COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Observatório da Arbitragem

Artigos sobre arbitragem, visando a divulgação do instituto e decisões dos Tribunais.

Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira e Marcelo Bonizzi
Em "Dando nome aos bois: breve análise sobre a(s) arbitragem(ns) esportiva(s)", coluna publicada há pouco mais de um ano1, empreendi a primeira parte da missão de desenhar e desmistificar questões relacionadas ao tema, separando o método de resolução de disputas das demais acepções semânticas, assim como iniciando o processo de depuração entre a arbitragem tradicional (aquela negociada pelas partes e incluída em uma convenção de arbitragem voluntariamente contratada), daquelas outras "arbitragens" previstas em legislação ou regulamentos de entidades esportivas. Na oportunidade, finalizei a coluna fazendo referência à arbitragem esportiva desenvolvida no âmbito da CAS - Corte Arbitral do Esporte, tribunal arbitral com sede na Suíça, especializado em questões esportivas e com atuação como instância única ou recursal em disputas relacionadas ao esporte2. Fiz referência, em especial, a uma atuação daquela Corte como segunda instância recursal em caso de procedimentos envolvendo potenciais violações à regra antidopagem. Afirmei tratar-se de situação "sui generis", em que a primeira instância do procedimento é levada a cabo no bojo da Justiça Desportiva Antidopagem e a instância recursal no bojo de uma arbitragem instituída perante o CAS. Ao misturar Justiça Desportiva e arbitragem esportiva, considerei-a uma verdadeira jabuticaba brasileira, prometendo retornar ao tema, o que faço agora. A Justiça Desportiva Antidopagem está prevista nos arts. 55-A a 55-C da lei Pelé (lei 9.615, de 24 de março de 1998)3, em observância à prerrogativa constitucional inserta no art. 217, § 1º, da Constituição Federal de 1988, que outorga competência para apreciação das disputas envolvendo disciplina e competições esportivas, observado o prazo de sessenta dias mencionado no § 2º do mesmo art.4. Trata-se, portanto, de exceção ao princípio insculpido no art. 5º, inc. XXXV, da Constituição5, permitindo-se que uma instância extrajudicial analise questões materialmente delimitadas (no caso, disciplina e competição esportiva) com prioridade em relação ao Poder Judiciário. A exceção, no entanto, não é absoluta, mas apenas temporal, ou seja, apenas nos primeiros sessenta dias garante-se que a questão seja analisada pelo órgão especializado; esgotado o prazo, abre-se integralmente a porta do Poder Judiciário para análise da matéria6. A Justiça Desportiva Antidopagem, portanto, desenhada sob a égide da exceção prevista no art. 217, § 1º, da própria Constituição, não possui características próprias de um procedimento arbitral, senão de procedimento extrajudicial de assento constitucional. E tal natureza jurídica lhe afasta da discussão acerca da voluntariedade, própria do procedimento arbitral7. A jabuticaba brasileira em matéria antidopagem fica, assim, mais interessante quando verificamos que, diferentemente da natureza jurídica da Justiça Desportiva Antidopagem, a Corte Arbitral do Esporte, essa sim, tem características próprias de procedimento arbitral e, portanto, a análise de sua legitimidade não está no assento constitucional, mas deve ser perquirida à luz do elemento da voluntariedade. A possibilidade de recurso das decisões proferidas pela Justiça Desportiva Antidopagem à Corte Arbitral do Esporte está prevista no art. 8º do decreto 8.692, de 16 de março de 2016, que estabelece que "dos Acórdãos proferidos pelo Plenário caberá recurso para a Corte Arbitral do Esporte" (§ 2º) e que, no caso de atleta de nível internacional8, o acesso àquela Corte "independerá do exaurimento das instâncias nacionais" (§ 3º). A opção do regulamento foi, portanto, conferir à Corte Arbitral do Esporte, no geral, posição de instância extraordinária, garantindo-se que a Justiça Desportiva Antidopagem cumpriria o duplo grau de jurisdição9. A possibilidade de exercício pela Corte do duplo grau ficou restrita apenas ao atleta internacional, sendo possível o recurso ao CAS independentemente do esgotamento das instâncias internas. Em ambas as hipóteses, a instância da Corte Arbitral do Esporte foi prevista como instância facultativa, não necessária para o deslinde dos processos e julgamento de potenciais violações às regras antidopagem. No caso dos atletas nacionais, sua previsão como instância adicional às duas instâncias nacionais (i.e., a Câmara e o Pleno do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem) permite prescindir-se de uma regulamentação interna, devendo o atleta, caso deseje acessar a instância internacional, observar a regulamentação específica daquela corte arbitral. Já para os atletas internacionais, a previsão quanto à desnecessidade de esgotamento das instâncias nacionais (prevista no citado artigo 8º do Decreto nº 8.692) levou à necessidade de construção de procedimento específico, isto é, à necessidade de que a própria legislação nacional previsse o caminho a ser seguido pelo atleta que, no uso de sua autonomia da vontade, preferisse o acesso à Corte Arbitral do Esporte em detrimento do esgotamento das instâncias da Justiça Desportiva Antidopagem. O procedimento em questão está desenhado nos artigos 303-A a 303-C do Código Brasileiro Antidopagem10. Trata-se do procedimento extraordinário, o qual permite que a instância inicial seja realizada perante o Pleno do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (art. 303-B), com a opção do recurso perante a Corte Arbitral do Esporte, a qual servirá como segundo grau de jurisdição neste caso. Segundo o art. 303-A, o atleta de nível internacional poderá optar por este procedimento quando intimado a manifestar-se para esse fim pela presidência do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem, sendo-lhe aplicável, em caso de silêncio, o rito ordinário (§ 3º)11. Ou seja, a opção pelo procedimento extraordinário é marcada, na legislação brasileira, pelo exercício da voluntariedade, de maneira que, não havendo manifestação de vontade no sentido de optar-se por tal rito, o procedimento seguirá o rito ordinário, o qual transcorre exclusivamente perante a Justiça Desportiva de assento constitucional. A compreensão de como o procedimento foi construído permite concluir que, embora possa causar espécie, essa verdadeira jabuticaba desportiva sustenta-se em premissas sólidas: (i) a previsão do julgamento das infrações antidopagem pela justiça especializada de assento constitucional (no caso, a Justiça Desportiva Antidopagem); e (ii) apenas quando voluntariamente aceita pelo atleta de nível internacional, a abertura da porta da arbitragem esportiva perante a Corte Arbitral do Esporte. Dando nome aos bois, podemos dizer que nesta última hipótese (ii) estamos diante de uma verdadeira arbitragem, a qual afasta tanto o disposto no art. 5º, inc. XXXV, como o disposto no art. 217, § 1º, da Constituição Federal de 1988, por uma opção exercida em observância à autonomia da vontade também assegurada constitucionalmente (art. 5º, inc. II). Não é bem assim em todas as chamadas "arbitragens esportivas", mas isso é assunto para uma próxima conversa. _______ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Art. 55-A.  Fica criada a Justiça Desportiva Antidopagem - JAD, composta por um Tribunal e por uma Procuradoria, dotados de autonomia e independência, e com competência para: I - julgar violações a regras antidopagem e aplicar as infrações a elas conexas; e II - homologar decisões proferidas por organismos internacionais, decorrentes ou relacionadas a violações às regras antidopagem. § 1o A JAD funcionará junto ao CNE e será composta de forma paritária por representantes de entidades de administração do desporto, de entidades sindicais dos atletas e do Poder Executivo. § 2o A escolha dos membros da JAD buscará assegurar a paridade entre homens e mulheres na sua composição. § 3o Os membros da JAD serão auxiliados em suas decisões por equipe de peritos técnicos das áreas relacionadas ao controle de dopagem. § 4o A competência da JAD abrangerá as modalidades e as competições desportivas de âmbito profissional e não profissional. § 5o Incumbe ao CNE regulamentar a atuação da JAD. § 6o O mandato dos membros da JAD terá duração de três anos, permitida uma recondução por igual período. § 7o Não poderão compor a JAD membros que estejam no exercício de mandato em outros órgãos da Justiça Desportiva de que trata o art. 50, independentemente da modalidade. § 8o É vedado aos membros da JAD atuar perante esta pelo período de um ano após o término dos respectivos mandatos. § 9o As atividades da JAD serão custeadas pelo Ministério do Esporte. § 10.  Poderá ser estabelecida a cobrança de custas e emolumentos para a realização de atos processuais. § 11.  As custas e os emolumentos de que trata o § 10 deverão ser fixadas entre R$ 100,00 (cem reais) e R$ 100.000,00 (cem mil reais), conforme a complexidade da causa, na forma da tabela aprovada pelo CNE para este fim. § 12. O Código Brasileiro Antidopagem - CBA e os regimentos internos do Tribunal e da Procuradoria disporão sobre a organização, o funcionamento e as atribuições da JAD. § 13. O disposto no § 3o do art. 55 aplica-se aos membros da JAD. Art. 55-B. Parágrafo único.  Os processos instaurados e em trâmite na Justiça Desportiva à época da instalação da JAD permanecerão sob responsabilidade daquela até o seu trânsito em julgado, competindo-lhe a execução dos respectivos julgados. Art. 55-C.  Compete à JAD decidir sobre a existência de matéria atinente ao controle de dopagem que atraia sua competência para o processo e o julgamento da demanda. Parágrafo único. Não caberá recurso da decisão proferida na forma do caput. 4 Art. 217 (...) § 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei. § 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final. 5 Art. 5º, XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. 6 Não se trata, portanto, de afastamento definitivo da tutela judicial, mas de delimitação de um campo material e temporal específico, em que se prioriza a tutela especializada. Esgotado, pois, o prazo de sessenta dias sem a decisão esportiva ou, ainda, caso o processo conduzido na seara esportiva infrinja algum direito passível de tutela judicial, ao atleta ou outro cidadão processado permanece conferida a garantia fundamental inscrita no citado artigo 5º, inc. XXXV, da Constituição. 7 Dado que a arbitragem só pode, em tese, excepcionar a garantia fundamental do citado artigo 5º, inc. XXXV, se as partes voluntariamente assim contratarem. 8 Assim considerado o "atleta que compete em nível internacional, conforme definido por cada Federação Internacional, de acordo com o Padrão Internacional para Testes e Investigações" (Anexo I do Código Brasileiro Antidopagem). 9 Princípio este que, embora não assegurado expressamente na Constituição, é consagrado na doutrina nacional como inerente ao devido processo legal e introduzido no ordenamento jurídico pátrio pela adesão ao Pacto de San José da Costa Rica, que o prevê em seu artigo 8, parágrafo 2, alínea h, o "direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior". 10 Disponível aqui. 11 Vale dizer que o que foi outrora teorizado e incluído no Código Brasileiro Antidopagem como uma possibilidade tornou-se já realidade, destacando-se um caso em que houve a efetiva opção do atleta de nível internacional pelo duplo grau de jurisdição perante a Corte Arbitral do Esporte. Mas isso é história para uma outra coluna.
Falar sobre arbitragem e precatórios é, sem dúvida, um assunto delicado. Afinal, esse é o momento em que a busca de uma solução de controvérsias em meios mais adequados - tendo como uma das vantagens da arbitragem a sua celeridade em comparação com a jurisdição estatal - esbarra em um obstáculo bastante preocupante. Não é segredo para qualquer profissional do Direito que atue em litígios envolvendo a Fazenda Pública o fato de que o pagamento de precatórios no Brasil é caracterizado por uma sequência de emendas à Constituição e decisões do STF sobre elas, sendo o capítulo mais recente dessa história normativa a promulgação da EC 136/25 que trouxe limitações ao pagamento de precatórios no exercício financeiro pelos entes federativos, de acordo com percentuais da receita corrente líquida. Nesse contexto, é até natural imaginar que surjam propostas no campo do Direito buscando resolver - ou, ao menos, contornar esse problema - na intenção de construir, no Brasil, uma jurisdição arbitral cada vez mais efetiva. Propostas inovadoras, sem pretender afastar o regime constitucional de precatórios, têm sido apresentadas na tentativa de oferecer um meio mais eficiente de satisfação do crédito, principalmente por meio de prestações alternativas à condenação pecuniária a serem discutidas em ambiente negocial pelas partes.1 Outras iniciativas, no entanto, têm pretendido o afastamento direto desse regime, o que nos parece impossível sob a ordem constitucional vigente. Essa semana uma nova decisão se soma a tal discussão.  No dia 27/10, último, foi proferido addendum a sentença arbitral parcial, em arbitragem em curso na CCI - Câmara de Comércio Internacional (Caso 23002/JPA/GSS/PFF/RLS) na qual o Tribunal Arbitral enfrentou o tema em questão2. O Tribunal foi instado pela parte requerente, em sede de pedido de esclarecimentos, a suprir alegada omissão caracterizada pela não fixação de prazo para cumprimento imediato da decisão, consoante dispõe o art. 26, III da lei de arbitragem3.  Alegava a parte requerente que nenhuma das condenações impostas ao Estado de São Paulo nessa arbitragem - pagamento de indenização a título de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato e adimplemento de medições contratuais não pagas - se submeteria ao regime de precatórios por entender que se trataria, apenas, de determinações de adimplemento de cláusulas contratuais. Como esperado, o pedido da requerente foi indeferido pelo Tribunal. Este consignou, expressamente, que: "nos casos de condenação pecuniária imposta à Fazenda Pública, aplica-se o regime constitucional de precatórios (...) inexistindo fundamento legal ou contratual que excepcione o regime constitucional de precatórios, não pode o Tribunal Arbitral fixar para pagamento das condenações impostas ao Estado de São Paulo". Pouco importa as verbas reclamadas eram contratuais ou não. Se é obrigação de pagar, determinada no exercício de jurisdição, aplica-se o art. 100 da Constituição da República. E agiu com acerto o Tribunal. Primeiro por hermenêutica. Onde o legislador constitucional não abriu exceções, não cabe ao intérprete fazê-lo. É com esse entendimento, inclusive, que o STF tem sido bastante rigoroso em repelir tentativas de afastamento do regime de precatórios.4  Em segundo lugar, no mérito, é comum escutar-se que, vindo discutir direitos patrimoniais disponíveis em arbitragem, deve a Administração Pública despir-se de suas prerrogativas processuais. Esse entendimento esbarra no fato de que o regime de precatórios não é uma prerrogativa processual da Administração Pública. É, na verdade, uma característica ínsita ao regime jurídico administrativo e financeiro, constitucionalmente definido, que a ela se aplica e da qual não pode despir-se ainda que queira. Isso porque o regime de precatórios é materialização concreta dos princípios da impessoalidade e isonomia. Elemento, portanto, essencial da conformação jurídica da Administração Pública, tanto quanto o são a exigência de concursos públicos para preenchimento de seus quadros funcionais ou a realização de licitação pública para seleção de seus fornecedores. Ambas também constitucionalmente definidas materializações dos mesmos princípios. Afastar o regime de precatórios seria, assim, uma violação a esses princípios "por dar tratamento privilegiado aos credores da sentença arbitral em relação aos credores de sentença judicial, que estão em situação de igualdade"5. E vamos além em uma afirmação que pode parecer ousada, mas que é verdadeira: o regime de precatórios protege, inclusive, os próprios credores da sentença arbitral.  