer forma, dispositivos normativos com tal conteúdo são interessantes para nortear a atividade do notário, mas dispensáveis para a atividade registral. Trataremos agora das duas exceções à regra da dispensa das certidões tributárias para o registro de títulos no registro de imóveis. Tais exceções dizem respeito ao registro de memorial de parcelamento do solo (loteamento ou desmembramento) e registro de memorial de incorporação imobiliária, nos quais haverá a necessidade de apresentação de algumas certidões de cunho tributário. Não que a existência de débitos tributários vá impedir o registro do memorial, mas será necessário dar publicidade a esses débitos para que os pretensos adquirentes de lotes ou unidades autônomas nesses empreendimentos possam avaliar possíveis riscos na aquisição. Em se tratando de registro de memorial de parcelamento do solo, sob qualquer de suas modalidades (loteamento ou desmembramento), de acordo com a alínea "a" do inciso III do art. 18 da lei 6.166/1979, faz-se necessária a apresentação da certidão negativa ou positiva de IPTU ou ITR do imóvel ou gleba loteada. A certidão deve compor o memorial, porém o fato de a certidão ser positiva não impedirá o registro, apenas deverá constar do ato registral a informação dessa certidão. O débito não impede o registo do parcelamento do solo, muito menos a alienação dos lotes. No caso de registro de memorial de incorporação imobiliária, de acordo com a alínea "b" do art. 32 da lei 4.591/1964, faz-se necessária a apresentação das seguintes certidões negativas ou positivas em nome do incorporador e do proprietário e/ou promitente comprador/cessionário do terreno: 1) Certidão da Receita Federal do Brasil; 2) Certidão da Fazenda Estadual; 3) Certidão da Fazenda Municipal. Precisará, ainda, ser apresentada a Certidão de IPTU do imóvel. As certidões devem compor o memorial, mas, de igual forma, elas poderão ser negativas ou positivas, devendo constar do registro a informação de todas as certidões que forem positivas. Aqui também o débito não impede o registo do memorial de incorporação, muito menos a alienação das unidades. Não se pode olvidar, ainda, que a dispensa das certidões tributárias em negócios imobiliários é, muitas vezes, crucial para que o adquirente aceite celebrar o contrato, assumindo o valor da dívida como parte do pagamento do preço. Essa prática confere maior segurança ao adquirente e viabiliza de fato o recebimento do crédito tributário pelo erário. Em última análise, a inexigibilidade de apresentação de certidões tributárias para celebração de negócios imobiliários está respaldada no ordenamento jurídico brasileiro, agora expressamente determinada pelo CNJ para que seja aplicada por tribunais, corregedorias e serviços extrajudiciais, constituindo fator facilitador de circulação de riqueza, gerando mais impostos e, por conseguinte, mais desenvolvimento econômico e social.
Introdução Os serviços notariais e de registro vivenciam uma revolução tecnológica silenciosa, mas capaz de impactar a vida de milhões de brasileiros que precisam acessar as serventias extrajudiciais para registro de direitos reais relativos a imóveis, emissão de escrituras públicas de testamentos, casamentos, divórcios, bem como reconhecimentos de firma e autorizações eletrônicas para doação de órgãos. A pandemia do novo coronavírus (Covid-19) catalisou a transformação digital em curso, fomentando a plena digitalização dos serviços e a desmaterialização dos atos notariais, que passam a ser armazenados na sua integralidade em servidores físicos ou nas nuvens. No plano constitucional, os tabeliães e registradores são particulares em colaboração com o Estado que exercem função munida de fé pública, destinada a conferir autenticidade, publicidade, segurança e eficácia às declarações de vontade. Por exercerem, em caráter privado, um feixe de competências estatais, são enquadrados como agentes públicos e devem observar os princípios constitucionais de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, que regem o agir administrativo, além dos direitos fundamentais, como a proteção de dados pessoais, inclusive nos meios digitais. Nesse cenário, importa discutir, na perspectiva jurídica, como o armazenamento dos dados em nuvem deve ser implantado nas serventias extrajudiciais, compatibilizando o aumento da eficiência e a modernização dos serviços, de um lado, com a proteção aos dados pessoais, por outro. Para tanto, o presente artigo terá o seguinte problema de pesquisa: quais são os deveres legais a serem observados pelos tabeliães e registradores quando armazenam em nuvem os documentos digitais ou digitalizados, bem como os dados pessoais dos seus usuários ou de terceiros mencionados no acervo documental recebido ou produzido nas serventias extrajudiciais? No primeiro capítulo, será debatida a transformação digital nos serviços notariais e de registros mediante uma abordagem dividida em duas subpartes: uma sobre o SERP - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos e o e-Notariado; outra acerca dos atos normativos para incorporação da computação em nuvem (cloud computing) nas serventias extrajudiciais. No segundo capítulo, serão apresentados os desafios jurídicos da computação em nuvem (cloud computing) nas serventias extrajudiciais, de modo que a estruturação da abordagem também foi realizada em duas subpartes: uma mais genérica sobre a computação em nuvem (cloud computing) nas funções estatais; e outra específica focada nos deveres legais para sua implantação nas serventias extrajudiciais. A pesquisa empregará o método dedutivo de análise e uma abordagem exploratória. Esse arranjo permitirá uma compreensão mais profunda do tema, utilizando a lógica dedutiva, partindo do geral para o específico de modo a chegar a conclusões a partir de premissas estabelecidas, junto com a exploração de diversas fontes bibliográficas para contextualizar e respaldar as análises realizadas na legislação nacional e doutrina relevantes, garantindo assim a robustez e a credibilidade do estudo. A temática se reveste de elevada relevância, porquanto os serviços prestados pelos tabeliães1 e registradores2 ocupam um crescente protagonismo na vida dos brasileiros e das suas instituições, especialmente no decorrer das ondas de desjudicialização, na qual se transferem matérias antes restritas à seara judicial para o ecossistema extrajudicial, como ocorreu com o testamento, o divórcio, a alienação fiduciária e a adjudicação compulsória. Por fim, objetiva-se demonstrar que a transformação digital nas serventias extrajudiciais, no que se refere ao uso da computação em nuvem (cloud computing), tornado compulsório pelo provimento 74/18-CN-CNJ3, ainda não foi objeto de adequada regulamentação, o que gera insegurança jurídica e riscos à segurança dos dados e à continuidade de serviços essenciais. Leia a coluna na íntegra. _______ 1 Historicamente, os ofícios notariais constituem "órgãos da fé pública" (ALMEIDA JÚNIOR, 1963, p.2) e recorrem ao ritual e à liturgia para conferir maior certeza aos atos que se realizam na esfera das relações de direito privado. "O ato notarial envolve e ampara a necessidade ritualística da sociedade. Ele é dramático, é litúrgico, ele existe para legalizar um ato ou um fato no mundo jurídico, como exige o Estado" (RODRIGUES, 2023, p. 12). Sobre a função notarial, leciona-se que "o tabelião autentica, apondo sua fé pública a fatos de interesse das partes, mas o foco da atividade notarial é mais amplo: busca legitimar um negócio privado em face não somente destes interesses, mas também para certeza do Estado e da sociedade" (RODRIGUES, 2023, p. 11). 2 Segundo Eduardo Sócrates Castanheiro Sarmento Filho, na sua obra Direito Registral Imobiliário, "o Registro Público é, pois, uma instituição técnico-jurídica que tem por finalidade dar publicidade e garantir a eficácia dos direitos nele inscritos, facilitando as relações sociais e trazendo ganho para todos os participantes dos negócios imobiliários" (2017, p. 34). Na economia de mercado cada vez mais complexa, a instituição organizada do registro imobiliário, enquanto "filtro depurador dos negócios", é essencial para tornar mais confiável o tráfico imobiliário, reduzindo ou neutralizando a assimetria de informações na relação negocial (2017, p. 34). 3 O provimento 149, de 30 de agosto de 2023, da Corregedoria Nacional do CNJ, institui o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça -  Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra), que regulamenta os serviços notariais e de registro. Ele consolida inúmeros atos normativos sobre serviços notariais e registrais, que serão citados neste trabalho em sua numeração original para fins de sua melhor localização na escala cronológica por parte do leitor, tendo em vista que não houve inovação jurídica, e sim mera consolidação normativa.
Como já é sabido e amplamente comentado nos meios jurídicos e contábeis, assim como no segmento do mercado imobiliário, a LC 214/25 em seu art. 252, estabelece que as locações realizadas por pessoas jurídicas estarão sujeitas à incidência do IBS - Imposto sobre Bens e Serviços e a CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços, tendo ainda como novidade a obrigação do locador emitir nota fiscal para o recebimento do aluguel. Como ponto favorável nessa operação, estabelece a lei que o locador ou proprietário do imóvel, terá direito ao crédito de IBS e CBS sobre aquisições de materiais de construção, reforma e ampliação e serviços de manutenção vinculados ao imóvel alugado, em procedimentos que devem ser objeto de futura regulamentação, razão pela qual a partir de 2026, se deve ter em boa guarda e organização as notas fiscais inerentes a esses gastos efetivados. Com a vigência no novo sistema de tributação, onde se fala numa alíquota cheia do IVA dual (IBS + CBS), estimada em 28% sobre as receitas, nas atividades de locação de imóveis pelas Pessoas Jurídicas, já há a previsão de uma redução de 70% desse imposto único, de tal sorte que a carga efetiva estimada final será de 8,4%, percentual este muito superior aos atuais 3,65% (3,0% de Cofins e 0,65% de Pis) atualmente incidentes sobre os rendimentos de alugueis. A taxação de 8,4% acima referenciada, é somente a da CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços que no caso das receitas de locações das Pessoas Jurídicas, substitui apenas o Pis e a Cofins, restando ainda sobre essas receitas a incidência do IRPJ - Imposto de Renda Pessoa Jurídica e da CSLL - Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, cuja base de cálculo é o lucro apurado. Se a empresa locadora dos imóveis for optante pelo lucro presumido, que é a modalidade de tributação mais indicada para esse tipo de atividade, a carga tributária final será elevada a um patamar mínimo de 16,08% sobre a renda de aluguéis, contra a tributação atual de 11,33%. Se diz que a tributação final de 16,08% sobre as rendas de aluguéis de Pessoas Jurídicas é um percentual mínimo, porque se essa renda for superior a R$ 62.500,00 mensais, o que equivale a um lucro presumido de R$ 20.000,00 (32% da receita) haverá uma tributação adicional de 10% sobre esse excesso a título de Imposto de Renda o que elevará gradualmente o percentual acima indicado. Para a facilitar a compreensão dos cálculos acima apresentados, vejamos um exemplo para uma empresa com receita de locação de R$ 100.000,00 mensais, totalizando R$ 300.000,00 em um determinado trimestre civil. Discriminação - Lucro Presumido Tributação Atual Tributação Futura 1.  Receita de Locação Trimestral 300.000,00 300.000,00 2.  Lucro Presumido (32%) 66.000,00 66.000,00 3. PIS/COFINS (3,65% sobre R$ 300.000,00 10.650,00 - 4.    CBS (8,4% sobre R$ 300.000) - 25.200,00 5. IRPJ (15% sobre R$ 66.000) 14.400,00 14.400,00 6.  RPJ Adicional (10% sobre R$ 36.000) 3.600,00 3.600,00 7.    CSLL (6% sobre R$ 66.000) 8.640,00 8.640,00 8. Total dos Tributos (3+4+5+6+7) 37.5G0,00 51.840,00 G. Incidência Tributária Sobre a Receita 12,53% 17,28% Entretanto, excepcionalmente para os contratos de locação com prazo determinado, firmados até 16/1/25, há uma opção para o locador se manter na mesma taxação de 3,65%, que é a atualmente vigente para o Pis/Cofins, ao invés de sofrer a incidência de 8,4% prevista para o IBS/CBS, conforme disposição contida no art. 487 da LC 214/25, onde se estabelece que "O contribuinte que realizar locação, cessão onerosa ou arrendamento de bem imóvel decorrente de contratos firmados por prazo determinado poderá optar pelo recolhimento de IBS e CBS com base na receita bruta recebida". Prescreve esse artigo da lei que, para o contrato com finalidade não residencial, a manutenção da taxação atual de 3,65% sobre o aluguel recebido se estenderá pelo prazo original do referido instrumento, desde que este: a) seja firmado até a data de publicação desta LC (25/1/25), sendo a data comprovada por firma reconhecida ou por meio de assinatura eletrônica; e b) seja registrado em Cartório de Registro de Imóveis ou em Registro de Títulos e Documentos até 31 de dezembro de 2025 ou seja disponibilizado para a Receita Federal e para o Comitê Gestor do IBS, nos termos do regulamento; Já para os contratos de locação com finalidade residencial, o benefício se estende "pelo prazo original do contrato ou até 31/12/28, o que ocorrer primeiro, desde que firmado até a data de publicação desta LC, sendo a data comprovada por firma reconhecida, por meio de assinatura eletrônica ou pela comprovação de pagamento da locação até o último dia do mês subsequente ao do primeiro mês do contrato." Diante do exposto, como se diz no ditado popular: "é pegar ou largar"! Tem que correr contra o tempo, observar os mandamentos da lei para postergar os efeitos da reforma tributária permanecendo, mesmo que por tempo determinado, com a mesma carga tributária hoje vigente.
A nomeação de inventariante deixou de ser mero expediente burocrático para se tornar peça-chave na estratégia sucessória. A mudança de postura da Fazenda Estadual de São Paulo comprova isso: o órgão passou a aceitar a escritura de nomeação como marco interruptivo do prazo para recolhimento do ITCMD. O Fisco, portanto, reconhece ao ato a natureza de "início de inventário" para fins tributários. Aqui reside, contudo, um paradoxo: se o próprio Fisco admite a nomeação como ato preliminar por reconhecer tratar-se de medida inicial e preparatória, como pode esse mesmo ato significar aceitação definitiva da herança? Aceitar essa equação seria condenar o herdeiro a arcar com custos de inventário como imposto, honorários advocatícios, custas e documentos necessários, antes mesmo de saber se há patrimônio a receber. Ninguém pode ser compelido a aceitar para só depois descobrir o que aceitou. A função da nomeação de inventariante, quando a família desconhece o patrimônio, é exatamente permitir essa descoberta. Saber o que existe antecede a decisão de aceitar. É situação comum nos tabelionatos de notas: os herdeiros de eventual de cujus não sabem ao certo o tamanho do monte e, por isso, os primeiros contatos junto aos notários são incertos e vacilantes, muito ligados a aspectos pecuniários. Em "bom português", antes de se dizer interessado na herança, quer o possível herdeiro saber se o trabalho "compensa". Como passar qualquer orçamento, notadamente em relação aos aspectos tributários - normalmente o maior ônus a ser pago -, sem saber exatamente o tamanho do monte a ser transmitido? É nesse momento que surge a escritura de nomeação de inventariante, pela qual, munido de legitimação dos demais herdeiros e pagando tão somente o relativo a uma escritura sem valor declarado, pode o herdeiro interessado arregimentar todos os documentos necessários, com comprovação do tamanho do monte para ulterior inventário dos bens encontrados. A nomeação de inventariante traz ainda duas vantagens inegáveis. A primeira consiste em demover qualquer pequena autoridade de grande poder recalcitrante - normalmente gerentes de instituições bancárias - a prestar as informações necessárias a quem foi qualificado, por um tabelião com fé pública, como legitimado a obter informações sobre os bens do de cujus, que, de outra sorte, estariam abrangidas pelo sigilo. Vale registrar que, em tese, as instituições financeiras já deveriam prestar essas informações aos herdeiros ou ao tabelião que as requisitasse, conforme orientação da própria FEBRABAN (comunicado 049/15) e a circular BACEN 3.858/17, que equiparou as escrituras públicas de inventário à carta de adjudicação judicial. Ocorre que, na prática, nem todas as instituições cumprem essa determinação, e em nosso dia a dia temos encontrado dificuldades com algumas - embora não com outras - que se negam a aceitar qualquer outro documento, embora revestido de fé pública, que não a nomeação de inventariante. A segunda e inegável vantagem é a utilização da nomeação do inventariante como marco inicial do inventário extrajudicial de modo a se elidir eventuais multas e outros encargos decorrentes da não finalização do inventário nos prazos previstos na legislação tributária, orientação pacífica do Tribunal de Justiça de São Paulo, corroborada pela resolução 35/07 do CNJ e hoje reconhecida pela própria Fazenda Estadual de São Paulo. A linha que separa investigação de aceitação precisa, entretanto, ficar clara. A nomeação de inventariante para levantamento de informações sobre o acervo hereditário constitui ato preparatório, de natureza investigativa. Requisitar extratos bancários, certidões imobiliárias, informações sobre investimentos, dados sobre rescisão trabalhista, declarações ao Fisco: tudo isso se limita à gestão informacional, sem qualquer disposição ou apropriação de bens. Trata-se do exercício do direito de o herdeiro conhecer o patrimônio antes de decidir. O quadro muda radicalmente quando a nomeação visa levantamento de valores ou até mesmo alienação de bens do espólio para pagamento de despesas do inventário, nos termos da resolução 35/07, alterada pela resolução 571/24 do CNJ. Aí sim há manifestação de vontade no sentido de incorporar a herança, o que caracteriza aceitação tácita nos moldes do art. 1.805 do CC. A distinção não está no ato de nomeação em si, mas na finalidade para a qual se presta. Nota-se que investigar não é aceitar. Mas dispor, fruir, movimentar valores ou incorporar ao patrimônio pessoal, isso é aceitar. A escritura de nomeação deve deixar expressa essa limitação funcional, com ressalva do direito de renúncia caso o levantamento revele herança que não compensa ou não interessa aos sucessores. Vale ressaltar que a escritura de nomeação de inventariante pode ser utilizada para levantamento de seguro de vida e previdência PGBL/VGBL. Trata-se de direitos creditícios de natureza contratual que não integram a herança, não se sujeitam a inventário nem às dívidas do falecido1. O levantamento desses valores não configura aceitação do espólio, pois os beneficiários recebem na qualidade de credores designados em contrato, e não como herdeiros. Da mesma forma, no exterior, se lavram as chamadas escrituras de "acreditação de herdeiros", pela qual os notários declaram, com fé pública, os herdeiros legais de uma dada pessoa, sem que tal ato envolva, por si, qualquer disposição quanto à eventual herança existente. Esse instrumento, que no mais das vezes nada revela sobre o patrimônio, é justamente absorvido pela praxe brasileira de "nomeação de inventariante": para nomear inventariante é pressuposto que se reconheçam anteriormente os herdeiros que o nomeiam. E por meio dessa escritura têm sido cumpridas determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos em casos envolvendo violações de direitos humanos que demandem o pagamento de indenizações aos herdeiros legais das vítimas. Não há aqui um fenômeno sucessório, senão do âmbito da responsabilidade civil, o qual, contudo, depende de instrumentos típicos do direito sucessório para se concretizar, em mais uma prova de que, por si, a "nomeação de inventariante" não tem o condão de implicar na aceitação do patrimônio do de cujus. Entender que a escritura de nomeação traria como efeito automático a aceitação, diminuiria sua funcionalidade e traria grandes riscos. O mais comum é justamente a hipótese de não se encontrarem bens suficientes a cobrir as dívidas da herança, ou, ainda, bens em quantidades mínimas, pelos quais mesmo se desinteressem os herdeiros em seguir em frente com o inventário. Nessa situação, questiona-se se o herdeiro ainda poderia, após ter aceitado o encargo de inventariante, renunciar à herança.             Muitos colegas sustentam opinião negativa, entendendo que o encargo de inventariante traz consigo todos os commodus e incommodus, não podendo ser aceito tão somente no que vantagem traz. Pesa a favor de tal posição o entendimento segundo o qual é da natureza da herança o caráter universal, de modo que jamais seria possível se ter ciência exata de todos os bens que a integram. Por essa linha, é corrente na doutrina a afirmação de que a cessão de quinhão hereditário é negócio aleatório, eis que se posteriormente à cessão vierem a ser descobertos novos bens, também estes restarão cedidos, a despeito do desconhecimento por parte do herdeiro em relação a sua existência no momento da cessão. Ora, tal qual a cessão, a aceitação trariam esse caráter aleatório. Não podemos, contudo, concordar com tal posição. Explica-se: na cessão existe um terceiro de boa-fé, justamente o cessionário, que deve ter sua esfera de interesses tutelada pelo direito frente ao negócio realizado, o qual deve ser mantido, até pelo princípio da conservação dos negócios jurídicos, frente a eventuais superveniências do aspecto fático. Ausente tal terceiro na mera nomeação, e considerando a recalcitrância de algumas autoridades administrativas a prestar qualquer informação senão àquele previamente nomeado inventariante, ter-se-ia quase que uma aceitação compulsória da herança pura e tão somente para que se pudesse superar a inciência quanto a seu tamanho. Ora, não se vislumbrando qualquer outro interesse de terceiro a ser tutelado no momento da aceitação - diferindo, assim, da cessão -, não se vê qualquer razão para que a aceitação da herança se torne verdadeira caixa de pandora em desfavor dos herdeiros. Muito ao contrário, toda a formalidade com a qual o legislador cerca o ato de renúncia à herança faz crer que, a contrario sensu, também a aceitação deve se dar de forma ponderada, pensada, ainda que presumida, mas jamais como forma impositória, de surpresa e inopino, não se coadunando o direito à herança com um dever de aceitação "para ciência". Caso concreto ilustra bem a questão: falecido deixou como únicos herdeiros seus ascendentes, que receberam comunicação via Serasa sobre dívida do filho com construtora. Não se tratava de dívida do imóvel, que estava quitado, mas de outro débito junto à mesma construtora. Para ter acesso ao valor exato dessa dívida e à real situação patrimonial, foi necessária a lavratura de escritura de nomeação de inventariante, pois a construtora somente prestava informações detalhadas ao inventariante formalmente constituído. A escritura foi lavrada sem qualquer ressalva quanto ao direito de renúncia. Somente após a descoberta do montante da dívida é que um dos ascendentes manifestou o desejo de renunciar à herança, por não mais lhe interessar diante do quadro patrimonial revelado. Surgiu, então, a dúvida: permitir ou não a renúncia? Justamente em razão da orientação firmada pelo STJ no REsp 1.622.331/SP, que considera a abertura de inventário como aceitação tácita, e sendo a nomeação de inventariante precisamente um ato inaugural/de abertura do inventário, seguindo-se essa linha restritiva, poder-se-ia argumentar que a mera nomeação já caracterizaria aceitação irretratável, o que impediria a renúncia posterior. Foi exatamente essa jurisprudência que criou o impasse. A solução estaria, justamente, na cláusula expressa de ressalva. Tivesse a escritura delimitado claramente que a nomeação se destinava exclusivamente à obtenção de informações, vedando qualquer movimentação ou disposição de bens, e ressalvado expressamente o direito de renúncia após o levantamento patrimonial, não haveria margem para aplicação da tese restritiva do STJ. A cláusula, portanto, não é mero preciosismo jurídico. Mas sim uma cautela entre proteger o herdeiro ou condená-lo a aceitar herança que, à luz das informações obtidas, não mais lhe interessa. Nesse sentido é a doutrina de Débora Brandão e Mauro Antonini: "não configuram aceitação tácita o pedido de abertura de inventário e o de constituição de advogado para atuar nele, pois são atos que o sucessor pode praticar para que possa em seguida manifestar renúncia"2. Pela mesma lógica, a nomeação de inventariante para fins de levantamento de dados patrimoniais constitui ato oficioso e preparatório, o que não implica em aceitação definitiva da herança. Esse entendimento encontra respaldo no projeto de reforma do CC. O anteprojeto prevê expressamente, em seu art. 1.805-A, § 2º, que "o requerimento de abertura do inventário, a simples manifestação nos autos e os atos de mera administração ou conservação dos bens hereditários, incluindo a ocupação, a habitação e proposição de medidas judiciais em defesa do patrimônio, praticados pelo eventual herdeiro, não implicam aceitação tácita da herança"3. Como bem observa Patrícia Novaes Calmon, essa disposição "protege o herdeiro de ser inadvertidamente vinculado à aceitação, limitando os efeitos de suas ações de mero zelo administrativo"4. Seria salutar, contudo, que o projeto contemplasse expressamente a nomeação de inventariante para fins exclusivamente informativos. Uma sugestão de inclusão no § 2º do art. 1.805-A poderia ser: "incluindo-se, no âmbito extrajudicial, a nomeação de inventariante quando destinada exclusivamente à obtenção de informações sobre o acervo hereditário, sem poderes de disposição ou movimentação patrimonial". Essa previsão conferiria segurança jurídica tanto aos tabeliães quanto aos herdeiros, impedindo que interpretações restritivas transformem ato meramente investigativo em aceitação irretratável. A aprovação desse dispositivo, com essa complementação, pacificaria definitivamente a controvérsia e alinharia a legislação à realidade prática dos tabelionatos e à necessidade de proteção do herdeiro que busca apenas informações antes de decidir. O STJ, no julgamento do REsp 1.622.331/SP, firmou entendimento de que o pedido de abertura de inventário, o arrolamento de bens e a constituição de advogado implicam aceitação tácita da herança, sendo irretratável posterior renúncia5. No entanto, essa orientação refere-se a hipótese específica em que os herdeiros ajuizaram conjuntamente ação judicial de inventário e constituíram advogado para representá-los na partilha dos bens conhecidos e, depois, com o falecimento de um dos herdeiros, o único herdeiro restante quis renunciar em nome do outro (genitor) à herança da irmã. Demonstraram no caso, portanto, inequívoca vontade de apropriar-se da herança e proceder à sua partilha. Poder-se-ia argumentar que permitir a renúncia após investigação abriria margem para evasão fiscal. Esse argumento, contudo, não se sustenta. A renúncia é direito potestativo do herdeiro, e os bens não desaparecem: são transmitidos aos herdeiros subsequentes ou, na falta, ao Estado, havendo sempre incidência tributária. Não há prejuízo ao erário. Nesse aspecto, é mister observar que muitas das escrituras de nomeação de inventariante trazem por texto padrão a aceitação pura e simples do encargo, sem atentar para a possível situação acima descrita. É para tal situação que relembramos a antiga doutrina da "aceitação sob benefício do inventário", não deixando que aquilo que não foi dito de forma expressa seja interpretado de forma contrária aos interesses dos herdeiros. A nosso ver, até em razão da praxe notarial que raramente se socorre da referida cláusula, dever-se-ia entender, por tudo quanto foi dito, que o benefício estaria implícito. É óbvio que ninguém pode ser compelido pelas circunstâncias fáticas a aceitar herança que lhe prejudica. Porém, para se extirpar qualquer dúvida, e tendo em vista o poder do texto expresso, faz-se mister resgatar as palavras de ordem, incluindo em toda nomeação a condicionante, extirpando, assim, qualquer suposta aceitação total da herança, a qual somente será aceita ou não em momento posterior, quando se descobrir efetivamente o seu quantum, sendo a nomeação de inventariante tão somente apontamento do legitimado para obter as informações necessárias que, de outra forma, restariam albergadas em diversos deveres de sigilo que rondam, sobretudo, as informações bancárias. Nesse sentido, e à luz da necessidade de proteção ao herdeiro, torna-se imprescindível a inclusão da seguinte cláusula: "O(A) inventariante ora nomeado(a) fica expressamente limitado(a) a obter informações sobre o patrimônio do(a) falecido(a) junto a instituições bancárias, seguradoras, cartórios e demais órgãos públicos e privados, ficando vedada qualquer movimentação, levantamento ou disposição de valores ou bens. Fica ainda ressalvado o direito de todos os herdeiros de renunciar à herança após o levantamento patrimonial, não implicando a presente nomeação em aceitação tácita da herança, nos termos dos arts. 1.804 e 1.805, § 1º, do CC." Essa situação parece, contudo, conflitar com a natureza de "início de inventário" dado pelo ITCMD. Esse argumento, todavia, não colhe, tendo em vista que mesmo o ITCMD somente poderia recair sobre a eventual herança efetivamente recebida e, se por qualquer razão os bens não vierem a ser formalmente transmitidos, serão ao final arrecadados e transmitidos ao ente público, não havendo que se falar em ITCMD. A nomeação de inventariante para fins informativos não pode representar uma armadilha ao herdeiro. O direito de conhecer antes de aceitar é elementar e não pode ser tolhido por interpretações que transformem ato preparatório em aceitação irretratável. A solução prática é simples: toda escritura de nomeação, quando feita com o fim de buscar informações, deve conter a cláusula expressa ressalvando o direito de renúncia após o levantamento dos dados patrimoniais. Não se trata de sofisticação jurídica desnecessária, mas de proteção básica aos interesses de quem busca apenas exercer o direito mais elementar de saber o que está recebendo antes de decidir se quer receber. _______ 1 Art. 794 do CC: "No seguro de vida ou de acidentes pessoais para o caso de morte, o capital estipulado não está sujeito às dívidas do segurado, nem se considera herança para todos os efeitos de direito". 2 BRANDÃO, Débora; ANTONINI, Mauro. Curso de Direito Civil: Direito de Família e das Sucessões. Coord. Alexandre de Mello Guerra.  Vol. 4. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, Revista dos Tribunais, 2025, p. 578 3 PL 4/25 4 CALMON, Patrícia Novaes. O Novo Direito Sucessório. Indaiatuba: Editora Foco, 2025, p. 30. 5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). REsp n. 1.622.331 - SP (2012/0179349-2), Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 2017. Disponível em: https://www.portaldori.com.br/wp-content/uploads/2017/03/ITA-25.pdf. Acesso em: 20 out. 2025.
Desde a entrada em vigor do já não tão "novo" CPC, em 2016, ganhou impulso, no âmbito acadêmico e jurisdicional, o debate sobre o chamado "negócio jurídico processual" previsto de forma ampla no art. 190 do CPC, com especificações nos arts. 191 (sobre "calendário para a prática dos atos processuais"), 372, §3º (inversão do ônus da prova por acordo), 357, §2º (delimitação consensual das questões controvertidas para a instrução), entre outros. Mesmo na Justiça Penal, supostamente mais comprometida com interesses indisponíveis, na qual a atuação jurisdicional não poderia ficar à mercê de negociações entre as partes, se observa, desde o impulso inicial por meio da lei dos juizados especiais em 95, uma progressiva ampliação do âmbito negocial, como nas famosas "colaborações premiadas", hoje especificadas por lei de 2013 e, mais recentemente, os "acordos de não persecução penal", disciplinados em 2019. Em síntese, parece haver uma tendência processual geral, a acompanhar mesmo a tendência do Estado de forma global, para a progressiva aceitação de formas não tradicionais de concretização do Direito. Gunther Teubner, aponta que "O foco da formação do Direito está mudando para regimes privados, para contratos entre atores globais, regulação do mercado privado por empresas multinacionais, elaboração de regras internas em organizações internacionais, sistemas de negociação inter-organizacionais, processos de padronização global"1. Nesse contexto, o direito estaria progressivamente deixando o exercício de Poder político estatal para se tornar "mais ligado a formas procedurais e à criação de fóruns que permitam a interação de diferentes racionalidades, o que serviria para possibilitar a geração de conhecimento híbrido e setorial dentro da sociedade global."2 Especificamente em relação aos processos cíveis, há muito se permitiu o total afastamento da própria jurisdição estatal como um todo, nas demandas que versassem sobre direito patrimonial disponível, nas quais as partes capazes poderiam optar então por submeter seus conflitos ao exercício de verdadeira jurisdição privada3. Comparado com esta opção, o negócio jurídico processual surge então como uma restrição, ou um afastamento apenas parcial, da solução pré-pronta totalmente estatal, na medida em que as partes passam a transigir, dentro da própria jurisdição estatal, sobre aspectos específicos que envolvem desde as formas dos atos processuais, seu tempo e modo, até regras de procedimento e julgamento, como o ônus probatório. Mutatis mutandis, retirando um exemplo do direito material, onde a autonomia privada sempre foi princípio central, se as partes podem convir sobre a própria existência de responsabilidade em seus contratos de direito material, afastando até mesmo os efeitos queridos pela lei nas hipóteses de caso fortuito e força maior4, podem também convir sobre aspectos particulares sobre a demonstração de tal responsabilidade, o que abrange a demonstração probatória, para a qual, como se demonstrou, nos casos de direitos patrimoniais disponíveis de partes capazes, podem inclusive afastar por completo a própria jurisdição - e regras5 - estatais. Ora, já no âmbito dos próprios negócios processuais, também é possível apontar uma hipótese que medeia entre o total afastamento do controle estatal - por ex., pela indicação das partes da produção de prova por agente privado - e de sua aceitação na forma tradicional judicial, o que poderia se dar por outro instituto também impulsionado pelo "novo" CPC: a ata notarial lavrada por Tabelião de Notas. Presente em nosso ordenamento jurídico pelo menos desde 946, e na prática notarial desde muito antes, a ata ganhou novo impulso a partir de sua previsão expressa no art. 384 do Diploma Processual, na qual se determinou que "a existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião". Fato, contudo, que não tem recebido a devida atenção da maioria da doutrina e jurisprudência até o momento é que a ata não foi prevista dentro da seção VII do Código, que cuida da prova documental, mas, antes, encontrou seção própria, entre os outros meios de prova, pelo que, como ensinam os professores Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Júnior, "a ideia do legislador, parece, foi diversa, elencando a ata notarial não como modalidade de prova documental, mas como novo meio de a parte movimentar-se no processo para exercer seu direito de fazer prova: o realce do legislador não está na natureza da prova (se documental, por instrumento público, ou privado, se pericial etc.), mas na extensão teórica que esse novo mecanismo jurídico proporciona às partes, para o exercício do direito de fazer prova."7 Ora, nesse aspecto, a ata deixa de ser vista tão somente enquanto documento escrito, mas é analisada enquanto função de certificação exercida por um terceiro imparcial fora do âmbito jurisdicional. É certo que na grande maioria das vezes a ata, enquanto documento redigido pelo notário, ainda terá que se apresentar como documento legível ao ser humano8. Contudo, ao se prever a ata como meio prova, não se pretendeu tão somente uma transposição de meios de produção da prova, que deixaria de ser oral, por exemplo, no depoimento de uma testemunha, para documental, uma vez que o depoimento seja transcrito em ata e apresentada no processo, o que levantaria, inclusive, uma possível restrição ao contraditório - vez que a produção do contraditório oral em muito se diferencia daquele exercido sobre documentos pré-formados e apresentados sem participação em sua formação por todas as partes. Na verdade, o que se quis foi apresentar um terceiro imparcial com fé pública estatal capaz de constatar fatos a serem considerados por ambas as partes do processo como presumidamente verdadeiros. A ata, nesse sentido, embora não necessariamente, é, mesmo fora do âmbito processual, produzida muitas vezes "em contraditório", por exemplo, nos casos de reuniões para a exclusão de sócios de empresas, nas quais todas as partes podem requerer que constem expressamente trechos e fatos da ata a ser lavrada. O poder de constatação vai muito além daquilo a que de início parece estar restrito nos limites da descrição narrativa. E essa constatação sofrerá o controle imparcial estatal, de modo que "a ata notarial pode ser confeccionada para a captação de existência ou do modo de existir de qualquer fato", sendo "a amplitude do trabalho do oficial imensurável e, por isso, difícil de ser definido, ainda mais diante da novidade de o legislador utilizar-se de dois verbos distintos como pilares dessa atividade: 'atestar' e 'documentar'."9 Esse poder instrumental imparcial, somado ao negócio jurídico processual inicialmente abordado, pode mesmo se tornar um novo mecanismo de resolução de conflitos, presente tanto na Jurisdição estatal, quanto na Jurisdição arbitral. De fato, nada impede que, tanto perante juízes, quanto perante árbitros, as partes optem por formas específicas de constituição probatória, inclusive para fins de celeridade, pelo que praticamente todos os fatos externos ao processo (judicial ou arbitral) podem ser a ele levados de forma pré-constituída e, como aventado, inclusive com participação em contraditório de ambas as partes em sua produção junto ao terceiro imparcial estatal. Ainda mais, tendo em vista que o ato notarial tem precipuamente a função "de evitar o conflito ou uso da máquina da jurisdição litigiosa"10, e percebendo-se o caráter pré-constituído da ata, bem como a sua condução por terceiro imparcial com fé pública estatal, nada impede que as próprias partes determinem, por meio de sua autonomia privada, que determinados fatos controvertidos surgidos durante o desenvolvimento da relação negocial sejam sempre previamente constatados por notário, podendo tal cláusula, inclusive, ser estipulada como procedimento negocial obrigatório pré-instauração de qualquer jurisdição. Retomando alguns aspectos da racionalidade econômica clássica, o famoso "Teorema de Coase"11 teria demonstrado que, partindo de pressupostos de racionalidade econômica12, se a distribuição dos direitos for clara, e não houver custos de transação impeditivos, a negociação entre partes envolvidas em um possível conflito gera sempre um resultado ótimo, independente da prévia situação de distribuição de direitos ex ante, a qual inelutavelmente seria reforçada se provocado o juízo estatal. No exemplo clássico, um fabricante de bens barulhento e seu vizinho, um médico silencioso, podem chegar a uma solução ótima via negociação, que pode envolver, por exemplo, a mudança de um dos dois para outro local, financiada pela contraparte, sem que a parte que se manteve no local tenha que alterar seu processo de produção, bem como aquela que se mudou tenha qualquer perda de eficiência. Esse tipo de solução negociada passa ao largo das formas tradicionais de concretização do Direito pela via estatal, que aparecem, assim, ao economista, como ineficientes. Nota-se, contudo, que os dois requisitos para que tal tipo de solução negociada avance nem sempre se farão presentes desde o início, quais sejam, a clareza dos direitos e a ausência de custos de transação. É nesse sentido que a ata notarial produzida em contraditório surge como ferramenta, trazendo ao centro da disputa um terceiro imparcial com a capacidade de tornar transparente os eventuais fatos disputados sobre os quais se contenderá14. O mencionado mecanismo terá, muito provavelmente, um alcance resolutório ainda maior nas hipóteses de conflitos multitudinários, em que mais de duas partes são interessadas, e a produção da ata será tida como verdadeira por todos os possíveis interessados - pode-se pensar, por exemplo, nas constatações que devam ser levadas a cabo em processos de recuperação judicial e falência, em que múltiplos interessados se veem às voltas com a produção probatória concentrada em alguns poucos atores principais. Nesse sentido, surge a ata como microssistema capaz de arrefecer a complexidade do conflito e a pressão por tomada de decisão sem informações suficientes, de modo a permitir que as partes ganhem tempo e informação relevante no processo de construção de uma alternativa negociada e não estatal para o tema em que se confrontam, gerando, assim, possivelmente14, uma decisão que resultados ótimos em termos de eficiência de alocação de recursos para toda a sociedade. Numa reconstrução da clássica lição de Carnelutti, segundo o qual, "quanto mais notário, menos juiz"15, a ata pode ser entendida como um mecanismo progressivo de redução da complexidade desestruturada das relações, mediada por um terceiro imparcial, entre o processo judicial e a tomada de decisão açodadas sem informações, numa tentativa ordenada de construir uma verdade consensual possível sobre os fatos relevantes, gerando ganhos de tempo para a tomada de decisão informada por todas as partes de um desacordo. E quanto mais informações, quanto mais tempo, mais possibilidade de negociação, menos conflitos. _______ 1 Apud CAMPOS, R. Metamorfoses do Direito Global: sobre a interação entre direito, tempo e tecnologia. São Paulo: Contracorrente, 2022. p. 80 2 CAMPOS, R. op. cit. p. 93. 3 V. DINAMARCO, C. R; BADARÓ, G. H. R. I.; LOPES, B. V. C. Teoria Geral do Processo. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2023. p. 270, para quem "são do passado as concepções que negavam a natureza jurisdicional" ao poder exercido pelos árbitros. 4 Art. 393 do CC: devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. (grifo nosso) 5 Não sem algum controle, é bem verdade, mas ainda de forma ampla, nos termos do art. 2º e parágrafos da Lei da Arbitragem (9.307/96). 6 Art. 7º, inciso III, da Lei 8.935/94. 7 Instituições de Direito Civil. Vol. VIII. Registros, notas e prova documental. São Paulo: RT, 2017. p. 159. 8 Embora não sejam inéditos casos da atividade notarial em que a ata acabou por abarcar o funcionamento adequado de sistemas eletrônicos - "provas de conceito" - que, muito provavelmente, teriam sido melhor documentados se na própria ata simplesmente se inserissem os dados binários constatados. O tema também aventa discussões nas próprias escrituras, através da diferenciação entre "human readable contracts" e "machine readable contracts". V. por exemplo o caso dos "contratos ricardianos". 9 NERY, R. M. de A.; NERY JUNIOR, N. Op. cit. p. 161. 10 LOUREIRO, L. G. Manual de Direito Notarial. Da atividade e dos documentos notariais. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 113. 11 COASE, R. H. The problem of social cost. In Journal of law and economics. Vol. III. Outubro/1960. p. 1-44 12 Nem sempre presentes no mundo real, é bom sempre lembrar. 13 O tema foi objeto de estudo para a Jurisdição estatal em PORTO, A. J. M.; FRANCO, P. F. Uma análise também econômica do direito de propriedade. In LEAL, F. (org.) Direito privado em perspectiva. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 11-46. Assim, declaram os autores que "quando o Judiciário retira, através de uma decisão judicial, os custos endógenos do direito, os entraves à cooperação desaparecem e as partes podem chegar ao resultado mais eficiente." (34) 14 Desde que presentes, como já frisado, os pressupostos de uma racionalidade econômica. 15 CARNELUTTI, F. La figura juridica del notario. Conferência na Academia Madrilenha do Notariado. Maio de 1950. In: Teoría del Derecho Notarial. Lima: Gaveta Notarial, 2021.