Como? Vamos imaginar, por um momento, que fosse adotado, de maneira generalizada, entendimento contrário ao da decisão ora em comento. Neste cenário a regra seria a de que sentenças arbitrais condenatórias relativas a obrigações contratuais estariam excepcionadas do regime de precatórios. Não demoraria para que o mesmo entendimento fosse replicado no Judiciário. E, então, em face de todas essas sentenças não sujeitas ao precatório (arbitrais e judiciais, ou, por hipótese, apenas arbitrais), qual delas o Poder Público deveria pagar primeiro? Certamente não seria a mais anteriormente proferida, afinal obedecer a ordem cronológica assegurando isonomia é próprio do regime afastado. Qual critério adotar então? A menos vultuosa? A que, considerando os projetos em curso, melhor atendesse o interesse público por, por exemplo, referir-se a contrato de PPP em vigor? E caso houvesse o inadimplemento dessa miríade de sentenças não sujeitas a precatórios? Seria fácil obter, no juízo estatal - posto que já exaurida a jurisdição arbitral -, sem nenhuma previsão legal que a amparasse, alguma medida de constrição ou sequestro de verbas públicas? O cenário acabaria redundando, invariavelmente, naquele que existia antes de ser instituído o regime de precatórios: "transitadas em julgado as decisões que condenavam a Fazenda Pública a pagamento em dinheiro, "um enxame de pessoas prestigiadas e ávidas do recebimento de comissões passava a rondar os corredores das repartições fiscais. Nelas se digladiavam, como autênticos abutres e com feroz avidez, para arrancar a verba de seus clientes. Esta - pelo poderio dos advogados administrativos - saía para os guichês de pagamento com designação dos beneficiários e alusão expressa aos seus casos".6 A questão envolvendo precatórios - e, digamos diretamente - a ausência de pagamento tempestivo deles, é um problema sério da institucionalidade brasileira para o qual não existe resposta fácil nem atalho. É, de fato, "uma batalha entre os fatos e direito"7 que, nas arenas adequadas, precisa continuar sendo travada. Para que se busque, então, garantir efetivamente, de um lado a observância à isonomia e impessoalidade - que não pode ser afastada - e, de outro, o tempestivo pagamento dos credores da Fazenda Pública. Todos eles. Da pensionista à empreiteira. Sendo este pagamento tempestivo não só uma medida em vista da melhoria do ambiente de negócios brasileiro - como se costuma dizer -, mas, também, o modelo definido pelo Constituinte Originário na redação primeva do art. 100 da Carta. _________________________ 1 "Cabe frisar, todavia, que tais alternativas, por se tratar de modelagens essencialmente negociais - e, pois, sujeitas à discricionariedade - quer presentes no próprio instrumento contratual original, quer objeto de outros negócios jurídicos relacionados - estão apenas ao talante das partes, dependendo de inequívoca manifestação de vontade da Administração Pública". SACRAMENTO, Júlia Thiebaut, CARDOSO, Paula Butti e NUNES, Tatiana Mesquita. Arbitragem e Poder Pública na perspectiva constitucional: o cumprimento da sentença arbitral sob a ótica do princípio da eficiência in ABBOUD, Georges et al (coords.) Arbitragem e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 324. 2 Íntegra da decisão disponível aqui. 3 "Art. 26. São requisitos obrigatórios da sentença arbitral: III - o dispositivo, em que os árbitros resolverão as questões que lhes forem submetidas e estabelecerão o prazo para o cumprimento da decisão, se for o caso;" 4 STP 924-REF-MC, rel. Min. Rosa Weber, ARE 1523321/RJ, rel. Min Luiz Fux, ARE 1468983 e ARE 1492716 rel. Min Alexandre de Moraes, Reclamação 68826, rel. Min. Nunes Marques. 5 MEGNA, Bruno Lopes. Arbitragem e Administração Pública: Fundamentos teóricos e soluções práticas. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 288. 6 BARREIRA, Wagner. Precatório. Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 60, p.3, apud CUNHA, Leonardo Carneiro da. Precatórios: atual regime jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 12. 7 SACRAMENTO, Júlia Thiebaut, et al. Op. Cit., p. 318-9
Após vinte e nove anos de vigência da lei 9.307/1996, já não se pode dizer que a arbitragem se configure como método novo ou desconhecido da realidade jurídica brasileira. Pelo contrário, não é exagero afirmar-se que o país se transformou em uma referência do campo arbitral, estando inserindo, inclusive, na rota das arbitragens internacionais, com destaque para a solução de disputas de natureza societária e empresarial, muito em razão do advento da própria lei 9.307/1996 que fomentou o desenvolvimento do instituto; além do alto nível dos árbitros e das Câmaras Arbitrais instaladas no país; sem falar da vasta produção intelectual quanto ao tema, que se caracterizada pela interdisciplinaridade1, e que por isso propicia o desenvolvimento de estudos sobre a arbitragem em diversas áreas do conhecimento jurídico, como ocorre nas áreas de direito administrativo; tributário; ambiental; consumerista; internacional; empresarial; societário dentre outras, o que, evidentemente, contribui para o seu desenvolvimento. Apesar dos mencionados avanços, há temas que ainda hoje suscitam dúvidas e inquietações no cenário arbitral. Entre eles, destaca-se o instituto da sentença arbitral parcial. Cuida-se de instrumento incorporado à lei de arbitragem pela lei 13.129/15 (art. 23, §1) e que, resumidamente, possibilita ao painel arbitral, por iniciativa própria ou a pedido da parte, na hipótese de cumulação de pedidos, decidir definitivamente parte do objeto do processo, desde que a matéria esteja em condições de ser decidida. Veja-se, até por questão de racionalidade e eficiência do sistema é plenamente justificável que o árbitro profira sentença sobre parte do mérito se (i) a matéria for incontroversa; (ii) não houver necessidade de produção de outras provas; ou (iii) em razão da revelia forem presumidas verdadeiras as alegações de fato formuladas pelo autor, não havendo razão para, nesse contexto, manter pendente de julgamento questão apta a ser decidida, apenas porque outras ainda não estão em condições de julgamento2, sem contar com o fato de que a análise integral do litígio está assegurada. A sentença arbitral parcial, portanto, recebe o mesmo tratamento dado às sentenças únicas - aqui entendidas aquelas que, no mesmo ato, resolvem a lide integralmente -, de modo que transitará materialmente em julgado3, ainda que haja questões pendentes de julgamento. Sua eficácia será imediata, e constituirá título executivo se condenatória, além de que estará suscetível ao ajuizamento de ação declaratória de nulidade (art. 33 da lei de arbitragem), e à impugnação ao cumprimento de sentença. Entretanto, sempre haverá questões que exigirão novas reflexões, demonstrando a necessidade e desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial para assegurar maior previsibilidade e segurança jurídica. Não se ignora, nesse sentido, que, dentre outras, a temática referente à sentença arbitral ainda necessita de maior desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial no Brasil, carecendo também de delimitações conceituais como forma de evitar o mal hábito de que institutos de Direito Processual, ainda que correlatos, sejam indevidamente aplicados no Direito Arbitral. A esse propósito, em recente julgado (REsp 2.179.459/SP, julgado em abril de 20254), o STJ, ao interpretar que o § 1º. do art. 33 da lei de arbitragem (alterado pela lei 13.129/15), decidiu que o pedido de esclarecimentos formulado ao Tribunal Arbitral - mesmo quando não acolhido - interrompe o prazo decadencial para a propositura da ação declaratória de nulidade, entendimento que também pode ser aplicado à hipótese de sentença arbitral parcial, sobretudo pelo risco de contradição entre decisões futuras e aquelas eventualmente já proferidas. Trata-se de julgamento relevante, pois elucida lacuna do texto de lei, especificamente quanto ao início do prazo decadencial para ajuizamento da ação anulatória de sentença arbitral na hipótese de desacolhimento do pedido de esclarecimentos, definindo que o início da contagem do prazo para propositura de ação declaratória de nulidade se inicia com a notificação sobre o resultado do pedido. Contudo, há nesse julgamento aspectos que merecem atenção e que, como se verá a seguir, revelam uma intrigante confusão conceitual que não pode passar despercebida. O primeiro aspecto se refere ao fato de que o referido acórdão deixou de se atentar para o disposto no art. 207 do CC5, segundo o qual, salvo disposição legal em contrário, os prazos decadenciais não admitem suspensão ou interrupção e nesse ponto as exceções previstas em lei se restringem à proteção dos absolutamente incapazes (cf. arts. 208, 195 e 198 do CC), deixando de contemplar questão relativa ao início do prazo para ajuizamento de ação declaratória de nulidade da sentença arbitral que, portanto, não se interrompe nem suspende. Nesse aspecto, o ponto fundamental está na necessidade de distinguir-se prazos materiais, como é o caso dos prazos decadencial e prescricional, de prazos processuais, considerando que se referem a questões jurídicas distintas, com regras próprias de contagem de prazo e consequências diferentes na hipótese de descumprimento. Enquanto os prazos processuais se destinam a delimitar, temporalmente, a prática de atos no curso do processo, os prazos de direito material se destinam a demarcar o período para exercício de direitos subjetivos conferidos por lei, transcorrendo independentemente da existência do processo. Referem-se, os prazos de direito material, ao direito em si, ou seja, à existência, exercício ou extinção do direito material. Percebe-se, portanto, o equívoco em que incorreu o acórdão proferido no REsp 2.179.459/SP, ao considerar que apresentação de pedido de esclarecimentos, enquanto ato de natureza processual, interromperia o prazo de direito material de 90 (noventa) dias para ajuizamento de ação declaratória de nulidade da sentença arbitral. Nesse ponto, diferentemente do que ocorre com os embargos de declaração (art. 1.026 do CPC), o pedido de esclarecimentos não conta com efeito interruptivo incidente sobre toda a decisão. Pela sistemática da lei de arbitragem, se apenas parte da sentença arbitral for objeto do pedido de esclarecimentos, a sentença será desmembrada e as partes não impugnadas serão consideradas capítulos definitivos, ou melhor, sentenças arbitrais parciais - afinal, apenas as partes impugnadas estarão sujeitas a correções, esclarecimentos de obscuridades, dúvidas, contradições, ou a expresso pronunciamento sobre ponto omitido. É por isso que as partes da sentença arbitral que não estiverem pendentes de esclarecimentos configuram-se como sentença arbitral parcial e, portanto, (i) com eficácia imediata; (ii) constituindo título executivo se condenatória; (iii) estando suscetível ao ajuizamento de ação declaratória de nulidade (art. 33 caput e § 1º. da Lei de Arbitragem) no prazo de 90 (noventa) dias após o recebimento da notificação, além de (iv) sujeita à impugnação ao cumprimento de sentença. Por outras palavras: a alteração da regra de início da contagem do prazo decadencial somente incidirá sobre os capítulos que tenham sido objeto do pedido de esclarecimentos, os demais já estarão sujeitos ao curso ininterrupto do prazo decadencial para propositura da ação declaratória de nulidade da sentença arbitral, nuance que não foi observada pelo Superior Tribunal de Justiça Como se vê, ainda que novas indagações surjam - e surgirão - sobre as características, possibilidade(s) de impugnação, validade e eficácia da sentença arbitral, bem como sobre os efeitos do pedido de esclarecimentos previsto no § 1º do art. 33 da lei de arbitragem, o recente entendimento do STJ, embora relevante, demonstra-se frágil e impreciso tecnicamente, pois é capaz de fazer crer que o pedido de esclarecimentos previsto pela lei de arbitragem seria dotado de efeito interruptivo equivalente àquele conferido pelo art. 1.026 do CPC aos embargos de declaração, o que não ocorre. Em síntese pedido de esclarecimentos e os embargos de declaração se assemelham apenas pelo fato de serem institutos que buscam o aperfeiçoamento de decisões, sendo que nenhum deles tem a capacidade de interromper o curso de prazos decadenciais. Quando muito, os embargos declaratórios interrompem o prazo processual para a interposição de recursos, e os pedidos de esclarecimentos, alteram o marco inicial para o início da contagem do prazo prescricional de 90 (noventa) dias para ajuizamento da ação declaratória de sentença arbitral apenas quanto à parte pendente de esclarecimentos. Nada mais. _______ 1 Lembre-se que Lei de Arbitragem possui natureza processual, definindo, em linhas gerais, questões relativas à instauração, condução e encerramento do procedimento arbitral, destinado a "dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis" (art. 1º. da Lei 9.307/96). 2 Destaque-se que embora o Código de Processo Civil não seja aplicável à arbitragem, os arts. 344, 355 e 356 do CPC/2015 fornecem parâmetros para a prolação de sentenças judiciais parciais (sobre a inaplicabilidade do Código de Processo Civil a arbitragens, vide REsp n. 1.851.324/RS, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 20/8/2024, DJe de 23/8/2024). 3 Sobre o tema: ALMEIDA, Cássio Drummond Mendes de. Arbitragem e Coisa Julgada. Londrina, PR: Thoth, 2021., p. 125-135. 4 (REsp n. 2.179.459/GO, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22/4/2025, DJEN de 25/4/2025.) 5 "Art. 207. Salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição."
I - A inserção do art. 3.2.13 nas IBA Guidelines Em 25 de maio de 2024, a IBA - International Bar Association1, organização fundada em 1947, voltada aos profissionais do direito internacional, divulgou a segunda revisão às IBA Guidelines - Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration, originalmente publicada em 2004, com primeira revisão em 2014. Para a segunda revisão das IBA Guidelines, criou-se força-tarefa encarregada de pesquisar junto aos profissionais da arbitragem em que medida a primeira revisão das IBA Guidelines de 2014 mantinha-se útil e eficaz, bem como em quais áreas seria necessário aprimoramento. Antes da publicação das IBA Guidelines de 2024, o texto proposto foi submetido à consulta pública, com participação de instituições de arbitragem em todo o mundo, chegando-se à versão final do documento2. Manteve-se o inovador sistema inspirado na sinalização semafórica, de 2004, que inaugurou as denominadas Application Lists ("Lista Vermelha", "Lista Laranja" e "Lista Verde"), com o objetivo de ilustrar suas normas gerais, auxiliar os árbitros a divulgarem informações relevantes e as partes a avaliar se as informações divulgadas criam dúvidas quanto à independência e imparcialidade do árbitro3. Para situações constantes da Lista Vermelha4, entende-se existir obrigatoriedade de revelação e ensejar conflito de interesses, que pode, ou não, ser renunciado pelas partes em disputa, a depender do impacto causado à imparcialidade e à independência do julgador. As relações da Lista Laranja podem, a depender das circunstâncias do caso concreto, suscitar dúvidas aos olhos das partes, pelo que devem ser objeto de divulgação pelo potencial árbitro. Por fim, as hipóteses da Lista Verde são amplamente difundidas como não sendo capazes de gerar conflito de interesse nem aparência de conflito5. Em meio à revisão, foi inserido dispositivo inédito à Lista Laranja das IBA Guidelines. Trata-se do art. 3.2.13, que estabelece o dever de revelação do árbitro se ele e o(s) seu(s) coárbitros atuarem como árbitros em outra arbitragem. Lê-se, assim, no original: "3.2.13 An arbitrator and their fellow arbitrator(s) currently serve together as arbitrators in another arbitration"6. II - Breves considerações a respeito do art. 3.2.13 das IBA Guidelines Nos comentários ao texto revisado das IBA Guidelines de 2024, destacou-se que a inovação não constava na versão original da minuta divulgada para consulta pública, mas teria sido posteriormente incorporada em resposta aos comentários remetidos ao texto proposto. Segundo lá consta, em diversas jurisdições a falta de revelação a respeito da circunstância abarcada pelo art. 3.2.13 estaria sendo utilizada como fundamento para o ajuizamento de ações anulatórias. A consulta pública teria revelado preocupações somente quanto às atuações contemporâneas dos árbitros - e não passadas, que podem exigir revelação em circunstâncias particulares7. Especificamente quanto ao art. 3.2.13, conquanto o tema ainda seja embrionário e ainda passível de muitos estudos, questiona-se a existência de fundamento jurídico e/ou fático razoável para se exigir dos julgadores que revelem estarem atuando, na qualidade de árbitros, em outro procedimento em curso. É que, sob um prisma objetivo, a relação abarcada pelo regramento não teria o condão de incutir nas partes, ou em um terceiro, dúvida razoável quanto à independência e imparcialidade dos árbitros. Carlos Eduardo Stefen Elias faz crítica pertinente à inovação do art. 2.3.13 ao destacar que o dever de revelação pelo simples fato de que o árbitro compõe outro painel arbitral com um ou mais de seus pares foge da missão das IBA Guidelines porque não objetiva evitar ou mitigar conflito de interesses, dúvidas razoáveis aos olhos das partes quanto à imparcialidade do árbitro, muito menos diminuir a assimetria informacional entre as partes e o árbitro/painel arbitral8. O entendimento é amparado e exemplificado por, pelo menos, dois julgados que trataram do tema. No primeiro, Transit Casualty Company et al. v. Trenwick Reinsurance Company Ltd., a parte autora ajuizou ação anulatória de sentença arbitral alegando, dentre outras questões, que dois dos árbitros do painel arbitral não cumpriram suas obrigações de revelação perante as regras da AAA - American Arbitration Association9. Segundo narrou a autora, a parte ré indicou Thomas D. Crittenden que, em conjunto com o árbitro por ela nomeado, indicaram Arthur E. Fanning como presidente do tribunal arbitral. Contudo, Thomas D. Crittenden e Arthur E. Fanning teriam falhado em revelar que, após o início do procedimento arbitral, passaram a compor outro painel arbitral, mas, dessa vez, Arthur E. Fanning foi quem indicou Thomas D. Crittenden para presidir o tribunal arbitral, gerando dúvidas na parte autora quanto à imparcialidade dos árbitros e uma possível "troca de influências"10. A decisão, que afastou a