Introdução "[...] a inteligência, a fim de rumar para sua meta, converte todo tolhimento à sua atividade em um auxílio, resultando que a barreira se torna promotora da ação; e aquilo que é barreira na estrada nos auxilia nessa estrada."1 A reflexão do imperador-filósofo estoico é um ponto de partida instigante para compreender a dinâmica da usucapião extrajudicial. No universo do Direito Registral, aquilo que se apresenta como obstáculo - a ausência de continuidade registral - quando não puder ser contornada pelos meios ordinários do sistema pode, paradoxalmente, converter-se em fundamento legítimo para a aquisição originária da propriedade. É o que ocorre, por exemplo, nos casos de loteamentos não registrados. O adquirente, que deveria ter acesso a uma matrícula individualizada, vê-se diante da impossibilidade de regularizar sua situação pela via ordinária. O princípio da continuidade, que em tese assegura segurança e coerência ao sistema, transforma-se em barreira absoluta: sem o registro do loteamento, não há como abrir matrícula própria, restando apenas a escritura de fração ideal, solução artificial e desconectada da realidade. A usucapião administrativa, nesse cenário, não é um atalho, mas um remédio jurídico. Por sua natureza originária, rompe com a cadeia dominial viciada e cria uma nova matrícula, ajustando o registro à realidade fática da posse. O que antes era impedimento passa a ser caminho: a impossibilidade de registro pela via tradicional, quando não houver outra solução, legitima a via da usucapião extrajudicial. O presente artigo parte dessa dialética - entre obstáculo e solução - para examinar a inobservância do princípio da continuidade registral como justa causa para a usucapião extrajudicial, ressalvando que tal interpretação somente se aplica em hipóteses em que a irregularidade inviabiliza de forma absoluta a escrituração regular, demonstrando que, longe de fragilizar o sistema, essa interpretação o fortalece, pois garante que o registro cumpra sua função essencial: refletir com fidelidade a realidade jurídica e social da propriedade. A usucapião extrajudicial e a justa causa A possibilidade de processamento da usucapião nos cartórios veio à tona com o novo CPC, que inseriu o art. 216-A na lei 6.015/73. Em seguida, o já revogado provimento 65/17, do CNJ regulamentou a usucapião extrajudicial em todo o país. Atualmente, a usucapião extrajudicial é regulamentada pelos arts. 398 a 423 do provimento 149/23, do CNJ. Para efeitos do presente artigo, deve-se destacar que a norma regulamentadora passou a exigir a comprovação de uma "justa causa" para o deferimento da usucapião extrajudicial, conforme art. 410, parágrafo 2º, do Código Nacional de Normas, que exige que para a usucapião extrajudicial deve ser justificado o óbice à correta escrituração das transações. O regulamento, com muita sensatez, tomou o cuidado para que a usucapião extrajudicial não fosse utilizada de forma a burlar o sistema notarial e registral e o recolhimento de impostos das transações tradicionais. Assim, só se autoriza a utilização da usucapião extrajudicial se ficar devidamente comprovado o óbice à tradicional escrituração do imóvel. Ou seja, se for possível a solução através de escritura de compra e venda, não é possível a usucapião extrajudicial2.  O princípio da continuidade registral O princípio da continuidade registral ou trato sucessivo reflete que todo ato que se prática na matrícula do imóvel deve observar uma consecutividade. Ou seja, deve ser observada uma cadeia cronológica sucessiva. Vitor Frederico Kümpel entende que a continuidade "designa que, no fólio real, uma inscrição é consecutiva a outra, devendo obrigatoriamente existir uma correspondência entre o titular do direito que outorga o título e o titular tabular - situação a que se denomina princípio da continuidade subjetiva -, bem como a coincidência do próprio objeto (continuidade objetiva)"3 Neste sentido, não se pode admitir a registro uma escritura pública de compra e venda sem que o vendedor do imóvel seja seu proprietário tabular, assim como não se pode admitir o registro de uma execução forçada se o executado não consta no fólio real.4 Merece destaque também o conceito trazido por Ricardo Dip: O conceito de trato consecutivo registral-imobiliário - ou "trato sucessivo", ou "continuidade" no registro de imóveis - é o de uma cadeia de nexos formais que exprimam a vinculação ininterrupta entre os consecutivos legitimados registrais (titulares inscritos, causantes) e seus correspondentes sucessores, de modo que a séria de inscrições constitutivas, declarativas, modificativas e extintivas reflitam, sem nenhuma intermitência, o histórico jurídico dos imóveis5 O ensinamento de Dip remete o leitor ao cuidado que se deve ter no entendimento de "continuidade". Afinal, a continuidade pode abranger tanto a "espécie de um contínuo ininterrupto" quanto a um "contínuo intermitente, ou seja, a continuidade intervalar ou per saltum".6 Ora, nem sempre uma continuidade é ininterrupta. Posto isso, a única continuidade que se admite no sistema registral é aquela ininterrupta, sem intermitências. Daí que Dip prefere o termo "trato consecutivo". Exatamente neste sentido é a redação do art. 195, da lei 6.015/73, segundo a qual "se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro". Há situações, no entanto, em que não se exige a continuidade registral. São os casos das aquisições originárias (usucapião e desapropriação) e no ingresso do registro dos bens públicos.  A usucapião como aquisição originária e a desnecessidade de observância da continuidade Sabe-se que, em regra, todo título que chega ao fólio real deve observar o princípio da continuidade. De modo que se um título chegou sem a prática de um ato que o antecedeu, deve o registrador expedir nota devolutiva para este fim. No entanto, no caso das aquisições originárias (usucapião, acessão, formação de ilhas, aluvião, avulsão, abandono de álveo, legitimação fundiária) essa regra não se aplica. Aquisição originária "se dá nas hipóteses em que não haja uma conexão com um transmissor do direito, isto é, quando não existir propriamente uma transferência de direito".7 Tanto é que nas aquisições originárias o adquirente recebe a coisa desprovida de ônus, como já decidido pelo STJ.8 Portanto, não faz sentido que o registrador de imóveis condicione o registro de carta de sentença de usucapião à prática de um ato que o precede, por se tratar de aquisição originária, como já decidiu a Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo.9 Pelo mesmo motivo, já se entendeu pela possibilidade de realização de usucapião de lote em loteamento irregular, veja-se: REGISTRO DE IMÓVEIS - DÚVIDA JULGADA PROCEDENTE - USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL - FORMA ORIGINÁRIA DE AQUISIÇÃO DO DOMÍNIO - SUPOSTA ORIGEM EM PARCELAMENTO IRREGULAR DO SOLO URBANO E BLOQUEIO DA MATRÍCULA, RELATIVA À ÁREA DE QUE O IMÓVEL USUCAPIDO SERÁ DESMEMBRADO, QUE NÃO IMPEDEM A AQUISIÇÃO DO DOMÍNIO PELA USUCAPIÃO E O SEU RESPECTIVO REGISTRO - RECURSO PROVIDO PARA AFASTAR AS EXIGÊNCIAS FORMULADAS E DETERMINAR QUE O OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS PROSSIGA COM O PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE USUCAPIÃO10. As situações acima demonstram que nas aquisições originárias há exceção na aplicação do princípio da continuidade registral. Há, no entanto, uma outra questão: a inobservância da continuidade, em algumas situações, seria considerada justa causa para a usucapião extrajudicial? É o que será tratado no tópico seguinte.  A ausência da continuidade registral como justa causa para a usucapião extrajudicial É sabido que o Código Nacional de Normas criou um filtro para a usucapião extrajudicial. Trata-se da necessidade de se comprovar o óbice à correta escrituração da transação, conforme disposto no art. 410, parágrafo 2º, veja-se: § 2.º Em qualquer dos casos, deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários, devendo registrador alertar o requerente e as testemunhas de que a prestação de declaração falsa na referida justificação configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei. A normativa buscou resguardar a usucapião extrajudicial de uma utilização indiscriminada, prevenindo não apenas prejuízos ao erário, mas também distorções no próprio sistema registral e notarial. A leitura atenta do dispositivo revela três vetores de contenção: (a) a necessidade de justificativa idônea para o óbice à escrituração regular das transações; (b) a vedação ao uso da usucapião como expediente de burla ao sistema notarial e registral; e (c) a impossibilidade de sua utilização como mecanismo de evasão tributária. Com efeito, o que se deve compreender por "óbice à correta escrituração"? Trata-se da impossibilidade de observância dos trâmites ordinários do sistema, que pressupõem o recolhimento dos tributos incidentes, o pagamento dos emolumentos e a manifestação de vontade das partes plenamente capazes. Nessa perspectiva, a usucapião extrajudicial somente se legitima quando o interessado demonstra, de forma robusta e documentalmente comprovada, a inviabilidade da lavratura da escritura pública de compra e venda pelos meios regulares, constituindo-se, assim, em via excepcional e subsidiária. De maneira breve, os óbices mais comumente encontrados que justificam a usucapião extrajudicial são11 a) a inexistência de negócio jurídico com o proprietário do imóvel; b) a não localização do alienante; c) a extinção irregular da pessoa jurídica que alienou o imóvel; d) pessoa jurídica que não tem CND (nos Estados em que se exige a CND para lavrar escrituras); d) imóvel usucapiendo sem matrícula, localizado em loteamento irregular ou clandestino; e) recusa a fazer o inventário por parte dos herdeiros do alienante; f) inventários excessivos que levam à excessiva onerosidade; g) imóvel inferior ao módulo urbano ou rural. Além dos exemplos já mencionados, cumpre acrescentar a tese ora defendida: o imóvel situado em loteamento clandestino, desprovido de continuidade registral. Trata-se de hipótese que demanda exame cuidadoso. De todo modo, a aplicação desse raciocínio requer avaliação rigorosa do caso concreto, a fim de evitar seu uso indiscriminado e desvios da finalidade do instituto. O loteamento urbano é regulamentado pela lei 6.766/79, assim conceituado: "considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes." (art. 2º, lei 6.766/79). O loteamento, de acordo com a lei, exige prévia aprovação do município (art. 12) e necessariamente prévio registro junto ao cartório de registro de imóveis (art. 18). Esse caminho exigido pela legislação pretende exatamente cumprir com o princípio da continuidade registral, à medida que com o registro do loteamento, serão indicados os respectivos lotes e serão feitas as averbações para abertura de ruas, praças, áreas destinadas a espaços livres ou a equipamentos urbanos (art. 20, parágrafo único).  Pode ocorrer, no entanto, de o loteamento não ter sido aprovado pela prefeitura ou, ainda que tenha sido aprovado, não ter sido registrado junto ao cartório de registro de imóveis. Situação que configura loteamento clandestino. Trata-se de situação vedada pela lei, conforme dispõe o art. 37, da lei 6.766/79: "é vedado vender ou prometer vender parcela de loteamento ou desmembramento não registrado". Inclusive, a conduta é tratada como crime.12 Em que pese o rigor Legislativo, não é raro encontrar, na vida prática, loteamentos clandestinos já comercializados através de contratos de promessa de compra e venda. Nesses casos, como poderia o adquirente regularizar seu lote? Se estiverem presentes os requisitos para a usucapião (posse mansa e pacífica ao longo do tempo, com ânimo de dono), poderia ser utilizada a via da usucapião extrajudicial? Aqui, o núcleo da discussão está na possibilidade (ou não) de se utilizar da ausência da continuidade registral como óbice à correta escrituração do imóvel. De antemão, sustenta-se a tese de que, nos casos em que a quebra da continuidade registral não puder ser contornada pelos meios ordinários do sistema, tal ausência configura justificativa legítima para obstar a correta escrituração do imóvel. Tal conclusão decorre de uma leitura atenta do texto normativo, segundo o qual "deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações". Note-se que a exigência legal não se refere a qualquer tipo de escrituração, mas especificamente àquela que se qualifica como "correta". O adjetivo, embora pareça redundante, possui relevância técnica: "correto" é aquilo que se encontra livre de vícios ou defeitos, em estrita conformidade com as regras jurídicas aplicáveis13. Dessa forma, a contrario sensu, se a escrituração somente puder ser realizada de maneira viciada, isto é, em desacordo com os requisitos de validade e regularidade impostos pelo ordenamento, então a própria lei admite a possibilidade de sua não realização. Em outras palavras, a norma não impõe a prática de um ato formalmente defeituoso; ao contrário, reconhece que a inexistência de condições para a escrituração regular constitui motivo idôneo para a sua recusa. No caso em apreço, não seria possível a escritura pública de compra e venda de lote justamente por inexistência do lote. Afinal, não houve a abertura de lotes na matrícula do imóvel. Há somente uma matrícula de área maior, sendo que o "lote" estaria dentro dessa área. Ainda que se pensasse em escritura pública de compra e venda de fração ideal, esse ato não poderia ser praticado, menos ainda registrado junto ao cartório de registro de imóveis, conforme verifica a doutrina:  Parcelamento disfarçado sob a forma de condomínio voluntário é aquele expresso em negócio jurídico de alienação de frações ideais em que há elementos objetivos reveladores da ocorrência de fraude à lei do parcelamento do solo urbano, tal como: a. localização, numeração ou metragem em parte certa; b. a atribuição de área determinada à fração ideal; c. a alienação de inúmeras pequenas frações ideais; d. a alienação para significativa pluralidade de condôminos sem vínculo de parentesco ou de outra ordem especial; e. a disparidade entre as áreas alienadas e a área total do imóvel14. Tratando-se de escritura pública de fração ideal quando há elementos que indicam burla à lei 6.766/79, entendemos sensato que o notário recuse, de forma fundamentada, sua lavratura. Embora o notário formalize juridicamente a vontade das partes15, como ele tem necessariamente de entrar no mérito do negócio, verificando se tratar de negócio nulo ou anulável, geralmente não se pode praticar o ato16. Lembrando, ainda, que o art. 166, VI, do CC considera nulo o negócio jurídico quando tiver por objetivo fraudar lei imperativa. Além disso, ainda que houvesse a escrituração dessa forma, o título não seria passível de registro por se tratar de modo oblíquo e irregular de loteamentos e desmembramentos que desatendam aos princípios da legislação. A esse respeito, vide art. 99117, do provimento conjunto 93/20, da Corregedoria Geral de Justiça de Minas Gerais e itens 166 e 166.118, Capítulo XX, do Código de Normas do Extrajudicial do Estado de São Paulo. A própria jurisprudência defende essa vedação: [...] É vedado proceder ao registro de venda de frações ideais, com localização, numeração e metragem certa, ou de qualquer outra forma de instituição de condomínio geral, caracterizadoras, de modo oblíquo e irregular, de loteamentos ou desmembramentos que desatendam aos princípios da legislação civil - Mostra-se juridicamente inviável a alienação e o registro de frações ideais em condomínio comum, dado que a hipótese fere o princípio da continuidade de registro, pedra de toque sob a qual repousa a confiança que a população deposita no sistema de publicidade registral - Recurso ao qual se dá parcial provimento (Des.JELP).19 Assim, a vedação expressa à escrituração de frações ideais, quando presentes indícios de burla à lei 6.766/79, reforça o entendimento aqui sustentado: nos casos de loteamentos clandestinos, a ausência de continuidade registral configura verdadeiro óbice à correta escrituração, legitimando, portanto, a utilização da via da usucapião extrajudicial. Conclusão Marco Aurélio, em suas meditações, ensinava que "a inteligência, a fim de rumar para sua meta, converte todo tolhimento à sua atividade em um auxílio, resultando que a barreira se torna promotora da ação; e aquilo que é barreira na estrada nos auxilia nessa estrada". Essa máxima estoica traduz com precisão a lógica que permeia a usucapião extrajudicial diante da ausência de continuidade registral. O que, inicialmente, se apresenta como barreira intransponível - a impossibilidade de escrituração regular - quando não puder ser contornada pelos meios ordinários, converte-se em fundamento legítimo para a aquisição originária da propriedade. Ao reconhecer a ausência de continuidade nessas hipóteses específicas como justa causa, o sistema não se fragiliza, mas se fortalece. Isso porque, em vez de forçar soluções artificiais e juridicamente defeituosas, como escrituras de frações ideais em loteamentos clandestinos, abre-se uma via legítima e transparente de regularização. Assim, a usucapião extrajudicial não é um atalho, mas o próprio caminho que o ordenamento jurídico oferece para que o registro cumpra sua função essencial: refletir a realidade social e garantir segurança jurídica. Tal como para Marco Aurélio, também no Direito Registral a barreira não paralisa, ela orienta. A ausência de continuidade registral, longe de ser um beco sem saída, quando insuperável por outras vias, é a circunstância que justifica e legitima a via da usucapião extrajudicial, transformando o impedimento em solução e reafirmando a vitalidade do sistema registral brasileiro. _____________________________________ 1 MARCO AURÉLIO. Meditações. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2014. Livro V, §20, p. 63. 2 Embora sem expressa disposição legislativa no mesmo sentido, essa regra tende a ser aplicada na usucapião judicial.  3 Kumpel, Vitor Frederico et al. Tratado Notarial e Registral. 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2020, p. 288. 4 "Registro de Imóveis - Carta de Adjudicação expedida em ação judicial movida contra sociedade comercial - imóvel registrado em nome dos sócios - ausência da indicação no título judicial do reconhecimento de responsabilidade dos sócios pelas dívidas da empresa - violação do princípio da continuidade - necessidade da expressa referência dessa circunstância no título - acesso ao registro tabular negado - Recurso não provido (Acórdão no processo 0014584-20.2010.8.26.0100, do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, Rel. Maurício Vidigal, publicado em 23.09.2011". 5 DIP, Ricardo. Registro de Imóveis (princípios). Deascalvado, SP: Editora PrimVS, 2017, p. 185 6 DIP, Ricardo. Registro de Imóveis (princípios). Deascalvado, SP: Editora PrimVS, 2017, p. 183. 7 Kümpel, Vitor Frederico et al. Tratado Notarial e Registral, vol 5, 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2020, p. 916. 8 STJ - REsp: 2051106 SP 2022/0337278-9, Relator.: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 24/10/2023, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/11/2023. 9 Registro de imóveis - usucapião extraordinária - exigência de registro da escritura de aquisição dos anteriores compradores com o proprietário tabular e de reconhecimento de firma dos compromissários compradores apelantes - forma originária de aquisição de propriedade - desnecessidade de observância do princípio da continuidade registral - reconhecimento de firmas não exigível porque a usucapião é o título que se pretende registrar - afastadas as exigências - dúvida improcedente - apelação provida para determinar o processamento da usucapião. CSMSP - Apelação Cível: 1000692-26.2022.8.26.0126. 10 TJ-SP - Apelação Cível: 1000363-84.2023.8 .26.0059 Bananal, Relator.: Francisco Loureiro (Corregedor Geral), Data de Julgamento: 16/02/2024, Conselho Superior da Magistratura, Data de Publicação: 20/02/2024 11 Os exemplos trazidos estão expostos em recomendado artigo de autoria de Letícia Franco Maculan Assumpção, Ana Clara Amaral Arantes Boczar, Carlos Rogério de Oliveira Londe e Daniela Bolivar Moreira Chagas, disponível aqui. 12 Art. 50. Constitui crime contra a Administração Pública. I - dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos, sem autorização do órgão público competente, ou em desacordo com as disposições desta Lei ou das normas pertinentes do Distrito Federal, Estados e Municipíos; II - dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos sem observância das determinações constantes do ato administrativo de licença; III - fazer ou veicular em proposta, contrato, prospecto ou comunicação ao público ou a interessados, afirmação falsa sobre a legalidade de loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos, ou ocultar fraudulentamente fato a ele relativo. 13 Disponível aqui. 14 AMADEI, Vicente Celeste. Como lotear uma gleba: o parcelamento do solo urbano em seus aspectos essenciais (loteamento e desmembramento). 4ª ed. Campinas, SP: Millennium Editora, 2014, p. 24. 15 Art.6º, I, Lei nº 8.935/94. 16 KÜMPEL, Vitor Frederico. Tratado Notarial e Registral vol. III.1aed. São Paulo:YK Editora, 2017, p. 175. 17 Art. 991. É vedado proceder ao registro de venda de frações ideais, com localização, numeração e metragem certa, ou de qualquer outra forma de instituição de condomínio geral, caracterizadoras, de modo oblíquo e irregular, de loteamentos ou desmembramentos que desatendam aos princípios da legislação civil. 18 166. É vedado o registro de alienação voluntária de frações ideais com localização, numeração e metragem certas, ou a formação de condomínio voluntário, que implique fraude ou qualquer outra hipótese de descumprimento da legislação de parcelamento do solo urbano, de condomínios edilícios e do Estatuto da Terra. A vedação não se aplica à hipótese de sucessão causa mortis. Para comprovação de efetivação de parcelamento irregular, poderá o oficial valer-se de imagens obtidas por satélite ou aerofotogrametria 19 TJ-MG - Apelação Cível: 50095870420228130114 1.0000 .23.255685-2/001, Relator.: Des.(a) José Eustáquio Lucas Pereira, Data de Julgamento: 12/06/2024, Data de Publicação: 18/06/2024
1. O marco invisível de uma revolução silenciosa Nem toda transformação jurídica nasce com estardalhaço. Algumas entram em vigor em silêncio - e é justamente por isso que são revolucionárias. O provimento 206, de 6 de outubro de 2025, da Corregedoria Nacional de Justiça, é uma dessas normas discretas que mudam muito mais do que parecem. Sob o verniz técnico de uma alteração no Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial, o CNJ acaba de inaugurar uma nova lógica na relação entre autonomia privada, proteção estatal e função notarial. Aparentemente simples, o provimento obriga os juízes, ao processar uma interdição, a consultar a CENSEC - Central Eletrônica Notarial de Serviços Compartilhados para verificar a existência de escritura de autocuratela - ou de diretivas equivalentes. Na prática, é uma virada de paradigma: o Estado, pela via judicial, passa a reconhecer a precedência da vontade declarada sobre a decisão substitutiva. O resultado é uma transformação profunda, embora não dita em voz alta: o notariado deixa de ser mero agente de formalização e passa a ser depositário da vontade existencial da pessoa humana. 2. O pano de fundo: da curatela à autocuratela A curatela sempre foi o espaço mais tenso do direito civil. Ali convivem, em permanente atrito, dois valores igualmente legítimos: a proteção da pessoa vulnerável e a autonomia da vontade. Durante séculos, prevaleceu a lógica paternalista: o incapaz era tutelado, e sua vontade, presumidamente inválida, cedia ao juízo do Estado. Com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006) - internalizada pelo decreto 6.949/09 - e com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/15), essa premissa começou a ruir. O novo paradigma é outro: a pessoa não perde sua dignidade jurídica quando sua lucidez vacila. O foco desloca-se da substituição para o apoio à tomada de decisão. É nesse contexto que surge a autocuratela - o instrumento pelo qual alguém, plenamente capaz, manifesta de forma antecipada quem deverá representá-lo ou assisti-lo caso venha a ser acometido por incapacidade futura. Trata-se de uma declaração de vontade feita enquanto há consciência, para valer quando não houver mais. É, em suma, uma autotutela da dignidade. E o CNJ, ao editar o Provimento 206/2025, foi o primeiro órgão estatal a reconhecer oficialmente o alcance jurídico dessa manifestação. 3. O alcance normativo e o salto sistêmico Tecnicamente, o provimento 206 altera o provimento 149/23, que instituiu o CNN/CN/CNJ-Extra - Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial. Foram inseridos dois comandos cruciais: Art. 1º: obriga os juízes, em processos de interdição, a consultar a CENSEC para verificar se há escritura de autocuratela ou diretiva correlata. Art. 110-A: restringe o fornecimento de certidão de autocuratela ao próprio declarante ou mediante ordem judicial, reconhecendo o sigilo do ato. Em termos sistêmicos, isso tem três efeitos devastadores - no bom sentido. Integra o notariado à jurisdição - o juiz, para decidir, passa a depender de uma informação registrada em ambiente notarial. Reforça a força normativa da vontade - a escolha prévia do curador, feita pelo interessado, ganha prioridade procedimental e força de orientação judicial. Consolida o notariado digital como arquivo da autonomia - a CENSEC passa a ser, simbolicamente, o "repositório da lucidez" nacional. O impacto é imenso. O CNJ transformou a autocuratela em ato de eficácia processual, e o notário em agente de proteção jurídica da vontade antecipada. 4. A autocuratela como expressão da dignidade A autocuratela não é mero documento. É uma declaração ética, lavrada no auge da razão, sobre como se deseja ser protegido quando ela faltar. Ela é o ponto máximo da autonomia privada aplicada à vulnerabilidade. Por isso, não é exagero dizer que a autocuratela é a forma mais sofisticada de manifestação da dignidade humana - porque é a dignidade projetada no tempo. O Estado, quando reconhece essa escritura, deixa de tratar o cidadão como objeto de proteção e passa a reconhecê-lo como sujeito de decisão. É um movimento sutil, mas civilizatório. E é também um reconhecimento implícito de que a vontade livre, quando manifestada de forma autêntica e formalizada com fé pública, deve sobreviver à incapacidade. Essa é a essência do que o CNJ fez: deu à vontade prévia um status de continuidade jurídica, preservando-a do esquecimento judicial. 5. Sigilo, fé pública e proteção de dados sensíveis Um dos pontos mais inteligentes - e menos comentados - do provimento 206 é o sigilo da autocuratela. O art. 110-A estabelece que a certidão do inteiro teor da escritura só pode ser fornecida ao declarante ou mediante ordem judicial. Essa limitação não é mero formalismo. É o reconhecimento de que a autonomia é também privacidade. A autocuratela pode conter informações íntimas, médicas, familiares, emocionais. Torná-la pública seria o mesmo que expor a alma de quem, paradoxalmente, buscou o notário para se proteger. O CNJ, ao impor esse filtro, reconhece algo que poucos tribunais ainda compreendem: o notariado é a primeira linha de defesa da intimidade na era digital. Enquanto o Judiciário informatiza tudo - inclusive a dor -, o notariado mantém uma reserva moral: a fé pública que protege o sigilo. É um paradoxo fascinante - e necessário. 6. CENSEC e a transformação do notariado em infraestrutura jurídica nacional A CENSEC, criada originalmente para integrar informações notariais e evitar fraudes, agora assume um novo papel: o de infraestrutura da confiança existencial. Com o Provimento 206, ela deixa de ser um banco de dados estático e passa a operar como mecanismo de interoperabilidade entre autonomia privada e jurisdição. O juiz consulta, o sistema responde, e a decisão se ancora em uma vontade previamente autenticada. Estamos diante de uma nova forma de diálogo entre Poderes: o CNJ constrói, no plano infralegal, uma arquitetura de cooperação entre vontade, fé pública e decisão judicial. E isso tem implicações profundas. A médio prazo, é provável que a CENSEC se torne fonte de prova e de validade para outras diretivas existenciais - como testamentos vitais, diretivas médicas e disposições patrimoniais complexas. O Brasil, sem alarde, está criando um modelo híbrido de governança da vontade humana, combinando blockchain notarial, interoperabilidade judicial e ética da autenticidade. 7. O notário como curador da vontade O notário sempre foi visto como técnico da forma. O Provimento 206 o eleva à condição de curador da vontade. Sua função, agora, não é apenas lavrar, mas garantir que a manifestação seja livre, consciente e juridicamente sustentável. Isso o coloca na fronteira mais nobre do Direito: a intersecção entre liberdade e proteção. Enquanto o juiz decide sobre fatos, o notário atua sobre valores. Enquanto o processo lida com o que já aconteceu, o notário trabalha com o que ainda vai acontecer. É o profissional do futuro da vontade. Essa mudança é gigantesca - e talvez ainda subestimada. Ela redefine a função notarial não como mero serviço público delegado, mas como instituição de garantia de direitos fundamentais. 8. A tensão inevitável: autonomia versus paternalismo judicial Toda inovação que fortalece a vontade individual esbarra na resistência do paternalismo judicial. Não será diferente aqui. Haverá juízes que insistirão em "verificar" se a autocuratela é "adequada". Haverá decisões anulando escrituras sob o pretexto de "proteger o interditando de si mesmo". Mas o debate já mudou de lugar. A partir do Provimento 206, o ônus argumentativo se inverte: quem quiser afastar a vontade prévia terá de justificar por que o Estado sabe melhor do que a própria pessoa o que é bom para ela. Esse é o ponto filosófico que o CNJ introduz sem dizer: a presunção de validade da vontade autônoma. E isso - ainda que discreto - é revolucionário. 9. Conclusão - o CNJ e a vontade como tecnologia social O provimento 206/25 é, talvez, o ato mais sofisticado do CNJ desde o provimento 100/20, que inaugurou o e-Notariado. Mas aqui, o tema não é tecnologia: é humanidade. O CNJ compreendeu que o verdadeiro avanço digital não está em processar mais rápido, mas em resguardar melhor a vontade. A autocuratela é a expressão contemporânea da liberdade. E o notariado é o espaço institucional em que a liberdade ganha forma, validade e abrigo. Ao editar o Provimento 206, o CNJ deu ao Direito brasileiro uma mensagem clara: "A dignidade humana começa quando o Estado aprende a ouvir o que o cidadão já disse, antes de não poder mais dizer." Em tempos de automação e despersonalização das decisões, é reconfortante ver o órgão máximo da Justiça afirmando, ainda que em tom técnico, que a vontade humana continua sendo o centro do sistema jurídico. O resto - todo o resto - é apenas administração. _______ Referências Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 206, de 6 de outubro de 2025. Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 149, de 30 de agosto de 2023. Constituição Federal de 1988. Lei nº 8.935/1994 (Lei dos Notários e Registradores). Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Decreto nº 6.949/2009 (Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência). Código Civil, arts. 1.767 a 1.783. Códigos de Normas das CGJ/RJ e CGJ/ES.
quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Responsabilidade civil do notário

Introdução Este artigo tem por objetivo o estudo da responsabilidade civil dos notários, tema de inúmeras e distintas soluções interpretativas jurídicas, que se pacificou com a formação do precedente qualificado relativo ao Tema 777, julgado pelo STF, em 3/19.  A proposta é de reflexão acerca da responsabilidade civil subjetiva como corolário da regra constitucional que estabelece a responsabilidade objetiva e direta do Estado, atribuindo aos seus agentes responsabilidade derivada.  Para tanto, será exposto, inicialmente, o histórico da responsabilidade civil do notário. Em seguida, tratar-se-á da natureza jurídica pública dos serviços notariais; da condição de agente público atribuída ao notário; da responsabilidade extracontratual do Estado decorrente dos danos que seus agentes causem a terceiros; e da responsabilidade subjetiva do notário como corolário da responsabilidade objetiva do Estado. Também será exposta a concepção acerca da aplicabilidade do Tema 940, julgado pelo STF, em 8/19, aos notários, o que leva ao reconhecimento da ilegitimidade passiva desses agentes públicos para figurarem nas demandas em que se busque a reparação de danos decorrentes do exercício da atividade notarial, uma vez que, na qualidade de agentes públicos, submetem-se à aplicação da segunda parte do art. 37, 6º, da CF/88. Por fim, discorrer-se-á sobre os reflexos da responsabilidade subjetiva do notário pelos danos oriundos de fraudes perpetradas por terceiros, tanto no que diz respeito aos atos notariais praticados no âmbito dos procedimentos físicos, quanto àqueles desempenhados de forma eletrônica, nos termos da provimento 100/20, da Corregedoria Nacional de Justiça.     1. Histórico da responsabilidade civil do notário A responsabilidade civil do notário, segundo as lições de Fernando H. Mendes de ALMEIDA (1957, p. 435), já vinha disciplinada nas Ordenações Reinóis de Portugal, fundada na culpa, em cujo §2º do Título LXXX do Livro I das Ordenações Filipinas, de 1603, previa-se o seguinte: Título LXXX, §2º. E antes de começarem a servir, darão fiança escrita por Tabelião público no livro das Notas, trasladada no livro da Câmara, a todo o dano e perda, que a alguma parte se causar por sua malícia ou culpa. A qual fiança será de trinta mil réis nas Cidades, e vinte mil reis nas Vilas, e nos Concelhos de terras chãs dez mil réis; e servindo se, darem as dias fianças, perderão os Ofícios. (1957 apud BENÍCIO, 2005, p. 225) Conforme discorre Flauzilino Araújo dos SANTOS (1997 apud BENÍCIO, 2005, p. 7-10), após a Proclamação da República, o decreto 370, de 2/5/1890, que regulamentou o decreto 169-A, de 19/1/1890, foi uma das primeiras normas a tratar da responsabilidade dos notários e registradores. Referido decreto vigorou até 1917, data em que se iniciou a vigência do CC. Relata Hércules Alexandre BENÍCIO (2005, p. 226) que, promulgado o CC, foi expedido o decreto 12.343, de 3/1/1917, que regulamentou provisoriamente a atividade de registros públicos. Em 1928, foi editado o decreto 18.542, que tratou da responsabilidade dos registradores, também fundada na culpa, no art. 37, que assim dispunha:  Art. 37. Além dos casos expressamente consignados, os officiaes serão civilmente responsáveis por todos os prejuízos que, por culpa ou dolo, causarem os seus prepostos e substitutos, estes quando de sua indicação, aos interessados no registro. Sucedeu a esse regulamento o decreto 4.857/39, alterado pelo decreto 5.318/1940, que tratou da responsabilidade civil dos notários e dos registradores nos mesmos termos do transcrito art. 37 (BENÍCIO, 2005, p. 226). Após a edição do decreto 4.857/1939, foi promulgada a lei 6.015/1973, intitulada lei de registros públicos, ainda vigente nos dias de hoje, que dispõe sobre a responsabilidade civil dos registradores, no art. 28, in verbis: Art. 28. Além dos casos expressamente consignados, os oficiais são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que, pessoalmente, ou pelos prepostos ou substitutos que indicarem, causarem, por culpa ou dolo, aos interessados no registro. Posteriormente, foi promulgada a CF/88, que no art. 236, § 1º, dispôs que "[l]ei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário". Com isso, leis posteriores foram editadas a fim de regular a responsabilidade civil dos notários e registradores, a exemplo, basicamente, da lei 8.935/1994 e da lei 9.492/1997, cujos arts. 22 e 38, respectivamente, assim estabelecem: Art. 22. Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos. (redação original) Art. 38. Os tabeliães de protesto de títulos são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso. A despeito de estar normativamente regulada há bastante tempo, a responsabilidade civil dos notários, também por longo período, foi palco de intensos debates doutrinários e soluções jurisprudenciais distintas, assim como ocorreu com os demais ramos do instituto da responsabilidade civil no século XX, em que se produziu verdadeira "Torre de Babel", em termos de apreciação, análise e aplicação da responsabilidade civil em amplo espectro (HIRONAKA, 2010, p. 39). Inúmeras decisões do STF no sentido de que tal responsabilidade seria direta do Estado, "ao entendimento de que 'os cargos notariais são criados por lei, providos mediante concurso público, e os atos de seus agentes, sujeitos à fiscalização estatal, são dotados de fé pública, prerrogativa esta inerente à ideia de poder delegado pelo Estado" (CAVALIERI, 2021, p. 340).  Outra corrente, a seu turno, com base na exegese gramatical do art. 22 da lei 8.935/1994, em sua redação anterior à publicação da lei 13.286/16 , defendia o entendimento de que a obrigação de reparar o dano decorrente de atividade notarial seria objetiva e pessoal do oficial (tabelião ou notário). (CAVALIERI, 2021, p. 341) Rui STOCO (2007, p. 605) se refere a esta corrente - com severas e coerentes críticas - afirmando que, "vem-se, pois, extraindo daquela regra a exegese de que a ausência de referência ao elemento culpa do titular da serventia, no corpo do artigo, só pode conduzir à conclusão de se prescindir desse elemento subjetivo para a obrigação de indenizar nele estabelecida". Assevera Sérgio CAVALIERI (2021, p. 341) sobre a existência de uma terceira corrente, minoritária, que sustentava que a responsabilidade seria do tabelião ou notário, porém subjetiva, com base no art. 38 da lei 9.492/1997.  Com a promulgação da lei 13.286/16, que alterou o art. 22 da lei 8.935/1994, fez-se explícita a intenção do legislador no sentido de que a responsabilidade civil decorrente dos atos notariais e de registro se fundamenta na culpa ou no dolo do agente.  O STF, após os precedentes já mencionados, consolidou o entendimento no sentido de que o Estado responde diretamente apenas no caso de cartório oficializado, ao passo que o notário responde objetivamente pela atividade cartorária exercida à luz do art. 236 da CF/88, no que assume posição semelhante à das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos  (CAVALIERI, 2021, p. 341). Recentemente, contudo, o STF, ao apreciar o Tema 777, no julgamento do RE 842.846-SC, com repercussão geral reconhecida, apaziguou a controvérsia e definiu, de forma vinculante, que (i) o Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa; e que (ii) é inequívoca a responsabilidade civil subjetiva dos notários e oficiais de registro, por força do art. 22 da lei 8.935/1994. Com o julgamento do Tema 777, o STF tratou e, com isso, consolidou a responsabilidade civil subjetiva dos notários e registradores, mediante as razões proferidas no voto do relator ministro Luiz Fux, com amparo em fundamentos que, ao nosso entendimento, são corretos e harmônicos com a sistemática da responsabilidade civil constitucional e infraconstitucional vigente, conforme se propõe a demonstrar nos tópicos seguintes. A interpretação a respeito da responsabilidade civil subjetiva dos notários e oficiais de registro, assentada pelo julgamento do Tema 777 do STF, deve ser aplicada nas ações que tratarem de atos notariais e registrais praticados antes da promulgação da lei 13.286/16 - ao contrário do que decidiu o STJ no julgamento do REsp 1.849.884/DF -, considerando que a Corte Suprema não modulou os efeitos dessa decisão, pois reconheceu a responsabilidade civil subjetiva dos notários e dos registradores como decorrência lógica do entendimento de que, por serem eles agentes públicos, impõe-se a aplicação da responsabilidade civil objetiva do Estado e do dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa. 2. Da natureza jurídica pública da atividade notarial e do enquadramento do notário como agente público. Definições necessárias para a teorização da responsabilidade civil dos notários Contrariamente ao regime anterior - no qual os cartórios integravam, como órgãos da Administração direta, a estrutura administrativa do Estado (RIBEIRO, 2009, p. 01) -, o regime jurídico atualmente em vigor das atividades notariais e de registro estabelece que essa função, de natureza pública, será obrigatoriamente  exercida por pessoa física, em caráter privado e com exclusão do Poder Público, porém por delegação deste. Além disso, definiu-se a obrigatoriedade do concurso público de provas e títulos para o ingresso da atividade e atribuiu-se ao Poder Judiciário a fiscalização de seus atos. Nessa toada, vale dizer que o exercício das atividades notariais e de registro se configura privado no que toca à gestão administrativa, financeira e de pessoal, bem como à atuação jurídica. Contudo, isso não afasta o regime jurídico de Direito Público e a natureza estatal das atividades de atribuição de fé pública e de publicidade oficial a atos, contratos e direitos de terceiros, desempenhadas por essas serventias (RIBEIRO, 2008, P. 53). Trata-se, em todo caso, de função pública - enquadrando-se como serviço público, segundo os que adotam a acepção ampla, ou apenas como atividade jurídica estatal, para os que definem serviço público de forma restrita -, sujeita, por conseguinte, à disciplina do direito administrativo. Esse, aliás, é o entendimento há muito firmado pelo STF. Luís Aliende RIBEIRO (2009, p. 42) descreve os princípios fundamentais e diretrizes básicas da atividade notarial e de registro da seguinte forma: I A natureza pública da função notarial e de registro e a imperatividade de sua delegação pelo Poder Público ao particular para seu exercício em caráter privado. II A necessidade de lei para regular as atividades, disciplinar as responsabilidades civil e criminal dos notários, oficiais de registro e seus prepostos, definir a fiscalização dos seus atos pelo Poder Judiciário, assim como a necessidade de lei federal para estabelecer normas gerais sobre emolumentos. III O ingresso na atividade mediante concluso público de provas e títulos.  IV A impossibilidade de que qualquer unidade fique vaga, sem abertura de concurso, por mais de seus meses. Dentro desse contexto, os notários e registradores se inserem na ampla categoria de agentes públicos, embora não sejam funcionários públicos - tema sobre o qual inexiste dissenso na doutrina brasileira. A expressão agentes, como conceito atribuído aos representantes ou delegados do Estado, foi contemplada no direito pátrio somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, com a previsão contida no art. 37, §6º, segundo preconiza Rui STOCO (2001, p. 602). Extrai-se das lições de Celso Antônio Bandeira de MELLO a seguinte classificação dos agentes públicos: Todos aqueles que servem ao Poder Público, na qualidade de sujeitos expressivos de sua ação, podem ser denominados agentes públicos. Com efeito, esta locução é a mais ampla e compreensiva que se pode adotar para referir englobadamente as diversas categorias dos que, sob títulos jurídicos deferentes, atuam em nome do Estado. Em consequência, a noção abrange tanto o Presidente da República, os Governadores, Prefeitos, Ministros, Secretários de Estado e de Município, Senadores, Deputados, Vereadores, como os funcionários públicos, os contratados pelo Poder Público para servirem-no sob regime trabalhista, os servidores de autarquias, de empresas e fundações estatais, os concessionários e permissionários de serviço público ou delegados de função pública, assim como os requisitados e gestores de negócios públicos. Em sua quem quer que desempenhe funções estatais é, enquanto as exercita, um agente público. (1936, p. 9) Para grande parte da doutrina, os titulares dos serviços notariais e de registro são particulares em colaboração com a Administração Pública, na condição de delegados de ofícios públicos. Embora referido entendimento não seja uníssono na doutrina, não se nega a qualidade de agente público que lhes é atribuída.  Com o julgamento do RE 842.846, relativo ao Tema 777, o STF ratificou o entendimento de que "as figuras dos tabeliães e registradores oficiais se amoldam à categoria ampla de agentes públicos". Portanto, qualificam-se os titulares dos serviços notariais e de registro como agentes públicos, elemento determinante para a compreensão sobre a responsabilidade civil que lhes é atribuída. Clique aqui para ler a íntegra da coluna.
Continuando a série de publicações1, passamos a tratar do problema de grilagem de terras e controle ad malha imobiliária. Uma das funções inerentes à atividade do registrador de imóveis é o controle da malha imobiliária. Esse poder-dever passou a constar categoricamente no texto do provimento CNJ 195, em diversas passagens, inclusive, ao tratar do IERI-e - inventário eletrônico estatístico e do SIG-RI - sistema de informações geográficos.2 O princípio fiscalizatório insculpido no § 9º do art. 440-AX do Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial, determina que "Havendo indícios de grilagem de terras, fraude procedimental, declaração falsa ou cometimento de qualquer outro ato ilícito pelo requerente ou pelo profissional técnico, o oficial de registro comunicará o fato ao juízo competente e ao Ministério Público com as cópias dos documentos necessários à análise". A "grilagem de terras" é a prática ilegal de apropriação de terras públicas ou de terceiros por meio da falsificação de documentos ou títulos de propriedade, com o objetivo de dissimular a legitimidade da posse. Diz a história que a expressão "grilagem" vem de um antigo artifício utilizado para dar a documentos novos a aparência de velhos, buscando simular um título legítimo e um certo tempo de posse. Para tanto, os fraudadores de títulos imobiliários colocavam os falsos documentos recém-elaborados em uma gaveta ou caixa metálica ou de madeira juntamente com diversos grilos, fechando-a em seguida. Depois de algumas semanas, os documentos já apresentavam manchas amarelo-fosco-ferruginosas, decorrentes dos dejetos dos insetos, além de ficarem corroídos nas bordas e com pequenos orifícios na superfície, tudo a indicar a suposta ação do tempo, dando aspecto de documentos antigos e verdadeiros.3 Atualmente, no entanto, o termo "grilagem" é usado de forma mais ampla, para indicar qualquer ação ilegal que vise regularizar a propriedade de imóvel em nome de pessoas que não são os verdadeiros possuidores ou proprietários. As formas de grilagem de terra, portanto, são hoje ainda mais sofisticadas e criativas, muitas vezes valendo-se de meios oficiais, que, em tese, deveriam dar segurança jurídica e inviabilizar fraudes. Exemplo disso é a utilização indevida do SIGEF - Sistema de Gestão Fundiária do INCRA para certificar a inexistência de sobreposição com outros imóveis, gerando documentos de terra com área muito acima do original ou mesmo criando imóveis inexistentes, buscando esquentar o imóvel no registro imobiliário. Outro exemplo de fraude moderna à brasileira se dá como o uso indevido do CAR - Cadastro Ambiental Rural para tentar validar terras públicas como propriedade privada. Tal utilização irregular destes cadastros é possível porque ambos são autodeclaratórios e, não havendo outro polígono total ou parcialmente cadastrado no mesmo local indicado pelos profissionais técnicos que fizeram o georreferenciamento do imóvel ou da parcela, é possível a inclusão dos dados unilateralmente nos respectivos sistemas. Para citar mais dois exemplos, também se enquadram como hipóteses de grilagem as concessões ou doações irregulares de terras devolutas discriminadas pelos estados ou a venda de sentenças judiciais reconhecendo terras para grileiros, as quais se dão mesmo quando não existe comprovação dos requisitos legais para a devida ocupação dos imóveis. Outrossim, sob o aspecto da finalidade da grilagem de terra, podemos classificá-la em duas modalidades: a grilagem comum, física ou expropriatória e a grilagem virtual ou cybergrilagem. A grilagem comum é aquela que decorre da apropriação física do território, ocorre por meio da fraude documental aliada à ocupação física da possessão de terras, isto é, a invasão ou tomada de imóvel alheio, normalmente pelo uso da força ou ameaça. Em geral, após falsificar ou manipular documentos, os grileiros invadem a terra, desmatam a área e iniciam alguma atividade produtiva, como criação de gado ou plantio, para dar aparência de uso legítimo e justificar a posse. No entanto, a modalidade mais moderna de grilagem não demanda necessariamente conflitos diretos dos grileiros com os verdadeiros ocupantes. A grilagem virtual (ou cybergrilagem) é a fraude que apenas cria um título de propriedade para colocá-lo como ativo no mercado, seja para vendê-lo, seja para conseguir financiamentos dando o suposto imóvel em garantia para instituições financeiras. Nesta hipótese, basta ter um título registrado, uma matrícula no cartório de registro de imóveis, dando a aparência de legalidade aos documentos de domínio. Ou seja, o imóvel em si sequer precisa existir de fato, bastando que exista "no papel" (em geral com a descrição georreferenciada, mas que não corresponde a um imóvel existente). Essa forma de grilagem geralmente não provoca confronto violento entre grileiros e legítimos ocupantes (possuidores ou proprietários), mas ainda assim causa gravíssimos prejuízos. Ela gera sobreposição de áreas, impedindo a regularização dos imóveis dos legítimos proprietários ou possuidores junto ao Incra e ao registro de imóveis, além de prejudicar terceiros de boa-fé, devido a possibilitar vendas a non domino ou inviabilizar a execução de garantias imobiliárias na prática inexistentes. Os oficiais de registro de imóveis, responsáveis pelo controle da malha imobiliária em suas circunscrições, devem, portanto, realizar qualificação registral rigorosa no procedimento de retificação de área. Situações que indiquem fraudes ou grilagens devem ser coibidas com o indeferimento do procedimento e comunicadas à autoridade judicial e ao parquet, conforme ficou estabelecido pelo provimento CNJ 195/25. Além da grilagem de terras, quaisquer outras formas de fraude procedimental, declaração falsa, ou cometimento de qualquer outro ato ilícito pelo requerente ou pelo profissional técnico, devem ser comunicados às referidas autoridades. O § 9º do art. 440-AX determina ao registrador de imóveis um dever próximo àquele estabelecido aos juízes e aos tribunais no CPP (art. 40) e na lei 8.935/1994 (art. 22, parágrafo único). Assim, verificando o cometimento de ato ilícito que possa configurar infração penal pelo requerente e/ou pelo profissional técnico, devem ser comunicados e remetidos os documentos necessários ao juízo competente e ao Ministério Público. O juízo competente aqui pode ser tanto o juiz corregedor, que eventualmente pode determinar alguma medida acautelatória, caso o ato registral já esteja formalizado no livro imobiliário, como o bloqueio de matrícula ou o cancelamento de um registro, de alguma averbação ou até mesmo da própria matrícula. Também pode ser o magistrado atuando na esfera judicial, especialmente se houver algum processo de conhecimento do registrador com a causa de pedir prejudicada pelo ato ilícito praticado pelo requerente ou pelo profissional (v. g., quando houver averbação da existência de ação judicial na matrícula relacionada com a discussão sobre posse ou propriedade). Existindo fundada suspeita da ocorrência de crime de ação pública, o registrador de imóveis ainda deverá remeter ao Ministério Público as cópias e documentos necessários ao oferecimento de denúncia. Como não compete ao registrador fazer a análise da tipificação penal, a regra será sempre oficiar o órgão ministerial para que este decida sobre a realização a realização de outras diligências ou mesmo a promoção ou não da denúncia. A depender do caso concreto, por exemplo, os ilícitos penais podem se enquadrar como crimes de utilização indevida como prova da propriedade de documentos emitidos pelo Incra ou de invasão de terras públicas (arts. 19 e 20 da lei 4.947/1966), falsidade ideológica (art. 299, CP), associação criminosa (art. 288, CP), corrupção ativa e passiva (art. 317 e 333, CP), usurpação e esbulho possessório (art. 161, CP), estelionato por disposição de coisa alheia como própria (art. 171, § 2º, I, CP), ou até mesmo crimes ambientais, dentre outros fatos típicos penais. Outrossim, o órgão ministerial deverá ser oficiado também nas hipóteses de ilícitos não-penais, cujo processo envolva "litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana" (art. 178, inc. III, do CPC). Vale lembrar que, quando o caso envolver possível prejuízo ao patrimônio da União, de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, a competência será da Justiça Federal e, assim, deve ser oficiado o Ministério Público Federal (art. 109, I, CF). A documentação a ser encaminhada pelo registrador será o ofício relatando os fatos, acompanhado da cópia dos documentos necessários para formar a prova indiciária da possível materialidade e dos supostos autores da infração. _______ Este é o sétimo e último artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/25, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis. _______ 1 Disponível aqui. 2 Um dos "CONSIDERANDOS" do Provimento do IERI-e estabelece expressamente que: "[...] o adequado controle da malha imobiliária, da disponibilidade e da unicidade matricial depende da análise técnica dos polígonos dos imóveis descritos no fólio real com coordenadas geodésicas, mediante implementação de um Sistema de Informações Geográficas (SIG), permitindo que os oficiais de registro de imóveis verifiquem a exata localização e descrição dos imóveis georreferenciados, formando um mosaico dos imóveis registrados na serventia predial". 3 BRASIL. Ministério da Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário. O livro branco da grilagem de terras no Brasil. Brasília: INCRA, 1999, 41 p. Disponível aqui. Acesso em: 10 out. 2025.
1. Introdução O CC/02 caminha para sua primeira grande revisão estrutural. O PL 4/25, de autoria do Senado Federal, nasceu do trabalho da Comissão de Juristas instituída pelo presidente Rodrigo Pacheco e pretende atualizar institutos que já se mostram anacrônicos frente às transformações sociais, econômicas e tecnológicas das últimas duas décadas. O movimento não é apenas de modernização terminológica: busca-se redesenhar o equilíbrio entre autonomia privada, tutela estatal e desjudicialização de atos da vida civil, com impactos diretos no sistema notarial e registral. Contratos, mandatos, curatelas, testamentos e registros de imóveis estão no epicentro dessa transformação. 2. Linhas centrais da reforma Entre os eixos confirmados no PL 4/25, destacam-se: Capacidade civil: Restringe a incapacidade absoluta a menores de 16 anos e àqueles que por nenhum meio possam exprimir vontade. A deficiência, por si só, não afeta a capacidade. Regimes de bens: Permite alteração extrajudicial do regime no tabelionato de notas e admite cláusulas condicionais, como as chamadas sunset clauses, que modificam o regime automaticamente após certo tempo. Diretiva antecipada de curatela: Cria o instituto, possibilitando a designação prévia de curador por escritura pública, em caso de futura incapacidade. Contratos e sucessões: Abre espaço para pactos com disposições sucessórias e renúncias condicionadas à herança futura. Testamentos: Discute-se a flexibilização das formalidades do testamento particular, sem supressão definitiva das exigências de testemunhas, mas com tendência de redução da burocracia. 3. Contratos e mandatos A previsão de pactos sucessórios e renúncias condicionadas exigirá que os tabelionatos de notas desenvolvam novos modelos de escrituras, com cautela redobrada na formulação de cláusulas de eficácia diferida. Nos mandatos, a ampliação da capacidade relativa e a facilitação da emancipação impõem ao notário uma função mais ativa de qualificação subjetiva: aferir se o outorgante dispõe de capacidade suficiente para os poderes conferidos. O risco de nulidade por vício de capacidade exigirá escrituras mais bem fundamentadas. 4. Tutela, curatela e diretiva antecipada A Diretiva Antecipada de Curatela é inovação de relevo. Permitirá que qualquer pessoa, em plena capacidade, indique previamente seu futuro curador. Isso desloca para o notário uma atribuição hoje quase exclusiva do Judiciário: organizar a sucessão da curatela. O registro civil terá de criar mecanismos de averbação para dar publicidade a essas diretivas, garantindo que sejam oponíveis a terceiros. A proposta dialoga com a jurisprudência do STJ, que já vem restringindo hipóteses de incapacidade absoluta e exigindo proporcionalidade na curatela (REsp 1.927.423/SP). 5. Testamentos e sucessões O PL sinaliza maior harmonia entre os Livros de Família e Sucessões, evitando conflitos normativos sobre regimes de bens e sucessão legítima. Dois reflexos práticos para o notariado: Ampliação da autonomia sucessória, com pactos e renúncias em vida exigindo escritura pública. Revisão das formalidades do testamento particular, tema em debate pela doutrina (Flávio Tartuce, entre outros). Ainda não há texto definitivo, mas a tendência é reduzir entraves formais sem comprometer a segurança. A jurisprudência reforça esse caminho: a 4ª turma do STJ manteve testamento cerrado de 2005, afirmando que a capacidade deve ser aferida no momento da lavratura (REsp 2.032.458/RS). Isso dá lastro à ideia de flexibilização formal. 6. Registro de imóveis O impacto sobre o registro imobiliário é sensível: Alterações de regime de bens implicarão averbações automáticas, aumentando a carga de serviço. Pactos com cláusulas resolutivas ou condicionais obrigarão o registrador a lidar com títulos de eficácia futura ou suspensa, exigindo novos protocolos de qualificação. A jurisprudência do STJ (REsp 1.855.689/DF) reafirmou que a renúncia hereditária é irrevogável, indivisível e retroage à abertura da sucessão, alcançando bens descobertos posteriormente. Esse entendimento deverá orientar os registros sucessórios, especialmente quando houver bens ocultos ou supervenientes. 7. Desafios práticos A reforma abre oportunidades, mas também cria gargalos: Capacitação técnica de notários e registradores para novos institutos. Uniformização nacional de procedimentos, sob coordenação do CNJ. Custo tecnológico para digitalizar e interoperar bases de dados. Risco de exclusão digital em regiões carentes, onde a população depende da via física. O sistema notarial e registral terá de responder com eficiência e segurança, sob pena de abrir espaço para litigiosidade. 8. Conclusão A reforma do CC não é apenas uma atualização de linguagem. É um reposicionamento do papel do notário e do registrador como agentes de segurança jurídica. Ao deslocar competências do Judiciário para a via extrajudicial, o legislador reconhece a confiança social depositada na fé pública. Caberá aos cartórios absorver esse protagonismo sem comprometer a solidez que é sua marca histórica. Mais que nunca, o futuro do Direito Notarial e Registral dependerá de um equilíbrio fino: inovar sem perder a segurança, ampliar a autonomia da vontade sem abrir brechas à fraude, e modernizar procedimentos sem excluir o cidadão comum. __________________________ BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 4, de 2025. Atualiza o Código Civil e legislações correlatas. Disponível aqui. Acesso em: 23 set. 2025. BRASIL. Senado Federal. Anteprojeto de Reforma do Código Civil. Brasília: Senado Federal, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 23 set. 2025. STJ. REsp 1.855.689/DF. Rel. Min. Nancy Andrighi. 3ª Turma. Julgado em 17/09/2025. Decidiu que a renúncia à herança é irrevogável, indivisível e alcança bens descobertos posteriormente. Disponível aqui. STJ. REsp 1.927.423/SP. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. 4ª Turma. Julgado em 2023. Decidiu que a incapacidade absoluta se restringe a menores de 16 anos, aplicando o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Disponível aqui. STJ. REsp 2.032.458/RS. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. 4ª Turma. Julgado em 28/03/2025. Reafirmou que a capacidade do testador deve ser aferida no momento da lavratura do testamento. Disponível aqui. TARTUCE, Flávio. A reforma do Código Civil e o testamento particular. Coluna CNB/SP, 23 jul. 2025. Disponível aqui. IBDFAM. Principais alterações da proposta do Código Civil sob a perspectiva notarial e registral. IBDFAM, 2024. Disponível aqui. MATTOS FILHO. Reforma do Código Civil: impactos sobre o patrimônio e sucessões. Único, 2025. Disponível aqui. ANOREG/BR. Perspectivas da reforma do Código Civil. Congresso Nacional de Notários e Registradores, 2024. Disponível aqui.
Por que ainda se discute a gratuidade dos atos notariais e registrais? A discussão sobre a concessão de gratuidades dos serviços notariais e registrais é recorrente na rotina dos serviços extrajudiciais. Pedidos são feitos diretamente nos balcões das serventias e, quando não há previsão normativa, são negados. Assim, muitas vezes, desaguam no Poder Judiciário para análise e decisão. E por que são negados? A gratuidade perpassa, necessariamente, pela análise da natureza jurídica dos emolumentos. A doutrina majoritária1 e a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal2 e do Superior Tribunal de Justiça3 reconhecem que tais valores possuem natureza tributária, mais precisamente de taxa, haja vista que decorrem do exercício do poder de polícia e da prestação de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ou postos à disposição do usuário. Tratando-se de espécie tributária, a dispensa de seu pagamento consiste em isenção, a qual exige lei em sentido estrito para sua concessão de modo que a concessão de gratuidades por provimentos das Corregedorias nacional ou locais ou, ainda, por decisão judicial, afrontam o artigo 150, §6º da Constituição Federal de 1988. Emolumentos não são "preço", sim tributo. Nos termos do artigo 145, II, da Constituição da República, as taxas podem ser instituídas em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível. É justamente aí que se enquadram os emolumentos cartorários, possuindo estes [...] natureza tributária, qualificando-se como taxas remuneratórias de serviços públicos, e por isso sujeitam-se, quer no que concerne à sua instituição e majoração, quer no que se refere à sua exigibilidade, ao regime jurídico constitucional pertinente a essa modalidade de tributo vinculado, notadamente aos princípios fundamentais que proclamam, dentre outras, as garantias da reserva de competência impositiva, da legalidade, da isonomia e da anterioridade4. O Supremo Tribunal Federal reafirmou esse entendimento em vários julgamentos5, deixando claro que os emolumentos têm caráter de taxa, afastando qualquer interpretação que os qualificasse como preço público ou tarifa. Como espécies tributárias que são, a sua definição geral decorre dos artigos 236, §1º, CF, bem como da Lei Federal 10.169/2000, que fixa as regras gerais. Ato contínuo, cada Estado da federação possui a competência para editar lei estadual que institui a tabela de custas e emolumentos, a qual deve observar parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade, de modo a assegurar que o custo do serviço não exceda o valor necessário à sua adequada remuneração e manutenção. Normas das Corregedorias nacional e local podem complementar e regulamentar a cobrança de emolumentos mas, jamais, criar, majorar ou isentar o pagamento dos emolumentos, ante os preceitos constitucionais que regem a matéria tributária. A atuação administrativa é meramente executória, cabendo ao legislador a definição material dos emolumentos. A atualização monetária, entretanto, pode ser realizada anualmente, mediante índice oficial de correção estabelecido na lei de emolumentos local, não se tratando de aumento real e sim preservação do poder aquisitivo do valor cobrado. Nos casos em que não há previsão legislativa expressa, qualquer reajuste feito por ato normativo infralegal será considerado inconstitucional, por violar o princípio da reserva legal tributária e o art. 150, I, da Constituição Federal. Por que a gratuidade precisa de lei? Sendo os emolumentos tributos, a concessão de gratuidade consiste em isenção tributária, logo não podem ser feitas por ato infralegal, provimento ou mesmo decisão judicial isolada. Afinal, a Constituição Federal, em seu artigo 150, § 6º, é expressa em estabelecer que isenções só podem ser instituídas mediante lei específica emanada do Poder Legislativo. Nesse ínterim, qualquer tentativa de se instituir gratuidade fora do processo legislativo viola frontalmente os princípios da legalidade tributária (art. 150, I, CF) e da reserva legal. Os limites da atuação tributária do Conselho Nacional de Justiça e das Corregedorias Sabe-se que o Conselho Nacional de Justiça e as Corregedorias locais possuem competência normativa para regulamentar a atividade notarial e registral. Entretanto, não detêm poder de criar ou majorar emolumentos e nem conceder gratuidades ou ampliar hipóteses de isenção de emolumentos. A edição de provimentos ou resoluções que concedam gratuidade de serviços sem respaldo legal extrapola a competência destes órgãos e constitui inconstitucionalidade por afronta ao artigo 150, §6º da Constituição Federal de 1988. Reforça esta afirmação o disposto no artigo 504 do Provimento nº. 149 do Conselho Nacional de Justiça que, ao tratar do reconhecimento de paternidade, diz de forma clara que deve-se respeitar as gratuidades previstas em lei. Para tanto, prevê o artigo 102, §6º da Lei nº. 8069 a isenção de emolumentos para os reconhecimentos de paternidade. A técnica normativa, neste caso, foi constitucional, pois assegurou previsão antes definida pelo legislador. A Constituição Federal de 1988 em seu artigo prevê a gratuidade dos registros de óbito e nascimento e respectivas primeiras vias, independente de se tratar de hipossuficiente. A Lei nº. 6015 prevê a gratuidade das segundas vias das certidões do registro civil de pessoas naturais para os hipossuficientes. Vê-se, assim, que o sistema exige a edição de lei formal para a concessão de gratuidade e assim procede nas situações em que entende necessário isentar o pagamento de emolumentos. Logo, somente após um processo legislativo amplo é que são veiculadas isenções tributárias, o que também atende ao princípio da isonomia, com a fixação de elementos de equidade para as concessões dos benefícios. Nessa linha, discute-se muito a concessão de gratuidade para os pedidos de alteração de nome e nome e gênero de hipossuficientes, o que não pode ocorrer, justamente porque não há previsão legal para a concessão de isenção nestes casos. Desta forma. as decisões judiciais ou os provimentos neste sentido ressoam ilegais e inconstitucionais. O que está em jogo: segurança jurídica e sustentabilidade. A concessão indevida de gratuidade por provimentos ou decisões judiciais compromete o equilíbrio do sistema de custeio da atividade notarial e registral e ameaça a própria sustentabilidade do serviço público delegado. Os serviços extrajudiciais são prestados por delegação do Estado e financiados exclusivamente por emolumentos pagos diretamente pelo usuário do serviço. Essa metodologia garante justiça distributiva: quem utiliza o serviço arca com seu custo, sem transferi-lo à coletividade.   Em que pese se tratar de delegação de serviço público, o modelo se assemelha ao das concessionárias de rodovia, em que paga o pedágio quem trafega pela via, e ninguém cogita isentar o motorista do pagamento. Assim, qualquer alteração na política de custeio deve ser objeto de deliberação legislativa, com respeito à previsão orçamentária e à responsabilidade fiscal (art. 113 do ADCT e Lei Complementar nº 101/2000). Caso o Estado deseje ampliar hipóteses de gratuidade, deverá fazê-lo mediante repasses ou compensações financeiras. Afinal, a atividade notarial e registral é exercida em caráter privado, por delegação do poder público a pessoas físicas. Assim, não se pode impor ao delegatário o ônus de custear políticas públicas, de responsabilidade do Estado, cabendo a este planejar e financiar medidas de inclusão social.   Conclusão: boa intenção não basta Garantir acesso à cidadania é um valor constitucional, mas não se alcança justiça violando a legalidade. A gratuidade de emolumentos só pode ser instituída por lei em sentido estrito, respeitando os princípios da legalidade, da reserva legal e da responsabilidade fiscal. O respeito à forma é, nesse caso, o próprio conteúdo da segurança jurídica. __________ 1 A discussão é objeto do capítulo 3 da obra Responsabilidade tributária de notários e de registradores, de Norton Luís Benites. --1. ed. --São Paulo : Almedina, 2021 2 Nesse sentido, ADI 1378. MC, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 30/11/1995, DJ 30-05-1997 PP-23175 EMENT VOL-01871-02 PP-00225 3 Nesse sentido RECURSO ESPECIAL Nº 1.187.464 - RS  4 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos - Teoria e Prática. 12ª Ed. Ver e ampl. São Paulo: Editora Juspodivm, 2023. P. 106. 5 EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. REQUERIMENTO DE MEDIDA CAUTELAR. REGISTROS PÚBLICOS. LEI N. 3.929/2013, DO AMAZONAS, PELA QUAL CRIADO O FUNDO DE APOIO AO REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS DO ESTADO DO AMAZONAS - FARPAM. ALEGADA OFENSA AO INC. XXV DO ART. 22, INC. I DO ART. 154, ART. 155 E INC. IV DO ART. 167 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AUSENTE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE REGISTROS PÚBLICOS. RECURSOS QUE COMPÕEM O FUNDO EM EXAME: NATUREZA JURÍDICA DE TAXA. VALIDADE DA DESTINAÇÃO DESSES RECURSOS A FUNDO ESPECIAL. PRECEDENTES. AÇÃO DIRETA JULGADA IMPROCEDENTE. 1. Nas normas impugnadas não se altera a disciplina relativa à validade, à forma, ao conteúdo ou à eficácia dos atos praticados pelos delegatários dos serviços notariais e de registro no Amazonas. 2. A remuneração pela prática dos serviços notariais e de registro decorre do pagamento de emolumentos, fixados por normas estaduais ou distritais, considerada natureza pública e o caráter social dos serviços prestados, conforme § 2º do art. 236 da Constituição da República e arts. 1º e 2º da Lei federal n. 10.169/2006. 3. O selo eletrônico de fiscalização e os emolumentos previstos pelos incs. I e II do art. 2° da Lei estadual n. 3.929/2013 configuram-se como taxa, espécie tributária prevista no inc. II do artigo 145, da Constituição da República. 4. São constitucionais as normas estaduais pelas quais preveem a destinação de parcela dos emolumentos recebidos pelos notários e registradores a fundos especiais do Poder Judiciário. Precedentes. 5. É constitucional a Lei n. 3.929/2013, do Amazonas, pela qual criado o Fundo de Apoio ao Registro Civil das Pessoas Naturais do Estado do Amazonas - FARPAM, supervisionado e fiscalizado pela Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Amazonas. 6. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. (ADI 5672, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 21-06-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-128  DIVULG 29-06-2021  PUBLIC 30-06-2021).