pretensão anulatória, ressaltou que as alegações de Transit Casualty Company não passavam de inferência, não comprovada, de troca de influências entre os árbitros. Segundo a Corte do Distrito Sul de Nova York, a situação narrada não passaria de um pretexto tardio da parte perdedora, inconformada com o resultado da arbitragem, visando a reverter o desfecho da disputa11. No segundo caso, Grupo Unidos por el Canal S.A. et al. v. Autoridad del Canal de Panama, discutiu-se a validade de uma sentença arbitral em razão de um dos árbitros que compunha o painel arbitral ter nomeado seu colega coárbitro para atuar como presidente em outra arbitragem, uma posição que poderia render honorários relevantes e teria o condão de influenciar o profissional nomeado em outro procedimento a adotar uma mesma posição que seu colega como forma de retribuição12. Para a Corte do Distrito Sul da Flórida, a tentativa de anular a sentença arbitral pelo fato de que os árbitros atuaram juntos em outro caso significaria reconhecer que a simples indicação de profissionais exporia indícios razoáveis de parcialidade, o que não seria adequado supor nem encontra amparo em outros casos julgados pela Corte13. Ambos os exemplos colacionados acima evidenciam que não há razão para supor que a participação de árbitro em outro painel, no qual também atua um ou mais de seus pares, seja, por si só, capaz de gerar dúvidas aos olhos das partes quanto à sua imparcialidade, muito menos ser a ausência de revelação motivo de sua remoção do encargo ou, no limite, para anulação da sentença arbitral14. A arbitragem é um ambiente extremamente seletivo e especializado, sendo comum que os mesmos profissionais sejam indicados repetidamente para diferentes procedimentos em razão de sua reconhecida expertise. Não é incomum que as partes e instituições encarregadas da nomeação voltem os olhos a profissionais com profundo conhecimento jurídico na matéria objeto do conflito, usualmente professores universitários, autores de livros e reconhecidos especialistas do ramo. III - Notas conclusivas Ao inserir o dispositivo 3.2.13 na Lista Laranja sob o pretexto da transparência, corre-se o risco de criar sem razão uma nova causa para impugnação da imparcialidade do árbitro mediante abuso da Lista Laranja, incentivando o comportamento da parte perdedora que busca meios alternativos para reverter uma decisão desfavorável. Se o intuito do art. 3.2.13 é aumentar a transparência das relações entre árbitros, uma forma de alcançar esse objetivo  seria, em primeiro lugar, estabelecer número de atuações conjuntas em dado período que justificariam eventual revelação e, em segundo lugar, transferir o art. para a Lista Verde. _______ 1 INTERNATIONAL BAR ASSOCIATION. About the IBA. Disponível aqui. Acesso em: 21 ago. 2025. 2 INTERNATIONAL BAR ASSOCIATION. IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration. Londres: International Bar Association, mai. 2024, p. 2. Disponível aqui. Acesso em: 21 ago. 2025 3 INTERNATIONAL BAR ASSOCIATION. IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration. Londres: International Bar Association, mai. 2024, p. 4. Disponível aqui. Acesso em: 21 ago. 2025. 4 A Lista Vermelha divide-se entre situações conflituosas renunciáveis (Waivable Red List) ou irrenunciáveis (Non-Waivable Red List). Na primeira hipótese, ainda que o conflito exista e conste da Lista Vermelha, desde que as partes, os demais árbitros e a câmara arbitral tenham conhecimento do conflito, as partes podem concordar com a manutenção do árbitro no encargo, desde que o façam de maneira expressa. Na segunda hipótese, em razão da seriedade do conflito, há uma superação do princípio da autonomia privada em detrimento do princípio de que ninguém pode ser juiz de si próprio, pelo que a manifestação de vontade das partes pela manutenção do árbitro ao encargo será tida como inválida, devendo o árbitro em conflito renunciar ao seu encargo imediatamente (INTERNATIONAL BAR ASSOCIATION. IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration. Londres: International Bar Association, mai. 2024, p. 9-14. Disponível aqui.). Acesso em 21 ago. 2025. 5 INTERNATIONAL BAR ASSOCIATION. IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration. Londres: International Bar Association, mai. 2024, p. 4. Disponível aqui. Acesso em: 21 ago. 2025. 6 As IBA Guidelines de 2024 foram traduzidas para português (PT), cujo artigo 3.2.13 dispõe: "3.2.12. O árbitro e um mandatário de uma das partes intervêm, presentemente, como árbitros noutra arbitragem."  7 INTERNATIONAL BAR ASSOCIATION. Commentary on the revised text of the 2024 IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration. [S.d.]. Disponível aqui. Acesso em 21 ago. 2025. 8 "Embora a medida seja louvável no que diz respeito à transparência, ela nada tem a ver com conflito de interesses - o mote das Guidelines -, ou com assimetria informacional entre as partes ou com qualquer outra circunstância que possa ensejar, mesmo aos olhos das partes, dúvidas quanto à imparcialidade do árbitro" (ELIAS, Carlos Eduardo Stefen. A versão 2024 das IBA guidelines on conflicts of interest in international arbitration: alguns comentários. Porto Alegre. Revista Brasileira de Arbitragem, v. 21, n. 84, p. 129-130, out.-dez. 2024). 9 Transit Cas. Co. v. Trenwick Reins. Co., 659 F.Supp. 1346, 1351-52 (S.D.N.Y. 1987). 10 Transit Cas. Co. v. Trenwick Reins. Co., 659 F.Supp. 1346, 1351-52 (S.D.N.Y. 1987). 11 "Transit relies principally on its intimation that Fanning, the party-arbitrator in that dispute, and Crittenden traded influence in the respective cases to sustain its contention that the majority was biased against it. The association alleged here, however, is precisely the sort that the Second Circuit has observed may not serve as a basis for a finding of bias lest disgruntled parties gain a pretext for tardy challenges to an award" (Transit Cas. Co. v. Trenwick Reins. Co., 659 F.Supp. 1346, 1351-52 [S.D.N.Y. 1987]). 12 Grupo unidos por el Canal S.A. et al. v. Autoridad del Canal de Panama, No. 21-14408 (C. A. 11th. 2023). 13 "But to the extent that Grupo Unidos seeks to have the entire arbitral awards vacated under this standard simply because the arbitrators worked with each other and with related parties elsewhere, Grupo Unidos finds itself on much shakier footing. To rule for Grupo Unidos, we would need to hold, in essence, that mere indications of professional familiarity are reasonably indicative of possible bias" (Grupo Unidos por el Canal S.A. et al. v. Autoridad del Canal de Panama, No. 21-14408 [C. A. 11th. 2023]). 14 Em Ayat Nizar Raja Sumrain et al. V. State of Kuwait, os requerentes pleitearam a desqualificação do presidente do tribunal arbitral nomeado pelos coárbitros, assim como do coárbitro indicado pela parte requerida, dentre outras razões, pelo fato de que eles atuaram juntos em outras três arbitragens administradas pelo ICSID. Ainda segundo os requerentes, houve falha no dever de revelar esses fatos pelo coárbitro indicado pela contraparte, gerando dúvida justificável na mente de um terceiro informado em relação à sua imparcialidade, o que seria suficiente para satisfazer sua desqualificação com base no artigo 14(1) da Convenção da ICSID, que estabelece a necessidade do árbitro demonstrar ser pessoa confiável para exercer um julgamento independente e imparcial. Em sua decisão, o Presidente do Conselho Administrativo do ICSID arrazoou que o simples fato do presidente do tribunal arbitral e coárbitro terem atuado em outros painéis arbitrais não indica que houve falta de independência ou imparcialidade, inclusive, porque os árbitros chegaram a conclusões diferentes quando atuaram juntos em outros casos (Ayat Nizar Raja Sumrain, Eshraka Nizar Raja Sumrain, Alaa Nizar Raja Sumrain And Mohamed Nizar Raja Sumrain v. State of Kuwait, ICSID Case No. ARB 19/20, 02.01.2020. Disponível aqui. Acesso em 21 ago. 2025).
O modelo de publicidade processual arbitral abrangendo todas as fases do processo arbitral, desde o pedido de instauração da arbitragem até a sentença arbitral final, - nos termos defendidos no artigo - diz respeito aos atos processuais produzidos durante a tramitação da arbitragem. Tornar acessíveis as manifestações das partes já protocoladas no processo arbitral não se confunde com publicidade dada aos processos administrativos nos quais são discutidas estratégias de defesa do ente público. É comum, no exercício da advocacia pública, se deparar com pedidos de acesso aos procedimentos administrativos nos quais são discutidos, internamente, a viabilidade e os elementos de defesa que serão apresentados no procedimento arbitral. Assim como ocorre na advocacia privada, é necessário cuidado com a preservação do sigilo dos documentos, pareceres, e-mails e demais trocas de informações, cujo conteúdo se volta muitas vezes à delimitação da estratégia a ser utilizada, devendo ser acessíveis apenas aos que representam ou colaboram com a defesa da parte representada no processo arbitral. Trata-se, pois, do sigilo profissional, que está resguardado no art. 5º, incisos XIII e XIV, da Constituição da República ao prever, respectivamente, que "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer"; bem como "é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional". Este sigilo está atrelado à ética e à moral da profissão e compreende que o advogado (no caso, advogado público) mantenha em segredo tudo o que vier a tomar conhecimento em relação ao seu cliente. No âmbito infraconstitucional, o sigilo profissional está previsto no CPC/15, em seu art. 388, II, determinando não ser a parte obrigada a depor sobre fatos a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo. A restrição ao acesso aos processos administrativos relacionados à defesa do ente público encontra amparo no direito de sigilo inerente ao exercício da advocacia previsto na lei 8.906/1994, o Estatuto da OAB: Art. 7º São direitos do advogado: [...] II - a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia; XIX - recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional; [...] Art. 33. O advogado obriga-se a cumprir rigorosamente os deveres consignados no Código de Ética e Disciplina. Parágrafo único. O Código de Ética e Disciplina regula os deveres do advogado para com a comunidade, o cliente, o outro profissional e, ainda, a publicidade, a recusa do patrocínio, o dever de assistência jurídica, o dever geral de urbanidade e os respectivos procedimentos disciplinares. Art. 34. Constitui infração disciplinar: [...] VII - violar, sem justa causa, sigilo profissional; [...]. Por sua vez, para o Código de Ética e Disciplina da OAB, "[o] sigilo profissional é inerente à profissão, impondo-se o seu respeito, salvo grave ameaça ao direito à vida, à honra, ou quando o advogado se veja afrontado pelo próprio cliente e, em defesa própria, tenha que revelar segredo, porém sempre restrito ao interesse da causa" (art. 25). Dessa forma, "[a]s confidências feitas ao advogado pelo cliente podem ser utilizadas nos limites da necessidade da defesa, desde que autorizado aquele pelo constituinte" (art. 27). Ademais, "presumem-se confidenciais as comunicações epistolares entre advogado e cliente, as quais não podem ser reveladas a terceiros" (parágrafo único do art. 27). O dever de sigilo profissional assegura ao advogado a inviolabilidade de seu escritório profissional, dos seus instrumentos de trabalho (computadores, servidores etc.) e de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica, desde que, claro, relacionadas ao exercício da advocacia. Assim, todas as comunicações do advogado, incluindo os advogados públicos, com quem quer que seja, no âmbito do exercício profissional, nacional ou internacional, e todas as informações a que ele teve acesso em razão da representação judicial ou arbitral, são alvo de sigilo, independentemente de onde tramitar o processo. Especificamente quanto à atuação da advocacia pública, o tema foi objeto do parecer 00015/2020/CONJUR-CGU/CGU/AGU1, exarado pela Consultoria Jurídica junto à Controladoria Geral da União, o qual analisou a aplicação da publicidade administrativa, como regra prevista na lei 12.527/11, e a hipótese de sigilo profissional no âmbito da advocacia pública federal. Para o opinativo, "[o] sigilo profissional justifica-se porque em determinadas profissões se faz necessário que haja um compartilhamento de informações sensíveis entre o detentor da informação e o profissional que irá prestar o respectivo serviço". Os advogados públicos são igualmente titulares de direitos, deveres e prerrogativas inerentes aos advogados privados, dentre os quais se encontra o sigilo profissional das suas manifestações públicas. O parecer, ainda, conclui que "a proteção do sigilo profissional recai não apenas diretamente sobre a pessoa do advogado (que não pode ser forçado a testemunhar em juízo sobre fato de que teve conhecimento profissionalmente, EOAB art. 7º, XIX, e que tem direito de comunicação reservada mesmo com o cliente preso, inciso III), mas sobre todos os materiais, documentos, comunicações, insumos e produtos de seu trabalho que sejam relativos à atividade de advocacia, ainda que estes materiais se encontrem na posse do cliente, ou por ele tenham sido produzidos, e independentemente do repositório formal em que estejam contidos (papéis, bases de dados, arquivos, e-mails, planilhas, áudios, sistemas de informação, etc.)". Assim, os processos administrativos que contenham informações ou documentos relacionados à defesa do ente público, em demandas judiciais ou arbitrais, devem ser considerados sigilosos em razão da necessidade de não restar revelada a estratégia de defesa. No que toca especificamente à Advocacia-Geral da União, a portaria AGU 529, de 23 de agosto de 20162, buscou fazer o cotejo entre a inviolabilidade profissional dos membros da advocacia pública e o interesse público no acesso à informação, enumerando, por meio do art. 19, excepcionalmente, hipóteses nas quais se restringiria o acesso à informação: Art. 19. Poderão ter acesso restrito na AGU e na PGF, em decorrência da inviolabilidade profissional do advogado, prevista no art. 7º, inciso II, da lei 8.906, de 4 de julho de 1994, e independentemente de classificação, na forma do art. 22 da lei 12.527, de 2011, as informações, documentos e dados que versem sobre: I - processos administrativos em relação aos quais não se tenha encerrado o ciclo aprobatório da manifestação jurídica ou técnica, especialmente, propostas de acordos para pagamento de créditos e débitos da União e de suas autarquias e fundações públicas, demais acordos, termos de ajustamento de conduta, termos de conciliação ou instrumentos congêneres; [...] III - verificação técnica e estratégica, quanto à forma e o modo de intervenção em processos judiciais ou extrajudiciais; [...] V - expedientes oriundos de outros órgãos e entidades da Administração Pública, com repercussão dos interesses públicos em juízo; [...] VIII - manifestações jurídicas ou técnicas não aprovadas, quando sua divulgação possa repercutir, justificadamente, de modo negativo na defesa ou promoção de interesses públicos em juízo ou outro foro; [...] XIII - elaboração de cálculo para defesa da União na esfera judicial ou extrajudicial; [...] XVII - segredo industrial, nos termos do art. 22, da lei 12.527, de 29 de dezembro de 2011; [...] § 1° O rol acima possui natureza exemplificativa, sem prejuízo da aplicação da restrição a demais situações legalmente previstas. §2º Faculta-se a remoção da restrição de acesso prevista neste artigo, após ultimado o ciclo aprobatório das manifestações jurídicas ou técnicas, ou após o encerramento dos processos administrativos ou judiciais, a critério do responsável pela informação. Assim, no âmbito federal, os processos administrativos relacionados à verificação técnica e estratégica, quanto à forma e ao modo de intervenção em processos extrajudiciais, nos quais se incluem os processos arbitrais, são de acesso restrito ao público, facultada a remoção da restrição de acesso após ultimado o ciclo aprobatório das manifestações jurídicas ou técnicas, ou após o encerramento do processo arbitral, a critério do responsável pela informação. Portanto, em apertada síntese, a publicidade do processo arbitral, a cargo da instituição arbitral e eventualmente ampliada pelo Estado parte na arbitragem, não se confunde com a publicidade administrativa dos atos dos dossiês internos da Advocacia Pública relacionados à sua atuação na defesa do ente público. As correspondências eletrônicas, análises jurídicas, solicitação de provas a órgãos técnicos do governo e debates internos, muitas vezes informais, sobre a estratégia processual a ser adotada são protegidos pela garantia do sigilo profissional previsto na lei 8.906/1994. _______ 1 AGU. Parecer 00015/2020/CONJUR-CGU/CGU/AGU. Assuntos: Direito administrativo e outras matérias de Direito público. Brasília: AGU, 2019. Disponível aqui. 2 AGU. Portaria AGU 529, de 23 de agosto de 2016. Regulamenta, no âmbito da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral Federal, o procedimento de acesso à informação e estabelece diretrizes relativas ao sigilo profissional decorrente do exercício da advocacia pública e à gestão da informação de natureza restrita e classificada. Brasília: AGU, 2016. Disponível aqui.