1. Introdução Trataremos das inúmeras utilidades práticas da conta notarial vinculada (escrow account notarial), com inclusão das soluções que ela oferece próxima ao modelo do trust. Avançaremos para definir essa ferramenta e expor seu regime jurídico e operacional, com algumas sugestões de aprimoramentos. A recente ferramenta é disciplinada pelo art. 7º-A, § 1º, da lei dos cartórios (lei 8.935/1994)1 e pelo provimento 197/25. Averbamos nossos agradecimentos e elogios ao talentosos e proativos juristas com os quais amadurecemos nossas reflexões e que estão empenhados na implantação prática da conta notarial vinculada. É o caso dos amigos André Toledo, Rafael Vitelli Depieri, Hércules Alexandre da Costa Benício, Guilherme Gaya, Alexandre Kassama e Giselle Oliveira de Barros. 2. Utilidade prática, com inclusão de soluções próximas ao trust Antes mesmo de definir a conta notarial vinculada (escrow account notarial), anteciparemos as suas infinitas aplicações práticas quotidianas. Ao assinarmos uma escritura pública comprando um imóvel, é arriscado transferir o dinheiro ao vendedor. Isso, porque a aquisição do imóvel só se consumará se o Cartório de Registro de Imóveis vier a aceitar o registro da escritura, o que nem sempre acontece por motivos de Direito Registral (ex.: a existência de uma indisponibilidade averbada na matrícula; o descompasso entre dados pessoais do vendedor na escritura em relação aos que estão na matrícula; a falta de georreferenciamento; etc.). O mais cauteloso é transferir o dinheiro só depois do registro. Todavia, sob a ótica do comprador, também é arriscado só receber o pagamento depois do registro da escritura: o vendedor pode dar um "calote" e, ainda por cima, revender o bem a um terceiro. O que fazer? A  conta notarial vinculada (escrow account notarial) é a melhor solução: o vendedor transfere o dinheiro para ela, e o tabelião somente liberará o valor ao comprador após constatar o registro. Inúmeros outros negócios sofrem do risco acima, com adaptações, a aconselhar o uso da escrow account notarial. É o caso, por exemplo, da caução de dinheiro em contrato de locação: há risco de o locador gastar o valor e não o restituir ao final do contrato. É o que se dá em grandes negócios empresariais, em que o momento seguro para a liberação do dinheiro é a futura constatação de determinado fato. Até mesmo em compras realizadas em plataformas de marketplace, como a OLX e o mercado livre. Há golpes perpetrados por "falsos vendedores" que poderiam ser evitados se o dinheiro ficasse em uma conta notarial para liberação ao vendedor somente após o efetivo recebimento do produto. A utilidade da conta notarial é infinita. Acomoda, inclusive, eventuais formas de planejamento familiar ou sucessório. Pense em um pai com uma doença mortal e que tema pelo futuro de seu filho errático, que, na falta do pai, provavelmente dilapidaria a herança com drogas e cairia na penúria.  Esse pai poderia proteger o dinheiro em uma conta notarial vinculada e indicar um gestor de confiança para, sob determinadas diretrizes, ir solicitando ao tabelião a liberação parcial do dinheiro ou de seus rendimentos. Isso pode acontecer por ato inter vivos ou por testamento (com nomeação de um testamenteiro para exercer esse papel de gestor e com a titularidade da conta em nome do espólio ou, até mesmo, do testamenteiro e/ou do beneficiário). Trata-se de um arranjo similar ao famoso trust, tão comum nos países anglo-saxões, em que uma pessoa (instituidor ou, em inglês, seattlor) transfere a propriedade a um gestor (fiduciário ou, em inglês, trustee) para que este repasse rendimentos ou, por vezes, o próprio patrimônio a um terceiro (beneficiário ou, em inglês, beneficiary). A verdade é que, com a conta notarial vinculada, arranjos como esses - com resultados práticos similares ao trust - podem ser cogitados, o que confere segurança jurídica às necessidades negociais dos cidadãos e das empresas. A conta notarial vinculada é uma das criações jurídicas mais vibrantes e úteis dos últimos tempos e precisa assumir uma configuração operacional apta a recepcionar o vastíssimo carrossel de demandas da sociedade e do mercado, o que vem sendo desenvolvido, com proficiência, pela entidade representativa dos notários (o CNB - Colégio Notarial do Brasil). 3. Definição e regime jurídico e operacional A conta notarial vinculada (escrow account notarial) é uma verdadeira "ilha de blindagem patrimonial" para um dinheiro vinculado a uma finalidade. Os interessados depositam o dinheiro nessa conta bancária vinculada a um tabelião de notas e dão as diretrizes a serem observadas para a liberação do dinheiro a terceiros. Esse dinheiro fica imunizado diante de qualquer dívida pessoal do tabelião ou dos interessados, por força do regime de patrimônio de afetação previsto no art. 7º-A, § 1º, da lei 9.935/1994. O dinheiro vinculado a uma finalidade fica, pois, em uma ilha de blindagem patrimonial. O tabelião de notas tem as chaves da porta de entrada e de saída da conta notarial: a abertura da conta e a liberação do dinheiro dependem de ato do notário, em convênio com uma instituição financeira (atualmente, o banco Safra é a instituição convencionada com o Colégio Notarial do Brasil). Os comandos desses atos do notário podem ser automatizados com uso de plataformas eletrônicas, conforme juízo prudencial à luz dos casos concretos. Na prática, não há necessidade de nenhum ato notarial protocolar típico (como escritura pública ou ata notarial). Ao ser demandado pelos interessados, o tabelião preenche, no sistema eletrônico da instituição financeira convencionada, o "termo de abertura da conta notarial", indicando as diretrizes para liberação do dinheiro (o termo ou a condição suspensivos, os quais, quando ocorridos, autorizariam a transferência do dinheiro ao destinatário). O tabelião envia o termo às partes para assinatura (ainda que eletrônica). Após a assinatura, arquiva-o em pasta própria (art. 8º, provimento 197/252) e faz o upload do termo assinado na plataforma eletrônica. O sistema eletrônico gera um boleto a ser pago pelo depositante. Com o pagamento do boleto, a conta notarial nasce, abastecida com esse dinheiro do pagamento. Quando vier a ocorrer o evento futuro de liberação do dinheiro, o tabelião acessa o sistema eletrônico e libera a verba ao destinatário. O valor a ser pago pelo serviço depende do convênio e será feita à instituição financeira conveniada, que remunera o tabelião (arts. 4º e 11 do provimento 197/253). Não há obrigatoriedade (mas mera faculdade) de lavratura de atos notariais, o que afasta cobrança de emolumentos. Atualmente, o valor da operação da escrow account é irrisório: 0,08% da operação (respeitado o piso de R$ 50,00), a ser pago ao banco conveniado, que remunera o tabelião na forma do convênio. 3. Questões práticas e sugestões de aprimoramento Algumas questões merecem reflexão. 3.1. Consentimento dos interessados para liberação da verba? Em primeiro lugar, há ou não necessidade de o tabelião obter o consentimento de todos os interessados para a liberação da verba? Depende. Se, porém, o evento futuro for de constatação não evidente (ex.: adoção de um determinado comportamento por uma das partes), convém ao tabelião colher o consentimento de ambas as partes. Rescisão ou ineficácia de contratos consideram-se de constatação não evidente (art. 9º, § 1º, provimento 197/254). Se o evento futuro for de constatação evidente pelo tabelião (ex.: a realização de um registro na matrícula, o alcance de uma idade pelo destinatário), não há necessidade: o próprio tabelião pode liberar o valor (art. 9º, § 2º, provimento 197/255). Entendemos, porém, que, mesmo nessa hipótese, é recomendável ao tabelião colher prévia manifestação da outra parte para prevenir surpresas. Afinal, a prova apresentada da ocorrência do evento futuro pode ser falsa (ex.: uma certidão falsa) ou fruto de erro. Nos casos em que há provas convincentes, poderia o tabelião expedir notificação prévia no endereço eletrônico indicado pela parte para oferecer eventual impugnação à liberação do valor, sob pena de consentimento tácito, tudo com base no princípio do silêncio conclusivo (art. 111 do CC6) e em analogia ao que já sucede nos procedimentos extrajudiciais de usucapião e de retificação extrajudicial. Eventual aprimoramento nas normas internas do CNJ poderia positivar essa solução. Seja como for, cabe ao juízo prudencial do notário a avaliação. É claro que, em situações específicas de inequívoca constatação do evento futuro, a notificação prévia das partes pode ser dispensada. Imagine o uso da conta notarial em operações de venda em ambiente de empresas de marketplace, como no da OLX. O atesto da plataforma eletrônica da empresa acerca da entrega do produto ao comprador poderia ser considerado suficiente para a liberação do valor, o que pode acontecer automaticamente pelo sistema, sem necessidade de ato humano específico do tabelião. Não há problema nenhum nessa automatização das etapas de depósito na escrow account e de liberação dos valores, dentro da lógica de um smart contract lato sensu, tema sobre o qual tivemos a oportunidade de aprofundar em outro artigo.7 Aliás, a escrow account notarial pode ser perfeitamente utilizada em diferentes arranjos de smart contracts. 3.2. O que fazer no caso de falta de consenso das partes para liberação da verba nos casos em houver essa necessidade? Em segundo lugar, indaga-se: quando o tabelião buscar o consentimento de ambas as partes e não houver consenso, que providência deverá ser adotada? A resposta depende de uma leitura lógico-sistemática do art. 9º do provimento 197/258. Referido dispositivo, em uma interpretação literal, aponta para a lavratura de uma ata notarial para uma tentativa de acordo e, no caso de subsistência do litígio, para a devolução do dinheiro ao depositante (art. 9º, I a IV, do provimento 197/25). Mas parece-nos evidente que esse caminho só pode ser trilhado se as partes, apesar de divergirem sobre a ocorrência do evento futuro, consentirem com esse procedimento. E há um motivo principal para tanto: a conta notarial destina-se a servir de garantia de ambas as partes e, por isso, sua sorte não pode ficar sob a dependência do arbítrio do depositante. Aliás, como a lavratura da ata notarial pressupõe o pagamento dos emolumentos, está implícito no supracitado dispositivo do provimento 197/25 que a sua lavratura dependerá de ato espontâneo de ambas as partes. Entender diversamente nos levaria à intragável conclusão de que o depositante poderia, a seu talante, reaver o dinheiro depositado e frustrar a garantia da outra parte. Pense em alguém que, após receber um produto, mente para reaver o dinheiro depositado. Não é razoável interpretar o preceito acima a ponto de desmoralizar a finalidade de garantia da conta notarial. No máximo, o que seria viável é que, no caso de subsistência da discordância, o tabelião, a pedido do depositante, poderia notificar a outra parte, interpretando-se seu silêncio como consentimento com o levantamento do valor ao depositante, o que será atestado em ata notarial lavrada a pedido e às expensas do depositante. Conviria aprimoramento da regulamentação do CNJ nesse ponto. 3.3. Estruturação da conta e repercussões tributárias Em terceiro lugar, qual é o melhor modelo de operacionalização da conta notarial? Estamos na fase de cartografar esse novo território, o que exige capacidade criativa dos agentes. Entendemos que a via mais adequada é espelhar-se nas contas judiciais, que costumam ser oferecidas por bancos públicos (como a Caixa Econômica Federal). Essas contas ficam em nome das partes, com movimentação condicionada a ordem judicial. A conta notarial é uma conta extrajudicial, vinculada a um tabelionato, com movimentação condicionada ao comando do notário. Ficará na instituição bancária conveniada com a entidade representativa dos notários. Deve-se, pois, espelhar nesse modelo de contas judiciais, inclusive quanto ao regime tributário cabível. 3.4. Rendimentos das contas notariais Em quarto lugar, enfatizamos a importância de o banco convencionado disponibilizar opções de rendimentos de renda fixa razoáveis, compatíveis aos oferecidos aos clientes em geral. O mínimo é assegurar o rendimento próprio da poupança. Deve-se, porém, pensar em alguma solução pela qual o banco ofereça um rendimento superior, atrelando-o aos oferecidos por títulos mobiliários comuns de renda fixa. Isso, porque o banco certamente usará os valores da conta para investimentos pessoais com retornos superiores. O mercado bancário oferece, com facilidade, títulos de renda fixa com rendimentos de 100% do CDI - Certificado de Depósito Interbancário, o que significa um rendimento geralmente próximo da taxa Selic. Essa maior rentabilidade é essencial pelo fato de que a conta notarial atrairá depósitos de longa duração, inclusive em valores expressivos. É possível que os bancos ofereçam títulos assim. Depende do convênio firmado com os bancos, até porque os valores depositados são utilizados pelo banco para obtenção de rendimentos maiores nos seus negócios próprios. É importante que o convênio seja feito com bancos de altíssima reputação e solidez, caso do atual convênio com o Banco Safra. Mas é preciso que os rendimentos das contas sejam adequados ao que realmente é oferecido no mercado para títulos de renda fixa, de modo que é preciso deixar no radar, caso esses rendimentos não possam ser oferecidos com base nos convênios atuais, a conveniência de serem feitos convênios com outras instituições. 3.5. Dispensa de ato notarial protocolar típico Em quinto lugar, não há obrigatoriedade em qualquer ato notarial protocolar típico para a abertura ou liberação da conta notarial. Ato notarial típico são aqueles lavrados em livros pelo notário e são historicamente inerentes à atividade notarial, caso das escrituras públicas e das atas notariais.   Entendemos que a abertura da conta notarial deve ser considerada um ato notarial extraprotocolar atípico. Diz-se extraprotocolar, porque não é lavrado em livros: o notário lança as informações no próprio sistema eletrônico mantido pelo Colégio Notarial do Brasil em convênio com o banco e arquiva os documentos e os comprovantes (art. 5º, VI e § 1º, do provimento 197/259). Diz-se atípico, porque se trata de função que não é historicamente inerente à atividade notarial, apesar de que a função se aproxima mais da vocação dos notários. Apesar de a abertura da conta notarial não depender de ato notarial protocolar típico, é conveniente que as partes considerem sempre a importância de, facultativamente, valerem-se da ata notarial ou da escritura pública para estabilizar a manifestação de vontade. Além da presunção de veracidade de que gozará o instrumento, o tabelião atua como um "consultor jurídico" ao traduzir a vontade das partes para a melhor forma jurídica.  3.6. Sigilo para os documentos da conta notarial? Em sexto lugar, indaga-se: os documentos relativos à conta notarial são ou não gravados por sigilo? Entendemos que cabe às partes decidirem, conforme melhor interpretação do art. 13 do provimento 197/2510. Esse dispositivo, ao prever o sigilo quando o contrato-base contiver cláusula de confidencialidade, está a entregar à autonomia privada das partes a escolha quando ao regime de publicidade. Afinal, além de a conta notarial envolver informações bancárias e financeiras das partes (o que, por si só, já atrairia o sigilo bancário e a tutela da LGPD), referido dispositivo do provimento reforça a força da vontade das partes. _______ 1 Art. 7º-A Aos tabeliães de notas também compete, sem exclusividade, entre outras atividades: (...) § 1º O preço do negócio ou os valores conexos poderão ser recebidos ou consignados por meio do tabelião de notas, que repassará o montante à parte devida ao constatar a ocorrência ou a frustração das condições negociais aplicáveis, não podendo o depósito feito em conta vinculada ao negócio, nos termos de convênio firmado entre a entidade de classe de âmbito nacional e instituição financeira credenciada, que constituirá patrimônio segregado, ser constrito por autoridade judicial ou fiscal em razão de obrigação do depositante, de qualquer parte ou do tabelião de notas, por motivo estranho ao próprio negócio. 2 Art. 8º Verificada a ocorrência das condições estabelecidas pelas partes, o tabelião autorizará a transferência dos valores para as contas indicadas no requerimento. Parágrafo único. A verificação das condições será documentada e arquivada em classificador específico. 3 Art. 4º O Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal (CNB/CF) poderá firmar convênios com instituições financeiras para a prestação do serviço de conta notarial, comunicando sua íntegra à Corregedoria Nacional de Justiça. § 1º Os convênios deverão estabelecer: I - as responsabilidades da instituição financeira e do CNB/CF; II - os procedimentos operacionais para abertura e movimentação das contas vinculadas; III - as tarifas e custos do serviço; IV - os mecanismos de segurança e controle; V - as formas de acesso dos tabeliães aos sistemas eletrônicos; VI - os procedimentos para resolução de conflitos operacionais; VII - a obrigação de a instituição financeira: a) manter sistema eletrônico seguro para acesso dos tabeliães; b) providenciar a segregação patrimonial dos valores depositados; c) fornecer comprovantes de todas as movimentações; e d) permitir auditoria pelos órgãos competentes. § 2º Para prestar o serviço de conta notarial, os tabeliães de notas deverão utilizar exclusivamente as instituições financeiras conveniadas ao CNB/CF. Art. 11. A remuneração do tabelião pela prestação do serviço de conta notarial será realizada pela instituição financeira, nos termos estabelecidos no convênio firmado entre ela e o CNB/CF, não podendo ser repassada aos usuários nenhum custo adicional. Parágrafo único. A remuneração de que trata o caput não se confunde com os emolumentos devidos pela eventual lavratura de atos notariais relacionados ao negócio jurídico. 4 Art. 9º Havendo divergência entre as partes sobre o implemento ou frustração das condições estabelecidas, o tabelião: (...) § 1º Na hipótese do caput, o tabelião não decidirá sobre a eficácia ou rescisão do negócio jurídico, limitando-se a documentar os fatos verificados. 5 Art. 9º Havendo divergência entre as partes sobre o implemento ou frustração das condições estabelecidas, o tabelião: (....) § 2º A partir da constatação definitiva da ocorrência ou frustração da condição negocial, parte dela ou do conjunto de condições, o tabelião de notas acessará o sistema eletrônico da instituição financeira conveniada e autorizará a transferência do valor estipulado pelas partes e depositado na "conta notarial" para a(s) conta(s) corrente(s) indicada(s) por uma das partes. 6 Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa. 7 https://www.migalhas.com.br/arquivos/2024/11/0F67EA18998CB3_2024-11-7-Smartcontracts.pdf 8 Art. 9º Havendo divergência entre as partes sobre o implemento ou frustração das condições estabelecidas, o tabelião: I - documentará a divergência em ata notarial; II - suspenderá qualquer movimentação dos valores; III - comunicará às partes sobre a necessidade de solução consensual ou judicial do conflito; IV - manterá os valores depositados até acordo final entre as partes. Não havendo solução consensual ou judicial do conflito, o tabelião, sem fazer juízo de valor sobre os motivos da frustração do negócio, encerrará o procedimento, restituindo os valores depositados ao depositante, de acordo com as cláusulas estabelecidas no negócio. § 1º Na hipótese do caput, o tabelião não decidirá sobre a eficácia ou rescisão do negócio jurídico, limitando-se a documentar os fatos verificados. § 2º A partir da constatação definitiva da ocorrência ou frustração da condição negocial, parte dela ou do conjunto de condições, o tabelião de notas acessará o sistema eletrônico da instituição financeira conveniada e autorizará a transferência do valor estipulado pelas partes e depositado na "conta notarial" para a(s) conta(s) corrente(s) indicada(s) por uma das partes. 9 Art. 5º Para prestar o serviço de conta notarial, o tabelião de notas deverá: (...) VI - manter arquivo de todos os documentos e comprovantes. (...) § 1º O tabelião deverá registrar os dados essenciais do negócio jurídico, das partes e das condições pactuadas em sistema eletrônico mantido pelo CNB/CF, com acesso exclusivo às partes celebrantes do negócio, seus procuradores e ao delegatário. 10 Art. 13. Quando o negócio jurídico contiver cláusula de confidencialidade, o tabelião manterá sigilo sobre os termos contratuais, não sendo emitida nenhuma certidão referente ao negócio em si, observando, para tanto, o disposto no Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça.
Em 29 de janeiro de 2025 foi publicada no Diário Eletrônico do MPMG a resolução conjunta PGJ CGMP 1/251, que dispõe sobre a manifestação do Ministério Público em escrituras públicas de inventário e partilha extrajudiciais com crianças, adolescentes ou incapazes, nos termos da resolução CNMP 301, de 12 de novembro de 20242. Na referida resolução de MG, consta o passo a passo para a manifestação do promotor que atua perante a Vara das Sucessões da Comarca do Tabelião escolhido para a lavratura da escritura de inventário envolvendo menores ou incapazes, mediante a remessa pelo Tabelião da minuta da escritura, bem como de todos os documentos que a instruem. Relevante ponto da resolução de Minas Gerais é o esclarecimento de que não é necessária prévia manifestação do promotor para lavratura da escritura de nomeação de inventariante, bastando, portanto, que, além dos demais requisitos comuns à escritura de nomeação de inventariante, participe também o representante legal do menor ou incapaz. Entendemos que o relativamente incapaz deverá ser assistido no ato pelo seu representante legal e o absolutamente incapaz será representado. Abaixo é apresentado um resumo, na forma de perguntas e respostas, das principais questões abordadas na resolução mineira: 1 - Qual o promotor competente para manifestar? O Promotor com atuação perante o Juízo de sucessões na Comarca de atuação do Tabelião. 2 - Quando será feita a remessa ao promotor de sucessões? Previamente à lavratura, a análise será feita da minuta e dos documentos exigidos em lei e na resolução 35/CNJ. 3 - Quem fará a remessa ao promotor da minuta e documentos exigidos na resolução? O tabelião responsável pela lavratura da escritura. 4 - O que deverá ser remetido ao promotor? É necessário que o Tabelião envie ao Promotor com atribuição em matéria de sucessões para manifestação prévia à lavratura da escritura de inventário: 4.1) a minuta da escritura pública reconhecendo a existência da união estável após a morte, com comparecimento de todos os herdeiros capazes e do representante do incapaz, para fins de reconhecimento do direito do convivente à herança ou meação na forma dos arts. 18 e 19 da res. 35/CNJ, instruída com os documentos comprobatórios da união estável, bem como com todos os demais documentos que instruíram a minuta; Observação importante: Se houver escritura de união estável devidamente registrada no livro E do Registro Civil das Pessoas Naturais, não precisa ser lavrada a escritura de união estável com concordância dos herdeiros e do representante do incapaz, conforme art. 18 da resolução 35/CNJ. 4.2) a minuta da escritura de inventário envolvendo menor ou incapaz (inclusive as relativas a verbas da lei 6858/1+80 e as sobrepartilhas), com os documentos exigidos em lei e na res. 35/CNJ e ainda com certificação de que não houve discordância anterior de qualquer promotor quanto à lavratura da escritura. Deverá ser enviada a minuta ao promotor mesmo que o menor ou incapaz seja o único herdeiro. A exigência de remessa da minuta ao Promotor de Sucessões é apenas no que se refere ao inventário, não sendo necessário enviar para análise do promotor a minuta da nomeação de inventariante. Na nomeação de inventariante participará o representante legal do menor (genitor) ou incapaz (curador), para assistir o relativamente incapaz ou para representar o absolutamente incapaz. 5 - Como será feita a remessa das minutas? Por meio eletrônico, devendo ser criado um sistema eletrônico oficial. Enquanto o sistema não estiver pronto, a remessa ao promotor será feita por e-mail. 6 - O que ocorre se o promotor identificar a falta de algum documento ou de algum requisito da escritura? Se o Promotor identificar alguma pendência, enviará ao Tabelião para que resolva a pendência e devolva a documentação no prazo de até 15 dias, devendo no encaminhamento ser feita menção ao número do procedimento administrativo, denominado NOTÍCIA DE FATO. 7 - O que ocorre se houver manifestação favorável do MP? Se for proferida manifestação favorável, deverá essa manifestação ser arquivada no tabelionato e tabelião consignará na escritura: a) nome e cargo do promotor de justiça competente; b) nº do procedimento no MP/MG; c) data da manifestação. (cobrar arquivamento da manifestação). Após a lavratura da escritura, em 48h, será enviada cópia do traslado ao promotor, devendo no encaminhamento ser feita menção ao número do procedimento administrativo 8 - O que ocorre se houver manifestação desfavorável do MP? Se for proferida manifestação desfavorável, deverá ser certificada pelo tabelião a discordância do promotor e será encaminhado ao Juiz competente para sucessões, sendo a certificação instruída com cópia da manifestação negativa do promotor.  Após a remessa ao juiz, em 48h, o tabelião deverá enviar ao promotor cópia do encaminhamento que foi feito ao juiz, devendo no encaminhamento ser feita menção ao nº do procedimento administrativo, denominado notícia de fato; - Se o juiz autorizar a lavratura da escritura: a) no procedimento será certificado que foi proferida decisão; b) após a lavratura, em 48h, será enviada cópia do traslado ao MP = deverá no encaminhamento ser feita menção ao nº do procedimento administrativo. - Na escritura deverá constar que houve autorização judicial, o número do  processo e o juízo prolator da decisão. _______ 1 MINAS GERAIS. RESOLUÇÃO CONJUNTA PGJ CGMP Nº 1, DE 28 DE JANEIRO DE 2025. Dispõe sobre a manifestação do Ministério Público em escrituras públicas de inventário e partilha extrajudiciais com crianças, adolescentes ou incapazes, nos termos da Resolução CNMP n. 301, de 12 de novembro de 2024. Diário Oficial Eletrônico do MPMG: Atos administrativos, Procurador Geral, 29.01.2025, p. 1 a 4. Disponível aqui. Acesso em: 26 set. 2025. 2 BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público - CNMP. RESOLUÇÃO Nº 301, DE 12 DE NOVEMBRO DE 2024. Disciplina a atuação do Ministério Público em procedimentos oriundos de serventias extrajudiciais prestadoras de serviços notariais ou de registros públicos. Disponível aqui. Acesso em: 26 set. 2025.
1. Contexto do problema. Por vezes o fisco municipal tem autuado os notários e registradores paulistas, mediante lançamento complementar e imposição de multa, arbitrando-se a base de cálculo dos serviços prestados como sendo de 62,5% dos valores declarados ao CNJ. O cerne da questão é a não aceitação dos valores declarados pelo contribuinte na documentação fiscal quando o recolhimento do ISSQN for inferior a 62,5% dos valores por ele declarados ao CNJ. 2. Natureza jurídica da imposição da base de cálculo como sendo de 62,5% dos valores declarados ao CNJ. O ISSQN é imposto que incide sobre a prestação de serviços e sua base de cálculo está prevista na LC 116, de 31/7/2003, em seu art. 7º: "Art. 7º A base de cálculo do imposto é o preço do serviço." O CTN, por sua vez, impôs a forma do lançamento do ISSQN em seu art. 147: "Art. 147. O lançamento é efetuado com base na declaração do sujeito passivo ou de terceiro, quando um ou outro, na forma da legislação tributária, presta à autoridade administrativa informações sobre matéria de fato, indispensáveis à sua efetivação." Boa parte dos municípios do Estado de São Paulo adotam a emissão da NFS-e - Nota Fiscal de Serviços Eletrônica em que o contribuinte faz a emissão do documento fiscal denominado "Recibo Provisório de Serviço", ou RPS, que é encaminhado por meio eletrônico para os municípios e eles se encarregam de emitir as correspondentes NFS-e. Os que ainda não adotaram o sistema de NFS-e, o contribuinte emite as notas fiscais de forma convencional e entrega ao fisco municipal a declaração dos valores dos serviços prestados no período. O lançamento, em todos os casos, é efetuado mediante declaração do contribuinte. Em sendo a regra geral o lançamento ser feito por meio de declaração do contribuinte e com base na documentação fiscal de emissão obrigatória, a revisão do lançamento, todavia, pode ser feita pela autoridade tributária nos casos previstos no art. 149 do CTN: "Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos: I - quando a lei assim o determine; II - quando a declaração não seja prestada, por quem de direito, no prazo e na forma da legislação tributária; III - quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado declaração nos termos do inciso anterior, deixe de atender, no prazo e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade; IV - quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória; V - quando se comprove omissão ou inexatidão, por parte da pessoa legalmente obrigada, no exercício da atividade a que se refere o artigo seguinte; VI - quando se comprove ação ou omissão do sujeito passivo, ou de terceiro legalmente obrigado, que dê lugar à aplicação de penalidade pecuniária; VII - quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação; VIII - quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior; IX - quando se comprove que, no lançamento anterior, ocorreu fraude ou falta funcional da autoridade que o efetuou, ou omissão, pela mesma autoridade, de ato ou formalidade essencial. Parágrafo único. A revisão do lançamento só pode ser iniciada enquanto não extinto o direito da Fazenda Pública." A mera constatação de que o valor declarado pelo notário ou registrador ser inferior à 62,5% do valor por ele declarado ao CNJ não implica, por si só, na ocorrência de algum dos casos apontados nos incisos I a IX do dispositivo citado, como falta de declaração ou esclarecimento, omissão, erro, inexatidão, fraude, dolo ou simulação. A adoção da base de cálculo como sendo de 62,5% do valor declarado ao CNJ sem ser apontada qualquer ocorrência dos fatos descritos no art. 149 do CTN constitui um típico caso de lançamento fiscal feito por meio de ARBITRAMENTO, em que a autoridade fiscal, descartando as declarações e documentação fiscal, substitui a base de cálculo por um valor pré-definido segundo seus próprios critérios. 3. Requisitos legais para o arbitramento. O arbitramento não pode ser utilizado de forma discricionária pelo fisco, de forma diversa, somente pode ser feito nos casos específicos previstos no art. 148 do CTN: "Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial." O primeiro requisito para o arbitramento é a abertura de um processo regular, ou seja, sem o procedimento administrativo adequado, inadmissível será o arbitramento. No procedimento administrativo, imperativo é a observância da garantia do contraditório e da ampla defesa, conforme art. 5º, LV, da Constituição Federal, e que se encontra reafirmado ao fim do texto do art. 148 acima. O segundo requisito é a constatação da omissão nas declarações do contribuinte ou quando elas não merecerem fé. Fatos esses que não podem ser assumidos a priori como ocorridos, visto haver a obrigatoriedade de ser dada oportunidade de defesa e de produção das provas, somente ultrapassada essa fase é que, em uma decisão fundamentada, o arbitramento poderia ser adotado se do conjunto probatório se puder inferir ter havido omissão ou não ser idônea a documentação apresentada. Há que ser ainda levado em conta que a utilização do valor de 62,5% do total declarado ao CNJ nada mais é do que o estabelecimento de uma PAUTA FISCAL em substituição aos valores declarados pelo contribuinte. O STJ já teve a oportunidade de examinar diversas vezes a matéria, a título exemplificação, é aqui trazida a ementa do acórdão proferido no REsp 1.816.701, j. 25/6/2019, com o seguinte teor: "TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. IMPOSTO SOBRE SERVIÇO. ISS. LANÇAMENTO REALIZADO POR ARBITRAMENTO. ART. 148 DO CTN. CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 7/STJ. 1. Cuida-se de inconformismo com acórdão do Tribunal de origem que manteve o valor do lançamento informado pelo contribuinte, haja vista que a municipalidade não apresentou nenhum indício de que os valores declarados como base de cálculo para o tributo não são confiáveis. 2. Averiguar a validade do lançamento lastreado em arbitramento importa no reexame de provas, o que é vedado na instância especial, nos termos da Súmula 7/STJ. Precedentes do STJ: AgRg no REsp 1.509.100/SC, ministro Herman Benjamin, 2ª turma, DJe 21/5/2015; REsp 1.201.723/RJ, rel. ministro Mauro Campbell Marques, 2ª turma, DJe 6/10/2010; REsp 1.090.337/SP, rel. ministra Eliana Calmon, 2ª turma, DJe 4/6/2009. 3. Acrescente-se que a apuração do valor da base de cálculo do imposto pode ser feita por arbitramento nos termos do art.148 do CTN quando for certa a ocorrência do fato imponível e a declaração do contribuinte não mereça fé, em relação ao valor ou preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos registrados. Nesse caso, a Fazenda Pública fica autorizada a proceder ao arbitramento mediante processo administrativo-fiscal regular, assegurados o contraditório e a ampla defesa. 4. Dessume-se que o acórdão recorrido está em sintonia com o atual entendimento deste Tribunal Superior, razão pela qual não merece prosperar a irresignação. Incide, in casu, o princípio estabelecido na súmula 83/STJ: "Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida". Cumpre ressaltar que a referida orientação é aplicável também aos recursos interpostos pela alínea "a" do inciso III do art. 105 da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido: REsp 1.186.889/DF, 2ª turma, relator ministro Castro Meira, DJe de 2/6/2010. 5. Recurso especial não conhecido." O entendimento acima vem seguido pelo STJ de longa data, veja-se o RMS 18.677, julgado em 19/4/2005, contendo a seguinte ementa: "TRIBUTÁRIO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ICMS. BASE DE CÁLCULO. PAUTA FISCAL. ILEGALIDADE. 1. Segundo orientação pacificada neste Corte, é indevida a cobrança do ICMS com base em regime de pauta fiscal. Precedentes. 2. O art. 148 do CTN somente pode ser invocado para a determinação da base de cálculo do tributo quando, certa a ocorrência do fato imponível, o valor ou preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos registrados pelo contribuinte não mereçam fé, ficando a Fazenda Pública, nesse caso, autorizada a proceder ao arbitramento mediante processo administrativo-fiscal regular, assegurados o contraditório e a ampla defesa. 3. Ao final do procedimento previsto no art. 148 do CTN, nada impede que a administração fazendária conclua pela veracidade dos documentos fiscais do contribuinte e adote os valores ali consignados como base de cálculo para a incidência do tributo. Do contrário, caso se entenda pela inidoneidade dos documentos, a autoridade fiscal irá arbitrar, com base em parâmetros fixados na legislação tributária, o valor a ser considerado para efeito de tributação." No mesmo sentido podem ainda ser mencionados o REsp 1.790.898, REsp 1.696.942, e AgRg 1.509.100. No TJ/SP, as três Câmaras de Direito Público especializadas em tributos municipais (14ª, 15ª e 18ª), em inúmeras decisões, também sufragam o mesmo entendimento, como na apelação cível 1007668-11.2021.8.26.0053, da 15ª Câmara: "TRIBUTÁRIO APELAÇÃO AÇÃO ORDINÁRIA ISS MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. Sentença que julgou procedente a ação. Apelo do município. ARBITRAMENTO DA BASE DE CÁLCULO. Medida excepcional, cabível apenas quando as declarações do sujeito passivo forem omissas ou não merecerem fé Inteligência do artigo 148 do Código Tributário Nacional Doutrina Precedentes do C. STJ e deste E. TJ. PAUTA FISCAL Meio cabível de apuração de eventuais inconsistências e omissões nas declarações e documentos apresentados pelo contribuinte, ante a possibilidade de arbitramento prevista no art. 148 do CTN precedentes deste E. TJ. No caso, o município alega que procedeu ao arbitramento da base de cálculo do ISS de acordo com a pauta fiscal em razão da dificuldade técnica de se fiscalizar a construção de um empreendimento de grande porte (fls. 3.114/3.115). Impossibilidade. Hipótese que não encontra amparo no art. 148 do CTN - Inexistência de omissão ou indício de falsidade nos documentos fornecidos e nas declarações prestadas pelo sujeito passivo Regularidade das notas fiscais emitidas e da contabilidade da autora atestada por perícia (fls. 3.275/3.276). Descabida a utilização dos valores fictícios previstos na pauta mínima. Lançamento anulado. HONORÁRIOS RECURSAIS Majoração nos termos do art. 85, §11 do CPC POSSIBILIDADE observância ao disposto nos §§ 2º a 6º do art. 85, bem como aos limites estabelecidos nos §§ 2º e 3º do respectivo artigo. Majoração da verba honorária em 1% do valor atualizado da causa. Sentença mantida Recurso desprovido." Da 14ª Câmara, pode ser invocada a apelação cível 1026982-69.2023.8.26.0053, com a seguinte ementa: "AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL. São Paulo. ISSQN. Sentença de procedência, para declarar a inexigibilidade do tributo descrito na inicial. Irresignação da Municipalidade ré. Descabimento. Lançamento complementar de ISSQN tendo como base de cálculo valores estabelecidos em pauta fiscal. Hipótese em que não restou demonstrada, mediante processo administrativo, omissão ou ausência de credibilidade na prestação de informações pelo responsável tributário. Inadmissibilidade, portanto, do arbitramento em tela. Inteligência do art. 148 do CTN. Precedentes. Inexigibilidade do tributo em exame bem reconhecida. Sentença mantida. Aplicação do art. 252 do RITJSP. Majoração dos honorários advocatícios de sucumbência em 1%, nos termos do §11 do art.85 do CPC. Recurso não provido." Quanto à 18ª Câmara, segue o exemplo da apelação cível 1013923-24.2017.8.26.0053: "APELAÇÃO município de São Paulo ISS Adoção da pauta fiscal para fins de lançamento do tributo Hipótese excepcional (art. 148 do CTN) Perícia contábil que atesta a idoneidade das informações prestadas pelo contribuinte e a efetiva adoção da pauta fiscal pelo Município Manutenção da sentença quanto à nulidade do lançamento. Reforma da sentença apenas para determinar o cálculo dos honorários de forma escalonada. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO." Do exposto, depreende-se que se encontra-se plenamente consolidada a jurisprudência perante o STJ, bem como perante o TJ/SP, que o arbitramento somente pode ser utilizado quando não merecerem fé as declarações do contribuinte, sendo a esse também garantido o contraditório e ampla defesa. 4. Fé pública do notário e do oficial de registro. Os notários e os oficiais de registro, no exercício de suas funções, são dotados de fé pública nos termos do art. 3º, da lei 8.935, de 18/11/1994: "Art. 3º Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro." Em conformidade com o texto legal, as certidões emitidas pelos notários e registradores com respeito aos atos por ele praticados no exercício de suas funções são dotadas de fé pública, ou seja, presumem-se verdadeiras até prova em contrário. Diante da prerrogativa legal, os notários e os oficiais de registro podem muito bem emitirem certidões em que sejam relacionados tudo o que foi recebido dos usuários determinado período, com discriminação do dia, nºs do RPS ou NF, as parcelas destinadas ao notário/oficial, ao Estado, à Secretaria da Fazenda, ao TJ/SP, ao Registro Civil, às Santas Casas e ao município. Uma vez emitida a certidão com a discriminação minuciosa de todos os valores recebidos em cada RPS ou NF emitidos, com as parcelas especificadas para cada destinatário, esse documento presume-se verdadeiro diante da fé pública legal do emitente, não podendo ser refutado pela autoridade tributária enquanto não for demonstrada a falsidade das declarações contidas na certidão. Negar a veracidade das declarações contidas em certidão seria a mesma coisa que se alegar ser falso documento, uma acusação de ter o notário ou o oficial de registro praticado o crime de falsificação de documento público (art. 297 do Código Penal), ficando o acusador, em não comprovando a falsificação, sujeito às penas do crime de calúnia (art. 138 do CP). 5. Exercício do contraditório e da ampla defesa. É fato raro o fisco municipal iniciar um procedimento prévio de arbitramento, na grande maioria das vezes o fisco inicia sua ação com a lavratura do auto de infração e imposição de multa em que o valor dos serviços já se encontra arbitrado (ex. 62,5% dos valores declarados ao CNJ). Qualquer que seja o procedimento, é prerrogativa do sujeito passivo apresentar a sua defesa. Como alegações de defesa, o primeiro ponto a ser apontado seria quanto à inocorrência de qualquer dos fatos previstos no art. 148 e 149 do CTN que pudessem justificar o lançamento feito por arbitramento, o segundo ponto seria a impugnação do valor da base de cálculo atribuída, podendo ser juntada como prova a certidão dos atos praticados tratado anteriormente no item 4 ou laudo contábil demonstrando os valores reais dos atos praticados. Em caso de ser juntada a certidão dos atos praticados, a autoridade tributária terá que adentrar no mérito da autenticidade das declarações contidas na certidão para poder afastar os valores declarados para substituir pelos 62,5% arbitrado. 6. Equívoco na adoção dos 62,5% declarados ao CNJ como base de cálculo do arbitramento. É frequente o equívoco em se assumir, a priori, que os emolumentos destinados ao tabelião ou oficial sejam no importe de 62,5% referido no art. 19 da lei estadual 11.331/02, percentual estabelecido quando da publicação da primeira versão da tabela de emolumentos. A causa do equívoco é que não se levou em consideração os demais dispositivos constantes da própria lei e nem as modificações legislativas posteriores. A lei estadual 11.331/02 em sua redação original publicada no DOE de 27/12/2002, estabelecia: Art. 19 - Os emolumentos correspondem aos custos dos serviços notariais e de registro na seguinte conformidade: I - relativamente aos atos de Notas, de Registro de Imóveis, de Registro de Títulos e Documentos e Registro Civil das Pessoas Jurídicas e de Protesto de Títulos e Outros Documentos de Dívidas: a) 62,5% (sessenta e dois inteiros e meio por cento) são receitas dos notários e registradores; b) 17,763160% (dezessete inteiros, setecentos e sessenta e três mil, cento e sessenta centésimos e milésimos percentuais) são receita do Estado, em decorrência do processamento da arrecadação e respectiva fiscalização; c) 13,157894% (treze inteiros, cento e cinqüenta e sete mil, oitocentos e noventa e quatro centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado; d) 3,289473% (três inteiros, duzentos e oitenta e nove mil, quatrocentos e setenta e três centésimos de milésimos percentuais) são destinados à compensação dos atos gratuitos do registro civil das pessoas naturais e à complementação da receita mínima das serventias deficitárias; e) 3,289473% (três inteiros, duzentos e oitenta e nove mil, quatrocentos e setenta e três centésimos de milésimos percentuais) são destinados ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça, em decorrência da fiscalização dos serviços; II - relativamente aos atos privativos do Registro Civil das Pessoas Naturais: a) 83,3333% (oitenta e três inteiros, três mil e trezentos e trinta e três centésimos de milésimos percentuais) são receitas dos oficiais registradores; b) 16,6667% (dezesseis inteiros, seis mil seiscentos e sessenta e sete centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado." Esse mesmo diploma ainda estabeleceu em seu art. 42: "Art. 42. Passa a vigorar com a seguinte redação o art. 5º da lei 11.021, de 28 de dezembro de 2001: "Art. 5º Os valores devidos em virtude desta lei constarão das tabelas previstas na lei 4476, de 20 de dezembro de 1984, e alterações posteriores que a venham substituir (NR)"" . O objetivo do art. 42 foi o de reafirmar a vigência da lei estadual 11.021/01, que dispôs: "Art. 2º Em todos os atos extrajudiciais, excetuados os previstos no § 1º do artigo 1º da lei federal 6.015, de 31 de dezembro de 1973, será cobrada uma contribuição de solidariedade às Santas Casas de Misericórdia, estabelecidas no Estado de São Paulo, cujo valor será igual à 1% (um por cento) dos emolumentos devidos ao Escrivão." Verifica-se que, desde a publicação da lei 11.331/02, os percentuais estabelecidos não correspondiam ao que de fato eram cobrados dos usuários em razão do acréscimo de 1% destinado às Santas Casas para atos de notas e protesto. Atente-se ao fato de que os percentuais estabelecidos no art. 19 não se aplicam a todos os casos, visto que essa mesma lei já previa casos de isenção em seu art. 8º: "Art. 8° A União, os Estados, o Distrito Federal, os municípios, e as respectivas autarquias, são isentos do pagamento das parcelas dos emolumentos destinadas ao Estado, à Carteira de Previdência das Serventias não Oficializadas da Justiça do Estado, ao custeio dos atos gratuitos de registro civil e ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça. Parágrafo único - O Estado de São Paulo e suas respectivas autarquias são isentos do pagamento de emolumentos." Pela promulgação da lei estadual 15.600, de 11/12/2014, houve importante modificação que impactou o montante pago pelos usuários: "Art. 1º O art. 19 da lei 11.331, de 26 de dezembro de 2002, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo: "Art. 19 (...). Parágrafo único. São considerados emolumentos, e compõe o custo total dos serviços notariais e de registro, além das parcelas previstas neste artigo, a parcela dos valores tributários incidentes, instituídos pela lei do município da sede da serventia, por força de lei complementar federal ou estadual." Houve, com isso, nova alteração dos percentuais porque ficou acrescido aos emolumentos o valor correspondente ao ISSQN incidente sobre a prestação dos serviços notariais e registrais. As alterações dos percentuais não ficaram por aí, com a promulgação da lei estadual 15.855/15, dos 13,157894% originais da Carteira de Previdência foram retirados 4%, sendo 1% acrescido ao valor destinado ao Tribunal de Justiça e 3%, como repasse novo, ao Ministério Público: "Art. 3º Os dispositivos adiante mencionados da lei 11.331, de 26 de dezembro de 2002, ficam assim alterados: ... II - as alíneas "c" e "e" do inciso I do artigo 19 passam a vigorar com nova redação, e é acrescentada a esse inciso a alínea "f", na seguinte conformidade: "Art. 19 ... I - ... c) 9,157894% (nove inteiros, cento e cinquenta e sete mil, oitocentos e noventa e quatro centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Carteira de Previdência das Serventias Não Oficializadas da Justiça do Estado; ... e) 4,289473% (quatro inteiros, duzentos e oitenta e nove mil, quatrocentos e setenta e três centésimos de milésimos percentuais) são destinados ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça, em decorrência da fiscalização dos serviços; f) 3% (três por cento) são destinados ao Fundo Especial de Despesa do Ministério Público do Estado de São Paulo, em decorrência da fiscalização dos serviços; (NR)" Para compensar o que havia sido destinado ao Ministério Público, o legislador decidiu criar uma outra verba adicional, fora dos totais já previstos, estabelecendo um acréscimo como compensação. Como os 3% retirados equivaliam, aritmeticamente, a 4,8% dos emolumentos do titular (4,8% de 62,5% = 3%), a lei estadual 16.346, de 29/12/2016, estabeleceu: "Art. 1º Os dispositivos adiante indicados da lei 11.331, de 26 de dezembro de 2002, passam a vigorar com a seguinte redação: II - o parágrafo único do artigo 19: "Art. 19. ... Parágrafo único. São considerados emolumentos, e compõem o custo total dos serviços notariais e de registro, além das parcelas previstas neste artigo: 2 - a parcela destinada à Carteira de Previdência das Serventias Notariais e de Registro - Carteira das Serventias em montante correspondente a 4,8% (quatro inteiros e oito décimos percentuais) sobre o valor da parcela prevista na alínea "a" do inciso I deste artigo." (NR)" O adicional de 4,8% destinado à Carteira de Previdência não foi criado para fazer parte dos percentuais originais da tabela, mas como um item a ser acrescentado ao total pago pelos usuários, juntamente com o 1% destinado às Santas Casas e o percentual correspondente ao ISSQN. Com a extinção do IPESP pela lei Estadual 16.877, de 19/12/2018, os valores destinados à Carteira de Previdência das Serventias Notariais e de Registro foram destinados à Secretaria da Fazenda: "Art. 11. Os dispositivos adiante indicados do artigo 19 da Lei nº 11.331, de 26 de dezembro de 2002, passam a vigorar com a seguinte redação: I - a alínea "c" do inciso I: "c) 9,157894% (nove inteiros, cento e cinquenta e sete mil, oitocentos e noventa e quatro centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Secretaria da Fazenda;" (NR) II - a alínea "b" do inciso II: "b) 16,6667% (dezesseis inteiros, seis mil seiscentos e sessenta e sete centésimos de milésimos percentuais) são contribuição à Secretaria da Fazenda;" (NR) III - o item 2 do parágrafo único: "2 - a parcela destinada à Secretaria da Fazenda em montante correspondente a 4,8% (quatro inteiros e oito décimos percentuais) sobre o valor da parcela prevista na alínea "a" do inciso I deste art.." (NR)" Fora os casos já citados de alteração dos percentuais pela própria lei estadual, há que ser ainda levadas em conta as normas gerais para a fixação dos emolumentos de que tratou o § 2º do art. 236 da Constituição Federal: "§ 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro." As normas gerais sobre os emolumentos foram especificadas na lei federal 10.169, de 29/12/2000, sendo relevante aqui ser trazido o texto de seu art. 2º, § 2º, que foi incluído pela lei federal 13.986, de 7/4/2020, que dispôs: "§ 2º Os emolumentos devidos pela constituição de direitos reais de garantia mobiliária ou imobiliária destinados ao crédito rural não poderão exceder o menor dos seguintes valores: I - 0,3% (zero vírgula três por cento) do valor do crédito concedido, incluída a taxa de fiscalização judicial, limitada a 5% (cinco por cento) do valor pago pelo usuário, vedados quaisquer outros acréscimos a título de taxas, custas e contribuições para o Estado ou Distrito Federal, carteira de previdência ou para associação de classe, criados ou que venham a ser criados sob qualquer título ou denominação;" Do exposto fica evidenciado que o imposte de 62,5% previsto no art. 19, I, a, da lei estadual 11.331/02 não corresponde exatamente à parcela destinada ao notário/registrador em razão dos dispositivos outros da lei que foram posteriormente alterados criando parcelas adicionais, sem contar ainda com a isenção concedida aos municípios e da limitação na cobrança nos casos dos registros dos títulos referentes ao crédito rural. 7. Conclusões. A regra geral para o lançamento do ISS são as declarações prestadas pelo contribuinte por meio das notas fiscais por ele emitidas ou pelas remessas ao Fisco dos Recibos Provisórios de Serviço, a não aceitação das declarações e documentos fiscais deve ser precedida de regular procedimento administrativo, garantido o contraditório e ampla defesa, quando ficar caracterizada a omissão ou não merecimento de fé das declarações ou esclarecimentos prestados (art. 148 do CTN). O arbitramento é ato decorrente do procedimento administrativo de reconhecimento da inidoneidade das declarações e documentação fiscal, não podendo ser feito de ofício pelo Fisco. O notário e o registrador, diferentemente dos demais contribuintes, são dotados de fé pública e podem emitir certidão relacionando todos os atos praticados e valores recebidos como emolumentos. A fé pública da certidão somente pode ser afastada provando-se a sua falsidade, negar a sua validade seria a mesma coisa da alegação falsificação de documento público, ficando o acusador sujeito às penas do crime de calúnia. Em razão das diversas alterações legislativas supervenientes, o percentual de 62,5% do montante recebido não reflete a parcela dos emolumentos destinada aos notários e registradores.
1. Introdução A desjudicialização de procedimentos judiciais vem ganhando destaque no ordenamento jurídico brasileiro como meio de conferir celeridade e eficiência à tutela de direitos. No final de 2023, esse movimento ganhou mais um capítulo por meio do chamado marco legal das garantias (lei 14.711, de 30/10/23), que alterou o decreto-lei 911/1969, incluindo os arts. 8º-B a 8º-E, com o fito de viabilizar que o procedimento de consolidação e busca e apreensão de veículos e de bens móveis em geral por meio dos cartórios de registro de títulos e documentos. Desde que haja previsão expressa em contrato e observância de certas etapas como a notificação, para oportunizar a quitação pelo devedor, o judiciário não precisa mais ser única porta disponível ao credor fiduciário para fazer com que o bem ofertado como garantia a um crédito inadimplido seja utilizado para esse fim que lhe é próprio, reduzindo os riscos das operações de crédito no Brasil. Esse novo regime normativo insere-se no contexto mais amplo de modernização das cobranças de dívidas, buscando reduzir a morosidade judicial e o custo do crédito, alinhando à já citada tendência de desjudicialização de procedimentos tradicionais, como exitosamente já visto nas experiências do inventário extrajudicial; do divórcio extrajudicial e da consolidação extrajudicial da propriedade imobiliária, por exemplo. Metodologicamente, o presente artigo adota um enfoque dedutivo, partindo de premissas constitucionais para avaliar a compatibilidade da inovação legal com a Carta de 1988. Inicialmente, delimita-se como problema jurídico a seguinte indagação: é constitucional arbitragem regulatória que permite a busca e apreensão extrajudicial de veículos executada pelos cartórios de Registro de Títulos e Documentos, sob supervisão do Judiciário/CNJ e, em paralelo, por empresas privadas credenciadas no ecossistema dos Detrans, através do regime da resolução Contran 1.018/2025? Para responder a essa indagação, o trabalho estrutura-se em três eixos analíticos principais. Primeiro, procede-se a uma análise constitucional da matéria, examinando a jurisprudência pertinente, em especial os votos dos ministros Dias Toffoli e Flávio Dino nas ADIns 7.600, 7.601 e 7.608. Na seção seguinte abordar-se-á o conflito regulatório instaurado pelas normas infralegais: de um lado, o provimento CNJ 196/25, que regulamenta a execução extrajudicial nos cartórios de registro; de outro, a resolução Contran 1.018/25, que disciplina procedimento análogo via Detrans. Nessa parte, analisar-se-á a regularidade de coexistência de estruturas regulatórias concorrentes para a uma mesma finalidade, sustentando padrões de controle diferentes. Por fim, no terceiro segmento explora-se o fenômeno do forum shopping e da arbitragem regulatória, fazendo uso desses conceitos para análise do fenômeno ora estudado. Assim, a partir da lente destes dois instrumentos, em conjunto com análise Econômica do Direito e da teoria regulatória, avaliar-se-á se a abertura de uma via privada paralela à registral gera incentivos disfuncionais e compromete valores fundamentais de nosso ordenamento jurídico. 2. Análise constitucional: Desjudicialização, controle público e os votos nas ADIns 7.600/DF, 7.601/DF e 7.608/DF 2.1 A posição do ministro Dias Toffoli A execução extrajudicial de garantias no Brasil não é propriamente novidade. Desde o decreto-lei 70/1966 (execução extrajudicial de créditos hipotecários) até a lei 9.514/1997 (consolidação extrajudicial de propriedade fiduciária de imóveis), admite-se que determinados bens dados em garantia sejam retomados sem intervenção judicial direta. O STF firmou jurisprudência no sentido de que tais procedimentos são compatíveis com a Constituição, desde que não eliminem o acesso ao Judiciário nem as garantias mínimas de defesa. Nesse sentido, vale conferir o RE 627.106/DF, no qual o STF declarou recepcionado o decreto-lei 70/1966 e, bem assim, o RE 860.631/SP (Tema 982 de repercussão geral), em que o foi reconhecida a constitucionalidade da execução extrajudicial de imóveis pela lei 9.514/1997, firmando-se a seguinte tese: "É constitucional o procedimento da lei 9.514/1997 para a execução extrajudicial da cláusula de alienação fiduciária em garantia, haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na Constituição Federal". No julgamento conjunto das ADIns 7.600, 7.601 e 7.608, que impugnaram diversos dispositivos da lei 14.711/23, o STF novamente analisou a validade de um procedimento de execução extrajudicial, mas desta feita incidente sobre bens móveis. Nessa senda, discutiu-se na referida ADIn o novel procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis, de modo que o ministro Dias Toffoli, Relator, votou pela constitucionalidade da essência do marco legal das garantias, sustentando que a mera possibilidade de execução extrajudicial não contraria, por si, os direitos fundamentais do devedor. Ainda segundo o relator:  "[B]em compreendido o procedimento instituído no art. 8º-B, nota-se que não prosperam as alegações dos autores. Esse procedimento se desenvolve perante oficial registrador, autoridade imparcial cujos atos estarão sempre sujeitos a controle judicial - possibilidade decorrente diretamente da Constituição de 1988 e que está explicitada no § 11 do art. 8º-C do decreto-lei 911/1969, inserido pela lei 14.711/23, segundo o qual "o procedimento extrajudicial não impedirá o uso do processo judicial pelo devedor fiduciante". (Grifo nosso) Essa posição reflete a já mencionada jurisprudência da Corte, que admite a desjudicialização desde que o ordenamento forneça um trilho institucional adequado para substituir a tutela jurisdicional, mantendo o contraditório e a possibilidade de revisão judicial. No voto do ministro Toffoli, embora não haja menção explícita ao art. 8º-E, delineou-se a premissa de que tais medidas executivas devem ocorrer sob supervisão de agentes públicos dotados de fé pública e responsabilidade institucional, à semelhança do modelo de execução extrajudicial já validado para os imóveis. O relator enfatizou que a nova lei não afasta o controle judicial, pois o devedor lesado poderá recorrer ao Judiciário, e que os procedimentos extrajudiciais previstos estão ancorados em garantias fundamentais (privacidade, honra, inviolabilidade de domicílio, proteção de dados pessoais, etc.), cuja observância deve ser assegurada durante a busca e apreensão. Desse modo, denota-se que a constitucionalidade da inovação foi afirmada na medida em que o ambiente extrajudicial reproduz, em alguma medida, a confiança e a imparcialidade esperadas do processo judicial, razão pela qual delimita-se a utilização da estrutura dos cartórios extrajudiciais, regulados pelo Poder Judiciário, como via idônea para essas execuções. Clique aqui e confira a coluna na íntegra.
Fundamentos legais da territorialidade O sistema notarial e registral brasileiro desempenha função essencial para a garantia da cidadania, da segurança jurídica e do desenvolvimento econômico. De acordo com dados do CNJ, existem mais de 12.253 serventias extrajudiciais espalhadas pelos 5.568 municípios brasileiros, responsáveis por milhões de atos anuais e pela geração de mais de 106.021 empregos diretos. A relevância desse sistema é reforçada por iniciativas como o programa "Cartório em Números", da ANOREG/BR - Associação dos Notários e Registradores do Brasil, que evidencia sua eficiência e sua contribuição para a sociedade. A atividade notarial e registral, exercida em caráter privado por delegação do Poder Público (CF/1988, art. 236), tem como fundamento a segurança jurídica e a efetivação de direitos fundamentais. A legislação assegura a gratuidade de diversos atos ligados à cidadania, como registros de nascimento e óbito, expedição de segundas vias de certidões e habilitação para casamento em casos de pobreza. Para garantir a sustentabilidade econômica das serventias, a lei 8.935/1994 previu a possibilidade de cumulação de atribuições, ao mesmo tempo em que fixou regras rígidas de territorialidade, proibindo a prática de atos fora do município para o qual foi conferida a delegação. Além disso, vedou-se expressamente a instalação de sucursais, entendidas como unidades secundárias que reproduziriam, em outro local, as atividades da serventia, o que afrontaria o princípio da territorialidade e geraria concorrência desleal entre delegatários. O Tabelião de Notas exerce uma função pública fundada na confiança tanto do Estado quanto dos particulares que a ele recorrem. Sua escolha é livremente realizada pelas partes, independentemente do domicílio destas ou da localização dos bens que sejam objeto dos atos, fatos ou negócios jurídicos. Tal prerrogativa decorre do art. 8º da lei 8.935/1994, segundo o qual "é livre a escolha do tabelião de notas, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio". Entretanto, essa liberdade de escolha não elimina o limite territorial da delegação conferida pelo Poder Concedente. Com efeito, dispõe o art. 9º da mesma lei que "o tabelião de notas não poderá praticar atos de seu ofício fora do Município para o qual recebeu delegação".  Da conjugação desses dispositivos resulta que, embora o Tabelião possa ser livremente eleito pelas partes, não lhe é permitido praticar atos notariais fora da circunscrição territorial de sua delegação. Dentro de sua área de competência, contudo, pode lavrar atos em qualquer local, desde que conste no instrumento o lugar em que foram praticados, como ocorre nos atos lavrados em diligência. A restrição prevista no art. 9º da lei 8.935/1994 deve ser entendida como limite mínimo. Dentro de sua competência organizacional, os Estados podem estabelecer regras ainda mais restritivas. Exemplo disso é o Rio Grande do Sul, onde a atuação notarial foi limitada ao âmbito distrital: "Os titulares de Serviços Notariais e de Registros, nos distritos, carecerão de fé pública fora dos limites do distrito ou dos indicados no ato delegatório das funções". De todo modo, a concorrência entre notários na busca por clientela e o desrespeito à competência territorial são práticas duramente coibidas pelas Corregedorias-Gerais dos Estados, resultando em inúmeros procedimentos administrativos disciplinares. Assim, é imperativo que a competição entre Tabeliães de Notas se dê de maneira ética e leal, fundamentada na qualificação profissional e na credibilidade institucional, sem recorrer a expedientes típicos de mercado, tais como publicidade individual, redução de emolumentos, campanhas comerciais ou intermediação indevida de serviços, práticas que comprometem a dignidade e o prestígio da atividade notarial e registral Nesse interim o presente artigo busca em análise descritiva investigar, sem intenção de esgotar os caminhos possíveis, de como se desenvolve o processo de deslocamento indevido de representantes municipais ou oficiais cartorários a outros  territórios, especialmente com intuito de identificar os atores desse processo, bem como investigar à luz da bibliografia pertinente os reflexos sociais, econômicos, jurídicos, sobre  capacidade Estatal e Território, sob o prisma do desenvolvimento local municipal. A despeito da importância do setor, a prática reiterada de atos notariais fora da circunscrição delegada tem provocado preocupações de ordem jurídica, econômica e administrativa. Nesse sentido, o CNB - Colégio Notarial do Brasil, secção do Mato Grosso do Sul promoveu à Corregedoria Permanente de Naviraí - MS, através de ofício 9/24 a comunicação de indício de ofensa à competência notarial através de práticas atentatórias a atividade notarial e registral (art. 9º e art. 31, II, ambos da lei Federal 8.935/1994). No referido documento, consta supostos atos de violação de competência notarial pelo Serviço Notarial de Herculândia, no município de IVATÉ-PR, CNS: 08.688-4 O expediente relata que, em consulta à CENSEC - Central Eletrônica de Atos Compartilhados, verificou-se que o Serviço Notarial de Herculândia, localizado no município de Ivaté-PR (CNS: 08.688-4), lavrou diversas escrituras públicas envolvendo como parte o município de Naviraí-MS. Como ainda não houve decisão definitiva sobre o caso, não se pode afirmar com precisão se ocorreu o deslocamento da administração municipal até outra localidade do Paraná para a prática dos atos ou, alternativamente, se foi o próprio tabelião de Herculândia que se deslocou até Naviraí para realizá-los. Diante dessa indefinição, mostra-se necessária a análise das duas hipóteses de forma comparada. Na primeira hipótese, observa-se que o Serviço Notarial de Herculândia, localizado no Estado do Paraná, encontra-se a aproximadamente 132,8 km do município de Naviraí, em Mato Grosso do Sul. Diante disso, surge o questionamento: em respeito ao princípio da supremacia do interesse público, qual seria a justificativa, sob a ótica do desenvolvimento territorial, da capacidade estatal e dos princípios basilares do Direito Público, para que a prefeita municipal realizasse sucessivos deslocamentos entre Naviraí/MS e Ivaté/PR, assumindo custos significativos para os cofres públicos? Além do gasto com tempo e transporte, arcado pelo próprio município de Naviraí/MS, há de se destacar que tais atos também implicam perda de arrecadação tributária local, especialmente do ISSQN, bem como dos repasses vinculados destinados a setores essenciais, tais como o Fundo de Serventias Deficiárias do Estado de Mato Grosso do Sul (Renda Mínima), o FUNADEP (Defensoria Pública), o FUNDPGE (Procuradoria-Geral do Estado) e o FEADMP (Ministério Público), além do ISSQN municipal. O prejuízo, portanto, não recai apenas sobre a serventia notarial local, mas compromete toda a rede institucional de financiamento de políticas públicas estaduais e municipais. Noutro sentido, na hipótese de haver deslocamento indevido de cartorários do município de Herculândia/PR para Naviraí/MS, há caso de flagrante violação de regras de competência legal, ética, improbidade administrativa e violações de direitos civis decorrente de anulabilidade de diversas  escrituras públicas por vício de legalidade, o que impacta significativamente no município de Naviraí - MS e relações econômicas dos titulares de propriedade que se baseiam em documento com insegurança jurídica. O Código de Normas Extrajudiciais do Estado de São Paulo, esclarece a respeito da concorrência notarial, que deve ser pautada pela ética, vejamos: O Tabelião de Notas, ao desenvolver atividade pública identificada pela confiança, tanto do Estado como dos particulares que o procuram, é escolhido livremente pelas partes, independentemente da residência e do domicílio delas e do lugar de situação dos bens objeto dos fatos, atos e negócios jurídicos. A competição entre os Tabeliães de Notas deve ser leal, pautada pelo reconhecimento de seu preparo e de sua capacidade profissional e praticada de forma a não comprometer a dignidade e o prestígio das funções exercidas e das instituições notariais e de registro, sem utilização de publicidade individual, de estratégias mercadológicas de captação de clientela e da intermediação dos serviços e livre de expedientes próprios de uma economia de mercado, como, por exemplo, a redução de emolumentos. Percebe-se a subsunção do disposto no art. 166, inciso VII, do CC, ao art. 9º da lei Federal 8.935/1994, que veda ao tabelião de notas a prática de atos de seu ofício fora dos limites territoriais do município para o qual recebeu delegação. Desse modo, tendo o legislador expressamente proibido a realização de atos notariais além da esfera de competência atribuída, eventual ato lavrado em desconformidade será considerado indevidamente formalizado e, por conseguinte, declarado nulo. O art. 214 da lei de registros públicos determina que as nulidades de pleno direito, quando comprovadas, devem ser reconhecidas de imediato, com a decretação judicial após a oitiva dos envolvidos. O dispositivo também autoriza o juiz a bloquear a matrícula imobiliária, de ofício e a qualquer momento, sempre que a continuidade dos registros puder ocasionar danos de difícil reparação. A jurisprudência tem aplicado esse entendimento de forma rigorosa no contexto dos atos notariais praticados fora da circunscrição territorial. O Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Ceará, ao julgar o recurso administrativo 8500029-21.2019.8.06.0106, reafirmou que a realização de atos em município diverso daquele para o qual foi outorgada a delegação constitui infração legal grave, passível de sanção disciplinar proporcional. No mesmo sentido, o TJ/SP, no julgamento da apelação cível 0004731-30.2015.8.26.0417, declarou a invalidade de escrituras lavradas por tabelião em município estranho à sua competência, destacando a violação ao art. 9º da lei 8.935/1994 e ao art. 215 do CC. Já o TJ/MG, ao analisar o processo 1.0000.00.164519-1/000(1), reconheceu a nulidade de ato de revogação de testamento praticado por tabelião fora da circunscrição, reforçando que a observância territorial é requisito essencial à validade do ato. Esses precedentes convergem para uma diretriz clara: a extrapolação dos limites da delegação notarial compromete não apenas a legalidade, mas também a segurança jurídica e a confiança coletiva na fé pública, razão pela qual deve ser coibida de forma exemplar pelo Poder Judiciário. A nulidade do título se distingue da nulidade do procedimento de registro porque, enquanto aquela impede nova apresentação ao registro, esta admite reapresentação. Por exemplo, quando se comprova a falsidade ideológica, o título não pode ser novamente apresentado. Já no caso de ausência de algum documento comprobatório, por exemplo, é possível apresentar novamente o documento faltante, permitindo o registro. A nulidade absoluta do registro pode ser declarada pela via judicial ou administrativa, ao passo que a nulidade do título exige reconhecimento judicial. Em ambas as hipóteses, a retirada dos efeitos depende de ato formal de cancelamento. Acerca da nulidade e a repercussão social, tem-se entendimento jurisprudencial do  cancelamento de todos os atos subsequentes ao registro anulado. "Determinado judicialmente o cancelamento de um registro todos os demais que nele se fundam não mais subsistem no fólio real. Não há necessidade de que o magistrado determine expressamente o cancelamento de todas inscrições subsequentes ao registro cuja ordem de cancelamento teve objeto. É dizer, cancelado o registro rompido está o elo da corrente filiatória e os registros que nele se originaram tornam-se viciados, não podendo subsistir. O princípio do trato consecutivo permite concluir que por consequência do cancelamento de um ato precedente, os demais que foram praticados com suporte naquele, não mais subsistem" (1a VRPSP, Processo 587655/9/00, Juiz Oscar José Bittencourt Couto, j. 23/10/2000). De qualquer forma a participação dos titulares que possam ter seus interesses prejudicados pelo ato de cancelamento é condição indispensável para que este se realize. Tal exigência decorre da Constituição, pois ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal. Essa participação não precisa ser ativa ou efetiva. Basta, por exemplo, que o réu seja citado para que a decisão judicial produza efeitos em sua esfera jurídica, ainda que a citação tenha ocorrido por edital e ele tenha permanecido revel. Por outro lado, a ausência de citação, em regra, impede que seus direitos sobre o bem sejam suprimidos.  Nesse aspecto a repercussão do presente estudo se amplia, justamente porque esse efeito em cadeia de nulidade de títulos subsequentes, faz nascer a responsabilidade civil objeto de nulidade de atos notariais e registrais que é suportada pelo Estado, conforme entendimento do STF que decidiu no Tema 777, que o Estado responde, objetivamente, pelos danos causados por notários e registradores, conforme ementa: O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa. STF. Plenário. RE 842846/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 27/2/2019 (repercussão geral) (Info 932). Nessa linha, é plenamente defensável a tese de que o tabelião cuja serventia tenha sido prejudicada pelo deslocamento indevido de outro notário ao seu território possa demandar judicialmente a reparação de danos em face do Estado, com fundamento na responsabilidade objetiva reconhecida pelo STF no Tema 777 da repercussão geral. Isso porque, ao permitir ou não coibir a prática ilícita, o ente estatal compromete a arrecadação tributária municipal (ISSQN), fragiliza a sustentabilidade econômico-financeira da delegação e desestrutura a ordem territorial assegurada em lei, transferindo para o titular local o ônus de suportar prejuízos diretos - como a perda de atos que legitimamente lhe competiam - e indiretos, derivados da quebra da confiança social na fé pública notarial. Nessa hipótese, o Estado responde objetivamente pelos danos causados, cabendo o regresso contra o delegatário infrator. Clique aqui para conferir a íntegra da coluna.
Dispõe sobre as diretrizes previstas nos §§ 7º e 8º do art. 440-AX do CNN/CN/CNJ-Extra (incluído pelo Prov. CNJ 195/25 - Provimento do IERI-e), relativas ao deferimento e ao indeferimento do procedimento de retificação de área no registro de imóveis.1 Conforme § 7º do art. 440-AX do Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial: "O deferimento do pedido de retificação de área dependerá do cumprimento dos requisitos legais e do convencimento do oficial de registro de imóveis, na forma da Lei de Registros Públicos e da legislação processual". Aqui a redação deixa claro que não basta a apresentação de documentos que cumpram formalmente com o procedimento, visto que a retificação de área se trata de um processo jurídico e que deve ter sua qualificação formal e material por parte da autoridade registrária. Desse modo, a análise a ser feita pelo registrador não se esgota na verificação das formalidades legais, como, por exemplo, a apresentação de todos os documentos exigidos e a verificação se esses documentos seguem a forma legal (reconhecimento de firma na carta de anuência, memorial descritivo emitido pelo SIGEF, requerimento assinado pelos proprietários etc.). Se fosse só isso o cartório não passaria de um órgão estatal carimbador, chancelando qualquer pedido em razão do cumprimento de um check list. A qualificação formal é importante, mas a qualificação material é o que denota a juridicidade da atuação do profissional do Direito. A qualificação material diz respeito ao conteúdo, à análise de fundo dos fatos jurídicos levados ao registro imobiliário, sendo conditio sine qua non para a execução do ato registral requerido.  Esse juízo valorativo na retificação de área depende do conhecimento da ciência jurídica, a fim de que se possa compreender se é possível realizar a retificação de área de acordo com a integridade do direito, se ela é intra muros ou configura algum tipo de aquisição de parte de imóveis vizinhos, se existe alguma sobreposição com terras públicas, se se exige a certificação da poligonal no INCRA, se os documentos dos vizinhos demonstram que são eles os proprietários ou ocupantes legais, se respeita as divisas existentes etc.  Além disso, também é essencial para a qualificação registral substantiva o conhecimento da práxis cartorial, que decorre exatamente do conhecimento prático de como se configura a circunscrição territorial (que é única para cada cartório de registro de imóveis justamente por esse motivo), evitando sobreposição de área, duplicidade de matrícula, modificação da localização do imóvel etc. Um exemplo pujante desta análise jurídica que implica em qualificação material está na discussão quanto ao aumento ou diminuição da área. Tal situação deve ser analisado caso-a-caso pelo oficial de registro, visto que as diferenças podem ocorrer por conta de haver uma descrição muito precária do imóvel na matrícula ou, ao contrário, pode advir mesmo de uma tentativa de aquisição fraudulenta de área por parte do requerente. A linha aqui muitas vezes é tênue e pode ensejar que o registrador requisite a produção de provas, como laudo técnico, ata notarial ou até mesmo uma vistoria in loco. Conquanto alguns registradores utilizem por analogia o critério de 1/20 (um vigésimo) ou 5% (cinco porcento) como percentual máximo de aumento ou diminuição da área, previsto no regramento da compra e venda ad corpus (art. 500, § 1º, do CC),2 não nos parece que esse critério seja válido, visto que sua aplicação se dá por meio de uma analogia in malam partem, que prejudica o usuário do serviço. Outrossim, o emprego deste critério está em desacordo com a própria finalidade do procedimento de retificação de área, que é definir a descrição física real (ou factual) do imóvel, ou seja, aquilo que existe de forma exata, verdadeira, concreta, constatada em campo.  Em áreas rurais é perfeitamente possível que as antigas descrições dos imóveis - feitas com marcação em léguas, braças, alqueires paulistas, baianos, goianos ou mineiros, dentre tantos outros, mediante uso de corda, de teodolito, ou de um cavalo que marche ao passo até o fumo se acabar3 - possa ser, sim, superior a esse tamanho. De outro lado, o § 8º do multicitado art. 440-AX do Código Nacional de Normas prevê que: Art. 440-AX. [...] § 8º. Em caso de indeferimento, deverá ser expedida nota devolutiva fundamentada na qual o oficial de registro de imóveis indicará as razões da formação de seu convencimento e, sempre que possível, informará os meios de o requerente cumprir as exigências legais, podendo requisitar a apresentação de declarações, laudos, arquivos eletrônicos ou outros documentos complementares, especialmente, como meios de prova e de análise da conformidade dos trabalhos técnicos. A primeira parte do dispositivo possui redação semelhante àquela constante do art. 371 do CPC.4 Essa inspiração não é por acaso - ao contrário, é proposital -, visto que o registrador é o "juiz do caso", atuando na esfera extrajudicial, e sua qualificação registral, como vimos, no âmbito destes procedimentos especiais, depende da comprovação dos fatos alegados pelo requerente.  Não há aqui uma menor exigência de conhecimento técnico-jurídico por parte do registrador do que aquele conhecimento esperado do magistrado na análise de uma ação demarcatória. Pelo contrário, sendo do metiér do registrador de imóveis a análise do direito de propriedade em sentido amplo, é de se esperar justamente um maior rigor técnico e uma análise jurídica ainda mais especializada. Com efeito, o convencimento do registrador na seara extrajudicial - assim como ocorre com o juiz na esfera judicial - é ponto nodal para o deferimento ou o indeferimento dos pedidos levados a registro. Aplica-se aqui, além do disposto para o procedimento especial de retificação de área, as normas do processo civil.  Importante destacar a atividade colaborativa exigida do registrador na sua atuação como autoridade registrária. Sempre que possível, o registrador "informará os meios de o requerente cumprir as exigências legais", motivo pelo qual a nota devolutiva não apenas deve constar as exigências, como também fundamentar juridicamente elas, apontando a base legal, e, sempre que possível, apontar o caminho para a solução das exigências pelo requerente. _______________________ 1 Este é o sexto artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/2025, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis. 2 Art. 500. [...] § 1º. Presume-se que a referência às dimensões foi simplesmente enunciativa, quando a diferença encontrada não exceder de um vigésimo da área total enunciada, ressalvado ao comprador o direito de provar que, em tais circunstâncias, não teria realizado o negócio. 3 De acordo com famosa citação literária de Ulisses Lins de Albuquerque, no final do século XIX e início do século XX media-se a terra assim: "O medidor enchia o seu cachimbo, acendia-o e montava no cavalo, deixando que o animal marchasse ao passo; quando o cachimbo se acabava, acabado o fumo, marcava uma légua" (ALBUQUERQUE, Ulysses Lins de. Um sertanejo e o sertão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957). 4 Art. 371, CPC. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.
Introdução "A própria arquitetura da casa-grande expressaria o modo de organização social e política do Brasil, o patriarcalismo... os senhores de engenho dominavam a terra, os escravos... parentes... filhos... esposa... amantes...".1 A imagem descrita por Gilberto Freyre remete a um Brasil marcado pela concentração fundiária, em que a posse da terra era sinônimo de poder e de estrutura social. Décadas depois, já sob o contexto da reforma agrária dos anos 70, a fração mínima de parcelamento (FMP) foi instituída como mecanismo jurídico com a pretensão de evitar a pulverização das glebas e assegurar viabilidade econômica mínima às propriedades rurais. No entanto, se a FMP nasceu sob o signo de um modelo agrário que via no latifúndio e na grande extensão a única forma de produtividade, hoje esse pressuposto se mostra cada vez mais questionável. Estudos recentes demonstram que minifúndios, quando manejados com técnicas intensivas e diversificação, podem alcançar alta produtividade por hectare, invertendo a lógica que justificava a regra. Nesse cenário, a FMP, antes pensada como instrumento de racionalização fundiária, transforma-se em verdadeiro entrave à regularização e à dinamização do espaço rural, especialmente em situações específicas como a estremação de imóveis. A estremação, por sua vez, é instrumento de regularização fundiária que permite a dissolução parcial de um condomínio geral pro diviso, desde que cumpridos alguns requisitos. Trata-se de instrumento que não cria um imóvel, apenas reconhece juridicamente uma realidade fática pré-existente e permite sua regularização. É justamente neste ponto que surge a controvérsia central: como compatibilizar a estremação de imóveis rurais com a regra da fração mínima de parcelamento? A indagação ganha relevo quando se está diante de áreas inferiores à FMP, nas quais a aplicação literal da norma pode inviabilizar a regularização, perpetuando a situação de irregularidade fundiária. É neste ponto que esse artigo assume uma dupla tarefa: (i) apresentar exceções legais à aplicação da FMP no contexto da estremação; (ii) questionar, à luz da realidade contemporânea, a própria pertinência da regra da FMP como instrumento jurídico. Trata-se de um artigo, ao mesmo tempo, prático e crítico. Leia a coluna na íntegra. _______ 1 Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre.
Trata sobre o regramento acerca da realização da retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação no registro de imóveis, conforme art. 440-AX, §§ 4º a 6º, do CNN/CN/CNJ-Extra (incluído pelo Prov. CNJ 195/25 - Provimento do IERI-e).1 Sobre a temática retificação de área e desmembramento ou unificação, houve salutar normatização pelo provimento do IERI-e, simplificando questões acerca de certificação da poligonal no INCRA, exigindo-se, porém, o respeito do princípio da continuidade registral. Art. 440-AX. [...] § 4º. Havendo necessidade de retificação da área global do imóvel rural e tendo o requerente apresentado pedido concomitante de desmembramento, cujas poligonais desmembradas estejam georreferenciadas e certificadas no Incra, deverá o oficial, nesta ordem:  I - realizar a averbação de retificação administrativa da área global; e  II - posteriormente, realizar averbação de desmembramento, com posterior averbação de encerramento da matrícula anterior, abrindo tantas matrículas quantas forem as parcelas desmembradas.  § 5º. Na hipótese do § 4º deste artigo, é dispensada a certificação pelo Incra da área global objeto do memorial descritivo (art. 176, § 5º, da Lei n. 6.015/1973), desde que as parcelas desmembradas tenham sido certificadas pelo Incra e correspondam integralmente ao somatório da área global, conforme mapa e memorial descritivo elaborados por profissional técnico habilitado, caso em que os prazos de eficácia da prenotação em relação ao desmembramento ficarão suspensos enquanto o procedimento de retificação extrajudicial estiver em curso.  § 6º. Aplica-se à unificação ou fusão de imóveis, no que couber, a regra procedimental prevista nos §§ 4.º e 5.º deste artigo. Quando o requerente tem por finalidade realizar o desmembramento do seu imóvel, mas para que isso seja feito há a necessidade de previamente fazer a retificação da área original, deve-se tomar em conta a marcha procedimental seguinte: (i) o registro de imóveis fará dois protocolos (um para a retificação e demais averbações de saneamento eventualmente necessárias, se for o caso; e outro para o desmembramento); (ii) realizada a retificação de área e outras averbações, finaliza-se o primeiro protocolo; (iii) ato contínuo, começa a correr o prazo do segundo protocolo, relacionado com o pedido de desmembramento, o qual estava sobrestado, realizando-se, então, nesta ordem, a averbação de desmembramento, a averbação de encerramento da matrícula e a abertura das matrículas referentes a cada um dos imóveis decorrentes do desmembramento. Orienta-se que, nestes casos, não se encerre e abra uma matrícula após a retificação de área, a fim de não criar uma "matrícula natimorta", aberta tão somente para ser logo em seguida encerrada por conta dos desmembramentos.2 Além disso, conquanto o ato normativo preveja a criação de duas prenotações separadas (uma para a retificação e outra para os desmembramentos), é de bom alvitre que o registrador de imóveis faça os atos de modo continuado, entregando conjuntamente os atos praticados ao requerente, visto que o pedido principal deste é justamente ver seu imóvel desmembrado. Assim, será possível a realização de atos registrais mais céleres, com menor burocracia e atendendo a manifestação de vontade do usuário do serviço. A desburocratização e a padronização do procedimento podem ser percebidas pelo disposto no § 5º do art. 440-AX, que somente exige a certificação da poligonal no SIGEF/INCRA do resultado final pretendido pelo requerente, sem a necessidade de que o agrimensor realize primeiro a certificação da área global, depois cancele essa certificação e, só então, faça a certificação da poligonal no INCRA das áreas desmembradas. Tal itinerário na plataforma do INCRA, no mais das vezes, acabava por levar bastante tempo, o que agora deixa de ser um problema com o procedimento normatizado. Isso porque a única certificação da poligonal exigida pelo registro de imóveis será aquela decorrente do desfecho do pedido do requerente, ou seja, o desmembramento do imóvel. Na prática, o profissional técnico emitirá uma planta e um memorial descritivo externos à plataforma do SIGEF para a realização da retificação de área e, por outro lado, expedirá plantas e memoriais descritivos produzidos dentro da plataforma SIGEF, em relação aos desmembramentos. Neste sentido, por exemplo, se um imóvel cuja área corresponde a 500 hectares (ha) vai ser desmembrado em três parcelas (três novos imóveis), deve ser realizada a prévia retificação de área deste imóvel, sendo que a soma dos imóveis individuais deverá corresponder à área somada do imóvel que lhes deu origem. Assim, em uma situação hipotética, se o imóvel W tem 500 ha (imóvel originário), seria possível desmembrar as parcelas em imóvel X com 100 ha; imóvel Y, 200 ha; e imóvel Z, 200 ha (imóveis desmembrados). Diante desta situação, bastaria que o requerente apresentasse a planta e o memorial descritivo da respectiva retificação de área produzidos diretamente pelo profissional técnico, sem a certificação da poligonal no SIGEF/INCRA, no que tange ao imóvel original (W); bem como as plantas e os memoriais descritivos certificados no SIGEF/INCRA dos imóveis objeto do parcelamento (X, Y e Z).  No caso de imóveis rurais a serem certificados no SIGEF, conquanto haja dois protocolos para fins de contagem dos prazos procedimentais no registro de imóveis (um para retificação de área e outro para o desmembramento, aplicando-se sucessivamente os prazos do art. 188 e 205 da LRP), para fins de emissão de nota devolutiva devem ser considerados como se fossem um único protocolo (fazendo constar da nota a numeração de ambas as prenotações). O motivo? Caso a retificação de área (primeiro protocolo) seja deferida e existam exigências legais a serem cumpridas para a realização do desmembramento (segundo protocolo), sendo lavrados os atos registrais de retificação e não vindo o requerente a conseguir cumprir as exigências de desmembramento, o registrador ficaria com uma matrícula com descrição do imóvel georreferenciado sem a certificação da poligonal no SIGEF/INCRA, em desrespeito ao disposto na legislação. Por esse motivo, a qualificação registral dos protocolos, neste caso específico, deve ser feita conjuntamente, visto que o cumprimento do requisito de certificação da poligonal no Incra somente ocorre se ambos os procedimentos forem deferidos e, por conseguinte, todos os atos registrais forem realizados. O § 6º, por fim, estende a aplicação das regras procedimentais também para a unificação, fusão ou remembramento de imóveis. Em outras palavras, se o requerente tem por finalidade realizar a unificação de seus imóveis, mas precisa previamente fazer a retificação de área de todos ou alguns dos imóveis que vão se aglutinar, a exigência de certificação da poligonal no SIGEF/INCRA deve ser feita tão somente para o resultado final pretendido: o imóvel unificado. Para isso, por óbvio, deve a soma das áreas pretensamente unificadas corresponderem ao imóvel remembrado. Deixando mais claro: o profissional técnico emitirá as plantas e memoriais descritivos externos à plataforma do SIGEF para a realização das retificações de área referente a cada imóvel contíguo e, de seu turno, expedirá uma planta e memorial descritivo produzido dentro da plataforma SIGEF, no tocante à unificação. Assim, por exemplo, se três imóveis vão ser unificados em um único imóvel cuja área corresponde a 500 hectares (ha), a prévia retificação de área dos imóveis individuais deverá corresponder a este somatório. Assim, em uma situação hipotética, o imóvel X poderia ter 100 ha; o imóvel Y, 200 ha; e o imóvel Z, 200 ha (imóveis originários). Se estes imóveis forem unificados, gerando o imóvel W, este deverá ter a área de 500 ha (imóvel unificado). Diante desta situação, bastaria que o requerente apresentasse as plantas e memoriais descritivos das respectivas retificações de área produzidas diretamente pelo profissional técnico, sem a certificação da poligonal no SIGEF/INCRA, no que tange aos imóveis originários (X, Y e Z), bem assim a planta e o memorial descritivo certificado no SIGEF/INCRA do imóvel unificado (W). Questão essencial para os agrimensores é atentarem-se que, mesmo em relação às plantas e memoriais descritivos feitos fora da plataforma do SIGEF, o levantamento topográfico e a geomensura deve respeitar a Norma Técnica de Georreferenciamento de Imóveis Rurais definido pelo INCRA, de modo a corresponder com o mesmo trabalho técnico que seria feito em caso de inserção na plataforma do SIGEF. Desse modo, os profissionais técnicos devem, dentre outros cuidados, realizar seus trabalhos constando coordenadas latitude, longitude e altitude, com sistema de referência SIRGAS 2000, valendo-se dos mesmos padrões de acurácia e cartografia exigidos pelo Manual Técnico do INCRA.  Neste sentido, por exemplo, se o agrimensor fizer um trabalho técnico em coordenadas UTM para a retificação de área e outro em coordenadas latitude, longitude, altitude para o desmembramento ou unificação, por óbvio, a área somada pode ser bem diferente, haja vista que aquele modelo estabelece um levantamento como se os imóveis fossem horizontais, numa projeção reta, enquanto a segunda leva em consideração o relevo da Terra e os acidentes geográficos existentes na área georreferenciada. Logo, se não se utilizar do mesmo sistema de projeção fixado para a certificação no INCRA evidente que as áreas da retificação de área e dos desmembramentos/unificação não irão corresponder e será impossível o deferimento do procedimento pela autoridade registral. Sob este ponto, cabe ainda um adendo. O registrador de imóveis deve ter o cuidado para compreender que há possibilidade de ocorrência de pequenas diferenças no somatório das áreas, sem que isso enseje uma falha do levantamento georreferenciado realizado pelo agrimensor. A pequena diferença de área ao desmembrar ou unificar imóveis dentro ou fora do SIGEF ocorre devido ao modo como o sistema realiza os cálculos geodésicos e atualiza automaticamente os perímetros das parcelas vizinhas. O SIGEF utiliza critérios técnicos do Sistema Geodésico Local para conferir as áreas, e a inserção de novos vértices nos perímetros durante o desmembramento ou unificação pode gerar pequenas variações na soma das áreas das parcelas desmembradas em relação à área original certificada. Além disso, o sistema corrige automaticamente os perímetros das parcelas vizinhas sem alterar seus números de certificação, o que também pode contribuir para essas pequenas diferenças. Assim, pequenas variações do tamanho das áreas posteriormente a parcelamentos ou remembramentos são normais, dentro das tolerâncias técnicas previstas, e não configuram erro ou necessidade de retificação dos trabalhos técnicos. _______________________ 1 Este é o quinto artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/2025, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis. 2 Sobre a abertura de nova matrícula após a retificação de área, ver Parte I desta série de artigos.
quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Notarialidade digital: Um conceito em construção

A transposição da fé pública para o ambiente eletrônico A transformação digital representa um marco civilizatório, comparável à invenção da imprensa ou à revolução industrial, pelo impacto que exerce sobre as formas de comunicação, de produção e de organização social. O Direito, como sistema de ordenação da vida coletiva, não pode ignorar os riscos que emergem dessa nova realidade. Se por um lado a tecnologia democratizou o acesso à informação e ampliou exponencialmente a capacidade de realização de negócios jurídicos, por outro lado trouxe consigo um efeito colateral que se manifesta na amplificação dos riscos e na propagação quase incontrolável dos danos. O mundo digital não conhece fronteiras físicas, tampouco limites de tempo e espaço. Uma fraude, uma manipulação de identidade ou a circulação de uma informação falsa não permanecem circunscritas a um grupo delimitado de pessoas, mas rapidamente se expandem, alcançando milhões em questão de segundos. É o que se pode denominar de lógica da exponencialidade dos danos: aquilo que em contexto analógico seria episódico e contido, no ambiente virtual se multiplica em progressão geométrica, gerando consequências assimétricas entre a causa e o efeito. É nesse ambiente de riscos multiplicados que surge a pertinência de se falar em notarialidade digital. O conceito designa a transposição dos princípios estruturantes da atividade notarial, fé pública, autenticidade, formalização e prevenção de litígios, para o ciberespaço. Se trata de imaginar a atividade dos cartórios de notas adaptados para atuar em plataformas eletrônicas, compreendendo que os valores essenciais que sempre fundamentaram a função notarial precisam encontrar meios de expressão também no mundo digital. O notário, historicamente, desempenhou o papel de garantidor da confiança, assegurando que os atos jurídicos praticados perante si fossem dotados de autenticidade e eficácia, prevenindo conflitos futuros. O mesmo raciocínio deve orientar a construção de ferramentas digitais: em vez de apenas digitalizar documentos ou assinar arquivos eletronicamente, é necessário conferir a esses atos um regime de segurança institucionalizado, capaz de gerar a mesma confiança social que sempre caracterizou a fé pública. No Brasil, esse processo se concretizou de forma pioneira com o provimento 100 do CNJ, editado em 2020, que instituiu a prática de atos notariais eletrônicos e criou a plataforma e-Notariado. Esse marco normativo disciplinou a emissão de certificados digitais notarizados, a realização de videoconferências para a coleta de manifestações de vontade e a criação da matrícula notarial eletrônica, assegurando que cada ato praticado digitalmente estivesse vinculado a um notário investido de fé pública. Posteriormente, o provimento 149 de 2023 consolidou a matéria, integrando-a ao quadro geral de normas aplicáveis ao serviço extrajudicial. A disciplina brasileira acompanha tendência internacional, como se vê na União Europeia, com o Regulamento eIDAS de 2014 e sua reforma em 2024, conhecida como eIDAS 2.0, que estabeleceu padrões comuns para identificação digital, assinaturas eletrônicas qualificadas e carteiras digitais interoperáveis. Em todos esses exemplos, nota-se o esforço por criar sistemas de confiança que deem ao ambiente virtual a mesma segurança que a sociedade sempre exigiu das relações presenciais. Os fundamentos da notarialidade digital podem ser resumidos em quatro grandes eixos: a autenticação eletrônica da identidade, que impede a usurpação da vontade alheia; a instrumentalização dos atos notariais em meio eletrônico, garantindo sua validade jurídica; a conservação digital com fé pública, assegurando a perenidade e a integridade dos documentos; e a função preventiva aplicada ao espaço virtual, reduzindo a litigiosidade e conferindo certeza às relações jurídicas digitais. Esses eixos demonstram que a notarialidade digital não é uma abstração, mas um paradigma em construção, com aplicação concreta na vida social. A relevância desse modelo torna-se mais evidente quando se analisam episódios de vulnerabilidade institucional. A fraude recente no Instituto Nacional do Seguro Social, que vitimou milhões de aposentados e pensionistas entre 2019 e 2024, ilustra de forma dramática a ausência de protocolos adequados de consentimento digital. Nesse caso, entidades associativas lançaram descontos indevidos na folha previdenciária sem que houvesse anuência expressa e autenticada dos beneficiários. A operação se sustentou justamente porque o sistema permitia o registro automático de contribuições sem validação segura da manifestação de vontade. O resultado foi um prejuízo estimado em bilhões de reais, que só veio à tona quando o volume de reclamações tornou insustentável a fraude. Se houvesse mecanismos equivalentes à formalização notarial, registros eletrônicos de consentimento, certificados digitais qualificados, autenticação por fé pública, a fraude teria sido significativamente dificultada ou mesmo inviabilizada. É certo que a proposta de notarialidade digital pode receber críticas. Alguns podem argumentar que já existem tecnologias capazes de assegurar segurança no ambiente eletrônico, como blockchain, criptografia de ponta e autenticação multifatorial. Outros podem sustentar que a formalização notarial encarece as transações e compromete a agilidade digital. Há ainda quem veja nesse movimento uma tentativa de corporativismo, ao ampliar a esfera de atuação dos notários. Contudo, essas críticas não resistem a uma análise mais detida. A tecnologia, por si só, não gera confiança social: a confiança decorre de instituições legitimadas, capazes de vincular a tecnologia a uma estrutura normativa e de responsabilidade. Quanto ao custo, a Análise Econômica do Direito demonstra que os gastos com prevenção são muito menores do que os custos sociais decorrentes de litígios e fraudes em massa. E no que tange ao suposto corporativismo, o que se busca não é ampliar artificialmente a esfera notarial, mas aplicar sua lógica secular de prevenção e fé pública ao espaço digital, em benefício da sociedade como um todo. A notarialidade digital, portanto, deve ser entendida como continuidade e atualização da função notarial no século XXI. Sua missão permanece a mesma: preservar a confiança e assegurar a segurança das relações jurídicas. O que se altera é o suporte, que deixa de ser apenas o papel e o contato físico para incorporar a rede, a certificação digital e os sistemas eletrônicos. Essa transposição não significa ruptura, mas evolução. Ao conferir fé pública a documentos eletrônicos, ao autenticar identidades digitais e ao registrar a vontade das partes em meio eletrônico, o notário se adapta ao tempo presente, garantindo que a inovação tecnológica caminhe de mãos dadas com a estabilidade institucional. Em um mundo em que os danos se propagam em velocidade e escala exponenciais, não basta contar com soluções técnicas fragmentadas. É necessário um sistema de confiança que seja reconhecido social e juridicamente como dotado de legitimidade, capaz de assegurar que os atos praticados digitalmente tenham a mesma eficácia que sempre tiveram os atos presenciais. A notarialidade digital é justamente essa resposta: uma forma de transpor ao ambiente eletrônico os valores da fé pública, da prevenção e da segurança jurídica, garantindo que o futuro digital não seja apenas veloz, mas também confiável.
Esta coluna analisa os casos de dispensa das anuências dos confrontantes no procedimento de retificação de área realizado no registro de imóveis, conforme art. 440-AX, § 3º, do CNN/CN/CNJ-Extra (incluído pelo Prov. CNJ nº 195/2025 - Provimento do IERI-e).1 O § 3º do art. 440-AX do Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra), incluído pelo provimento CNJ 195/25, prevê o seguinte: Art. 440-AX. [...] § 3º. É dispensada a anuência do confinante:  I - no caso de imóveis rurais, se o imóvel confrontante e a nova descrição do imóvel objeto da retificação tiver sido certificada pelo Incra na forma do § 5.º do art. 176 da Lei n. 6.015/1973; e  II - se o imóvel confrontante for bem público e consistir em:  a) águas públicas, tais como rios navegáveis, correntes ou depósitos hídricos, com respeito aos pertinentes terrenos reservados, nos termos do art. 14 do Código de Águas (Decreto n. 24.643/1934); e  b) bem público de uso comum, tais como estradas, rodovias, ferrovias e outras vias de circulação, respeitada a faixa de domínio público e eventual área non aedificandi.  Os casos acima descrevem as hipóteses de dispensa normativa de apresentação da anuência dos confrontantes que passaram a ser regulamentadas pelo provimento do IERI-e. A norma administrativa regulamenta exceções, portanto, ao disposto nos §§ 1º a 6º do art. 213 da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) que estabelece como condição para o procedimento de retificação de área a anuência dos confrontantes e, no caso de não obtenção desta anuência, que haja a notificação destes, presumindo-se a concordância do confrontante que não apresentar impugnação no prazo legal.  1. Certificação no SIGEF e confirmação no Registro de Imóveis No caso de o prédio vizinho ao imóvel retificando possuir prévia certificação da poligonal no SIGEF/INCRA e tiver sua retificação de área no Registro de Imóveis já concluída, não será necessário colher a anuência do confinante. Isso porque o Provimento 195 estabelece a presunção de que já houve a concordância formal quanto aos limites dos imóveis e que não existe discussão acerca de sobreposição com a área confrontante. A ideia é simples: se o proprietário do imóvel confinante (i) realizou o georreferenciamento do seu imóvel, (ii) certificou no SIGEF que não existe poligonal que sobreponha sua área no referido cadastro territorial e (iii) teve deferido o procedimento de retificação de área perante o Registro de Imóveis, há segurança jurídica suficiente para que este mesmo proprietário não precise ser chamado a ratificar o georreferenciamento do imóvel do seu vizinho, o qual respeita as linhas divisórias do seu imóvel. Ademais, presume-se que proprietário do imóvel retificando, ele próprio, ou eventual proprietário antecessor, já deu a anuência (por anuência expressa ou tácita) para que o confinante pudesse retificar seu imóvel junto à serventia predial, sendo desnecessário, neste caso, o "câmbio ou troca de anuências". Outrossim, o dispositivo constante do Provimento 195/2025 deve-se ser interpretado de forma sistemática e teleológica, observando-se a finalidade dos arts. 176, §§ 3º a 5º e § 13 em conjunto com o art. 213, todos da LRP. Neste sentido, é importante deixar claro que não basta a mera certificação da poligonal no SIGEF para a dispensa da anuência do confrontante. A certificação no SIGEF, por si só, não serve para comprovar propriedade nem tem força legal para definir os limites de um imóvel, sobretudo por se tratar de um cadastro autodeclaratório e unilateral. Além do mais, a análise jurídica da conformidade dos limites do imóvel e o controle da malha imobiliária é atribuição do registrador de imóveis, notadamente ao realizar a qualificação registral no procedimento de retificação de área. Assim, para a dispensa da anuência do confrontante deve ocorrer o cumprimento de ambos os requisitos em relação ao imóvel confrontante: certificação da poligonal no SIGEF + deferimento da retificação de área no registro de imóveis.  Deve-se reconhecer, no entanto, que o texto do Provimento poderia ter sido mais claro, deixando mais literal a exigência da norma. Diante disso, sugerimos, de lege ferenda, que o texto do inc. I, § 3º, do art. 440-AX seja melhorado, para que deixe expresso que a dispensa da anuência do confinante ocorra ""[...] no caso de imóveis rurais, se o imóvel confrontante e a nova descrição do imóvel objeto da retificação tiver sido certificado pelo Incra na forma do § 5.º do art. 176 da Lei n. 6.015/1973, 'e, em relação ao imóvel confrontante, tenha sido concluída a retificação de área de acordo com o polígono certificado'". De qualquer modo, mesmo sem a alteração do texto da norma do CNJ a interpretação que deve ser dada, desde logo, para a dispensa da anuência de confinante, é a exigência conjunta de certificação no SIGEF/Incra cumulado com a confirmação da retificação de área do imóvel confrontante, mediante interpretação teleológica e sistemática da Lei de Registros Públicos. 2. Águas públicas Outra hipótese de dispensa da anuência ocorre no caso de confrontação com bens públicos. No caso de águas públicas, tais como rios navegáveis e outros afluentes, é dispensada a anuência desde que respeitada a faixa de terreno reservado de 15 metros estabelecida no Código de Águas.3 De seu turno, no caso de rodovias ou ferrovias aplica-se regra semelhante, sendo dispensada a anuência do ente público se respeitada a faixa de domínio público e a área non aedificandi (área não edificável). Nesses casos, o registrador de imóveis poderá verificar o cumprimento deste requisito ao analisar os trabalhos técnicos e a imagem de satélite da poligonal, notadamente pelo SIG-RI -, conhecido popularmente como Mapa do Registro de Imóveis do Brasil4. Também é recomendável que o profissional técnico faça constar expressamente a informação de respeito aos limites e das faixas com os bens públicos na planta ou no memorial descrito ou até mesmo em laudo técnico separado, a fim de ser deferida a dispensa da anuência dos entes públicos. Rios públicos são aqueles navegáveis e que são considerados bens públicos. Portanto, os rios públicos geram a divisão do imóvel por ele seccionado. Interessante notar que os rios públicos serão estaduais quando localizados apenas em um Estado da Federação; e serão Federais quando cortarem mais de uma unidade federativa ou fizerem fronteira com outros países, caso em que serão considerados patrimônio da União (art. 20, inc. III; e art. 26, inc. I, CF).5 Não existe uma lista oficial de rios navegáveis, motivo pelo qual deve ser analisado caso a caso pelo registrador, o qual deve ter o conhecimento da circunscrição territorial sob sua jurisdição.  Navegáveis são os cursos d'água que permitem a navegação de embarcações, ou seja, possibilitam o trânsito seguro de barcos ao longo de toda ou da maior parte de seu percurso. Para ser considerado navegável, o afluente deve suportar uma embarcação de pequena proa com capacidade para pelo menos uma pessoa, independentemente do tipo de propulsão (remo, vela, motor etc.).6 De sua vez, os rios não navegáveis são privados, podendo fazer parte do imóvel ou eventualmente constituírem marco divisório dele, caso em que o confrontante anuente será o vizinho do outro lado da margem do curso d'água. Muitos registradores, por questões de extrema cautela, exigiam notificação da Fazenda Pública (PGE - Procuradoria Geral do Estado para rios estaduais; ou da SPU - Superintendência de Patrimônio da União, para Federais) em retificações de imóveis confrontantes com rios navegáveis, mas essa exigência, de acordo com o regulamento do CNJ, pode ser considerada exagerada. O princípio da razoabilidade indica que basta comprovar, por meio de planta precisa e imagem de satélite (ex.: Google Earth), que a margem do rio navegável e a faixa pública de 15 metros (terreno reservado) foram respeitadas, sem necessidade de movimentar a máquina pública, exigindo a anuência ou a notificação do Estado ou União. Conforme explica Eduardo Augusto, mesmo que haja erros técnicos na descrição, a inclusão de área pública não altera a titularidade estatal, que é inalienável e imprescritível (não usucapível). Assim, a notificação da Fazenda Pública é desnecessária, salvo se o particular contestar a existência da faixa pública, caso em que a participação estatal é essencial para garantir a segurança jurídica do registro. A retificação deve, portanto, focar apenas no necessário para assegurar a correção da nova descrição, evitando formalismos excessivos que não trazem benefício prático nem segurança jurídica.7 A dispensa da anuência, no entanto, não dispensa o registrador de fazer a qualificação registral dos trabalhos técnicos. Desse modo, se o registrador evidenciar que os trabalhos técnicos contêm incorreções ou que não estão de acordo com a linha de terreno reservado do curso d'água, deve, fundamentadamente, exigir a notificação dos entes públicos, a fim de evitar litígios futuros. Figura 1 - Rio navegável e terreno reservado   Fonte: Disponível aqui 3. Estradas públicas: Rodovias, ferrovias e outras vias de circulação Em relação às estradas públicas, tais como rodovias, ferrovias e demais vias de circulação, o procedimento de retificação de área no registro de imóveis deve respeitar a faixa de domínio e a área não edificável (área non aedificandi). Conforme dispõe o Provimento, demonstrado que o imóvel retificando não se sobrepõe à faixa de domínio público e o proprietário observa as limitações decorrentes da área não edificável, poderá ser dispensada a anuência dos confrontantes. O regramento trata tanto de vias de circulação urbanas como também rurais, sendo aplicável, portanto, em ambos os casos. Quando cita estradas e vias de circulação e depois especifica as rodovias e ferrovias, o Provimento 195 se utiliza de uma fórmula mais genérica seguida de exemplos, permitindo ao intérprete estender o alcance da norma a situações semelhantes, mas não expressamente listadas.  Vale-se a norma do CNJ, destarte, de uma interpretação analógica, revelando o sentido e o alcance da norma, a partir de suas próprias disposições gerais e específicas. No caso, o dispositivo visa abarcar todas as estradas públicas e/ou vias de circulação públicas, urbanas e rurais, devendo-se, em cada caso, levar em consideração o tipo de cada estrada/via de circulação confinante do imóvel retificando.  Segundo o Anexo I do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), as vias de circulação podem ser rurais (estradas e rodovias) ou urbanas (ruas, avenidas, vielas, ou caminhos e similares abertos à circulação pública, situados na área urbana, caracterizados principalmente por possuírem imóveis edificados ao longo de sua extensão). Cada tipo de via de circulação contém regras diferenciadas, motivo pelo qual é importante que o profissional responsável pela elaboração dos trabalhos técnicos deve observar as regras atinentes à faixa de domínio público e, quando existente, à área privada non aedificandi. A faixa de domínio é a área pública onde se assentam todos os elementos que compõem a via de circulação, incluindo pista de rolamento, canteiros, acostamentos, sinalizações e faixas laterais de segurança, entre outros, até o limite que separa a estrada pública dos imóveis marginais. Constitui, portanto, bem público de uso comum do povo. A superfície da faixa de domínio é delimitada conforme o projeto de engenharia da pista ou por lei específica e está sob responsabilidade do órgão ou entidade de estradas e rodagens competente com circunscrição sobre a via (p. ex. no âmbito federal, DNIT; no âmbito estadual, DAER-RS, DER-SP, DER-DF, GOINFRA etc.)8.  Normalmente, não havendo uma delimitação específica no projeto de engenharia, as legislações definem uma área mínima.  Desse modo, a largura da faixa de domínio pode variar conforme cada caso e obedece a legislação de cada estado (no caso de Rodovias Estaduais) ou da União (para Rodovias Federais), sendo definida de acordo com as características técnicas do projeto final de engenharia, mantendo largura constante e tendo as linhas limites paralelas ao eixo da rodovia.  A área não edificável (non aedificandi), de outro lado, é uma faixa de terra onde é proibida a construção de edificações, situada logo após a faixa de domínio de rodovias e ferrovias. Não se trata de bem público e, portanto, não pertence ao ente público, tendo natureza de bem particular, mas em que está gravada limitação administrativa, uma restrição da propriedade, vedando que o proprietário construa sobre a área. Desse modo, a área não edificável faz parte do imóvel do requerente e deve ser descrita na matrícula do imóvel retificando. A área non aedificandi ao longo das estradas rodoviárias tem, em regra, largura mínima de 15 metros de cada lado da linha que define a faixa de domínio público. Contudo, pela atual redação da lei 6.766/1979 (lei de parcelamento do solo urbano), alterada pela lei 13.913/19, dentro do perímetro urbano, os municípios podem diminuir essa faixa para até 5 metros de cada lado, desde que haja lei municipal que autorize essa redução (art. 4º, inc. III).8  A lei 14.273/21 (Lei das Ferrovias), de sua vez, não especifica uma área non aeficandi para este tipo de estrada pública, sendo possível inferir de seu regramento que as instalações adjacentes, à faixa de domínio da linha férrea, inclusive, os "imóveis localizados de forma contígua" às estradas de ferro deverão respeitar a "indicação georreferenciada do percurso total [...] da faixa de domínio da infraestrutura ferroviária" (art. 3º, inc. VII e art. 25, § 1º, inc. II, alínea a). Desse modo, não havendo previsão de metragem específica na legislação especial para definir a área non aedificandi, entendemos que se aplicam as diretrizes estabelecidas para as rodovias também às vias férreas: 15 metros como regra, podendo ser reduzida para 5 metros na área urbana, se houver legislação municipal autorizativa.9  A área não edificável para as rodovias e ferrovias gera uma restrição à propriedade privada ex lege, ao passo que nas vias de circulação urbanas (ruas, avenidas, vielas, becos etc.), salvo quando previsto na legislação urbanística específica, não existe uma área non aedificandi. Assim, como regra, a área non aedificandi surge por uma limitação administrativa legal, visto que decorre diretamente da legislação, motivo pelo qual não precisa estar publicizada na matrícula. Nada obstante, se por razões de necessidade pública o poder público determinar a criação ou o aumento dessa área não edificável, haverá, excepcionalmente, uma limitação administrativa convencional ou estabelecida unilateralmente pelo próprio poder público, caso em que a restrição à propriedade privada deverá ser objeto de averbação na matrícula, diante da excepcional intervenção do Estado na propriedade. Com efeito, para que haja a dispensa da colheita de anuência do ente público confrontante no procedimento de retificação de área, a faixa de domínio público deve ser respeitada, de modo que o imóvel retificando não se sobreponha a ela; bem assim deve constar do trabalho técnico o respeito à limitação administrativa da área não edificável. Figura 2 - Faixa de domínio de rodovia e área non aedficandi   Fonte: https://www.ribrusque.com.br/faixa-de-dominio-e-area-non-aedificandi/ ____________________________________________ 1 Este é o quarto artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/2025, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis. 2 Por esse motivo, é importante que ao final do procedimento de retificação de área, o registrador de imóveis faça o login na plataforma do SIGEF, realize o upload da nova matrícula e inclua a informação de "Confirmação de Registro". 3 Art. 14, Código de Águas. Os terrenos reservados são os que, banhados pelas correntes navegáveis, fora do alcance das marés, vão até a distância de 15 metros para a parte de terra, contados desde o ponto médio das enchentes ordinárias. 4 O SIG-RI passou a ser regulamentado nos arts. 343-D a 343-J do CNN/CN/CNJ-Extra, de acordo com a redação incluída pelo Provimento do IERI-e. O "Mapa" pode ser acessado a partir do seguinte link: Disponível aqui.  5 Art. 20. São bens da União: [...] III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais; [...] Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União; 6 GIOVANINI, Adenilson. Topografia cadastral e georreferenciamento de imóveis rurais na prática. E-book. 2023. 7 AUGUSTO, Eduardo Agostinho Arruda. Registro de imóveis, retificação de registro e georreferenciamento: fundamento e prática. Série Direito Registral e Notarial. Coord. PAIVA, João Pedro Lamana. Saraiva: São Paulo, 2013. 8 A Resolução DNIT nº 7, de 02 de março de 2021 regulamenta atualmente o uso das faixas de domínio de rodovias federais sob circunscrição do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT). Disponível aqui. 9 Para as rodovias estaduais, cada Estado possui sua própria legislação. Como exemplo, no Estado de Goiás, a Lei Estadual nº 14.408/2003, estabelece que a largura da faixa de domínio das rodovias estaduais será definida de acordo com as características técnicas do projeto final de engenharia, enquanto a faixa de domínio das rodovias estaduais que não possuem projeto final de engenharia será especificamente de 40 m (quarenta metros), para cada um dos lados, a contar do eixo central da rodovia (art. 3º). Disponível aqui.
Em inventário por escritura pública (inventário extrajudicial) envolvendo herdeiro incapaz, indaga-se: o quinhão dele pode recair sobre apenas alguns dos bens do espólio ou necessariamente deve desaguar em um condomínio tradicional sobre cada bem? Em outras palavras, nesses casos em que há herdeiro incapaz, a partilha extrajudicial tem de ser per rem (por cada bem)1 ou pode vir a ser por universitas iuris (por universalidade de direito, especificamente o monte-mor hereditário2)? Outra questão: seria possível uma partilha desigual no inventário extrajudicial? Uma leitura apressada do art. 12-A da resolução 35 do CNJ levaria à indevida conclusão de que a partilha tem de ser pro rata sempre (e, portanto, não poderia ser desigual) e de que ela deveria recair sobre cada bem específico (partilha per rem). Veja o referido dispositivo: Art. 12-A. O inventário poderá ser realizado por escritura pública, ainda que inclua interessado menor ou incapaz, desde que o pagamento do seu quinhão hereditário ou de sua meação ocorra em parte ideal em cada um dos bens inventariados e haja manifestação favorável do Ministério Público.  § 1º Na hipótese do caput deste artigo é vedada a prática de atos de disposição relativos aos bens ou direitos do interessado menor ou incapaz.  § 2º Havendo nascituro do autor da herança, para a lavratura nos termos do caput, aguardar-se-á o registro de seu nascimento com a indicação da parentalidade, ou a comprovação de não ter nascido com vida.  § 3º A eficácia da escritura pública do inventário com interessado menor ou incapaz dependerá da manifestação favorável do Ministério Público, devendo o tabelião de notas encaminhar o expediente ao respectivo representante.  § 4º Em caso de impugnação pelo Ministério Público ou terceiro interessado, o procedimento deverá ser submetido à apreciação do juízo competente.  Realmente, a regra geral é essa acima. A partilha em inventário extrajudicial envolvendo herdeiro incapaz há de ser pro rata e per rem. Essa norma, porém, precisa ser interpretada sistematicamente com as regras do Código Civil que permitem a pessoa incapaz a praticar atos além da mera administração mediante alvará judicial, ao lado da regra que proíbe atos de disposição gratuita pela pessoa incapaz. Referimo-nos aos dispositivos abaixo do CC: Art. 1.691. Não podem os pais alienar, ou gravar de ônus real os imóveis dos filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz. (...) Art. 1.748. Compete também ao tutor, com autorização do juiz: (...) III - transigir; IV - vender-lhe os bens móveis, cuja conservação não convier, e os imóveis nos casos em que for permitido; (...) Art. 1.749. Ainda com a autorização judicial, não pode o tutor, sob pena de nulidade: (...) II - dispor dos bens do menor a título gratuito; (...) Art. 1.781. As regras a respeito do exercício da tutela aplicam-se ao da curatela, com a restrição do art. 1.772 e as desta seção. Art. 1.750. Os imóveis pertencentes aos menores sob tutela somente podem ser vendidos quando houver manifesta vantagem, mediante prévia avaliação judicial e aprovação do juiz. Esses dispositivos, ao lado do princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável e do princípio da vontade presumível3, permitem a realização de inventário extrajudicial com partilha desigual e com partilha da universalidade de direito, e não de cada bem individualizado, embora de modo excepcional. De um lado, a partilha desigual nos parece cabível quando o herdeiro incapaz vier a ser beneficiado patrimonialmente. Suponha dois filhos como únicos herdeiros, um incapaz e outro capaz. Não há obstáculo algum a que o herdeiro incapaz fique com 80% de cada bem em inventário extrajudicial, ao passo que o herdeiro capaz ficaria com o restante. Não haveria necessidade de nenhuma autorização judicial. Reforça o entendimento acima o fato de que os inventários extrajudiciais dependem do beneplácito pelo Ministério Público, que é o custos legis (fiscal da lei) e que é o incumbido de velar pelos interesses do incapaz (art. 178 do CPC4). O Ministério Público fiscalizará o melhor interesse da pessoa incapaz. Além disso, o § 1º do art. 12-A da resolução 35 do CNJ veda disposição de bens do incapaz, e não a aquisição de bens por este. De outro lado, a partilha per rem (por cada bem) pode ser afastada para que a partilha seja feita sobre toda a universalidade de direito (de todo monte-mor) em duas hipóteses. Aliás, a regra geral é a de que a partilha hereditária leva em conta o acervo hereditário inteiro, que é uma universalidade de direito, fruto de uma indivisibilidade imposta pelo parágrafo único do art. 1.791 do Código Civil5. Vejamos as duas hipóteses de afastamento da partilha per rem. A primeira é quando houver autorização judicial com base nos arts. 1.691, 1.748, II, 1.750 e 1.781 do Código Civil. O motivo é que, por meio de seu representante legal (pais, tutela ou curador), a pessoa incapaz pode praticar atos além da mera administração mediante essa autorização judicial, como alienar imóveis e transigir. Caberá ao juízo avaliar se a solução é mais vantajosa à pessoa incapaz. Suponha dois filhos como únicos herdeiros, um incapaz e outro capaz. Imagine que o falecido tenha deixado dois bens de igual valor: um veículo e um apartamento. A experiência demonstra que veículos desvalorizam com maior rapidez, ao contrário de imóveis, que tendem a valorizar. Em caso assim, seria mais vantajoso ao herdeiro incapaz ficar com o apartamento na integralidade e deixar o veículo ao seu irmão capaz. Não enxergamos obstáculos algum a que esse inventário ocorra extrajudicialmente nesses termos mediante autorização judicial obtida pelo representante legal do herdeiro incapaz. Entender diversamente nos levaria a conduzir a pessoa incapaz a uma solução mais onerosa. Teríamos de, em primeiro lugar, realizar a partilha per rem, deixando o herdeiro incapaz com 50% do veículo e com 50% do apartamento. Posteriormente, teríamos de obter um alvará judicial para uma permuta de bens, de modo a que o herdeiro incapaz troque a sua porção sobre o veículo pela porção do outro herdeiro no apartamento. Isso, porém, imporia um custo adicional ao herdeiro: o pagamento de ITBI (Imposto sobre a transmissão onerosa de bem imóvel). Ora, se o herdeiro incapaz tivesse ficado com o imóvel já no inventário extrajudicial, não haveria esse custo adicional e, portanto, teríamos uma solução menos onerosa a ele. Como se vê, as normas - com inclusão do art. 12-A da resolução 35 do CNJ - não podem ser interpretadas de modo a prejudicar a pessoa incapaz, o que respalda o entendimento sustentado neste artigo. A segunda hipótese de afastamento da partilha per rem dá-se em caso de manifesta vantagem à pessoa incapaz, hipótese em que sequer haverá necessidade de autorização judicial. Bastará que o Ministério Público, como custos legis, chancele o inventário extrajudicial com partilha por universalidade de direito. Isso, porque uma interpretação teleológica dos supracitados dispositivos do Código Civil deve estar alinhada ao princípio do melhor interesse da pessoa incapaz e ao princípio da vontade presumível da pessoa incapaz, de modo a afastar exigências meramente burocráticas à efetivação daquilo que é mais adequado à pessoa vulnerável. Imagine um inventário envolvendo R$ 50 mil em dinheiro e um veículo de valor de R$ 50 mil. É manifestamente mais vantajoso ao herdeiro incapaz ficar com o dinheiro do que ter de ficar com metade de cada um desses bens. Por isso, temos que esse inventário extrajudicial poderia ser feito independentemente de prévio alvará judicial, de que o Ministério Público manifeste-se favoravelmente. ___________ 1 Cunhamos a expressão "per rem" para fins didáticos, embora ela não seja usual nas fontes jurídicas do direito romano antigo. 2 A universalidade de direito (universitas iuris) está disciplinada no art. 91 do Código Civil ("Art. 91. Constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico") e é ilustrada pelo acervo patrimonial deixado pelo falecido. 3 Vide: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Curatela e respeito à vontade presumível: Liberalidades de bens do curatelado. Disponível aqui. Publicado em 2/5/25. 4 Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam: (...) II - interesse de incapaz; (...) 5 Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros. Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.
Analisa a possibilidade de recepção de assinaturas eletrônicas qualificadas e avançadas no procedimento de retificação de área realizado no registro de imóveis, conforme art. 440-AX, § 2º, do CNN/CN/CNJ-Extra (incluído pelo provimento CNJ 195/25 - provimento do IERI-e).1 De acordo com o § 2º do art. 440-AX "As declarações apresentadas pelo proprietário, pelo profissional técnico e pelos confinantes deverão ser assinadas com firma reconhecida ou mediante assinatura eletrônica avançada ou qualificada".2 A declaração do proprietário é aquela que ratifica que foram respeitados os limites e confrontações ao realizar o levantamento topográfico da área (art. 176, § 13, parte final, LRP e art. 9º, § 5º, decreto 4.449/02).3 De sua vez, as declarações do profissional técnico referem-se a sua responsabilidade pela realização dos trabalhos atinentes ao referido levantamento topográfico (art. 213, inc. II, da LRP). Diante do texto normativo, todas as assinaturas necessárias para a realização do procedimento de retificação de área (assinaturas do requerente, profissional e confrontantes) são eficazes para o procedimento quando reconhecida a firma em tabelionato de notas, em caso de "assinatura física"; ou quando realizada por "assinatura eletrônica", tenha esta status de assinatura avançada ou qualificada. O decreto 10.543/20 regulamenta os níveis de segurança das assinaturas eletrônicas, qualificando, em escala da menos segura até a mais segura, em "simples", "avançada" e "qualificada".  A assinatura eletrônica simples tem o menor grau de confiabilidade para a análise de sua autenticidade. Por isso, pode ser utilizada em negócios que envolvam menor complexidade, que não sejam protegidos por qualquer grau de sigilo e não ofereçam risco direto de dano a bens, serviços e interesses do ente público. Trata-se de assinatura eletrônica realizada, em geral, apenas entre particulares e para fins privados. Esse tipo de assinatura eletrônica, portanto, é utilizada apenas em situações de baixo risco, onde basta a identificação do usuário e não há exigência de comprovação jurídica rigorosa, como, por exemplo, quando do recebimento de mercadorias compradas pela internet, aceite de propostas comerciais, participação em pesquisas, autenticação ou solicitação de acesso em websites etc. Normalmente é feita por meio de desenho da assinatura no visor de uma tela touchscreen ou por confirmação de dados por e-mail, SMS ou aplicativo gerador de código próprio. A assinatura eletrônica simples não pode ser utilizada no registro imobiliário, em nenhum procedimento.4 De sua vez, a assinatura eletrônica avançada é espécie de firma digital com grau de segurança intermediário. É utilizada para os casos que exijam maior garantia quanto à autoria da manifestação do signatário, mesmo sem o uso de certificado emitido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras (ICP-Brasil). Sua utilização pode ocorrer, por exemplo, na formalização de empréstimos bancários, celebração de contratos em geral, interação entre pessoas que exija algum grau de sigilo etc. A assinatura avançada pode ser feita a partir da validação de documentos oficiais, biometria (impressão digital, reconhecimento facial, leitura do olho, análise de voz) ou login seguro em plataformas digitais ou outros métodos que comprovem sua identidade de maneira confiável. Com o advento do provimento do IERI-e, a assinatura eletrônica avançada passa a poder ser empregada no procedimento de retificação de área perante o registro de imóveis, desde que garantida a identificação inequívoca de seu signatário. Por fim, a mais segura de todas as formas digitais de subscrição é a assinatura eletrônica qualificada, a qual utiliza um certificado digital emitido por uma autoridade certificadora credenciada pelo ITI - Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, conforme o padrão da ICP-Brasil. Se diferencia das assinaturas simples e avançada porque utiliza uma criptografia assimétrica com chave privada e pública, gerando uma segurança reforçada e sendo sua autenticidade facilmente verificável. A assinatura eletrônica qualificada sempre poderá ser utilizada em qualquer procedimento no registro de imóveis. Exemplificativamente, constitui assinatura avançada que pode ser utilizada nos procedimentos de retificação de área aquela realizada na plataforma do E-Notariado, pelo sistema e-Not Assina, mediante certificado digital notarizado, sendo que esta forma de subscrição se constitui na assinatura eletrônica avançada mais segura, visto que recebe também o reconhecimento de firma eletrônico perante tabelião de notas e, por isso, deve ser a firma digital mais incentivada pelos registradores de imóveis. Este tipo de assinatura, apesar de classificado como "assinatura avançada" (e não qualificada), por depender de videoconferência e análise humana por autoridade com fé pública pode ser considerado, inclusive, mais seguro do que a própria assinatura qualificada, que apenas exige token e senha eletrônica. De igual modo, a assinatura realizada pela plataforma Gov.Br trata-se também de assinatura avançada. Para fins especificamente de retificação de área, também poderá ser aceita pelo registro imobiliário, desde que verificada a sua autenticidade pelo sítio eletrônico oficial do governo Federal. Para poder realizar a assinatura eletrônica no portal único GOV.BR, o usuário deve estar qualificado como nível prata ou ouro. O nível bronze não tem acesso ao serviço de assinatura eletrônica da plataforma de assinaturas do governo Federal.5 Por analogia a outras normas aplicáveis ao registro de imóveis, como aquela que trata das assinaturas eletrônicas nas cédulas de crédito, compete ao registrador de imóveis ter especial cuidado com assinaturas avançadas. Nestes casos, devem ser aceitas aquelas assinaturas eletrônicas em que seja possível verificar a autenticidade, sendo "garantida a identificação inequívoca de seu signatário" (art. 14, IX, 20, IX, 25, X, 27, VIII, 43, VIII, 48, XI, decreto-lei 167/1967; art. 3º, VIII e § 4º, lei 8.929/1994; e art. 29, § 5º, lei 10.931/04).6 Vale frisar que o provimento CNJ 195/25 trata especificamente sobre as formas de assinatura eletrônicas no procedimento de retificação de área, permitindo a assinatura qualificada e a assinatura avançada, devendo ser lido em conjunto com o disposto no art. 208 do CNN/CN/CNJ-Extra.7 O dispositivo em questão exige que se "comprove a autoria e integridade do arquivo" e que a recepção destes documentos pelos oficiais de registro de imóveis ocorra por meio, (i) preferencialmente, do Serp - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos e dos sistemas que o integra (art. 208, II, alínea a); ou (ii) de sistema ou plataforma facultativamente mantidos nas serventias, desde que tenham sido produzidos por meios que permitam certeza quanto à autoria e integridade (art. 208, II, alínea b). Em atenção ao princípio da desburocratização, quando o protocolo for realizado fisicamente (no balcão do cartório), apresentando documentos em papel bem assim alguns documentos nato-digitais (como plantas e memoriais assinados eletronicamente pelo profissional ou carta de anuência assinada eletronicamente por confinante), poderão os documentos nativamente digitais ser enviados para a serventia por meio eletrônico, para análise da autenticidade das assinaturas, considerada cumprida a regra da alínea b do inc. II do art. 208 do Código Nacional de Normas. Desse modo, evita-se a criação de uma duplicidade de exigências de protocolo, evitando que parte da prenotação seja feita diretamente em cartório e outra parte pelas plataformas integrantes do Serp. ______________________ 1 Este é o terceiro artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/2025, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis. 2 A assinatura eletrônica avançada pode ser utilizada nos registros públicos desde que tal hipótese esteja regulamentada pelo CNJ, conforme o art. 17, § 2º, da LRP ("Ato normativo da Corregedoria Nacional de Justiça possa estabelecer hipóteses de uso dessa assinatura em atos envolvendo imóveis"). Essa previsão foi incluída pela Lei nº 14.382, de 2022 (Lei do Serp). 3 O § 13 do art. 176 da LRP dispõe que "Para a identificação de que tratam os §§ 3º e 4º deste artigo, é dispensada a anuência dos confrontantes, bastando para tanto a declaração do requerente de que respeitou os limites e as confrontações". Após grande divergência sobre a interpretação a ser dada ao citado dispositivo legal, o qual fora incluído pela Lei n. 13.838, de 2019, o CNJ expediu a Recomendação n. 41/2019. Neste ato normativo o CNJ orientou os registradores de imóveis a dispensarem a anuência dos confrontantes apenas nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais. Desse modo, por interpretação a contrario sensu, para o procedimento de retificação de área não há dispensa da apresentação da anuência dos confrontantes, aplicando-se o disposto no art. 213 da LRP. 4 Art. 17, LRP. [...] § 1º. O acesso ou o envio de informações aos registros públicos, quando realizados por meio da internet, deverão ser assinados com o uso de assinatura avançada ou qualificada de que trata o art. 4º da Lei nº 14.063, de 23 de setembro de 2020, nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (Incluído pela Lei n. 14.382, de 2022). 5 O registrador de imóveis ou seus prepostos podem submeter documentos assinados eletronicamente a verificação de sua autenticidade por meio de site oficial do governo criado com esse desiderato, acessando aqui, obtendo instantaneamente o status da assinatura ICP-Brasil, Gov.Br e outros. 6 Para assinatura via E-Notariado, deve-se acessar aqui. Assinatura por meio do Gov.Br, clique aqui. Assinatura pelas plataformas vinculadas ao Registro de Imóveis, clique aqui ou acesse aqui. 7 O art. 208 do Código Nacional de Normas teve sua redação dada pelo Prov. CNJ 180/2024, que estabeleceu o regramento para a recepção dos títulos nato-digitais e digitalizados para o registro de imóveis e demais serventias. Esse regramento, vale lembrar, já tinha previsão anterior específica para o registro de imóveis a partir do Prov. CNJ 94/2020, editado em razão da dificuldade de atendimento presencial por conta da pandemia da Covid-19.