1. Introdução Em julho de 2025, o governo dos Estados Unidos, sob a presidência de Donald Trump por mais um mandato, anunciou a imposição de tarifas adicionais de 50% sobre uma série de produtos brasileiros, com entrada em vigor prevista para 1/8 do mesmo ano. A medida foi justificada, na carta de Trump, como resposta a um relacionamento comercial injusto e sem reciprocidade, por parte do Brasil, nas transações havidas historicamente entre os países. Na carta, o presidente dos EUA também justifica a imposição das tarifas por conta de questões eminentemente internas do país (como alguns julgamentos do STF, incluindo o de Jair Bolsonaro). Tal decisão do governo estadunidense impacta significativamente setores estratégicos do agronegócio brasileiro, em especial os mercados de suco de laranja, café, carne bovina e frutas frescas, nos quais o Brasil é um dos principais fornecedores ao mercado dos EUA. Além das consequências econômicas, esta medida levanta importantes questões jurídicas quanto à sua compatibilidade com normas da OMC - Organização Mundial do Comércio, bem como seus efeitos sobre contratos internacionais e disputas comerciais no âmbito da arbitragem privada. 2. Alguns impactos setoriais do tarifaço de Trump: 2.1 Suco de laranja O setor de suco de laranja é um dos mais atingidos, dada sua alta dependência do mercado norte-americano, que absorve aproximadamente 80% das exportações brasileiras do produto. A tarifa de 50% se soma à já existente taxa fixa de US$ 415 por tonelada, tornando as exportações brasileiras economicamente inviáveis para diversos importadores. Projeta-se, com isso, uma queda drástica na competitividade do produto brasileiro, além de consequências diretas para os produtores, com redução da demanda e provável queda nos preços internos. No plano judicial, merece destaque a ação movida pela empresa estadunidense Johanna Foods, baseada em New Jersey, perante a Court of International Trade, em Nova Iorque, em que se questiona a legalidade da imposição tarifária por decreto presidencial. A argumentação central reside na ausência de autorização legislativa específica e na desproporcionalidade da medida, que resultaria em aumento de até 25% no preço final ao consumidor norte-americano. Em reportagem da Agência Brasil, o CEPEA aponta dados importantes sobre as consequências do tarifaço no mercado interno dos EUA e nas exportações de suco de laranja do Brasil: Segundo o Cepea, os Estados Unidos importam atualmente cerca de 90% do suco que consomem, sendo que o Brasil é responsável por aproximadamente 80% desse total. "Essa instabilidade ocorre justamente em um momento de boa safra no estado de São Paulo e triângulo mineiro: 314,6 milhões de caixas projetadas para 2025/26, crescimento de 36,2% frente ao ciclo anterior. Com o canal norte-americano sob risco, o acúmulo de estoques e a pressão sobre as cotações internas tornam-se prováveis", avaliou a professora da Esalq/USP Margarete Boteon, pesquisadora da área de citros do Cepea. 2.2 Café O café brasileiro representa cerca de 25% das importações do produto pelos Estados Unidos. Como os EUA não produzem café internamente, tal medida certamente impactará fortemente as cadeias internas de fornecimento dos EUA, que é o maior consumidor do mundo do grão e, em especial, do café arábica. A imposição de tarifas adicionais também compromete posição de liderança do Brasil no fornecimento aos EUA, ao tornar o produto brasileiro menos competitivo em relação a países como Colômbia, Vietnã e Etiópia, que não foram alvo das mesmas medidas. Toda a cadeia de produção e fornecimento do café brasileiro, inclusive o seu trânsito no mercado estadunidense, já vem enfrentando uma fase de renegociações contratuais e até interrupções que certamente poderão ensejar um aumento nos litígios arbitrais e judiciais. 2.3 Carne bovina A carne bovina brasileira, que compõe cerca de 23% das importações norte-americanas do setor, será igualmente impactada. Os EUA são, atualmente, o segundo maior comprador de carne bovina brasileira, sendo superado apenas pela China. A tarifa de 50% compromete a rentabilidade das operações e pode levar à suspensão de contratos em vigor, especialmente no caso de contratos com margens estreitas e prazos rígidos. Há relatos de empresas brasileiras estudando redirecionar seus embarques para mercados asiáticos, embora isso envolva novos desafios regulatórios e logísticos. 2.4 Frutas frescas Frutas tropicais como manga, mamão e abacaxi, que vinham ampliando sua presença nos Estados Unidos, também estão entre os produtos afetados. A exportação de manga, em especial, pode sofrer efeitos severos, pois sua janela coincide com o início da vigência das novas tarifas impostas. A perda de acesso competitivo ao mercado norte-americano deve gerar excedente de produção, queda de preços internos e, eventualmente, necessidade de suporte governamental para absorção da produção excedente. Além disso, um cenário como este também poderá dar ensejo a uma série de renegociações e litígios, o que é sempre muito preocupante para qualquer setor em que as margens são estreitas e os fluxos são limitados. 3. Repercussões no âmbito das resoluções internacionais de controvérsias 3.1 Contencioso na OMC O Brasil, por meio de sua missão junto à OMC, já sinalizou a intenção de questionar a legalidade das novas tarifas. A medida norte-americana, ao incidir de forma abrupta e seletiva sobre produtos de um único país, certamente configura violação às disposições do GATT - Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, notadamente no que tange à cláusula da nação mais favorecida e à proibição de medidas discriminatórias sem base em critérios objetivos e multilateralmente aceitos. Caso as consultas iniciais não resultem em solução amigável, o Brasil poderá requerer a instalação de um painel de solução de controvérsias. Contudo, com a longeva crise do Órgão de Apelação da OMC, esvaziado por iniciativa do primeiro governo de Trump, inclusive, a resolução da controvérsias na OMC pode acabar em appeals into the void. Para se evitar isto, foi constituído o MPIA - Multi Party Interim Appeal Arbitration Arrangement, órgão provisório do qual o Brasil participa mas os EUA, como era mesmo de se esperar, não. Diante deste cenário, é muito importante que a delegação brasileira procure negociar com a norte-americana uma forma de solução de controvérsias específica para a questão, por meio da indicação de um centro de arbitragem específico e neutro (CPA, ICC, LCIA, etc) para resolver o litígio como se fosse o próprio órgão de apelação da OMC. Tal missão, no entanto, não é nada fácil. 3.2 Litígios judiciais e arbitragens privadas No plano contratual, a introdução abrupta de tarifas dessa magnitude caracteriza um evento capaz de gerar significativa instabilidade nas relações comerciais internacionais. Exportadores brasileiros, diante da onerosidade excessiva e da quebra de expectativa legítima, podem buscar invocar cláusulas de força maior ou hardship, previstas em contratos internacionais, com vistas à revisão ou resolução das obrigações contratuais. A previsão de cláusulas compromissórias em contratos internacionais de exportação é comum, e espera-se aumento no número de arbitragens comerciais administradas por instituições como a ICC - International Chamber of Commerce, ICDR - International Center of Dispute Resolution, LCIA - London Court of International Arbitration e CAM-CCBC - Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá. A jurisprudência arbitral, embora sabidamente restritiva à intervenção nos contratos, admite em casos excepcionais a revisão de contratos, mas sempre observando a alocação de riscos pactuada, a intenção comum das partes e a existência ou não de cláusulas de hardship, bastante comuns em contratos internacionais. Quando há uma alteração do cenário econômico deste porte,  decorrente de ato soberano de um dos países envolvidos, o reequilíbrio contratual pode ser perseguido. A depender do grau de desequilíbrio gerado, dos mecanismos contratuais existentes e da lei aplicável à avença havida entre as partes, pode-se admitir a revisão judicial ou arbitral do contrato, desde que demonstrada a boa-fé concreta do contratante lesado. 4. Considerações finais A adoção de tarifas adicionais de 50% pelo governo norte-americano representa um novo capítulo nas complexas relações comerciais entre Brasil e Estados Unidos. Os impactos econômicos são imediatos e profundos, em especial sobre cadeias produtivas altamente integradas ao mercado americano. No entanto, é no plano jurídico que surgem os maiores desafios, com potencial multiplicação de disputas tanto no âmbito da OMC quanto no campo das arbitragens privadas internacionais. Diante desse cenário, é fundamental que empresas brasileiras atuem com planejamento jurídico estratégico, reavaliando seus contratos internacionais, analisando a possibilidade de renegociação com base em cláusulas específicas e, se necessário, recorrendo a mecanismos adequados de solução de controvérsias. A atenção contínua à evolução do contencioso na OMC e ao ambiente regulatório e judicial nos EUA será essencial para a proteção de direitos e preservação de interesses comerciais brasileiros de curto, médio e longo prazos.
terça-feira, 24 de junho de 2025

O que não vira manchete

Na última semana, me deparei com um artigo no Estadão, de Katherine Kam para o Washington Post, que falava sobre a nossa tendência a fixar nas experiências negativas. Segundo a reportagem, inspirada em estudos de psicologia comportamental, o cérebro humano responde com mais intensidade aos eventos que nos prejudicam do que àqueles que nos beneficiam. Somos condicionados a prestar atenção no que deu errado - como mecanismo de sobrevivência. E por isso, mesmo quando tudo corre bem, é o tropeço que vai parar na manchete. Foi inevitável fazer um paralelo com a arbitragem. A maioria das arbitragens no Brasil funciona bem, e até mesmo por isso seguem em sigilo. Procedimentos que seguem o devido processo legal, com árbitros qualificados, câmaras organizadas, sentenças respeitadas e executadas. Mas essa maioria silenciosa raramente vira notícia. O que circula são os poucos e ruidosos casos anulados, as sentenças inexequíveis, as decisões polêmicas, os incidentes com árbitros ou pareceristas. E, como diria o artigo, é aí que o nosso cérebro se agarra. Essa lógica cria um ruído perigoso: passamos a acreditar que o sistema arbitral brasileiro está em crise, quando na verdade ele está em pleno funcionamento, é o que comprova ano a ano a pesquisa coordenada pela professora Selma Lemes em conjunto com o Canal Arbitragem. O efeito das exceções começa a contaminar a percepção sobre a regra. O problema não é novo. A imprensa (e também os bastidores jurídicos) funciona como os grupos de WhatsApp do condomínio - como escrevi em outro artigo. Se um morador deixa lixo no hall, todos comentam. Mas ninguém posta no grupo um "parabéns" ao zelador porque o elevador está funcionando. Claro que a crítica é legítima - e necessária. A arbitragem, como qualquer sistema humano, está sujeita a erros, desvios e falhas de conduta. E quando eles ocorrem, precisam ser discutidos e corrigidos. Mas há uma diferença entre fazer autocrítica e alimentar um viés negativo coletivo, que reforça a ideia de que "nada funciona" ou que "esta tudo errado". É curioso: na tentativa de proteger o instituto, acabamos por fragilizá-lo. Replicamos as histórias ruins, expomos os problemas, desconfiamos dos profissionais e exigimos reformas que, muitas vezes, nascem mais do medo do que da análise racional. O estudo citado no Estadão nos dá um alerta: esse tipo de comportamento é previsível. Mas não é imutável. Existem formas de treinar o olhar, reconhecer os bons exemplos e equilibrar o peso das narrativas. A arbitragem não precisa ser blindada - ela precisa ser entendida com maturidadepor todos os seus atores. Portanto, fica aqui o convite: antes de replicarmos a próxima crítica - seja à arbitragem, à política, a uma instituição ou mesmo a alguém próximo - vale o exercício de pensar em quantas experiências bem-sucedidas deixamos de registrar. Por que elas não ocupam o mesmo espaço na nossa memória? Talvez, como comunidade jurídica - e como sociedade - precisemos praticar mais a arte de reconhecer o que funciona. Não para esconder o que está errado. Mas para não esquecer o que está certo. Assim como no cérebro humano, na arbitragem e na vida, é preciso equilíbrio. E algum esforço consciente para que a exceção não contamine a regra.
terça-feira, 27 de maio de 2025

O "esquadrão da derrota"

Para aqueles que estão enveredados no universo infantil, sabem que experimentar os sabores de uma perda pode ser algo difícil para uma criança de 5 anos. Não são raros os choros estridentes após a constatação da perda num simplório jogo de tabuleiro. Saber perder não é um sentimento inato do ser humano. Pelo contrário, é preciso aprender que, às vezes se perde, e outras tantas se ganha, embora os "coaches" de bem-estar advoguem a possibilidade de uma vida seguida de vitórias sucessivas. O universo das disputas empresariais não é muito diverso disso, apesar de as controvérsias não serem tão simplórias assim. É preciso aprender a perder, o que implica sobreviver à dor de ouvir de um terceiro que não se tem razão sobre algo que se imaginava ter. Quando esse terceiro é um árbitro e não um juiz estatal, a dificuldade de se lidar com a perda é particularmente agravada porque, como se sabe, a arbitragem constitui uma forma extrajudicial de se resolver definitivamente os conflitos - com igual status da jurisdição estatal - em única e última instância. Ou seja, confia-se a alguém - podem ser uma ou três pessoas, sempre em número ímpar - o destino de um determinado tema, sem possibilidade de uma segunda chance de se rever o mérito da questão. Assim, escolher arbitragem para um contrato redunda em, necessariamente, aceitar que determinadas pessoas decidirão o resultado de todas as questões oriundas daquele contrato, sem possibilidade de recurso. Parece óbvio, mas não são raros os casos em que um cliente indaga quais são as opções para se esquivar do cumprimento após o recebimento de uma sentença arbitral negativa aos seus interesses. Um advogado sincero deveria responder: nenhuma! Explica-se ao cliente que existe a ação anulatória, mas que nela não se revisa mérito, não se devolvendo o reexame da matéria. Esclarece-se, ainda, que, em não sendo sucedâneo recursal e estando os tribunais estatais cientes disso, não se estimula, nem se recomenda a via da ação anulatória, ainda mais porque suscetível de sucumbência representativa, feita para dissuadir a litigância desarrazoada. Lembra-se, por fim, que a recalcitrância em cumprir espontaneamente o julgado pode ensejar multa de dez por cento e honorários advocatícios em igual patamar, à luz do art. 523, §1º do CPC. Feitas essas explicações, ouvem-se, em réplica, as reclamações dos clientes - por vezes, justas, admite-se - sobre o entendimento exarado pelos julgadores e se encerra a discussão. Isso porque, se o advogado sincero tivesse encontrado, no caso concreto, uma nesga de presença de alguma das estritas causas de nulidade previstas no art. 32 da lei de arbitragem, teria advertido ao cliente que havia alguma chance de desconstituição daquele julgado, deixando o cliente decidir se assumiria ou não o risco da sucumbência. Se não o fez, é porque não encontrou qualquer fresta. Infelizmente, muitos são os colegas que não param por aí. Como ninguém gosta de ser o portador de más notícias, ainda mais para clientes, há aqueles que não só aventam uma ação anulatória, mas decidem investir contra um ou mais integrantes do tribunal arbitral: investigação criminal, ação de responsabilidade civil contra árbitro, toda a sorte de artimanha. Vendem-se serviços jurídicos associados à esperança de causar tanto tumulto a ponto de forçar um acordo, ou, talvez, somente postergar o cumprimento, permitindo que o cliente tenha a sua "pequena vingança" em face da contraparte vencedora. Trata-se do "esquadrão da derrota". O "esquadrão da derrota" desconhece - ou parece desconhecer - que o padrão da responsabilidade civil dos árbitros é o mesmo dos juízes estatais, a teor do caput do art. 14 da lei de arbitragem. Também ignora - ou parece ignorar - o fato de que, a rigor, mesmo que haja eventual falha do árbitro, em qualquer aspecto de um procedimento arbitral, dificilmente existiria um ilícito penal associado a tal falha, a começar pela falta de tipo penal específico. E justamente porque o "Esquadrão" não trabalha com as amarras da honestidade intelectual, nem da razoabilidade, procura se apegar a algum crime genérico de falso, mesmo quando diante de um fato para o qual o direito penal não foi concebido1. Para compor o "esquadrão da derrota", não basta simplesmente ajuizar uma ação anulatória fundamentada. Não é disso que se trata aqui. É preciso ter a insidiosa intenção de achincalhar um prestador de serviços, o árbitro, fazendo pouco caso dos mecanismos institucionais previstos em lei como remédio para os desvios que possam ocorrer em arbitragens. A intenção é clara: desqualifica-se o árbitro, com o objetivo último de privar de efeitos o fruto de seu trabalho, a sentença arbitral, embora a lei tenha, cuidadosamente, previsto limitadas hipóteses de controle da arbitragem. Trocando em miúdos e retornando à analogia que inspirou esses breves comentários, o "esquadrão da derrota" assemelha-se aos pais que, ao final do jogo de tabuleiro e diante da derrota de seu filho de 5 anos, brindam os jogadores com a informação de que o jogo não valia nada, dispostos a apagar o evento da memória de todos os envolvidos. Tentam reescrever a história à fórceps para ver um sorriso bonito no rosto de sua cria. Criam um alívio imediato da dor do filho, despreparando a criança para enfrentar algo inerente à vida. Assim como ninguém quer ser o responsável pela criança mimada, nenhum colega advogado deveria se predispor a compor o "esquadrão da derrota". Até porque todo empresário conhece - ou deveria conhecer - os riscos dos negócios que faz, dentre eles o risco associado a se convencionar arbitragem, diversamente das crianças que estão no momento da vida propício ao aprendizado desse tipo de desafio. Perder é um desgosto terrível, mas faz parte do jogo. Simples assim! 1 Nota Técnica do Prof. David Tangerino ao Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) sobre o tema, disponível aqui. Acesso em 3/5/25.