A tokenização é a Hidra de Lerna dos registros públicos. A cada golpe contra suas cabeças, duas novas despontam, multiplicando problemas e tornando o monstro terrivelmente ameaçador. Questões mal resolvidas se amplificam, os desafios se intensificam. Para muitos, as novas tecnologias são as faces de um monstro cuja cabeça imortal resiste a qualquer rochedo regulatório. O mito de Héracles revela Iolaus, seu sobrinho, que cauteriza os pescoços cortados da serpe com um archote. Isso demonstra que o herói não vence sozinho a batalha, mas conta com a colaboração de aliados. Armado com a espada da razão e escorado na intuição - simbolizada pelo fogo que impede a duplicação da cabeça da hidra -, Héracles doma seus impulsos disruptivos. As novas tecnologias são como os frutos da Matrix Generatrix, na nossa metáfora Echidna, que unida a Tifão gera monstros como a Hidra de Lerna. Na IA - Inteligência Artificial, cada token processado gera ramificações em redes neurais, como novas cabeças que se multiplicam. Na blockchain, cada bloco - como um "ovo viperino no útero de silício", nas palavras do dr. Ermitânio Prado - dá à luz novos monstros desafiadores. A caverna de Echidna é o ecossistema tech, fértil em desafios, mas igualmente rico em oportunidades para a reinvenção. As resistências que se antepõem às investidas acabam por gerar forks e novos elos se formam, novas cabeças se alevantam. Ao homem cabe lutar e vencer cada desafio, sabendo-se que, mesmo dominando uma nova tecnologia, outras emergirão neste caldo de cultura, em ritmo cada vez mais rápido, motivado pela "lei dos retornos acelerados" (Kurzweil). Apresento aqui, caro leitor, uma despretensiosa incursão ensaística sobre os problemas que afligem a classe dos registradores. Como outrora, os grandes desafios foram vencidos pela inteligência e argúcia de nossos maiores. As novas tecnologias oferecem a oportunidade renovada de lutar o bom combate e de superar os novos obstáculos. Somente poderemos superar a IA com a IH - Inteligência Humana, que tem por aliada a intuição, a tocha luzidia do espírito. Nada de novo no front A lei 6.015/1973 é tributária de leis e regulamentos que foram criados no século XIX. O sistema registral foi pensado para regular fundamentalmente relações lineares e singulares - comprador/vendedor, credor/devedor etc. Não foi concebido para dar suporte a operações jurídicas complexas e que ocorrem em massa na instantaneidade das redes eletrônicas. Os ativos baseados em direitos imobiliários combinam-se e integram blocos que podem ser alienados, total ou parcialmente, onerados, dados em garantia, tudo na velocidade da luz. O acelerado processo econômico de intercâmbios e transações, realizados por meios eletrônicos, pressupõe a existência de mecanismos de registro adaptados para esta nova realidade. A nota característica dos tempos modernos é que os registros devem conformar-se à lógica dos meios digitais, sem o sacrifício de sua essência. Afinal, the medium is the message. Os gaps e conflitos que pululam feito pulgas no picadeiro tecnológico não são somente jurídicos. Lafayette já indicava que a legislação hipotecária havia nascido e desenvolvido sob a ação de ideias econômicas, mais do que sob os "ditames da razão jurídica". A reforma decimonômica visou precipuamente desenvolver, fortificar e multiplicar o crédito territorial (Direito das Cousas, 2ª ed. Rio de Janeiro: Jacyntho Ribeiro dos Santos, s. d., p. 451). O regime hipotecário do século XIX acabou por sacrificar, em certa medida, o elemento jurídico em pontos da maior importância (Idem, ibidem, p. 408). Certamente, ele se referia ao complexo sistema de publicidade hipotecária, nascido antes mesmo da codificação civil, que ainda tardaria várias décadas. Cédulas de crédito, securitização de ativos imobilliários, fundos de investimento, tokenização... Enfim, talvez estejamos diante de fenômenos disruptivos que, uma vez mais, hão de transformar o próprio sistema registral pátrio, convocando os juristas para uma competente "análise jurídica da economia", enfrentando os mitos da eficiência a todo custo, apregoados pelos chato-boys do mercado, parafraseando Oswald de Andrade. NFT, cessão fiduciária, e os riscos sistêmicos O mercado sempre precifica os riscos e busca soluções para enfrentar suas crises. O MERS - Mortgage Electronic Registration Systems sofreu com o colapso hipotecário do subprime (2007-2008), mas sobreviveu e se reestruturou, reforçou seus protocolos de compliance e passou a ter um uso mais restrito, é verdade, mas ainda se acha bem plantado no cenário norte-americano. O risco de as atividades próprias de registradores serem absorvidas por outros agentes - ou pelo próprio mercado - é sempre presente e atual. O registro das alienações fiduciárias de veículos automotores, por exemplo, foi absorvido por um registro administrativo (Detran). O registro das garantias no RTD ostentava o caráter constitutivo, essencial para gerar plena eficácia da garantia real (Moreira Alves). Entretanto, nenhum rigor jurídico importou muito para deter a vaza reformista. O registro em RTD foi considerado uma "odiosa imposição", nas duras palavras do ministro Luiz Fux. Segundo ele, o registro afrontaria o princípio da razoabilidade, "posto impor desnecessário bis in idem, máxime à luz da interpretação autêntica levada a efeito pelo novel art. 1.361 do CC" (STJ REsp 686.932-PR, j. 1/4/2008, DJ 10/4/2008, rel. min. LUIZ FUX). Daí a consagrar-se no STF a constitucionalidade do dispositivo foi um pulo. Dar-se-ia, a partir de então, como constituída a propriedade fiduciária de veículos com o mero registro do contrato de garantia na repartição administrativa competente para o licenciamento do bem (STF RE 611.639- RJ, j. 21/10/2015, DJ 15/4/2016, Pleno, rel. min. MARCO AURÉLIO). Aliás, o RENAVAM - Registro Nacional de Veículos Automotores é um registro público, estatal, obrigatório e vinculado ao poder de polícia administrativa (CTB - lei 9.503/ 1997). Nele se registra a propriedade do veículo, com sua especialidade e histórico (continuidade). Mas calha perguntar: e as garantias reais? Onde são registradas? No RENAGRAV (Registro Nacional de Gravames), como previsto na resolução 689, de 27/9/2017, baixada pelo CONTRAN. Entretanto, a resolução CONTRAN 1.016, de 11/12/2024 (que atualiza a res. 807/20) previu que os contratos de alienação fiduciária deveriam ser "obrigatoriamente registrados no órgão ou entidade executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal por meio de empresa registradora de contrato especializada, credenciada" (art. 8º). As empresas registradoras recebem o credenciamento para realização de tarefas operacionais (transmissão de dados, monitoramento de contratos para empresas privadas sob controle público). Na prática o registro de gravames é feito por empresas privadas. Eis uma nova modalidade de privatização light... É preciso destacar a diferença entre a alteração legislativa ocorrida no caso de alienações fiduciárias registradas no RTD e a que se refere ao registro imobiliário (competência circunscricional). Em relação aos veículos automotores, havia uma dispersão do locus registral. Sabemos que a transmissão de bens móveis se dá pela tradição (art. 1.226 do CC) e o instrumento de garantia de bens móveis deveria ser inscrito nos RTDs do domicílio das partes (art. 130 da LRP). A lei promoveu a concentração dessas competências no âmbito do Detran, à míngua de um sistema eficiente do próprio RTD à época (hoje seria possível no âmbito do ONRTDPJ, mas esta solução lamentavelmente tardou). Mesmo as chamadas entidades registradoras (BCB) funcionam em regime de interoperabilidade (circulares BCB 3.953, de 10/7/2019 e 3.968, de 31/10/2019). O risco que o Registro de Imóveis brasileiro corre é justamente reduzir-se à tarefa de constituição do direito de propriedade, dando ocasião a uma espécie de "comoditização" de inscrições que servirá de base para a constituição, alhures, de garantias reais. Há indícios de descolamento progressivo das garantias reais (e sua circulação por meio de cessões fiduciárias) trespassadas dos ofícios prediais para entidades registradoras. Eu havia provocado a reflexão dos registradores no artigo A inconstitucionalidade dos meteoros1, a propósito da resolução BACEN 4.088, de 24/5/2012, que dispôs acerca do "registro de informações referentes às garantias constituídas sobre veículos automotores e imóveis relativas a operações de crédito, bem como de informações referentes à propriedade de veículos automotores objeto de operações de arrendamento mercantil". A tokenização pode vir a ser um registro que mantém a âncora na propriedade registrada no RI, enquanto navega como ativos infungíveis nativos em plataformas eletrônicas privadas, como veremos logo abaixo na experiência do Rio Grande. Blockchain e Smart Contracts - desafios à segurança jurídica? A BC - blockchain é uma ferramenta útil para conferir maior segurança ao sistema registral. Na especificação do SREI, lá pelos idos de 2011-2012 (LSITEC-CNJ), antevíamos o uso da BC para registro encadeado de transações eletrônicas no processo do SREI. O elegante modelo acha-se especificado na documentação técnica publicada. No ano de 2016, em São Paulo, o IRIB realizou o encontro para debater especificamente o tema da blockchain como ferramenta do registro imobiliário, publicando, já no ano seguinte, a IPRA-CINDER International Review (jan./jun 2017) Posteriormente, no IRIB, seria criado o portal de editais on line, onde as edições eram registradas em BC. Penso que foi a primeira iniciativa do gênero no âmbito das notas e registros públicos. É uma ferramenta com enorme potencial para agregar maior segurança às transações eletrônicas que se sucedem na cadeia registral do SREI. Acha-se bem documentado que a BC pode ser uma ferramenta útil e segura para o Registro de Imóveis. Já os smart contracts (contratos inteligentes) - modalidades de programas ou protocolos digitais autônomos que operam em uma BC -, ele permitem a execução automática, transparente e segura de contratos sem a necessidade de intermediários. Aqui reside o busílis. Nos modelos tradicionais, as transações imobiliárias eram instrumentalizadas pelos notários e registradas no Registro de Imóveis. O Registrador, profissional do direito, examinava o título, conferia sua congruência com a ordem legal (princípio da legalidade), confrontava o título com os antecedentes registrais (continuidade), para, ao final, determinar o registro, fruto de uma diligência de caráter jurídico. Ao exercer esta atividade "de qualificação registral", o registrador funcionava como oráculo - ou gatekeeper - na ponte que liga o originador do instrumento (notário, em regra) ao Registro Imobiliário. Ocorre que, com a universalização dos extratos, ressuscitados com a reforma de 2022, tais artefatos desafiam, de fato, os registradores. Criados à imagem e semelhança dos formulários da lei modelo da UNCITRAL sobre garantias (Notice Registration), a possibilidade de decaimento - de um registro de caráter jurídico para mero cadastro administrativo - é um risco. O "oráculo", que defere e sanciona a passagem do ativo para os domínios onchain, pode ser uma IA, ou simplesmente o resultado de processos eletrônicos de automação com base em algoritmos especializados. Processos que podem ser totalmente despersonalizados. Preenchidos os campos dos formulários estereotipados, expedido o extrato pelas infovias, o seu processamento pode ser fácil e instantaneamente executado, dispensando qualquer modalidade de intervenção humana, exame de legalidade e validade da titulação. O registro de imóveis poderá fazer-se "por indicação", como ocorre com o protesto de alguns títulos. Nesse cenário, as novas tecnologias realmente desafiam os registros públicos. Entretanto, elas podem, igualmente, representar um obstáculo a ser superado pelos próprios registradores, como tem sido, por exemplo, com os notários, que admiravelmente se reinventaram para sobreviver no ecossistema digital. Não se pode cair no pessimismo reacionário, paralisando-se pela neofobia, nem excitar-se pelos fetiches tecnológicos. É necessário inteligência e estratégia para enfrentar as ondas disruptivas da modernidade. O ONR e a digitalização dos cartórios O sistema registral brasileiro compõe-se de uma malha que cobre mais de dez mil registradores espalhados por todo o Brasil. São cartórios com níveis diferenciados de digitalização. A criação do ONR foi pensada visando enfrentar e resolver as assimetrias verificadas nas inspeções que realizamos em vários estados da federação integrando as comissões do CNJ. Como modernizar serventias que não contam com recursos mínimos para manter um nível modesto de informatização? Há cartórios que realizam os registros em livros manuscritos, ou serventias que padecem pela falta de energia elétrica durante o dia. O ONR foi concebido para ser a solução, oferecendo a infraestrutura tecnológica que poderá ser compartilhada pelos registradores brasileiros, de norte a sul, independentemente de sua renda e porte. A digitalização da sociedade - fenômeno que se verifica em escala mundial - não deixará de impactar os serviços registrais brasileiros. A Decisão (UE) 2022/2481 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14/12/2022, estabelece o Programa de Política da Década Digital 2030 que prevê a digitalização dos serviços públicos, de modo que 100% dos serviços essenciais deverão ser prestados eletronicamente, com acesso e interação pelas plataformas digitais, com o uso de meios de sistemas de identificação pessoal eletrônica (eID) seguros e reconhecidos em toda a União Europeia. É preciso avançar. Especificamente acerca da tokenização, não basta que se crie a infraestrutura tecnológica - computadores, bancos de dados, blockchain, técnicos, analistas etc. É necessário que se faça uma análise jurídica do modelo. Como conciliar segurança jurídica com rapidez e eficiência? Comecemos pelo começo? qual a natureza jurídica dos tokens? São títulos representativos de ativos infungíveis. Como serão registrados? Os registros serão regulados e fiscalizados pelo Poder Judiciário ou pela CVM, Banco Central ou Conselho Monetário Nacional? São criptoativos que se enquadram na categoria de bens e valores mobiliários? São dispostos e transacionados nos mercados de capitais? Necessita-se de um marco legal? O fenômeno de conversão de direitos de garantia em títulos representativos (como as cédulas de crédito) é bastante percebido por todos nós. Os créditos podem ser cedidos e carregam a propriedade fiduciária. É conhecida a figura de cessão de crédito garantido por direito real representado por CCI escritural; ela "está dispensada de averbação no Registro de Imóveis" (§ 2º do art. 22 da lei 10.931/04). Não há propriamente "qualificação" jurídica de impulsos eletrônicos que atualizam os registros de garantias nas entidades registradoras e de custódia. As CCI's, emitidas e averbadas no registro de imóveis (§ 5º do art. 18 da lei 10.931/04), a partir desse momento, libertam-se do registro de imóveis e vagam pelas plataformas eletrônicas exógenas que gravitam o sistema registral, retornando ao final, com a "certificação" privada da titularidade atualizada do crédito e da propriedade fiduciária. Por definição - e segurança de todo o sistema - a emissão de um token deve ser ancorada no Registro de Imóveis, instituição encarregada da criação, conservação, alteração, oneração, transmissão e extinção dos direitos de propriedade. Sem esta ancoragem, os criptoativos descolam-se irremediavelmente de seu lastro material e sujeitam-se aos azares do mercado - ou decantam-se em entidades registradoras. Sirva-nos de exemplo o fenômeno de expansão da securitização. Ela representa um sinal de alerta para o Registro de Imóveis. As iniciativas de acomodação imperfeita da figura do trust no sistema do direito civil brasileiro buscam a desintermediação financeira com a transferência de ativos (créditos ou recebíveis) de um originador para um VPE - veículo de propósito exclusivo, que emite títulos lastreados nesses ativos que são postos no mercado. Trata-se de um mecanismo para captar recursos de forma eficiente, dispersar riscos e mobilizar riquezas, renovando o Direito ao adaptar negócios jurídicos consolidados (Uinie Caminha). Cessão fiduciária de crédito, lastreada em direitos imobiliários, circulam e são registrados em entidades para-registrais. A previsão legal da averbação do Termo de Securitização de Créditos (parágrafo único do art. 10 da lei 9.514/1997) foi simplesmente extirpada do ordenamento jurídico pela lei 14.430/22. O sistema registral deve reinventar-se Semanticamente, um token significa simplesmente sinal, símbolo, prova. A matrícula pode ser considerada um token, no sentido de que a informatização das plataformas pode fazer nascer a representação digital da própria matrícula - um registro estruturado que consolida e atualiza a situação jurídica do bem em tempo real (Unger/Jacomino). Poder-se-ia convertê-la num NFT registral - Non-fungible tokens, identificado de forma única e publicizado por meio de blockchain consorciada ou sindicalizada? Nesse modelo, não são os registros individualmente considerados que se convertem em NFT, mas a própria matrícula, em seu estado depurado e atualizado, em tempo real, representação digital fidedigna da realidade jurídica do imóvel. Nesse caso, pergunta-se, a conversão da propriedade em um token promove a mutação da natureza da propriedade? A sorte do token, no dinamismo dos intercâmbios eletrônicos, divorcia-se do lastro estático dos direitos inscritos? Esta cisão precisa ser bem pensada estruturada, sob pena de criar um "esquizoregistro". Nesse cenário, a compra e venda de um imóvel "tokenizado" representa uma ruptura profunda no sistema de titulação afeiçoado ao sistema do direito civil. Sua adoção poderá representar uma mudança disruptiva, e sabemos que uma disrupção pode significar simplesmente destruição. A tokenização imobiliária é possível no Registro de Imóveis? Respondo afirmativamente. É preciso inteligência e perfeita compreensão dos fundamentos da publicidade jurídica, para que não nos percamos pela tentação da "administrativização" do chamado "registro de direitos" (ok, o sistema brasileiro é inscritivo de títulos), nem que as atividades nucleares do registro - adjudicação e atribuição de direitos reais - possam ser absorvidas por empresas ou pela própria administração. Modelos teóricos e implementações tecnológicas já existem e devem ser conhecidas pelos registradores. Desde as Colored Coins, que coloriam (marcavam) moedas para representar ativos únicos (propriedades, ações), até a sua popularização com o Ethereum, que introduziu o padrão ERC-7213, permitindo tokens únicos e não intercambiáveis, muitas discussões ocorreram. Desde então, não faltam projetos que ambicionam o mercado nascente, transformando os bens e seus direitos em ativos infungíveis negociados em plataformas eletrônicas. Quando achávamo-nos no Conselho Consultivo do Agente Regulador do ONR, propusemos um modelo de registro de emissão e averbação de cessões sucessivas até o cancelamento da garantia em plataforma compartilhada do ONR, tudo de forma eletrônica. O modelo previa o controle das mutações realizado por cada unidade de registro em operação direta na plataforma compartilhada do SREI, o que diferia dos modelos de "centrais de gravames" que foram tentadas, mas debalde. O projeto ficou nas discussões preliminares, mas podem ser retomadas. Há um sem-número de atividades que podem ser exploradas, tendo por base uma plataforma rápida, eficiente e segura, a cargo do ONR. No ambiente compartilhado, podem ser lançadas âncoras para lastrear várias operações blockchain-backed. Preservação de bens históricos, com a transferência tokenizada de potencial construtivo, tokenização de precatórios, captação de recursos no mercado para financiamento de aquisição de bens imóveis, controle de locações temporárias (Airbnb), uso de contratos inteligentes para automatizar aluguéis, incluindo pagamentos recorrentes, depósito de garantias e resolução de disputas etc. As inúmeras possibilidades que se abrem com a difusão das plataformas digitais, que propiciam negócios inovadores, requerem um suporte registral seguro e eficiente. Com a miríade de oportunidades, vêm, igualmente, os riscos e eles são conhecidos na literatura especializada. É preciso conhecê-los, para não incorrer nos mesmos erros. CGJRS, COFECI e CGJSC - ventanias e vendavais - exemplos práticos a) Rio Grande na vanguarda Iniciativas como a do Rio Grande do Sul (provimento CGJRS 38/21) mostraram-se notoriamente defectivas. Registra-se a permuta de determinado bem imóvel por um token não fungível (NFT). O imóvel passa a integrar o patrimônio da denominada tokenizadora, mas sem qualquer mecanismo de afetação ou segregação patrimonial. O titular do NFT pode aliená-lo, é certo, mas não haverá atualização da situação jurídica no Registro de Imóveis, de modo que o token "desgarra-se" do lastro (matrícula) e vaga em repositórios privados sem controle registral ou supervisão de autoridades do mercado. A propriedade segue a sorte da tokenizadora, sem afetação ou blindagem satisfatórias, sujeitando-se às vicissitudes  e intercorrências que podem afetar os direitos inscritos. Os próprios registradores, em nota conjunta de diretoria 6/21 (Fórum de Presidentes das Entidades Notariais e Registrais do Estado do RS), apressaram-se em esclarecer que a permuta "não representa direitos sobre o imóvel permutado, seja no momento da permuta ou após, como conclusão do negócio jurídico representado no ato." Caberia então indagar: qual o sentido de se qualificar esta operação como de "tokenização"? b) COFECI - Resolução COFECI 1.551/25 O COFECI baixou a resolução COFECI 1.551/25 (DOU 15/8/25) instituindo o Sistema de Transações Imobiliárias Digitais. Essa norma regulamenta a tokenização imobiliária no Brasil, criando um marco para a emissão, negociação e custódia de TID - Tokens Imobiliários Digitais, que representam DIT - Direitos Imobiliários Tokenizados vinculados a imóveis. O TID funciona como representação digital única (NFT focado em direitos imobiliários) em blockchains ou tecnologias de registro distribuído (DLT), permitindo transações como transferência, oneração ou fracionamento de direitos sobre imóveis. Chega a ser admirável que o COFECI aventure-se por estas plagas. A lei 6.530/1978 diz que a ele compete disciplinar e fiscalizar a profissão de Corretor de Imóveis em todo o território nacional (art. 5º). Por outro lado, a atividade própria dos corretores (e de seus órgãos) cinge-se a "intermediação na compra, venda, permuta e locação de imóveis, podendo, ainda, opinar quanto à comercialização imobiliária" (art. 3º). O COFECI evidentemente não tem competência constitucional ou legal para instituir subsistemas de registro imobiliário, invadindo a competência constitucional e legal dos Registros Públicos (art. 236 cc. com inc. I do art. 22 da CF/1988 e lei 8.935/1994). Tampouco pode autoproclamar-se dotado de poderes para criar e gerir tal sistema - pelas repercussões gravosas pela dissociação dos registros legais e a tokenização. Nem pode atrair o poder normativo para conferir validade e eficácia jurídica aos atos e negócios jurídicos da tokenização. Evidentemente, a função normativa do COFECI não pode ultrapassar os limites da realização dos objetivos institucionais da profissão regulamentada (inc. III do art. 10 do decreto 81.871/1978). O problema se nota nitidamente quando se verifica que o sistema proposto extrapola os limites conceituais da própria intermediação imobiliária. A lei 6.530/1978 confere ao COFECI competência para regular a intermediação, atividade que pressupõe uma relação triangular entre adquirente, transmitente e corretor, sem que este último jamais "detenha" a propriedade do bem intermediado. Contudo, a resolução institui figuras como o ACGI - Agente de Custódia e Garantia Imobiliária, que exercerá suas funções "mediante a detenção da titularidade registral ou de garantia real sobre imóvel" (art. 24, § 1º), autorizando as plataformas a atuarem como contrapartes diretas nas transações (art. 22). Tais atividades não são típicas figuras de intermediação no sentido técnico-jurídico, mas operações financeiras e fiduciárias que demandam titularidade dominial ou real, extrapolando, manifestamente, a competência regulatória originária do Sistema COFECI-CRECI, adentrando a seara própria de órgãos reguladores. Para os propósitos destas pequenas digressões, e em linhas muito gerais, os principais órgãos do Sistema COFECI estruturam-se assim: SGR - Sistema de Governança e Registro. Hub central e repositório oficial do ecossistema (art. 110), encarregado de armazenar e publicizar as transações realizadas e os gravames já constituídos nas PITDs, garantindo interoperabilidade entre subsistemas, com geração de hash e timestamp oficiais, e sempre sem prejuízo de outros registros legalmente exigidos. PITDs - Plataformas Imobiliárias para Transações Digitais. São responsáveis pela formalização das transações digitais (art. 75) e pelo registro/controle de gravames (arts. 80-84), com comunicação obrigatória ao SGR. ACGIs - Agentes de Custódia e Garantia Imobiliária. Estruturas que podem deter titularidade registral ou garantia real (§ 1º do art. 24; art. 55), a fim de assegurar a correspondência e exigibilidade dos direitos tokenizados. Acerca das ACGIs, desponta uma contradição funcional insuperável. A resolução estabelece que a função essencial do ACGI será exercida mediante a "detenção da titularidade registral ou de garantia real" sobre imóvel (§ 1º do art. 24). A fórmula é tecnicamente infeliz. No direito civil, detenção (art. 1.198 CC) é a situação de quem conserva a coisa em nome de outrem, sem animus domini; já a titularidade registral corresponde à propriedade tabular (art. 1.245 CC). Falar em "detenção da titularidade registral" soa, na melhor das hipóteses, contraditório. O dispositivo parece abranger duas hipóteses: o ACGI como proprietário inscrito no RI ou como titular de garantia real (hipoteca, AF, anticrese etc.). Em qualquer caso, o investidor-tokenista não figura na matrícula, reduzido a titular de um direito derivado. A titularidade, na hipótese, é de um intermediário. Como alguém "detém" um direito de propriedade ou de garantia real? Como a figura da detenção de um direito real de garantia pode figurar no ecossistema da corretagem? O descolamento entre titularidade econômica e titularidade tabular gera a aparência enganosa de que o token equivaleria à propriedade, quando apenas o registro na matrícula é constitutivo e conservativo do direito real. De outro lado, os resultados esperados das operações são: 1) DITs - Direitos Imobiliários Tokenizados. Conjunto de direitos incidentes sobre bem imóvel determinado, de natureza real ou obrigacional, passíveis de representação digital por TIDs e de transação em PITD credenciada 2) TIDs - Token Imobiliário Digital: Representação digital de DITs - Direitos Imobiliários Tokenizados, emitida e registrada em blockchain ou tecnologia de registro distribuído (DLT) compatível, vinculada a imóvel determinado e, sendo o caso, a um ACGI - Agente de Custódia e Garantia Imobiliária; Um aspecto particularmente sensível da resolução é a previsão de auto custódia de TIDs pelo próprio titular, mediante termo de ciência dos riscos (art. 44). Essa figura rompe a trilha probatória entre chave privada do bloco e matrícula, enfraquecendo o vínculo que dá segurança jurídica à tokenização. Além disso, a resolução tem vigência prevista para a primeira metade de outubro de 2025, 60 dias após sua publicação no DOU. Esse intervalo será crucial para que o debate institucional - sobretudo com CNJ, IRIB, ONR, Bacen e CVM - avalie os limites da competência normativa do COFECI e defina como o novo ecossistema se articulará com o Registro de Imóveis. À parte o exposto, o aspecto relevante é a maneira como ocorre a amarração dos NFT's onchain com os direitos reais legalmente constituídos offchain. Os efeitos jurídicos colimados na plataforma COFECI têm "natureza mediata ou indireta sobre o ativo imobiliário subjacente ou sobre os direitos reais a ele inerentes", de "conformidade com a legislação de registros públicos e demais normas aplicáveis" (art. 54). Isto significa que a plataforma depende de protocolos de interoperabilidade com o sistema registral, de modo a permitir o contínuo monitoramento do sistema (oversight), pois a higidez do token acha-se na dependência da validade e eficácia do direito representado. Como já dissemos, a plataforma criada pelo COFECI não representa uma extraordinária novidade, pois isto já ocorre com a plataformização de títulos emitidos no processo de securitização e emissão das cédulas de crédito, registrados em sistemas de custódia e registro criados e fiscalizados pelas autoridades do BCB. O calcanhar de Aquiles é a coordenação entre o token e os direitos legalmente constituídos. Amiúde encontramos a expressão "ativo imobiliário subjacente", a referir-se ao lastro registral. O bem imóvel que fundamenta a operação de tokenização deve ter suas informações apresentadas de forma organizada, incluindo dados completos sobre suas características físicas (especialidade objetiva) e outros elementos, além do número da matrícula no Registro de Imóveis. Deve atualizar a situação jurídica, em tempo real, revelando a ocorrência de eventuais ônus, encargos, restrições que gravem o bem imóvel, elementos que podem afetar diretamente os direitos tokenizados e inocular o germe da insegurança jurídica no sistema. A duplicidade de sistemas criada pela resolução produz um efeito que só pode ser descrito como um registro esquizóide: de um lado, a matrícula, eixo da fé pública imobiliária (CF, art. 236; CC, art. 1.245); de outro, o SGR, que funciona mais como peça de marketing do que como verdadeiro registro. É nesse terreno que vicejam os slogans sedutores, como o de que "o token é o imóvel", fórmula enganadora que mascara a realidadejurídica. O risco não é apenas conceitual: ao propagar a ilusão de equivalência entre matrícula e token, o sistema compromete o capital simbólico da fé pública registral, sem oferecer qualquer acréscimo efetivo à segurança jurídica do mercado imobiliário. Nada impede que o COFECI discipline a circulação de direitos de caráter obrigacional relativos a bens imóveis, cuja existência independe do registro. O problema é bem outro: a Resolução, ao estruturar um sistema de custódia e publicidade, pode induzir à equipolência entre o token e a propriedade registral, como se fossem equivalentes. Esse slogan pode ser sedutor, mas enganador. Sem o registro na matrícula, nenhum direito real nasce ou se transmite (art. 1.245 do CC). O risco é de caráter sociológico e mercadológico: criar no imaginário coletivo a ideia de que a titularidade digital bastaria, quando apenas o Registro de Imóveis pode constituir os direitos e assegurar sua plena eficácia erga omnes. O Sistema de Governança e Registro deve garantir que as informações fornecidas sejam sempre uniformes e confiáveis, pois a estrutura jurídica de tokenização deverá "assegurar, por mecanismos juridicamente idôneos, a correspondência, integridade e exigibilidade dos direitos representados pelo TID em relação ao ativo imobiliário subjacente" (art. 55). Quais serão estes mecanismos "idôneos" e "confiáveis" que garantirão a correspondência, integridade e exigibilidade dos direitos representados no token em relação aos ativos registrados? Em suma, o sistema não trespassa e nem suprime o sistema registral, nem busca a simples concorrência, mas cria um regime de gestão de ativos que se assentam sobre direitos legalmente constituídos, sem um claro liame que dê substância ao sistema, como um viaduto no ar, sem sustentação. A ambição do COFECI foi candidamente reconhecida por seu presidente: "O SGR - Sistema Eletrônico de Governança e Registro de Contratos foi idealizado a fim de tornar digitais as vistorias de imóveis e as ações fiscais. Entretanto, em face da novíssima lei 14.382/22, que cria o SERPE [hilária a confusão] - Sistema Eletrônico Unificado de Registros Públicos, considerando a condição de Autarquia Federal e a fé pública, conferidas por lei ao Sistema Cofeci-Creci, decidimos elevar o SGR à condição de Sistema Registrador de contratos e documentos em geral, oferecido a baixíssimo custo a todos os corretores e imobiliárias do Brasil". Ou seja: o SERPE [sic] é um órgão centralizado, "uno e funcional", barato e acessível.4 Este fenômeno não é uma novidade. Iniciativas como o COFECI despontam no cenário porque oportunizam a realização de transações que os meios tradicionais do registro até agora não permitiram. É óbvio que melhor para toda a sociedade seria que esta complexa estrutura estivesse a cargo dos próprios registradores imobiliários, por meio do seu ONR. Os registradores podem (e devem) criar plataformas inteligentes para assimilar os impulsos da sociedade digitalizada e dar-lhes solução satisfatória. c) CGJSC - cautela e canja de galinha Andou muito bem a CGJSC ao proibir operações que tais envolvendo os cartórios de registro de imóveis, muito embora a resolução 1.551/25 prescinda da inscrição da ancoragem por meio de permuta, como no Rio Grande do Sul. A pedido dos registradores do Estado, a Corregedoria estadual, por meio do provimento CGJSC 43/25 (circular CGJ 410/25), vedou expressamente praticar atos (averbação ou registro) que vinculem a matrícula imobiliária a tokens digitais, representações em blockchain, ou qualquer outro instrumento extrarregistral, com ou sem pretensão de representar a titularidade dominial. A decisão fundamentou-se na necessidade de preservação da segurança jurídica registral, da fé pública e do sistema único e oficial de publicidade imobiliária. Os problemas antevistos de fato representam riscos à segurança jurídica, ruptura da cadeia dominial, evasão fiscal, lavagem de dinheiro, multiplicidade de titularidades e erosão da função pública notarial e registral. Década da plataformização do Registro de Imóveis Desde o ano de 2012, vimos nos dedicando à reforma do sistema registral, buscando dotá-lo de meios para acolher e dar respostas efetivas a demandas da sociedade em passo de progressiva digitalização. Os novos meios digitais descerram um amplo espaço para realização de negócios jurídicos que eram impensáveis nas plataformas e media tradicionais. O sistema propugnado pelo COFECI é ambicioso e se aproveita de uma sentida lacuna nos sistemas de publicidade registral. O modelo é elegante, porém ainda frágil. Fornido com os melhores recursos tecnológicos, como time stamping e IA, falta-lhe, contudo, base legal e a confiança do mercado. Uma imagem impressiva do projeto seria a conhecida passagem de Daniel: a cabeça é de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre e as coxas de bronze, as pernas de ferro, mas os pés são de barro. Uma década é muito tempo na perspectiva de uma época de transformações aceleradas. O tempo e o espaço no direito é um tema inquietante e que deveria entrar nas especulações dos juristas que lidam com os efeitos de certos atos e fatos jurídicos que projetam seus efeitos no tempo. As distâncias entre as freguesias e as comarcas do Império, vencidas no lombo de mulas, acarretava a dilação do tempo de registro das hipotecas (a figura da reserva de prioridade foi criada por essa razão). Hoje as transações eletrônicas são instantâneas e não conhecem os acidentes do caminho. Pequena conclusão As cabeças da Hidra de Lerna são expressões dos múltiplos vícios humanos - que, no nosso caso, representam os desafios impostos pela ambição tecnológica. Elas nos desafiam ao justo combate e à ação de superação pela atividade de regeneração. Aproveito o mote mitológico para finalizar com os desafios postos aos registradores. A Matrix Generatrix (Echidna) gera monstros como Cérbero, Quimera e a nossa Hidra de Lerna, entre outros. São imagens que representam os desafios cruciais da modernidade. A barreira legal-constitucional é frágil para lidar com a Matrix e com as adversidades e circunstâncias fortuitas da vida institucional. Um positivismo de resistência já não basta. Como na boutade deliciosa do Dr. Ermitânio Prado, não é possível proclamar, de modo pomposo e grandiloquente, a inconstitucionalidade de meteoros. É necessária ação transformadora e criativa. E o Registro de Imóveis tem virtude e história para vencer mais este desafio. _______ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui.