terça-feira, 20 de maio de 2025

Condomínio arbitragem no Brasil

"Precisamos aprender a escutar, escutar de verdade. Porque o barulho do mundo está nos deixando surdos." Pepe Mujica  Recentemente, tornei-me síndico do meu prédio. Como acontece com a maioria das pessoas, isso nunca foi um objetivo de vida, tampouco é algo que eu recomendaria como vocação. Mas assumir essa função me fez refletir sobre os desafios de gerir algo coletivo, onde todos os usuários são, ao mesmo tempo, donos de uma parte do todo. Essa reflexão, no entanto, não é sobre o meu condomínio. É sobre a arbitragem no Brasil. E falo a partir de uma posição privilegiada: a de quem observa a arbitragem do lado de dentro, mas sem nunca ter sido ator em procedimentos. Há mais de vinte anos, sou um funcionário desse "condomínio", e não um de seus condôminos. A arbitragem, como todos sabemos, pertence às partes. Mas é operada por uma comunidade: a chamada comunidade arbitral. Para efeito de raciocínio, proponho tratá-la como um grande condomínio. Seus "moradores" são os advogados das partes, os árbitros, as câmaras, os peritos, os experts e os pareceristas. Todos exercem na arbitragem uma atividade profissional e todos têm um interesse legítimo em que esse condomínio funcione bem, esteja bem conservado e com boa aparência. Afinal, isso valoriza o ativo coletivo e fortalece a credibilidade do instituto. Mas, como síndico, descobri a maior mazela dessa função: o sujeito indeterminado. "Alguém precisa resolver a questão da guarita nova". Alguém quem? Se todos moramos no mesmo prédio, cabe a todos nós mantê-lo funcionando. Na arbitragem, não é diferente. Ela é uma construção coletiva. E todos os seus operadores - por interesse e não por altruísmo - devem protegê-la. A arbitragem brasileira é exercida por uma elite profissional altamente qualificada: renomados juristas que atuam como árbitros, os melhores escritórios, as câmaras mais sérias, os peritos mais sofisticados, e o mais importante, as partes envolvidas são empresas sofisticadas, nacionais e internacionais. Mas, de tempos em tempos, um procedimento arbitral é maculado. E isso é como se alguém jogasse um papel no chão do prédio. Se ninguém limpar, ele permanece lá - visível para todos. Buscar o melhor resultado para o cliente é, claro, um dever do advogado. Mas, quando vemos as famosas táticas de guerrilha sendo usadas apenas com fins protelatórios, é como um morador que estaciona o carro de forma atravessada, sem se importar com o prejuízo à coletividade. E por vezes a imprensa faz o tenebroso papel do grupo de WhatsApp do prédio.  Ações anulatórias existem e são legítimas. Fazem parte do sistema. E é prudente e necessário que existam. Mas, quando estamos lidando com os mais experientes (e, por vezes, mais criativos) advogados contenciosos do país, precisamos saber diferenciar a legítima busca pelo direito das chicanas processuais. Porque estas últimas sujam o nosso "hall de entrada". Falo isso como uma espécie de zelador. Alguém que mora nesse condomínio, mas não é dono de unidade. Que admira os moradores, às vezes se mete um pouco em suas vidas, mas depende - mais do que ninguém - do bom funcionamento do edifício. Meu papel é criar condições para que o diálogo flua, para que o elevador social e o de serviço estejam impecavéis.  Como um economista entre advogados, dou-me o benefício da ignorância honesta: posso sempre perguntar. E é isso que faço aqui. Existe um caminho coletivo para mantermos a imagem da arbitragem brasileira imaculada? A comunidade arbitral será capaz de resistir à tentação da polarização e encarar, com maturidade, a necessidade do diálogo? É verdade, reuniões de condomínio são sempre enfadonhas. Mas essa comunidade já dedica tempo a essas discussões - e eu, como otimista incorrigível, seguirei incentivando o diálogo. Porque acredito na arbitragem. E mais ainda: acredito na arbitragem no Brasil. Afinal, se o nosso condomínio deixar de funcionar, as partes - os moradores da cobertura - vão se mudar para condomínios no exterior. Com isso, levarão não somente suas arbitragens, mas tembém os recursos e as mentes que fazem esse sistema ser o que é. Não podemos deixar isso acontecer.
terça-feira, 29 de abril de 2025

Arbitragem no setor de saneamento

A arbitragem no setor de saneamento desponta como garantia estratégica para a viabilização de concessões de infraestrutura hídrica no Brasil. Com a promulgação do novo marco legal do saneamento (lei 14.026/20), o país não apenas traçou metas ambiciosas de universalização, mas também reconheceu, ainda que tardiamente, que não há investimento privado sem segurança jurídica - e não há segurança jurídica sem um sistema confiável de resolução de conflitos. É nesse ponto que a arbitragem se insere, não como panaceia institucional, mas como elemento técnico-jurídico capaz de blindar os contratos da inconstância política e da morosidade judicial. Porém, a simples previsão de cláusula compromissória não imuniza o contrato contra litígios estruturais. O que se pode arbitrar - e, mais importante, o que não se pode - é o verdadeiro ponto de inflexão da arbitragem em concessões públicas. A arbitrabilidade, longe de ser um salvo-conduto contratual, é recorte normativo fundado em duas exigências cumulativas: patrimonialidade e disponibilidade. A presença de ambas legitima a jurisdição arbitral; a ausência de qualquer uma delas a contamina de nulidade. No saneamento, o litígio comum é patrimonial por natureza: inadimplementos contratuais, desequilíbrios econômico-financeiros, descumprimentos de metas, acionamento de garantias, divergência sobre outorga variável, cálculo de indenizações por extinção antecipada. Todos esses conflitos são economicamente quantificáveis e suscetíveis de decisão por árbitros especializados - não apenas em direito, mas em modelagem contratual, estrutura tarifária e engenharia financeira. Entretanto, há um campo minado. Quando a controvérsia desloca seu eixo da esfera contratual para a esfera regulatória, a arbitragem se torna arriscadamente intrusa. A revisão de penalidades administrativas, o controle de legalidade de decretos de caducidade, a reconfiguração de políticas públicas e o juízo de conveniência sobre decisões estatais são matérias indisponíveis, por definição. O árbitro que se aventura nesse território pode ultrapassar não apenas os limites do contrato, mas também os da própria jurisdição arbitral. A confusão entre efeitos patrimoniais e causas institucionais é o grande risco. É juridicamente admissível discutir, em arbitragem, a compensação econômica de uma rescisão contratual? Sim. Mas é inadmissível que o árbitro declare inválido o ato estatal que motivou essa rescisão, especialmente quando se trata de exercício de poder de polícia. O que está em jogo não é apenas a disponibilidade do direito, mas a própria separação de funções institucionais entre Poder Público e jurisdição arbitral. Os contratos de concessão no saneamento não são documentos estanques - são arquiteturas econômicas dinâmicas, desenhadas para durar décadas sob condições de incerteza. O modelo tarifário, os mecanismos de reequilíbrio e a alocação de riscos constituem a espinha dorsal dessa estrutura negocial. Quando o contrato perde sua capacidade de adaptação - seja por omissão regulatória, seja por resistência do poder concedente em reconhecer desequilíbrios - o litígio se torna inevitável. A arbitragem, nesse contexto, atua como válvula técnica de preservação contratual: protege o investimento privado sem transgredir o interesse público. Um dos pontos sensíveis é o tratamento das externalidades não previstas. Eventos como inflação descontrolada, alterações legislativas ou colapsos ambientais impactam diretamente a equação econômica do contrato. A recomposição do equilíbrio não é uma indulgência à concessionária, mas uma cláusula de sobrevivência do próprio arranjo concessório. Ignorar esse dado econômico é tratar a concessão como contrato estático - o que contraria a sua lógica estrutural. A arbitragem permite que esses ajustes se deem com base em prova técnica e dentro da moldura contratual originalmente pactuada. O sucesso da concessão está diretamente vinculado à previsibilidade do fluxo de caixa. Investidores e financiadores avaliam não apenas a rentabilidade projetada, mas a robustez dos mecanismos de proteção jurídica. Um contrato com cláusula de arbitragem, combinada com matriz de risco bem definida e regra de reequilíbrio objetiva, é menos vulnerável à volatilidade política. Em mercados regulados como o saneamento, essa previsibilidade é o que transforma interesse privado em compromisso público. E é justamente por isso que a arbitragem, quando bem delimitada, não é obstáculo - é alicerce. O caso Águas de Itu v. Município da Estância Turística de Itu expõe, com crueza, esse dilema. A arbitragem foi deflagrada para discutir os efeitos econômicos da caducidade contratual. O tribunal arbitral reconheceu sua competência. O Judiciário anulou a sentença parcial, alegando inarbitrabilidade da matéria. Aqui, a arbitrabilidade foi tratada não como questão de recorte material, mas como variável ideológica: onde há interesse público, presume-se a inarbitrabilidade, mesmo quando a disputa é nitidamente patrimonial. Uma inversão perigosa da lógica normativa1. É preciso afirmar com clareza: nem todo litígio que envolve o poder público é, por isso, inarbitrável. O que define a arbitrabilidade não é o sujeito envolvido, mas a natureza do direito em disputa. Quando o Estado atua como contratante, assume deveres patrimoniais disponíveis - e pode, legitimamente, ser parte em arbitragens. O que ele não pode, sob pretexto de interesse público, é fugir da arbitragem sempre que o contrato se torna economicamente desfavorável ou quando suas próprias ações podem ensejar consequências indesejáveis. O caso IGUÁ v. Estado do Rio de Janeiro é outro exemplo emblemático. A suspensão do pagamento de outorga por decisão de árbitro de emergência foi interpretada como afronta à supremacia do interesse público. Esquece-se, porém, que a cláusula compromissória estava expressamente pactuada e que a medida cautelar visava preservar a equação econômica do contrato - não anular ato administrativo, nem interferir em planejamento orçamentário. Confunde-se tutela técnica com subversão institucional. O discurso da "grave lesão à ordem pública" tornou-se, em certos casos, senha de ativação para a sabotagem da arbitragem. O Estado pactua cláusulas arbitrais em tempos de bonança e as ignora em tempos de escassez. Essa ambivalência - ora celebrando a arbitragem como símbolo de modernização contratual, ora execrando-a como ameaça à soberania - desidrata a credibilidade do modelo e encarece o custo do investimento privado. A arbitragem é - ou deveria ser - o espaço institucional da previsibilidade. Quando um tribunal arbitral decide, com base em provas técnicas, que uma obrigação contratual deve ser suspensa até que se apure o reequilíbrio do contrato, ele não viola o interesse público: ele o protege. É a ausência de recomposição tempestiva que compromete o serviço, não a sua concessão cautelar. O que desorganiza as finanças públicas não é a arbitragem, mas a má gestão do próprio Estado. É por isso que a jurisdição arbitral deve ser respeitada, inclusive em suas decisões liminares. O Judiciário tem seu papel, mas não lhe cabe controlar arbitragem por antecipação. O controle de legalidade da sentença arbitral é ex post, não ex ante. Subverter essa ordem é transformar o juiz togado em sentinela da conveniência pública - e o árbitro em servidor clandestino do interesse estatal. O controle judicial da arbitrabilidade não pode ser confundido com controle de mérito. A sindicabilidade, como expressão do devido processo legal, serve para evitar abusos, não para reescrever sentenças arbitrais com tinta pública. Há uma linha tênue - mas intransponível - entre a revisão da legalidade da convenção arbitral e a interferência política na decisão técnica do árbitro. O Judiciário que ignora essa linha converte-se em agente de instabilidade. A arbitragem no saneamento não é risco; é remédio. Desde que bem delimitada, ela assegura decisões céleres, técnicas e despolitizadas. Não se trata de usurpar funções do Estado, mas de garantir que as promessas contratuais não sejam rompidas por conveniências conjunturais. Em um setor regido por metas de universalização, investimentos bilionários e prazos longos, a previsibilidade não é um luxo - é uma condição de existência. A seguir, sistematiza-se, de modo sintético e funcional, os principais tipos de controvérsias em concessões de saneamento, distinguindo-se aquelas que podem ser solucionadas por arbitragem daquelas que demandam apreciação judicial exclusiva: Tipo de Controvérsia Arbitrável Por quê? Reclamações sobre desequilíbrio econômico do contrato Sim Envolvem valores econômicos concretos e previsão contratual, passíveis de apuração técnica. Indenizações por rescisão antecipada Sim Fundadas em cláusulas contratuais e cálculo de ativos não amortizados. Revisões tarifárias e investimentos associados Sim Disputas com repercussão financeira objetiva e previsão contratual. Não cumprimento de metas contratuais Sim Obrigações com impacto financeiro mensurável, apurável por perícia. Multas e retenções previstas em contrato Sim Comportam mensuração contábil e decorrem de cláusulas específicas. Disputas sobre garantias contratuais Sim Questões sobre execução e validade de garantias financeiras. Divergências sobre outorga variável Sim Controvérsias econômico-financeiras sobre parâmetros de cálculo. Debates sobre prazos de investimento Sim Litígios com implicações econômicas e técnica contratual. Contestação de valores indenizatórios Sim Avaliação patrimonial com base em parâmetros financeiros. Suspensão de obrigações por fato superveniente Sim Aceitável se contratualmente prevista e tecnicamente fundamentada. Controle da legalidade de ato estatal (ex: caducidade) Não Matéria de poder de polícia, exclusiva do Judiciário. Questionamentos sobre motivação de atos administrativos Não Implica controle da legalidade do ato, vedado à arbitragem. Reavaliação de sanções impostas por agências reguladoras Não Trata-se de exercício de função regulatória, insuscetível de arbitragem. Debates sobre políticas públicas e metas de governo Não Envolvem escolhas políticas e orçamentárias, de natureza indisponível. Análise de impactos ambientais de grande escala Não Responsabilidade civil ambiental, de competência judicial e ministerial. Em suma, é preciso refundar a compreensão institucional da arbitragem em concessões de saneamento. Nem onipotente, nem decorativa. A arbitragem é a válvula de racionalidade contratual em um ambiente permeado por volatilidade política, riscos regulatórios e pressões fiscais. Reduzir seu alcance é empurrar os conflitos de volta para a ineficiência do contencioso judicial. Expandir sem limites é subverter a lógica do interesse público. O caminho do meio exige precisão dogmática, compromisso institucional e, sobretudo, coragem intelectual para reconhecer que o Estado também deve cumprir os contratos que assina. __________ 1 Processos 1008052-51.2021.8.26.0286 em trâmite no TJ/SP, com recursos pendentes de julgamento no STJ até a data de conclusão deste artigo.
A arbitragem é um mecanismo de solução de conflitos cada vez mais utilizado no Brasil. Instituído pela lei 9.307/1996, o instituto oferece uma alternativa ao processo judicial, destacando-se por sua celeridade, confidencialidade e flexibilidade procedimental. Esse método tem como premissa a autonomia das partes, que podem eleger árbitros especializados para resolver seus litígios, especialmente em questões empresariais. A decisão arbitral possui natureza equivalente à sentença judicial, conforme determina o art. 31 1 da lei de arbitragem, produzindo os mesmos efeitos e sendo título executivo judicial. Contudo, para assegurar a lisura do procedimento e proteger os direitos fundamentais das partes, o art. 32 2 da Lei de Arbitragem elenca as hipóteses em que a sentença pode ser anulada3. O art. 32 da lei de arbitragem prevê expressamente sete hipóteses de anulação da decisão arbitral, sendo cada uma delas um reflexo da necessidade de assegurar que o processo arbitral observe princípios fundamentais do direito processual e respeite a vontade legítima das partes. Uma questão que me parece interessante diz respeito à possibilidade de as partes, no exercício de sua autonomia privada, convencionarem a limitação das hipóteses de anulação da decisão arbitral previstas no art. 32 da lei de arbitragem. De largada, cabe deixar claro que se trata de uma breve reflexão sobre o tema, sem qualquer pretensão de esgotamento, verdadeira provocação ao debate. A autonomia das partes é princípio fundamental da arbitragem. De um lado, há quem afirme que as hipóteses de anulação da decisão arbitral previstas na legislação são de ordem pública, verdadeiro núcleo intangível, e, portanto, indisponíveis pelas partes. Trata-se, segundo os que assim pensam, de uma forma de assegurar a integridade do procedimento arbitral e proteger direitos fundamentais, como o contraditório e a imparcialidade do juízo arbitral. Nesse contexto, a redução convencional das hipóteses de anulação da sentença arbitral poderia significar vulnerar garantias do devido processo legal e comprometer a legitimidade do próprio instituto da arbitragem4. Por outro lado, há quem defenda que as partes, no mais puro exercício da autonomia da vontade, poderiam limitar ou renunciar a certas garantias em prol da celeridade e da segurança jurídica, especialmente quando as questões em disputa envolvem relações empresariais paritárias, cientes as partes envolvidas das consequências de suas escolhas. Nessa perspectiva, portanto, a limitação das hipóteses de anulação da decisão arbitral poderia ser admissível por convenção expressa das partes. É preciso lembrar que a própria possibilidade de anulação da decisão arbitral é, para além de excepcional5, também eventual, porquanto as partes podem aceitar voluntariamente o que decidido em sede de arbitragem e abdicar o direito de ir ao poder judiciário para buscar a sua invalidação. A lei pretende afastar intervenções do poder judiciário quanto ao decidido pelo árbitro, reveladoras de atos de imposição estatal em jurisdição privada, conferindo importância ao seu cumprimento espontâneo pelas partes, estabelecendo a excepcionalidade da sua impugnação por meio da ação anulatória. Em outras palavras, é possível afirmar que, nas hipóteses de intervenção, a atuação do juiz estatal haverá de ser comedida e atenta à natureza excepcional da sua ação intervencionista no procedimento arbitral. O juiz estatal não deve sucumbir à tentação de, por meio da ação anulatória, pretender, de forma indireta, a revisão do mérito da decisão arbitral, a pretexto de sua convicção subjetiva quanto ao erro ou injustiça do que decidido. Pode soar como óbvio, mas, às vezes, até o óbvio precisa ser afirmado e reafirmado, jurisdição estatal e arbitral constituem métodos complementares de resolução de conflitos, não há entre eles qualquer antinomia ou hierarquia. É preciso deixar claro que cooperação e intervenção não são a mesma coisa. A primeira é sempre recomendável e haverá de ser estimulada. A segunda é excepcional e haverá de ser evitada. Não se pode perder de vista, portanto, que a ação anulatória, ao contrário de outros atos que são de cooperação entre o árbitro e o juiz6, representa uma evidente intervenção deste último na decisão do primeiro, porquanto anula o que decidido no procedimento arbitral, cuja decisão não está sujeita à revisão do seu mérito. Nessa ordem de ideias, penso eu, se, de um lado, não é possível ampliar as hipóteses de anulação da decisão arbitral7, de outro, é plenamente aceitável que as partes possam convencionar a redução do rol de situações que justificam a propositura de uma ação anulatória. Se as partes podem voluntariamente aceitar a decisão arbitral, aliás, o que é de todo recomendável, fica a indagação: Por que estariam proibidas de, por convenção, reduzir as hipóteses de anulação da decisão arbitral? Ao meu sentir, não há motivo que possa justificar a vedação. A customização do procedimento, princípio da arbitragem, envolve que as partes possam, no exercício da autonomia da vontade, decidir pela redução das hipóteses de anulação da decisão arbitral8, cientes que devem estar dos riscos assumidos com as suas escolhas. É claro que sempre haverá o risco de descumprimento do acordo prévio, ou seja, de a parte que sucumbir na arbitragem acionar a justiça estatal para anulação da decisão arbitral, em hipótese que convencionou excluir, porém, nesses casos, para além da possibilidade de previsão de penalidade contratual específica, deverá o juiz negar seguimento a esta ação, prestigiando o acordo das partes. Nesse contexto, para concluir, a arbitragem constitui um importante instrumento de pacificação social e resolução de litígios, especialmente no contexto das relações empresariais. Em que pese o fato de a decisão arbitral não estar imune ao controle judicial, limitado às hipóteses excepcionais previstas no art. 32 da lei de arbitragem, quanto à aspectos formais de sua validade e não quanto ao mérito, o comedimento do poder judiciário, em exercício de autocontenção, é salutar. A convenção das partes, fruto da autonomia da vontade, no sentido de reduzir as hipótese de anulação da decisão arbitral, haverá de ser prestigiada e respeitada pelo poder judiciário, como medida de fortalecimento do instituto da arbitragem. __________   1 Art. 31. A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo. 2 Art. 32. É nula a sentença arbitral se: I - for nulo o compromisso;  I - for nula a convenção de arbitragem; II - emanou de quem não podia ser árbitro; III - não contiver os requisitos do art. 26 desta Lei; IV - for proferida fora dos limites da convenção de arbitragem; VI - comprovado que foi proferida por prevaricação, concussão ou corrupção passiva; VII - proferida fora do prazo, respeitado o disposto no art. 12, inciso III, desta Lei; e VIII - forem desrespeitados os princípios de que trata o art. 21, § 2º, desta Lei. 3 A possibilidade de anulação da sentença arbitral não deve ser encarada como um mecanismo de reapreciação do mérito, mas como uma salvaguarda para coibir abusos, vícios processuais e decisões proferidas à margem do compromisso arbitral." (WALD, Arnoldo. A Nova Arbitragem Comercial: comentários à lei 9.307/1996. 6. ed. São Paulo: RT, 2019, p. 245.) 4 O controle judicial da sentença arbitral deve ser excepcional e restrito às hipóteses previstas em lei, sob pena de desvirtuar a essência da arbitragem, que é a autonomia das partes e a liberdade para estruturar o procedimento." (LEMES, Selma Maria Ferreira. Arbitragem no Brasil: aspectos práticos e teóricos. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 175.) 5 A excepcionalidade decorre do fato de que a decisão arbitral não está sujeita a revisão do seu mérito pelo poder judiciário, mas apenas e tão somente ao controle formal da sua validade, naquelas hipóteses expressamente previstas no artigo 32 da Lei de Arbitragem. 6 Arts 22-A e 22-B, da Lei de Arbitragem. 7 A própria excepcionalidade da ação anulatória da decisão arbitral, verdadeiro ato de intervenção do poder judiciário no sistema arbitral, justifica a impossibilidade de ampliação, por convenção das partes, do rol do art. 32, da lei de arbitragem, sem mencionar que implicaria em criar competência para o juiz togado sem que haja previsão legal anterior e específica para o caso. 8 Acredito que as partes possam até mesmo convencionar a vedação do ajuizamento da ação anulatória, em verdadeira convenção de não litigar, mas esse será tema para outro texto.
A presença da Administração Pública no território arbitral como meio de solução de controvérsias é não apenas aceitável, mas desejável em muitos dos contratos envolvendo entes públicos, e exige um rearranjo por parte dos gestores públicos bem como por parte do próprio instituto. A imperatividade, inerente à forma de atuação do Poder Público, passa a ser substituída pela participação e pela consensualidade, objetivando aprimorar a governabilidade e gerar mais eficiência, legitimidade e responsabilidade para a Administração Pública, abrindo espaço para o uso da arbitragem para solução de determinados litígios. A Administração Pública como player no processo arbitral demanda a adequação do instituto de Direito Privado às regras e aos princípios de Direito Público. Sendo uma das partes o Poder Público, a própria lei 9.307/96 afasta a liberdade das partes de convencionarem a confidencialidade do processo arbitral. Nos termos do § 3º do art. 2º da lei de arbitragem, a liberdade de negociar a reserva de informações processuais não é dada à Administração Pública. Isso porque a publicidade processual nas arbitragens público-privadas tem por objetivo a proteção dos interesses públicos. A divulgação das informações processuais é baseada na noção de que o público em geral é parte significativamente interessada na discussão travada na jurisdição privada, na medida em que os interesses concebivelmente em jogo tratam, normalmente, de preocupações com a alocação de recursos públicos. No contexto atual, verifica-se que, diante da imprecisão da regra do § 3º do art. 2º da lei de arbitragem, a concretização do princípio da publicidade nas arbitragens público-privadas tem se dado de forma difusa e limitada. É inadequada, posto que incompleta, a tendência existente de limitar a sua publicização a determinados atos processuais e em determinada fase do processo arbitral. Com efeito, o regramento da publicidade processual deve prever um desenho processual mínimo no conteúdo da convenção de arbitragem (seja na cláusula, seja no compromisso arbitral), bem como no termo de arbitragem, incluindo: (i) a lista de informações e atos processuais a serem publicados na rede mundial de computadores, de forma ativa; (ii) o prazo para a referida divulgação, contado da juntada do documento ao processo arbitral; (iii) a definição do responsável pela publicização; (iv) indicação quanto à possibilidade de obtenção dos demais atos e documentos de forma passiva, por meio de requerimento. Ademais, diante das questões de interesse público relevantes, como proteção do meio ambiente, do desenvolvimento sustentável, do patrimônio público, do combate à corrupção e implementação de políticas governamentais, inspirando-se nas UNCITRAL Transparency Rules1, é imprescindível que sejam ainda divulgadas informações relativas à instauração da arbitragem, incluindo as partes e custos envolvidos no processo, de forma ativa, na rede mundial de computadores, em um prazo razoável. Isso porque o conhecimento por terceiro da arbitragem, logo nos seus primeiros atos processuais, propicia a participação de terceiros (não partes), como nos casos de amicu curiae e intervenção da anômala. Esta primeira fase do processo arbitral (antes mesmo da constituição do tribunal arbitral) revela-se, no âmbito das arbitragens público-privadas, momento relevante para a participação de terceiros que pretendam integrar ou contribuir para o deslinde da demanda. O conhecimento da pretensão que desaguará numa arbitragem, de plano, atrai o olhar curioso da sociedade. Assim, entende-se que, para o efetivo cumprimento do princípio da publicidade processual inscrita no § 3º do art. 2º da Lei n. 9.307/1996, devem ser igualmente divulgadas as informações relativas à instauração da arbitragem, bem como o pedido de instauração do processo e a resposta ao pedido apresentada pela contraparte, sob pena de prejudicar eventual a participação dos terceiros em fases anteriores à instituição da arbitragem. __________ *Adota-se esta nomenclatura "arbitragem público-privada" aos processos arbitrais no qual figuram como parte as pessoas jurídicas de direto público (Administração Pública direta e outras entidades da Administração Pública indireta, como por ex. as agências reguladoras) e as pessoas jurídicas de Direito Privado (por ex. sociedades comerciais: sociedade simples, sociedade limitada, sociedade em nome coletivo, dentre outras; bem como as empresas públicas e sociedade de economia mista). 1 UNCITRAL. UNCITRAL Rules on Transparency in Treaty-based Investor-State Arbitration. Nova Iorque: UNCITRAL, 2014. Disponível aqui. Acesso em: 14 jul. 2024.
A IA - Inteligência Artificial é um "sistema computacional criado para simular racionalmente as tomadas de decisão dos seres humanos, tentando traduzir em algoritmos o funcionamento do cérebro humano" (Teixeira; Cheliga, 2021, p.?16-17). Afirma-se que uma máquina é inteligente quando é capaz de mimetizar ou imitar o comportamento humano em dada tarefa, de forma que a diferença entre homem e máquina não seja perceptível por um espectador inadvertido (Turing, 1950). No que se refere ao uso de sistema de IA como árbitro, nos Estados Unidos já existe uma plataforma denominada Arbitrus.ai (ARBITRUS.AI, 2024), prometendo a realização do julgamento em apenas uma fração do tempo que geralmente é gasto numa arbitragem convencional a um preço mais acessível, reduzindo, por exemplo, o custo da resolução de disputas de US$ 100.000,00 para US$ 10.000,00 fixos (Kieffaber; Gandall; Mclaren, 2025),  com a promessa de um desempenho tão bom quanto os árbitros humanos, incluindo a possibilidade da realização de audiência não oral (Rule 6, § 6.2, "d"), mas escrita (Fortuna Arbitration Rules, s.d.), com a apresentação de resultados dos testes pelos fundadores (Kieffaber; Gandall; Mclaren, 2025). Nessa perspectiva, é importante abordar, ainda que brevemente nos limites do presente texto, se essa possibilidade seria eventualmente válida também no Brasil, mediante a utilização de um sistema computacional, com IA, atuando como árbitro do caso, substituindo-se, totalmente, o árbitro humano. Entretanto, temos que diante da letra do art. 13, caput, da lei de arbitragem, que exige que o árbitro seja pessoa humana capaz, o uso de um árbitro por sistema de IA é vedado, não se caracterizando como válido, cabendo à parte que, num primeiro momento concorda, ingressar com a ação anulatória, diante da previsão do art. 32, inciso II da citada lei. De acordo com Carmona e Vieira (2020, p. 398) "A visão positiva de empresário e advogados indica a tendência de haver maior influxo de tecnologias e de mecanismos de IA no processo arbitral", no entanto, os autores advertem que "No atual momento, talvez não estejamos prontos para substituir os julgadores humanos por árbitros de IA". Destaca-se que, mesmo que ocorra eventual reforma legislativa visando permitir a utilização da arbitragem por meio do uso de plataformas digitais no Brasil,  temos que o emprego de IA enseja vários riscos, dentre eles, por exemplo: i) as partes podem contratar ex-funcionário da empresa que criou o sistema para tentar êxito na arbitragem se valendo de recursos tecnológicos para convencimento do sistema; ii) a audiência não é oral, mas escrita, o que dificulta o árbitro sistema aferir a veracidade dos depoimentos prestados por escrito; e iii) eventualmente, uma das partes poderá simular uma lide, previamente, para saber o resultado antecipado de futura arbitragem, devendo a questão, contudo, ser objeto de futuras reflexões e estudos.________________ 1 ARBITRUS.AI. Arbitration in a fraction of the time. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 9 fev. 2025. 2 CARMONA, Carlos Alberto; VIEIRA, Vitor Silveira. Inteligência artificial e processo arbitral. In: VAUGHN, Gustavo; DUARTE, Rodrigo; ARRUDA, Raphael; COSTA, Fabio; MORELLO, Ana Vitoria (Coord.). Direito, Mercado Jurídico e Sociedade: estudos em comemoração aos 3 anos do grupo de jovens advogados Leading Young Lawyers. São Paulo: LUALRI Editora, 2020. 3 FORTUNA ARBITRATION RULES. Version 1.1. s.d. Disponível aqui. Acesso em: 9 fev. 2025. 4 KIEFFABER, Jack; GANDALL, Kimo; MCLAREN, Kenny. We Built Judge.ai. And You Should Buy It. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 9 fev. 2025. 5 TEIXEIRA, Tarcisio; CHELIGA, Vinicius. Inteligência Artificial: Aspectos Jurídicos. 3. ed. Salvador: Editora JusPODIVM, 2021. 6 TURING, Alan M. Computing machinery and intelligence. Mind. New Series, v.?59, 236, p.?433-460. Oxford University Press, 1950. Disponível aqui. Acesso em: 9 de fev. 2025.
terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Deve a defensoria pública atuar em arbitragens?