Trata acerca da carta de anuência assinada pelos confrontantes no procedimento de retificação de área realizado no registro de imóveis, conforme art. 440-AX, § 1º, do CNN/CN/CNJ-Extra (incluído pelo prov. CNJ 195/25 - provimento do IERI-e).1 Conforme § 1º do art. 440-AX do CN, "A declaração expressa dos confinantes de que os limites divisórios foram respeitados poderá ser realizada na planta, no memorial descritivo ou em instrumento apartado, observando o disposto no art. 220 do CC". Trata-se da normatização de algo que já ocorria na prática cartorária e que, justamente, tinha sua viabilidade jurídica no dispositivo do CC, o qual preceitua que "A anuência ou a autorização de outrem, necessária à validade de um ato, provar-se-á do mesmo modo que este, e constará, sempre que se possa, do próprio instrumento" (art. 220). Uma leitura isolada do art. 213, inc. II, da LRP, no entanto, faria o intérprete pensar que somente seria válida a assinatura dos confrontantes anuentes "na planta e [no] memorial descritivo". Nada obstante, diante da dificuldade enfrentada pelos agrimensores e profissionais do ramo imobiliário em conseguir reunir em uma única planta ou memorial descritivo todas as assinaturas dos confrontantes, o entendimento prático de vários registradores de imóveis sempre foi o de possibilitar que se apresentasse documentos individuais assinados pelos respectivos confrontantes, instrumento apartado normalmente denominado de carta de anuência. Imagine-se a dificuldade de reunir em um único documento a colheita de assinatura de 20 ou 30 confrontantes de um grande imóvel rural. Não parece muito funcional nem conveniente levar uma planta para ser assinada ou então encaminhar a planta pelos correios ou por terceiros para dezenas de diferentes confinantes, diante do risco de extravio ou perecimento da planta, situação que poderia ensejar a dura tarefa de ter o requerente de solicitar novamente, aos vizinhos que já anuíram, nova aposição de suas firmas. Por esse motivo, andou bem a normativa do CNJ para considerar cumprido o requisito da anuência em quaisquer dos casos, podendo o requerente optar por apresentar uma planta assinada por todos os confrontantes, ou então um memorial descritivo assinado por eles, ou, ainda, cartas de anuência individuais destes confrontantes. Para além disso, nada obsta que se colha as anuências de forma mista: alguns dos confrontantes assinando diretamente na planta, outros no memorial descritivo e, se for o caso, outros ainda firmarem sua concordância com os limites divisórios da propriedade por carta de anuência. Em outras palavras, ao que parece fica a critério do interessado apresentar a anuência dos confrontantes de seu imóvel por qualquer dos meios (planta, memorial descritivo ou carta de anuência). Ademais, conquanto a literalidade da redação do art. 213, II, da LRP, como vimos, ditar expressamente que a assinatura dos confrontantes deve ser dada na planta "e" no memorial, seria uma exigência eivada de excessivo rigor e sem nenhum ganho para a segurança jurídica esse bis in idem procedimental. Se o confrontante assinou na planta, estará dispensado de assinar no memorial, e, vice-versa. Se assinou a carta de anuência, de igual modo, dispensado estará de assinar qualquer outra peça técnica para comprovar sua aquiescência com o procedimento de retificação. _______ 1 Este é o segundo artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/25, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis.
quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Um universo paralelo

Fragmentos autobiográficos, memorialística, lirismo, sensualidade, espanto diante da maravilhosa complexidade do viver, tudo cabe nesse universo paralelo ora partilhado com privilegiados leitores. De Sérgio Jacomino, tinha presente a sua condição de registrador de imóveis bem peculiar. Erudito, entranhado na tecnologia, visionário, formulador de propostas novas para esse território de tamanha importância para a segurança jurídica de um dos direitos fundamentais mais ambicionados: a propriedade imobiliária. Intuía que sua expertise nessa área reservada ao direito registral poderia conviver com outros interesses e aptidões. Só vim a descobrir que sua vocação se espraiava por infinitos labirintos da imaginação, ao ler "Sonhos de Szarkyon". É um livro que alia a pequenez física - 112 páginas, em dimensão reduzida - a um acervo imenso de conteúdo. Fragmentos autobiográficos, memorialística, lirismo, sensualidade, espanto diante da maravilhosa complexidade do viver, tudo cabe nesse universo paralelo ora partilhado com privilegiados leitores. Jacomino domina a magia do xadrez das palavras. Tem intimidade com as metáforas. Explora a analogia sonora entre verbetes e produz formulações originais. O que sugeriria uma gota de non sense, vai se converter em sedutor convite para perscrutar veredas novas. O livro começa com "Divagações", prossegue com "Sonhos" e "Vivências". O primeiro texto é sobre a morte: "Não há novidade alguma em extinguir-se, não é mesmo?...Novidade se faz entre os vivos, nós outros, que seguimos a dura peregrinação sobre a Terra dos Homens. Proclamamos a dor da perda e nos consolamos. Registramos em pesados livros a súbita sentença da vida: a Morte. Senhora eminente, soberana, pesa o cetro fatal sobre todos nós". A ceifadeira volta a surgir em "Vivências": "Matar-me podes, neste silêncio vazio de estrelas. Como a chama levada pelo vento, deito as cinzas de um frágil sinete, perene signo sob a planta de seus pés. Reduzir-me a pó, poderias. Mais do que isso, não". Todavia, a morte não é tudo: "Impermanência. De nós restará mais do que pó e cinzas. Belas poesias". Ele chega a citar "la loca de la casa", que era como Santo Agostinho chamava a imaginação. Dessa copiosa fonte jorram haicais: "O trem carrega os homens. Os sonhos tardam nostálgicos. Nos bancos da estação" ou "Evanescente, erras na tarde radiosa; onde erras que não erro?". Em "Silêncio", um exame de consciência: "A pergunta busca reexistir na resposta. Por que temos tantas respostas e escasseiam as perguntas? Não me responda o que não posso perguntar. Nem corresponda com o silêncio. Sejamos desiguais nas angústias. Sem perguntas. Nem respostas". O exercício extrajudicial é inspiração: "Fides publica. Ó fé pública, faca imolada. Jazes sem fio, falseada e acabada". São Paulo aparece, de forma devaneante, em Santo Amaro: "Capte-o! Vertedouro de águas profundas, consuma-o! o fim de todas as lágrimas é sempre o mar. Amar. Às vezes o encontro amaro. Amar santo. Santo Amaro, amassas e conformas o barro essencial deste jarro santo!". O texto "Uma menina cega" é tocante: "Uma menina cega. Sentei-me no assento reservado a idosos. À minha frente, bem à testa, diviso uma linda garota cega, com uma feição impassível, um rosto róseo, tranquilo, de linhas harmoniosas. Olho diretamente para seus olhos e ela começa a piscar. Como um quasar. Desvio os meus, tímido. Fecho-os e fixo o semblante da menina cega. Penso que podemos nos enxergar sob a densa escuridão. Algumas estações adiante, abro os olhos e não a vejo. Saiu tranquila, suave, silenciosamente. Imaginei que me endereçava um sorriso, a menina cega. Sorri em retribuição e segui minha jornada pensando em tudo que se pode ver com os olhos fechados". Sergio Jacomino tem os olhos bem abertos para o presente e o futuro do sistema registral imobiliário. Mas também consegue, ao fechá-los, ingressar no mistério fascinante daquele espaço que nos é dado percorrer em pensamento. Livre, sem amarras, aberto a combinações nem sempre autorizadas pelas fortes correntes da convenção, do respeito humano constrangedor, que tolhe a intenção de sermos como realmente somos. Partilhar conosco esse tesouro é testemunho de mais uma qualidade sua: a generosidade.
Analisa a exigência de abertura de nova matrícula após a retificação de área no registro de imóveis, conforme art. 440-AX, caput, do CNN/CN/CNJ-Extra (incluído pelo provimento CNJ 195/25 - Provimento do IERI-e).1 A fim de padronizar e simplificar o procedimento de retificação de área em todos os cartórios de registro de imóveis brasileiros, o provimento CNJ 195/25 (Provimento do IERI-e)2 disciplinou a temática, tratando sobre aspectos relacionados à forma de anuência dos confrontantes, casos de dispensa destes confrontantes, desburocratização do procedimento em casos de retificação seguida de desdobro e unificação, dentre outros aspectos. Este trabalho tem por finalidade examinar as regras procedimentais da retificação de área dispostas no art. 440-AX do Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial (CN/CNN/CNJ-Extra), incluído pelo aludido provimento do CNJ.3 A averbação de retificação de área foi qualificada no ato normativo do CNJ como uma espécie de averbação de saneamento, isto é, uma averbação preliminar necessária para que na matrícula haja respeito aos princípios registrais da especialidade e da continuidade4. Conforme dispõe a primeira parte (in initio) do caput do art. 440-AX, "A averbação de retificação de área de imóveis urbanos e rurais será realizada na forma dos arts. 212 e 213 da Lei n. 6.015/1973". Tal disposição normativa não inova em nenhum aspecto, mas apenas disciplina melhor as normas vigentes. Assim, deixa claro que as normas se aplicam tanto a imóveis urbanos como imóveis rurais e que o procedimento deve respeitar o disposto na lei de registros públicos. A segunda parte (in fine) do referido preceptivo é que traz uma questão interessante: o normativo deixa claro que após a realização da averbação de retificação de área, deve o registrador realizar, em sequência, a averbação de encerramento da matrícula retificada, para fazer a abertura da nova matrícula.  Tal passo-a-passo procedimental não é propriamente também uma novidade, visto que este itinerário de atos registrais já constava do decreto 4.449/01, o qual regulamenta o procedimento de certificação da poligonal no SIGEF/INCRA, ao prever que "o memorial descritivo, que de qualquer modo possa alterar o registro, resultará numa nova matrícula com encerramento da matrícula anterior no serviço de registro de imóveis competente" (art. 9º, § 5º). Nada obstante, este regramento inserto no decreto presidencial, conquanto aplicável por analogia aos imóveis urbanos, regulava apenas os casos de retificação de área de imóveis rurais certificados no INCRA. A partir de agora, resta clara a padronização do procedimento de retificação de área, determinando o encerramento (com remissão da nova matrícula aberta) e abertura de nova matrícula (com remissão do registro anterior), seja para imóveis rurais, seja para imóveis urbanos. A regra de abertura de nova matrícula disposta pelo provimento do IERI-e tem evidente finalidade de dar melhor graficidade aos registros imobiliários, isto é, evitar matrículas com informações longas e de difícil compreensão. Assim, após a finalização do procedimento retificatório, a ideia é, em si, abrir uma "matrícula limpa", fazendo remissão ao registro anterior, e, se for o caso, transportando por averbação apenas os dados e ônus que estavam vigentes no momento da retificação de área. De outro lado, uma questão de prática cartorária que é digna de nota neste contexto são os casos de retificação de área protocoladas em conjunto com pedidos de desmembramento ou unificação (remembramento)5. A fim de evitar a criação indiscriminada de matrículas que "já nascem mortas" - pois, invariavelmente, serão encerradas com os desmembramentos ou unificação a serem realizados em seguida -, bem como para que não se tenha um retrabalho de encerrar, abrir e depois encerrar de novo a matrícula recém-criada e só então abrir as matrículas desmembradas ou a matrícula unificada, parece que o melhor caminho é fazer tudo na matrícula-matriz, encerrando a tábula registral uma única vez.  Em outras palavras, a técnica registral sugerida aos registradores de imóveis é de que, havendo pedido de retificação de área cumulado com desmembramento ou unificação, façam-se todos os atos na mesma matrícula, descerrando-se uma única vez a nova matrícula já com o resultado de todos os atos requeridos. Exemplo de retificação apresentada em conjunto com pedido de desmembramento: o imóvel X registrado na matrícula 1000 precisa ter sua área retificada e o proprietário solicita também o seu desmembramento em duas parcelas, realizando os protocolos necessários e juntando a respectiva documentação no registro de imóveis. Nesse caso, o registrador de imóveis fará as averbações de saneamento necessárias, inclusive a averbação de retificação de área e, mantendo vigente a matrícula originária, realizará nela as averbações de desmembramento solicitadas, só então encerrando a matrícula e abrindo as respectivas matrículas para os imóveis desmembrados. Exemplo de retificação de área apresentada em conjunto com pedido de unificação: o imóvel X registrado na matrícula 1000 e o imóvel Y registrado na matrícula 2000 precisam ter suas áreas retificadas e o proprietário solicita também a unificação desses dois imóveis contíguos para transformarem-se em um único imóvel, realizando os protocolos necessários e juntando a respectiva documentação no registro de imóveis. Nesse caso, o registrador de imóveis fará, em cada uma das matrículas, as averbações de saneamento necessárias, inclusive a averbação de retificação de área e, mantendo as matrículas originárias, realizará nelas as respectivas averbações de unificação, só então encerrando estas matrículas anteriores e abrindo a matrícula do imóvel já unificado. Importante consignar, ademais, que existem casos - muito mais comuns em imóveis rurais - em que a descrição precária da matrícula não permite realizar essas etapas ordinárias de primeiro fazer a averbação de retificação de área e em seguida a averbação de unificação. Tal situação ocorre especialmente nos casos de fazendas ou estâncias que surgiram da junção de vários imóveis, em geral há bastante tempo, não sendo possível descrever os imóveis originários em separado. Neste caso, será possível cumular em um único procedimento e, por consequência, em uma única averbação, a "retificação de área com unificação". Conforme ensina Eduardo Augusto:6 Nada impede que a retificação da descrição tabular do imóvel seja cumulada com o pedido de fusão de matrículas (unificação de imóveis), desde que as áreas sejam contínuas e que haja perfeita identidade de proprietários (mesmos titulares com mesmas frações em todas as matrículas que serão objeto de fusão).  Aliás, muitas vezes essa é a única forma viável para solucionar a questão. Isso se justifica, pois, em alguns casos, a retificação de uma pluralidade de imóveis, sem aceitar a sua fusão, poderá resultar em número de imóveis maior do que se fossem mantidos os registros originais. É o que acontece na retificação conjunta de duas matrículas que foram interceptadas, por exemplo, por duas ou mais rodovias. De duas matrículas iniciais poderão surgir três ou mais novos imóveis, dependendo da forma como o todo foi interceptado pela rodovia. [...]  Portanto, havendo segurança de que o levantamento abrange todos os títulos declarados (para evitar que nenhum tenha ficado de fora, produzindo efeitos sem qualquer lastro em área real), e que não esteja sendo incluída área não garantida pelos registros, basta abrir as novas matrículas e averbar, em cada uma das matrículas anteriores, o seu encerramento [...].  Nada impede a retificação conjunta de matrículas, principalmente se as divisas internas se apagaram com o tempo. Tratando-se de transcrições que representam um todo, certamente ninguém saberá dizer onde estariam essas antigas divisas. Exigir do engenheiro que minta é um despautério; exigir que ele arbitre é pura inutilidade. Portanto, nada melhor do que trabalhar com a realidade e com razoabilidade. Não havendo dúvidas de que os títulos do requerente abrangem a área apresentada na planta, a qualificação positiva será a única e a melhor saída.  Em suma, a decisão está inteiramente subordinada ao livre convencimento motivado do oficial registrador. E, para isso, a segurança jurídica, a prudência e a razoabilidade devem trabalhar juntas. Em síntese, diante do desaparecimento das divisas internas de imóveis ao longo do tempo, é plenamente possível e recomendável a retificação das matrículas em conjunto com a unificação. Nesses casos excepcionais, é, porém, prudente que o registrador exija um laudo técnico detalhando a situação, sem prejuízo de exigir outros elementos de prova, se necessário. Assim, se os títulos apresentados abrangem a área descrita na planta e não podem ser descritos individualmente, a aprovação do pedido de retificação conjunta é a solução mais adequada. Portanto, do disposto no caput do art. 440-AX do Provimento do IERI-e, podemos concluir que: (i) a regra é de que, após a retificação de área, deve-se encerrar a matrícula anterior e abrir uma matrícula nova, transportando os dados vigentes daquela para esta; e, (ii) pela melhor técnica registral, como exceção, se houver apresentação de protocolo de retificação de área com posterior desmembramento ou unificação (pedidos apresentados na mesma prenotação), sugere-se que não se encerre a matrícula anterior por conta da retificação de área - a fim de não criar uma matrícula natimorta, que será aberta para logo em seguida ser encerrada -, mas se conclua todos os atos na matrícula de origem (retificação e desmembramento ou retificação e unificação) para só então encerrar esta matrícula e abrir a nova ou as novas matrículas. Por fim, ainda deve o registrador imobiliário atentar-se para os casos de averbação cumulada de retificação com unificação, quando não for possível precisar as áreas dos imóveis originais, caso em que será necessário, excepcionalmente, fazer o ato retificatório e de fusão em um único ato registral, abrindo-se a respectiva matrícula após sua conclusão. _________________________ 1 Este é o primeiro artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/2025, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis. 2 O Inventário Eletrônico Estatístico do Registro de Imóveis (IERI-e) é um procedimento destinado ao aprimoramento do controle da malha imobiliária brasileira, permitindo a coleta, organização e análise de dados provenientes dos 3.621 cartórios de registro de imóveis do país, com vistas a garantir maior segurança jurídica e transparência na governança de terras. O IERI-e, juntamente com o Sistema de Informações Geográficas do Registro de Imóveis (SIG-RI), passou a ser regulamentado nacionalmente pelo Provimento CNJ n. 195/2025, expedido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), após amplo debate e consulta pública realizada entre abril e maio de 2024. A origem do IERI-e remonta à experiência prática que este articulista teve como interventor no Registro de Imóveis de Paratinga/BA, entre 2019 e 2020, quando, diante de graves problemas de sobreposição de áreas e fraudes fundiárias, houve a necessidade de desenvolver um "pré-protótipo" do procedimento que se tornaria o primeiro levantamento estatístico registral detalhado por município. Esse trabalho pioneiro resultou em um relatório circunstanciado encaminhado à Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça da Bahia, revelando milhares de irregularidades e servindo de referência inédita para a depuração do acervo cartorário. O sucesso dessa iniciativa motivou a replicação do procedimento nos municípios de Formosa do Rio Preto/BA e Santa Rita de Cássia/BA, no contexto da "Operação Faroeste", que investigava fraudes imobiliárias na região. Para institucionalizar e aprimorar o método, o CNJ criou, em 2020, o grupo de trabalho LIODS 16/2020, do qual o autor deste trabalho foi membro na qualidade de responsável pela elaboração da minuta do ato normativo e pela orientação técnica dos registradores envolvidos na força-tarefa de implementação do "protótipo" do IERI nesses municípios. Com a conclusão dos trabalhos do grupo LIODS/CNJ, o Tribunal de Justiça da Bahia regulamentou o procedimento em âmbito estadual, inicialmente pelo Provimento Conjunto CGJ/CCI nº 8/2021 e, posteriormente, ampliando sua aplicação por meio da Portaria Conjunta CGJ/CCI nº 1/2022. O IERI, como então era denominado, serviu de base para a minuta nacional do CNJ, cuja redação tive a oportunidade de escrever e aprimorar, participando ativamente de reuniões técnicas e debates interinstitucionais.  A relevância do IERI-e e do SIG-RI foi reconhecida por recomendações de organismos como a Transparência Internacional, pelo Enunciado 71 da Jornada de Direito Notarial e Registral e por deliberações do ENCOGE, que destacaram a importância da transparência e padronização de dados fundiários para o combate à grilagem e à insegurança jurídica. Em 2024, o CNJ promoveu consulta pública sobre a minuta do provimento nacional, incorporando sugestões da sociedade civil, órgãos públicos e especialistas. Finalmente, em 2025, foi expedido o Provimento CNJ n. 195/2025, estabelecendo a obrigatoriedade do IERI-e e do SIG-RI em todo o território nacional, consolidando um novo paradigma para a governança fundiária brasileira. Sobre o tema, ver nosso artigo científico: MALLMANN, Jean. Inventário Estatístico do Registro de Imóveis: levantamento dos dados das serventias imobiliárias brasileiras. Revista de Direito Imobiliário. v. 94. ano 46. p. 153-184. São Paulo: Ed. RT, jan.-jun. 2023a. 3 Art. 440-AX, CN/CNN/CNJ-Extra. A averbação de retificação de área de imóveis urbanos e rurais será realizada na forma dos arts. 212 e 213 da Lei n. 6.015/1973, resultando em posterior averbação de encerramento da matrícula retificada e abertura de nova matrícula com a atual descrição e as devidas remissões recíprocas.  § 1º. A declaração expressa dos confinantes de que os limites divisórios foram respeitados poderá ser realizada na planta, no memorial descritivo ou em instrumento apartado, observando o disposto no art. 220 do Código Civil.  § 2º. As declarações apresentadas pelo proprietário, pelo profissional técnico e pelos confinantes deverão ser assinadas com firma reconhecida ou mediante assinatura eletrônica avançada ou qualificada.  § 3º. É dispensada a anuência do confinante: I - no caso de imóveis rurais, se o imóvel confrontante e a nova descrição do imóvel objeto da retificação tiverem sido certificados pelo Incra na forma do § 5º do art. 176 da Lei n. 6.015/1973; e II - se o imóvel confrontante for bem público e consistir em: a) águas públicas, tais como rios navegáveis, correntes ou depósitos hídricos, com respeito aos pertinentes terrenos reservados, nos termos do art. 14 do Código de Águas (Decreto n. 24.643/1934); e b) bem público de uso comum, tais como estradas, rodovias, ferrovias e outras vias de circulação, respeitada a faixa de domínio público e eventual área non aedificandi.  § 4º. Havendo necessidade de retificação da área global do imóvel rural e tendo o requerente apresentado pedido concomitante de desmembramento, cujas poligonais desmembradas estejam georreferenciadas e certificadas no Incra, deverá o oficial, nesta ordem: I - realizar a averbação de retificação administrativa da área global; e II - posteriormente, realizar averbação de desmembramento, com posterior averbação de encerramento da matrícula anterior, abrindo tantas matrículas quantas forem as parcelas desmembradas.  § 5º. Na hipótese do § 4.º deste artigo, é dispensada a certificação pelo Incra da área global objeto do memorial descritivo (art. 176, § 5.º, da Lei n. 6.015/1973), desde que as parcelas desmembradas tenham sido certificadas pelo Incra e correspondam integralmente ao somatório da área global, conforme mapa e memorial descritivo elaborados por profissional técnico habilitado, caso em que os prazos de eficácia da prenotação em relação ao desmembramento ficarão suspensos enquanto o procedimento de retificação extrajudicial estiver em curso.  § 6º. Aplica-se à unificação ou fusão de imóveis, no que couber, a regra procedimental prevista nos §§ 4.º e 5.º deste artigo.  § 7º. O deferimento do pedido de retificação de área dependerá do cumprimento dos requisitos legais e do convencimento do oficial de registro de imóveis, na forma da Lei de Registros Públicos e da legislação processual.  § 8º. Em caso de indeferimento, deverá ser expedida nota devolutiva fundamentada na qual o oficial de registro de imóveis indicará as razões da formação de seu convencimento e, sempre que possível, informará os meios de o requerente cumprir as exigências legais, podendo requisitar a apresentação de declarações, laudos, arquivos eletrônicos ou outros documentos complementares, especialmente, como meios de prova e de análise da conformidade dos trabalhos técnicos.  § 9º. Havendo indícios de grilagem de terras, fraude procedimental, declaração falsa ou cometimento de qualquer outro ato ilícito pelo requerente ou pelo profissional técnico, o oficial de registro comunicará o fato ao juízo competente e ao Ministério Público com as cópias dos documentos necessários à análise. 4 Art. 440-AS. Para a realização dos atos registrais de constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais, bem como de direitos pessoais com eficácia real; de parcelamento do solo ou de unificação ou fusão; ou de instituição de condomínio; referentes a imóveis urbanos e rurais, deverá o oficial de registro exigir previamente para o saneamento dos elementos de especialidade objetiva e subjetiva omissos, ainda não noticiados ou incorretos na matrícula, as seguintes averbações: I - dos dados pessoais: quando faltar qualquer elemento de qualificação pessoal obrigatório do proprietário ou de titular de outro direito real ou pessoal ativo no registro imobiliário; II - das alterações de estado ou personalidade civil: quando, em relação ao proprietário ou ao titular de outro direito real ou pessoal ativo no registro imobiliário, tiver ocorrido casamento, separação, restabelecimento da sociedade conjugal, divórcio, constituição de união estável, dissolução ou restabelecimento, óbito, emancipação, interdição ou alteração de nacionalidade; III - da descrição do imóvel: a) nos imóveis urbanos, nos termos do art. 176, II, "3", "b", da Lei n. 6.015/1973 e art. 440-AQ, § 1.º, deste Código;  b) nos imóveis rurais, nos termos do art. 176, II, "3", "a", da Lei n. 6.015/1973 e art. 440-AQ, § 2.º, deste Código; IV - dos cadastros imobiliários obrigatórios, nos termos do art. 440-AQ, inciso IV, deste Código; e V - de retificação de área: quando não houver elementos mínimos de segurança quanto à descrição da área, formato da poligonal e/ou limites e confrontações, observado o disposto nos arts. 212 e 213 da Lei n. 6.015/1973. 5 A Lei n. 6.015/73 - LRP utiliza o termo fusão para a união de matrículas e unificação para a junção de imóveis (KONNO, Alyne Yumi. Registro de imóveis: teoria e prática. São Paulo: Memória Jurídica, 2007). Ocorre que quando se faz uma unificação se fundem matrículas, abrindo uma nova, e a recíproca é verdadeira. Motivo pelo qual não há nenhum sentido prático em manter uma distinção entre esses termos técnicos. De sua vez, vale lembrar que a própria LRP também utiliza a expressão remembramento (art. 176, § 3º, replicado no Decreto n. 4.449/2002) como sinônimo de unificação de imóveis. Em nosso entendimento, todas essas palavras tratam do mesmo fenômeno jurídico, de modo que qualquer das terminologias (fusão, unificação e remembramento) pode ser empregada indistintamente. 6 AUGUSTO, Eduardo Agostinho Arruda. Registro de imóveis, retificação de registro e georreferenciamento: fundamento e prática. Série Direito Registral e Notarial. Coord. PAIVA, João Pedro Lamana. Saraiva: São Paulo, 2013, p. 396-398.
A mitologia tem em muito amparado o Direito. Narrativas milenares auxiliam na compreensão de temas até hoje complexos e que permeiam a sociedade em sua totalidade. A partir de Paul Veyne e por uma boa influência dos artigos da série "Crônicas da Lei e do Mito" publicados por Vinicius Quarelli na coluna Diário de Classe da Conjur, pretendo tecer algumas considerações a partir da mitologia para dialogar e desenvolver questões afetas ao Direito Registral Imobiliário, especialmente da qualificação registral. Paul Veyne e Pausânias: Uma breve genealogia dos mitos Veyne (1930-2022) foi um historiador francês que apresentou pontos de grande relevância em seu livro chamado "Os gregos acreditavam em seus mitos?" e que me parecem substantivas ao que pretendo aqui articular. Muito do que o autor constrói passa por contribuições da obra de Pausânias, geógrafo grego que escreveu um compilado de livros sobre a descrição da Grécia - cujo nome das obras é exatamente este -, o que é notável, considerando que "a Grécia que Pausânias tinha diante dos olhos mantinha ainda muitos tesouros de que o passo do tempo nos privou".1 O historiador antigo - como Pausânias - raramente cita suas fontes e, quando as faz, não é pelos mesmos motivos que nós atualmente as citamos. Naquele período, a história2 demonstrava que a credibilidade das narrativas eram chanceladas pelo tempo; as obras dos antigos eram pouco ou nada construídas com citações e mesmo assim a autoridade de seus autores não era questionada. Segundo Veyne, "[n]a maioria das vezes, Pausânias se contenta em dizer: "soube que.", ou "segundo meus informantes." e esses informantes ou exegetas eram tanto fontes escritas quanto informações dadas de viva voz por sacerdotes ou eruditos locais".3 Havia uma presunção de veracidade sobre aquilo que era narrado. Se supunha que a verdade era dita na medida em que aquele que contava a narrativa tinha predecessores, e esses predecessores tinham seus próprios predecessores, até chegar no primeiro deles que seria contemporâneo dos acontecimentos narrados.4 Veyne afirma que na Grécia, a história nasce da investigação - e não da controvérsia - haja vista que era objeto de descrição pelo autor o que foi constatado e dito nos meios geralmente bem informados.5 Aqui, a verdade não se opõe à ficção: esta é um subproduto daquela. Portanto, o mito é uma informação, uma espécie de conhecimento difuso; é uma narrativa anônima que podemos repetir, mas jamais sermos o autor. Comunicamos não o que vimos, mas aquilo que "se dizia" dos deuses e heróis, sempre em um discurso indireto.6 Veyne nos esclarece que não havia dúvida acerca dos mitos, mas também não acreditava-se neles como se acredita nas realidades que nos rodeiam. O autor auxilia nossa compreensão ao dizer que "[o] tempo e o espaço da mitologia eram secretamente heterogêneos aos nossos; o grego colocava os deuses no "céu", mas ficaria espantado se os visse no céu; e não ficaria menos espantado se o tomassem ao pé da letra no que diz respeito ao tempo e se lhe dissessem que Hefesto acabara de se casar ou que Atena envelhecera muito nos últimos anos. Ele teria "realizado" que, aos seus olhos, o tempo mítico tem apenas uma vaga analogia com a temporalidade cotidiana, mas também que uma espécie de letargia sempre o impedira de se dar conta dessa heterogeneidade. (...) [D]istinguimos tanto o limite dos séculos dos quais guardamos a lembrança quanto discernimos a linha que delimita o nosso campo visual. (...) As gerações heróicas estavam do outro lado desse horizonte, num outro mundo".7 (grifo nosso) Por exemplo, há uma explicação dada por Filocoro (quatro séculos antes de Pausânias) ao mito do Minotauro (o homem com cabeça de touro), demonstrando que sempre existe um núcleo autêntico na narrativa: ele afirmou ter recolhido do povo de Creta, os cretenses, uma tradição segundo a qual as crianças não eram devoradas pelo Minotauro, mas dadas como prêmio aos atletas vencedores de uma competição de ginástica; tal competição havia sido vencida por um homem cruel e muito forte que se chamava Touro.8 Deste modo, é correto dizer que podemos acreditar no mito e na história, mas não no lugar da história e nas mesmas condições que ela. A partir destas concepções, pretendo seguir com a proposta principal deste escrito. A qualificação registral imobiliária como Medusa O Direito, por si só e em cada uma de suas áreas de especialização, possui temas espinhosos, sensíveis, em certa medida petrificantes e, por motivos que serão expostos adiante, são relegados para um segundo plano, negligenciados e fadados ao não-enfrentamento. Se pensarmos nas inúmeras atividades desenvolvidas dentro de uma serventia registral, do balcão de atendimento ao protocolo, da qualificação ao registro, da digitalização a impressão dos atos, todas são igualmente essenciais para o funcionamento do serviço. Ocorre que uma em especial tem o escopo de outorgar ou obstar o registro dos direitos que se pretende inscrever a partir de uma documentação apresentada e demanda um inexorável aprofundamento por parte do delegatário: falo da qualificação registral, que tem sido objeto de um abandono acadêmico. Neste sentido, a qualificação se caracteriza como fase central do processo de registro de direitos9 e se posiciona, inequivocadamente, como etapa substantiva ao cumprimento das finalidades registrais, bastando ver que é nesta que o registrador exerce uma função interpretativa para com o Direito e, a partir dela, decide pela registrabilidade ou não de determinado título. É razoável afirmar que, à la Sísifo, sentenciado a empurrar uma rocha monte acima ad infinitum, fomos - e permanece(re)mos - condenados a interpretar; o que não significa dizer, ao contrário do filho do rei Éolo, que estamos destinados ao fracasso no realizar desta empreitada. Portanto, a questão que macula a interpretação é a seguinte: em um senso comum teórico fortemente estabelecido, tem-se que a decisão jurídica pode(ria) derivar da consciência do intérprete, reproduzindo o brocardo "cada cabeça, uma sentença". É preciso destacar, entretanto, que a interpretação que perpassa uma decisão - aqui, registral - não advém de questões oriundas da vida privada do intérprete: sua origem e consequência não se relacionam, a priori, com sua vida pessoal. Dito de outro modo, não se trata de escolher o que comer no almoço ou qual roupa vestir. Há, manifestamente, um compromisso a ser observado em virtude das repercussões que uma decisão jurídica produz, incluindo a decisão do registrador de imóveis (que constitui, declara, modifica e extingue direitos reais), notadamente parâmetros estabelecidos pelo Estado Democrático de Direito e pela legislação democraticamente construída. Nesse sentido, para estabelecer uma compreensão do problema, o uso de metáforas, fábulas e narrativas é sempre interessante, em especial pelo cunho pedagógico que irrompe desde a antiguidade. Da mitologia ao cristianismo, todas se utilizam desta ferramenta interpretativa-compreensiva. À vista disso, neste texto, utilizarei a figura mitológica da Medusa como standard reflexivo para examinar a qualificação registral e enfrentar demandas que exsurgem de uma confusão conceitual - ou até mesmo uma falta de conceito - do seu significado e da finalidade do registro de imóveis. Muito resumidamente, a Medusa era uma das três Górgonas - junto com  Euríale e Esteno - com serpentes no lugar dos cabelos e dotada do poder de petrificar quem lhe direcionava o olhar. Algumas versões contam que antes de ser transformada neste ser horrível com poder petrificante, era uma bela mulher que recebeu tal trágico castigo após ser estuprada por um deus.10 A pretensão, aqui, é realizar um recorte unicamente a partir do seu poder: petrificar. Com efeito, há a sensação de que, assim como a Medusa, o tema qualificação registral foi castigado pelos deuses e petrifica aqueles que ousam fixar o olhar sobre ele. Tal efeito petrificante se manifesta de duas maneiras: a um, causa uma evasão ao tema, haja vista que se evita estudá-lo intimamente - assim como se esquiva de mirar a Górgona nos olhos; a dois, petrifica-se no sentido de manter uma reprodução do que já foi construído sem qualquer tipo de questionamento, pois impede o (necessário) movimento e desenvolvimento do assunto em questão. Restar silente frente a qualquer tema é condená-lo à paralisia e ao sempre-foi-assim-então-assim-continuará-sendo. A resposta, ao que tudo indica, também é apresentada neste mesmo mito. Muito brevemente, Perseu derrotou Medusa com apetrechos fornecidos pelos deuses; destes, o que prestou maior auxílio à sua vitória foi, sem sombra de dúvidas, o escudo dado pela deusa Atena que, através de seu reflexo, permitia que o herói encarasse a górgona sem que sofresse as consequências de costume. Assim, são fornecidos critérios interessantes para enfrentar a qualificação registral, superando alguns de seus predadores - especialmente o elemento discricionariedade. O que seria, então, o equivalente registral para o escudo de Perseu? A resposta não parece ser outra: uma teoria da decisão que proveja condições de possibilidade a uma atuação não-discricionária por parte do registrador. Como abordei em outras oportunidades, precisamos estudar a THQ - Teoria Hermenêutica da Qualificação.11 Do mesmo modo que o diferencial na batalha contra a Medusa foi estar munido de recursos que ofereceram a superação da górgona pois limitavam o alcance do seu poder, a THQ se torna condição de possibilidade para o semelhante triunfo em sede de qualificação registral, por enfrentar a controvérsia a partir de paradigmas hermenêuticos e oferecer uma nova roupagem à problemática.12 A maior inquietação proposta pela THQ, de autoria do tabelião de protestos Jéverson Luís Bottega, é estabelecer critérios interpretativos para enfrentar a chamada discricionariedade decisória, que se manifesta a partir da atribuição de decidir acerca da registrabilidade dos títulos que é própria da função do registrador de imóveis. Para construir a tese, Bottega estabelece os seguintes cânones que formam o arcabouço teórico da teoria hermenêutica proposta: (i) a preservação da autonomia do Direito, (ii) a superação da discricionariedade, (iii) o respeito à coerência e à integridade do Direito, (iv) o dever fundamental de justificar as decisões e (v) o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada.  Deste modo, nasce uma forte teoria da decisão. A intenção deste breve ensaio é que, em alguma medida, possamos estudar de maneira mais ou menos crítica toda a base do pensamento registral, especialmente a qualificação registral imobiliária, apoiado no novo paradigma que é apresentado por uma teoria hermenêutica que busca revolver o chão linguístico em que está assentada a tradição; é um convite para a reflexão. Talvez seja inconveniente dizer que a independência jurídica dos registradores não é sinônimo de interpretações irrestritas. Pode ser, inclusive acredito, incômodo abordar o poder de decisão - jamais poder de escolha - exatamente por aqueles detentores de tal autoridade. Não podemos ignorar o elefante na sala pelo simples fato de que, quando chegamos, ele já estava ali; não sejamos refém do velho habitus que rotiniza o agir jurídico e o transforma no conceito heideggeriano de "tranquilidade tentadora" - que já tratei em outra oportunidade nesta coluna. Neste lugar de suspensão dos pré-juízos, estar refém da cotidianidade não se apresenta sequer como problema, pois se torna impossível confrontá-los com o horizonte crítico.13 Precisamos abrir um espaço de debates críticos no direito registral, para que não trabalhemos a partir de uma forma de "mito do dado". A crítica, enquanto análise séria, profunda e técnica dos termos e conceitos expostos e que elenca as qualidades e fraquezas de determinada tese, é o que permite o avanço e desenvolvimento que o direito registral espera dos seus operadores.  _______ 1 SILVA, Maria de Fátima de Sousa e. Pausânias: descrição da Grécia, Livro I (Classica digitalia, Textos Gregos) Imprensa da Universidade de Coimbra. Portugal, 2022. 2 A história, aqui, recebia outro significado: era, em alguma medida, uma forma arcaica do nosso jornalismo. Hoje, nas universidades, não se escreve para simples leitores, mas para outros historiadores ou pares. Não era esse o caso na Antiguidade. 3 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, pp 20-21 4 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, p.23 5 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 26 6 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, pp. 45,46 7 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 37 8 VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? Ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Mariana Exalar. 1. ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 32 9 Veja-se que apesar do nome Registro de Imóveis, registram-se direitos sobre imóveis e não os imóveis em si. 10 QUARELLI, Vinicius. Crônicas da Lei e do Mito: a Medusa e o horror dogmático. Disponível aqui. Acesso em 20/7/25. 11 SCHNEIDER, Rodrigo da Silva. Discricionariedade registral: Por um confronto com as armas da hermenêutica bottegiana. Disponível aqui. Acesso em 11/7/25 12 Para um aprofundamento na THQ, ver BOTTEGA, Jéverson Luís. Qualificação registral imobiliária à luz da crítica hermenêutica do direito: equanimidade e segurança jurídica no registro de imóveis. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2021. p. 186. 13 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Ed. - Belo Horizonte: Coleção Lenio Streck de Dicionários Jurídicos; Casa do Direito, 2020. p. 409.