Conforme reconhecido pelo CNJ, por meio da resolução 125, de 29/11/10, o direito de acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da CF/88, além da sua vertente formal, perante os tribunais, compreende o acesso à ordem jurídica justa e a soluções efetivas, abrangendo não apenas os serviços judiciais, bem como outros mecanismos de solução de conflitos, configurando a existência de uma justiça denominada "multiportas". Uma dessas portas de acesso à Justiça é a arbitragem, produzindo a sentença arbitral coisa julgada material, com a formação de um título executivo judicial, na forma do art. 515, inciso VII, do CPC/15. Nos últimos anos, tem-se verificado um grande crescimento na utilização da arbitragem para a resolução de disputas envolvendo direitos patrimoniais disponíveis nas mais diversas áreas jurídicas, surgindo uma consistente doutrina que defende a existência de uma "arbitragem temática", por exemplo, quanto a conflitos na área consumerista, de direitos coletivos, de família, sucessões, trabalhistas, envolvendo a Administração Pública e até mesmo aqueles referentes ao meio ambiente (Ferreira; Rocha; Ferreira, 2019), contando inclusive com o respaldo da jurisprudência do STJ e dos Tribunais estaduais.   Nessa perspectiva, indaga-se se caberia à defensoria pública atuar, no exercício de suas atribuições, na representação dos interesses de pessoas hipossuficientes do ponto de vista financeiro que desejarem se valer dessa via para resolverem suas disputas patrimoniais. Destaca-se que, nessas situações, é possível que a adoção da via arbitral implique vantagens para as partes, mesmo para aquela que está arcando com os custos iniciais do procedimento. Importante ressaltar que, em analogia à Justiça gratuita na jurisdição estatal, como garantia fundamental ao acesso à devida prestação jurisdicional (art. 5º, LXXIV, da CF/88), na arbitragem o Estado, por meio da defensoria pública, poderá também custear, em sua parte, o processo arbitral, quando o referido meio se mostrar mais adequado e célere na resolução do conflito envolvendo os hipossuficientes. Cumpre, então, analisar se a defensoria pública deve atuar em favor do hipossuficiente na arbitragem individual ou coletiva, considerando que apesar de a representação das partes por advogado no procedimento arbitral não ser obrigatória, nos termos do art. 21, § 3º, da lei de arbitragem, é de todo aconselhável esse auxílio profissional, que implicará no pagamento de honorários (Cabral, 2019). De forma semelhante ao que dispõe o art. 134 da CF/88, o art. 1º, da LC 80, de 12/1/94, que organiza a defensoria pública da União e estabelece normas gerais para a organização das estaduais, determina que cabe às defensorias a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa judicial e extrajudicial dos direitos individuais e coletivos dos necessitados, na forma do inciso LXXIV, do art. 5º, da CF/88. O art. 4º, II, do mesmo diploma legal, com a redação conferida pela LC 132, de 7/10/09, dispõe que constitui função institucional da defensoria pública, dentre outras, "promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos". Em reforço, o art. 108, da LC 80/94, com a redação conferida pela LC 132, de 7/10/09, prevê que incumbe aos membros da defensoria pública, sem prejuízo de outras atribuições, a orientação jurídica e a defesa dos assistidos no âmbito judicial, extrajudicial e administrativo. Como se observa, a CF/88 e a LC 80/94, não deixam dúvidas ao assegurar o acesso efetivo à Justiça, por qualquer das suas portas de acesso, inclusive a arbitragem, como um verdadeiro direito social básico, visando a efetividade ideal da justiça, que somente pode ser obtida com a completa paridade de armas, devendo ser assegurado aos mais pobres a assistência integral da defensoria pública, quando participarem de um procedimento arbitral. Importante registrar relevante atuação da defensoria pública de São Paulo, no conhecido acidente aéreo com uma aeronave da companhia TAM, em 2007, em um programa de mediação extrajudicial, denominado "Câmara de Indenização 3054", que também contou com a participação do MP/SP e da Fundação Procon do Estado de São Paulo, bem como Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, abrindo aos familiares das vítimas a possibilidade de uma opção diversa da Justiça estatal, que costuma demorar muitos anos para a decisão desse tipo de conflito (Michel, 2011). Em 14 meses, o programa realizou cerca de 15 mil atendimentos a beneficiários e aos seus advogados, com a formalização de acordos em 92% dos casos atendidos, envolvendo 207 familiares e 45 vítimas do acidente (Michel, 2011). No acidente aéreo ocorrido em 31/5/09, envolvendo o voo 447 da companhia Air France, que decolou do Rio de Janeiro com destino a Paris e caiu em pleno oceano Atlântico, o MP/RJ lançou o PI 447 - Programa de Indenização 447, com a participação do Procon do Rio de Janeiro e da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (Michel, 2011). Se é verdade que as diferenças existentes entre os litigantes nunca serão completamente eliminadas (Cappelletti; Garth, 1988), compete à defensoria pública afastar, dentro do possível, qualquer obstáculo que possa comprometer o efetivo acesso à Justiça, por qualquer das suas portas de acesso, pelos mais pobres. _______________ CABRAL, Thiago Dias Delfino. Impecuniosidade e arbitragem: uma análise da ausência de recursos financeiros para instauração do procedimento arbitral. São Paulo: Quartier Latin, 2019. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves; ROCHA, Matheus Lins; FERREIRA, Débora Cristina Fernandes Ananias Alves. Lei de Arbitragem: comentada artigo por artigo. Comentada artigo por artigo. São Paulo: Juspodivm, 2019. MICHEL, Andressa. Programas de mediação e acidentes de consumo: um estudo prático de métodos alternativos de resolução de conflitos. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, v. 80, out./dez., 2011, p. 237-273.
A lei de concessões, em seus arts. 3º e 29, inciso I, atribui expressamente à administração pública concedente, titular do serviço público, a prerrogativa de fiscalizar o serviço concedido, para que possa garantir a sua adequada prestação. Ainda, nos termos do art. 23, VII, da lei 8.987, de 1995, a forma de fiscalização das instalações, dos equipamentos, dos métodos e práticas de execução do serviço, bem como a indicação dos órgãos competentes para exercê-la, deve ser definida no próprio contrato. Isso constitui medida essencial para definir, de maneira clara, os deveres e obrigações de ambas as partes do contrato relacionadas à fiscalização, garantindo maior eficiência na atuação administrativa. Note-se que a prerrogativa de fiscalização não se equipara ao exercício do poder de polícia. Mas é por meio dela que a administração pública assegura a adequada prestação do serviço público e verifica se é ou não o caso de se valer das demais prerrogativas concedidas pelo legislador, como a aplicação de sanções ou a modificação unilateral do contrato. A prerrogativa de fiscalizar a execução do contrato é competência privativa e irrenunciável do poder público concedente. Mas, note-se, isso não significa que se trata de um "ato de império". Não existe vedação para que seja definida no próprio contrato a forma de fiscalização. Ao contrário, como já afirmado, essa disciplina é exigida pelo art. 23, VII da lei 8.987, de 1995. Em outras palavras, a administração pública não pode renunciar, em abstrato, ao exercício dessa competência, atribuída por lei com a finalidade de assegurar a prestação do serviço público adequado. Mas deverá estabelecer em contrato as regras para o exercício dessa fiscalização e, assim o fazendo, atua para o atendimento do interesse público no caso concreto, conferindo maior estabilidade e segurança à relação contratual. Nessa linha, considerando o quanto disposto no artigo 151 da lei 14.133, de 2021, que declara serem patrimoniais disponíveis e, portanto, arbitráveis, controvérsias relacionadas ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes, estará dentro da jurisdição dos árbitros a verificação do adimplemento, seja pela administração pública, seja pelo concessionário, das obrigações contratuais assumidas, referentes ao exercício da fiscalização. Ressalte-se que não se está aqui afirmando que poderão os árbitros proferir uma ordem impedindo a administração pública, por exemplo, de instaurar ou dar prosseguimento a procedimentos administrativos internos destinados a apurar eventuais descumprimentos contratuais. Como já afirmado, a prerrogativa de fiscalizar a execução do contrato constitui uma competência privativa e irrenunciável do concedente. O que se está afirmando é tão somente que, em havendo determinadas regras contratuais voltadas ao exercício da fiscalização, essas regras deverão ser obedecidas por ambas as partes. E que, dessa forma, controvérsias acerca de seu eventual inadimplemento poderão ser dirimidas pelo tribunal arbitral. Em outras palavras, são arbitráveis eventuais litígios decorrentes de alegados inadimplementos de obrigações contratuais assumidas para o exercício da prerrogativa de fiscalização. Assim, considerando a competência dos árbitros para dirimir conflitos relacionados ao adimplemento ou inadimplemento contratual, nos termos do parágrafo único do artigo 151 da lei 14.133, de 2021, e considerando que a fiscalização tem como objetivo e resultado apontar a existência desses adimplementos e inadimplementos, os árbitros poderão, após o regular processo de fiscalização pela administração pública, referendar ou rechaçar a conclusão do concedente no sentido de que houve inadimplemento contratual. Ainda, como o exercício da fiscalização pode ensejar o exercício de outras prerrogativas da administração concedente, a decisão dos árbitros a respeito do acerto ou não das conclusões a que a administração pública chegou por meio da fiscalização, pode vir a ter um efeito cascata relacionado a outras possíveis discussões colocadas no processo arbitral, por exemplo, a aplicação de uma penalidade em decorrência de um inadimplemento declarado pela administração pública mas contestado pelo concessionário. Conclui-se, assim, que a lei atribui expressamente à administração pública a prerrogativa de fiscalizar o serviço concedido, para que possa garantir a sua adequada prestação. Muito embora a administração pública não possa renunciar, em abstrato, ao exercício da competência estabelecida com a finalidade de assegurar a prestação do serviço público adequado, deverá, conforme determinado pelo legislador, estabelecer em contrato as regras para o exercício dessa fiscalização. Assim, atua para o atendimento do interesse público no caso concreto, conferindo maior estabilidade e segurança à relação contratual. Nessa linha, estará dentro da jurisdição dos árbitros a verificação do adimplemento, seja pela administração pública, seja pelo concessionário, das obrigações contratuais assumidas, referentes ao exercício da fiscalização. Ainda, os árbitros poderão, após o exercício da fiscalização pela administração pública, referendar ou rechaçar a conclusão do concedente no sentido de que houve inadimplemento contratual. Isso porque os árbitros possuem competência para analisar a legalidade do ato administrativo praticado em decorrência de um eventual inadimplemento contratual, ainda que esse ato administrativo consista numa prerrogativa da administração pública prevista em lei. __________ *Esse artigo foi elaborado a partir da tese de doutoramento defendida em 21 de setembro de 2023 e expressa opinião acadêmica da autora.
Nos últimos anos, o Brasil tem assistido a uma crescente utilização da arbitragem como um meio adequado para a resolução de conflitos, especialmente em contratos empresariais, como é o caso dos contratos de franquia. No entanto, algumas recentes decisões judiciais, especialmente do TJSP - Tribunal de Justiça de São Paulo1, têm levantado questionamentos sobre a segurança e previsibilidade deste instituto nas relações de franchising. Este artigo tem como objetivo tecer breves considerações a respeito do posicionamento jurisprudencial das Câmaras Especializadas do Tribunal de Justiça de São Paulo. A arbitragem é amplamente reconhecida como uma ferramenta eficaz para resolver disputas em contratos complexos. Nos contratos de franquia, que podem ser classificados como híbridos2, as partes muitas vezes possuem uma relação empresarial de longo prazo e de elevada complexidade. A arbitragem, assim, é uma alternativa adequada, rápida e especializada, que permite, inclusive, o desafogamento do já bastante assoberbado Poder Judiciário. A escolha pela arbitragem geralmente é realizada por meio de cláusula compromissória, presente no contrato, que direciona qualquer conflito contratual futuro para uma câmara arbitral. De modo a manter a segurança jurídica de tal cláusula e estabelecer a força necessária para vinculação das partes à arbitragem, há um princípio basilar: o da competência-competência3. Esse princípio estabelece que é o próprio tribunal arbitral quem, em primeiro lugar, tem a competência para decidir sobre sua jurisdição, ou seja, se ele pode ou não julgar a disputa em questão. Esse princípio busca garantir que a arbitragem funcione de forma autônoma e eficiente, sem intervenções desnecessárias do Judiciário. Contudo, há exceções a esse princípio. Segundo a jurisprudência da Col. STJ, o Judiciário pode analisar e afastar a vinculação das partes à arbitragem, desde que a patologia da cláusula seja evidente, isto é, que seja possível verificar a sua patologia prima facie4. Exemplificativamente, são os casos em que, de plano, verifica-se a inexistência da cláusula arbitral ou que estão ausentes os requisitos necessários para sua validade ou eficácia (e.g. cláusula arbitral vazia). Vale dizer, só é permitido ao Judiciário, em hipóteses excepcionais, adentrar à análise perfunctória sobre a existência, validade e eficácia da cláusula arbitral. É defeso, portanto, analisar questões relacionadas à relação contratual para, então, verificar a validade e eficácia do compromisso arbitral (e.g. desequilíbrio contratual, dependência econômica e hipossuficiência).  Apesar dessa posição ser, até recentemente, consolidada nos Tribunais de Justiça e no STJ, houve a recente prolação de acórdãos que afastaram a obrigatoriedade das partes de dirimirem seus conflitos perante a arbitragem, mesmo com a existência e celebração de cláusula compromissória. Esses julgamentos, que serão indicados a seguir, têm algo em comum: os contratos eram de franquia.     Recentemente, o TJSP, em julgamento da apelação 1003513-24.2020.8.26.0271, reconheceu uma cláusula arbitral como patológica, sob o fundamento de que não houve a devida prestação de informação ao franqueado sobre os custos e despesas para acesso à arbitragem. Segundo a decisão, essa informação deveria estar na COF - Circular de Oferta de Franquia, até porque um dos pilares da relação de franchising é a prestação adequada de informação e esclarecimentos ao franqueado. O tribunal entendeu que a ausência dessas informações violaria o princípio da boa-fé objetiva, um pilar fundamental nas relações contratuais, privaria de todo o efeito do negócio jurídico (CC, art. 122) e a sua celebração caracterizaria abuso de direito (CC, art. 187), dado que impediria o acesso à justiça ao franqueado. Por esses motivos, houve o reconhecimento de invalidade da cláusula compromissória. A decisão trouxe à tona uma importante discussão: até que ponto a falta de informação na COF pode justificar o afastamento de uma cláusula arbitral validamente acordada pelas partes? Embora a legislação de franquia exija transparência e uma comunicação clara entre franqueador e franqueado, há de se considerar o contexto completo. O franqueado, como empresário, tem acesso facilitado a informações sobre os custos da arbitragem, que podem ser consultados diretamente nos sites das câmaras arbitrais. Seria razoável exigir que todos os detalhes estejam contidos na COF, especialmente quando essas informações são de fácil obtenção? O tema acendeu debates tanto no meio do franchising quanto na comunidade arbitralista. Nessa linha, em consulta realizada pelo CBAr - Comitê Brasileiro de Arbitragem, a professora Aline Terra5, posicionou-se em relação a este entendimento do TJSP, principalmente sobre o dever de informação: "O dever de informação convive, portanto, com o ônus de autoinformação, expressão do dever geral de diligência que a todos incumbe para tutela e promoção de interesses próprios. Referido dever não se impõe de maneira uniforme a todos, mas ostenta diferentes graus conforme as circunstâncias do caso concreto, dentre as quais se destacam aquelas relativas aos meios disponíveis para obtenção da informação mediante esforços razoáveis: se é possível ao agente obter a informação adotando esforços razoáveis e padrão médio de diligência, mas não o faz, suportará as consequências adversas da sua conduta negligente. (...) Esclarecidas as bases jurídicas, é possível afirmar que o dever de informação imposto ao franqueador na fase pré-contratual não ostenta a extensão que o acórdão lhe conferiu. Encerra ônus do candidato a franqueado se autoinformar acerca dos custos relativos à solução de controvérsias via arbitragem, ainda que o contrato seja celebrado por adesão." Em julgado ulterior (apelação 1026438-08.2021.8.26.0100), a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, uma vez mais, afastou cláusula compromissória firmada em contrato de franquia. Neste decisum, a corte entendeu que a alteração da situação econômica da parte não poderia impedi-la de buscar a tutela jurisdicional de seus pleitos, sob pena violação ao direito constitucional previsto no art. 5º, inc. XXXV.  Neste caso concreto, a parte não teria recursos para custear o procedimento arbitral. E, assim, afastou-se o cumprimento da cláusula, "baseada na teoria da imprevisão e no princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição". Em oportunidade ainda mais recente, o TJSP, ao julgar a apelação 1086295-14.2023.8.26.0100, considerou que a cláusula compromissória, celebrada em contrato de franquia, era inválida, pois não houve o cumprimento do requisito disposto no art. 4, §2º, da lei de arbitragem, que estabelece os requisitos de validade para a cláusula de arbitragem em contrato de franquia.  Segundo a decisão, não há menção à arbitragem no local destinado para assinatura específica da cláusula de eleição de foro, motivo pelo qual a cláusula seria inválida. Isto é, embora o franqueado tenha assinado especificamente uma cláusula que confirmava a sua declaração quanto à cláusula de foro, que estabelecia a arbitragem, o TJSP entendeu que não houve o cumprimento do requisito constante do art. 4º, §2º, da lei de arbitragem.  Conquanto as decisões acima tenham causado grande repercussão no meio jurídico, é importante destacar que há inúmeros precedentes no âmbito do TJSP, igualmente recentes, reconhecendo a validade e eficácia de cláusulas compromissórias em contratos de franquia. Nesse sentido e apenas a título de ilustração: apelação 1124890-53.2021.8.26.0100; apelação 0020148-50.2023.8.26.0576; apelação 1064938-46.2021.8.26.0100; apelação 1132102-38.2015.8.26.0100. As recentes decisões do TJSP geraram preocupações no meio jurídico, diante da insegurança acarretada em torno da utilização da arbitragem no segmento do franchising. Como se sabe, a previsibilidade e a confiança que deveriam permear as relações empresariais ficam comprometidas com a variação do posicionamento jurisprudencial acerca de determinados temas, o que, por sua vez, pode afetar negativamente o ambiente de negócios e o fluxo de investimentos no país. Diante dessa crescente insegurança jurídica, será fundamental observar como o STJ se posicionará sobre a força vinculante das cláusulas arbitrais. O STJ tem, em diversas ocasiões, reforçado a importância da arbitragem como um mecanismo legítimo e eficiente de resolução de conflitos, e sua jurisprudência tende a proteger a autonomia da vontade das partes, especialmente em relações empresariais. __________ 1 TJSP, Apel. n. 1086295-14.2023.8.26.0100, Rel. Des. Cesar Ciampolini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 19.6.2024 e TJSP, Apel. n. 1003513-24.2020.8.26.0271, Rel. Des. Alexandre Lazzarini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 1.6.2022. 2 Não se encaixam como contratos típicos de associação de agentes econômicos (contratos de sociedade - interesses convergentes entre as partes) e nem contratos de intercâmbio (interesses divergentes entre as partes). Como ensina o professor e ministro Eros Grau: "nos contratos de comunhão de escopo (...) os interesses dos contratantes são paralelos. Se um dos contratantes sofre prejuízo, os outros também o suportam. Do espírito de solidariedade de interesses que os caracteriza, o lema: a vantagem dele é a minha vantagem, minha vantagem é a sua vantagem" (Eros Grau, Licitação e contrato administrativo, São Paulo: Malheiros, 1995, pp. 91/92). 3 Art. 8º, parágrafo único, da Lei 9.307/96: "[c]aberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória." 4 "(...) o Poder Judiciário pode, nos casos em que prima facie é identificado um compromisso arbitral 'patológico', i. e., claramente ilegal, declarar a nulidade dessa cláusula, independentemente do estado em que se encontre o procedimento arbitral" (STJ, REsp nº 1.602.076/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, j.15.9.2016) 5 Aline de Miranda Valverde Terra. Parecer Jurídico. Disponível aqui. Acesso em 23 de set. de 2024
Nunca foi muito fácil falar em arbitragem esportiva e ser imediatamente compreendido. O imaginário popular costuma relacionar esse termo com a figura do cidadão que, ungido pelo sistema esportivo como árbitro e munido de um apito e de um conjunto de cartões (vermelho e amarelo atualmente), garante o bom andamento de uma partida de futebol1. É, de fato, arbitragem. E é esportiva. Em tempos em que lançar mão do google costuma solucionar problemas, nesse caso a emenda pode ficar pior que o soneto. Segundo páginas e páginas de resultados, no mundo das apostas, arbitragem esportiva é sinônimo de apostas certas ou sem riscos (surebets), nas quais o jogador aproveita-se das odds das diversas casas de apostas para sempre ganhar. Mais uma que, não se pode negar, é arbitragem, e é esportiva. Num meandro labirinto como esse torna-se tarefa das mais inglórias; digna de um gol de placa, explicar que por arbitragem esportiva também se pode entender um meio adequado de solução de controvérsias naquela seara. E é desta que iremos tratar.     Tão difícil quanto situar a arbitragem como meio adequado de solução de controvérsias no meio esportivo é a tarefa de desvendar as várias espécies de "arbitragens esportivas" supostamente enquadradas nesse gênero, eis que parte desses fenômenos costumam apresentar elementos bastante semelhantes a uma arbitragem, mas carecem do elemento que mais distingue esse instituto: A voluntariedade2. Dentre as arbitragens esportivas que fazem jus ao nome e carregam todos os elementos daquele instituto, inclusive a voluntariedade, pode ser citada aquela objeto de cláusula ou compromisso entre atletas, clubes, federações, entre outros, voltada a dirimir disputa envolvendo direitos patrimoniais disponíveis. Na mesma esteira, a arbitragem trabalhista esportiva, a qual, desde que observados os contornos estabelecidos pela legislação trabalhista (art. 507-A da CLT) e atendidos os parâmetros que vêm sendo delineados pela jurisprudência da justiça do trabalho, é admissível como forma regular de utilização deste mecanismo privado de solução de controvérsias. Os procedimentos arbitrais carreados nestes casos podem, em tese, ser "ad hoc" ou institucionais e, neste último caso, pode-se lançar mão de qualquer câmara arbitral idônea, passando pelas câmaras tradicionais até chegar a câmaras "a priori" especializadas, como a CNRD - Câmara Nacional de Resolução de Disputas da Confederação Brasileira de Futebol e o  CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem, o qual possui, inclusive, regulamentos próprios para a arbitragem esportiva3-4. Por outro lado, a chamada cláusula estatutária/regulamentar, utilizada na seara esportiva através da inclusão de cláusula arbitral em regulamento ou estatuto, pode ensejar problemas relacionados ao citado elemento basilar da voluntariedade. Conforme já afirmei em outra oportunidade5, a posição monopolística exercida pelas entidades de administração do esporte no que concerne às respectivas modalidades atribui-lhes uma posição de poder em relação àqueles que delas dependem - em termos de chancela esportiva de resultados - para o livre exercício profissional. Assim, diferentemente do que ocorre com o acionista que opta por ingressar nos quadros de uma companhia e, ao fazê-lo, adere ao respectivo Estatuto, os profissionais do esporte não têm a opção de fazer ou não parte da Federação da respectiva modalidade. Se querem seus resultados validados nacional e internacionalmente, precisam fazê-lo. Assim, a cláusula arbitral estatutária não pode ter o mesmo tratamento em uma e outra situação. A voluntariedade, na seara esportiva, deve ser efetiva e não pressuposta. Como exemplo desse tipo de "arbitragem esportiva", pode ser citado o art. 59 do estatuto do COB - Comitê Olímpico Brasileiro6, que institui o tribunal arbitral do desporto para julgar, em primeira instância e de acordo com as regras de arbitragem, uma série de disputas.7 A previsão repete-se nos estatutos de entidades filiadas, como a CBV - Confederação Brasileira do Voleibol, que chega a prever, no art. 69, que "caso as partes falhem em chegar a um consenso amigável, os conflitos ou litígios deverão ser submetidos, em caráter cogente, à Arbitragem (...)"8, solapando de vez a voluntariedade que deveria reger a eleição de tal meio de solução de conflitos. Outro exemplo - denominado por alguns de competência associativa - é o procedimento previsto no Regulamento da CNRD - Câmara Nacional de Resolução de Disputas da Confederação Brasileira de Futebol (art. 3º) nas situações em que não há convenção de arbitragem firmada pelas partes, sendo a competência também lastreada na previsão estatutária ou regulamentar, independentemente da manifestação de vontade dos envolvidos. Por fim, uma última espécie relevante de arbitragem esportiva é a desenvolvida no âmbito da CAS - Corte Arbitral do Esporte, tribunal arbitral com sede na Suíça especializado em questões esportivas e com atuação como instância única ou recursal em disputas relacionadas ao esporte9. Sem adentrar nas hipóteses de previsão do CAS como instância recursal nas arbitragens por referência mencionadas (o que é bastante comum e recai na mesma problemática da voluntariedade já explorada), há uma atuação bastante interessante daquela corte no que diz respeito à segunda instância recursal de atletas internacionais em caso de procedimentos envolvendo potenciais violações à regra antidopagem10. Trata-se de situação "sui generis" em que a primeira instância do procedimento é levada a cabo no bojo da justiça desportiva antidopagem - instância de natureza não arbitral11 - e a segunda instância - de acordo com a opção do atleta12 - é levada a cabo no bojo de uma arbitragem instituída perante o CAS. Com essa última espécie "sui generis" que mistura justiça desportiva e arbitragem esportiva, verdadeira jabuticaba brasileira, para usar da expressão tão comumente utilizada pelo prof. Carlos Alberto Carmona, retomo o início desta coluna, agora tendo demonstrado, e não apenas afirmado, o quanto é difícil navegar pelas diversas "arbitragens esportivas" existentes. Dar nome aos bois não é tarefa fácil e esse foi apenas o primeiro capítulo do que ainda pretendo escrever sobre esse tema. ________ 1 Muito embora é sabido que o árbitro é também um ator das demais modalidades esportivas, o imaginário popular não se afasta da figura, outrora vestida em listras brancas e pretas, que simboliza as regras do jogo no campo de futebol, podendo, por vezes, ser o algoz de uma derrota, quando multidões creditam à sua "má prática" o resultado indesejado de sua equipe do coração. 2 A voluntariedade da arbitragem lhe é elemento constitutivo e essencial na medida em que a Constituição Federal assegura, no art. 5º, inc. XXXV, que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Ou seja, tal "exclusão" deve ser voluntária. Nessa mesma linha, Carlos Alberto Carmona afirma que "a escolha do meio adequado de solução de controvérsias é sempre voluntária, ou facultativa, eis que não existe no Brasil a arbitragem obrigatória (abolida entre nós em 1866)". CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 35. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui.  5 NUNES, Tatiana Mesquita. Olímpia e o Leviatã: a participação do Estado para garantia da integridade no esporte. Belo Horizonte: Forum, 2023. 6 Art. 59. Fica instituído o Tribunal Arbitral do Desporto, o qual terá competência para julgar, em primeira instância, de acordo com as regras de arbitragem estabelecidas na legislação brasileira (Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996), através do qual todos os membros de poderes e de todos e quaisquer órgãos do COB, bem como as entidades associadas, liadas, vinculadas ou reconhecidas, comprometem-se desde já a submeter à arbitragem os litígios que possam surgir, sempre observadas as disposições de seu regimento interno e suas próprias regras de procedimento: I - as questões de qualquer natureza oriundas dos Jogos Olímpicos, Jogos Pan-Americanos e Jogos Sul-Americanos, ou a eles relacionadas, ou quaisquer outras competições esportivas de igual natureza nas quais seja o COB o responsável pelo envio da delegação brasileira; II - as questões entre as entidades filiadas ou vinculadas ao COB e suas respectivas Federações e associações liadas, seus dirigentes, atletas e treinadores, ou entre qualquer destes e o Comitê Olímpico Brasileiro; III - as questões entre o COB, quaisquer das entidades referidas no item II deste artigo, destas entre si, seus dirigentes, atletas e treinadores, e terceiros com os quais tenham estabelecido relações contratuais ou mantenham vínculo em decorrência de disposições legais; IV - as questões entre as pessoas jurídicas referidas no item II deste artigo; V - as questões decididas pelos Poderes do COB. 7 Esta previsão causou bastante discussão no bojo do caso "Wallace", no qual uma decisão do Conselho de Ética do COB foi levada, em recurso, para apreciação em arbitragem instituída no CBMA (naquele momento, a Câmara eleita pelo COB na qualidade de "Tribunal Arbitral do Desporto"). 8 Disponível aqui. 9 Disponível aqui. 10 A disciplina em questão encontra-se no art. 8º do Decreto 8.692/2016 e em diversas disposições do Código Brasileiro Antidopagem. 11 A Justiça Desportiva, com assento no art. 217, § 1º, da Constituição Federal de 1988, difere da arbitragem, na medida em que, no mínimo durante o período de sessenta dias a que se refere o § 2º, tem exclusividade na apreciação das disputas envolvendo disciplina e competições esportivas, diferindo a apreciação judicial a que e refere o art. 5º, inc. XXXV, da Constituição. 12 Embora, neste caso, o elemento voluntariedade seja solucionado no que diz respeito ao atleta, dúvidas podem surgir em casos nos quais a submissão de recurso ao CAS seja feita por outras partes interessadas. Nada obstante, a discussão é bastante complexa para os limites desta coluna, cabendo estudo aprofundado em outra oportunidade.
Introdução O projeto de lei 2.486/22, de autoria do atual presidente do Senado Federal, senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), dispõe sobre o uso da arbitragem para dirimir controvérsias tributárias, sem restrição à fase processual, podendo, inclusive, ser adotada em conflitos já instaurados no contencioso administrativo e judicial. Trata-se de importante avanço em relação aos demais projetos em andamento, cujo alcance é extremamente limitado. Ao analisar as disposições preliminares do PL 2.486/22, entretanto, surgem questões complexas que precisam de revisão por parte dos legisladores. O texto proíbe a arbitragem tributária e aduaneira para créditos que tenham reconhecimento inequívoco, mesmo extrajudicial, pelo devedor. Essa disposição é controversa, uma vez que há jurisprudência no sentido de reconhecer que a confissão da dívida não impede o questionamento judicial da obrigação tributária. Além disso, o STJ já decidiu que parcelamentos e transações realizados após o prazo prescricional não restabelecem a exigibilidade do crédito tributário. Esse tema não é novo e a doutrina se divide. Alguns acreditam que o sistema de precedentes deve ser seguido sempre que houver conflito entre fisco e contribuinte. Outros defendem a total liberdade do juízo arbitral, argumentando que a função do árbitro é solucionar o conflito apresentado de forma autônoma e independente. Propostas do PL 2.486/22 Entre as principais mudanças, o projeto de lei prevê, em seu art. 5º, inciso II, que os precedentes judiciais são normas jurídicas para fins de julgamento arbitral, impondo ao árbitro o dever de segui-los, conforme o art. 927 do CPC, sob pena de nulidade da sentença arbitral (art. 29, inciso X do PL 2486/22). Além disso, o art. 31 do projeto de lei enfatiza a aplicação dos temas de repercussão geral 881 e 885, destacando a observância aos precedentes constitucionais nas relações de trato continuado e impondo a interrupção dos efeitos de sentenças arbitrais que contrariem tais entendimentos. O PL 2.486/22 apresenta diversas propostas para a arbitragem tributária, mas um dos aspectos mais incentivadores para os contribuintes é o desconto incidente nas multas, que servirá como verdadeiro estímulo para a adesão ao processo arbitral. Críticas e implicações A) Arbitrabilidade - limites materiais A principal função da arbitragem é oferecer uma forma mais rápida e eficiente de resolver conflitos, contribuindo para a redução do elevado contencioso fiscal. A adoção de um sistema de precedentes é crucial para uniformizar entendimentos, criar previsibilidade e confiança no Direito, promover igualdade e isonomia, favorecendo a pacificação dos conflitos. Já votado pelo Senado Federal e enviado à Câmara dos Deputados, o PL 2.486/22 estabelece que a arbitragem tributária deve seguir os precedentes judiciais. O texto até então aprovado proíbe a arbitragem tributária e aduaneira para créditos que tenham reconhecimento inequívoco, mesmo que extrajudicial, pelo devedor. Esta disposição é controversa, pois há jurisprudência que reconhece que a confissão da dívida não impede o questionamento judicial da obrigação tributária. Além disso, como já foi dito, o STJ decidiu que parcelamentos e transações realizados após o prazo prescricional não reestabelecem a exigibilidade do crédito tributário. O PL 2.486/22 trata das matérias que podem ser submetidas à arbitragem tributária de forma negativa, ou seja, especifica nos parágrafos 1º e 2º do art. 4º àquelas que não podem ser julgadas por arbitragem. Estas incluem: 1) controvérsias envolvendo a constitucionalidade de normas jurídicas ou a discussão sobre leis em tese, e 2) sentenças arbitrais cujos efeitos prospectivos resultem, direta ou indiretamente, em regime especial diferenciado ou individual de tributação. A restrição à utilização da arbitragem para resolver disputas que envolvam questões de constitucionalidade merece reflexão, o que parece reduzir excessivamente o alcance da arbitragem, especialmente na área tributária, na qual muitas questões estão relacionadas a matérias constitucionais. Conforme o projeto de lei, as matérias submetidas à arbitragem serão àquelas previamente escolhidas pela Fazenda Pública. Dessa forma, não há risco de um contribuinte impor unilateralmente o julgamento arbitral de uma matéria - seja constitucional ou não - que a Fazenda Pública considere inadequada para tal método. Assim, não deveria haver limitação prévia na lei sobre as matérias passíveis de julgamento por arbitragem. Tampouco há impedimento técnico para a submissão de conflitos envolvendo matéria constitucional à arbitragem, desde que no âmbito do controle difuso, uma vez que o controle concentrado é reservado ao STF. Quanto à vedação de que a sentença resulte em "regime especial diferenciado ou individual de tributação", também parece inadequada, pois, na esfera tributária, toda sentença judicial de algum modo atribui ao sujeito passivo um tratamento diferenciado em relação a outros que não levaram a mesma discussão ao Poder Judiciário. Há ainda questionamentos sobre as situações adequadas para a arbitragem tributária. Se os precedentes devem ser seguidos independentemente da via adotada, o resultado da resolução do conflito, seja na arbitragem ou no Judiciário, deveria ser o mesmo. Estas questões podem e devem ser discutidas, mas parece que a arbitragem tributária se limitará a casos específicos que envolvem provas técnicas complexas e de elevado valor para as partes, permitindo que elas aproveitem todos os benefícios. Entre as propostas estão a introdução de mediação e arbitragem nas discussões tributárias com a União, uma nova lei para o processo administrativo fiscal, mudanças no CARF -Conselho de Administração de Recursos Fiscais e a criação de um código de defesa dos contribuintes. O objetivo é reduzir litígios e encontrar soluções para conflitos entre contribuintes e autoridades sem a necessidade de recorrer ao Judiciário, um passo importante para a redução da litigiosidade no país, pois, de acordo com dados do CNJ, as execuções fiscais representam um terço dos processos em tramitação, com uma taxa de solução de apenas 12%. A iniciativa é legítima, um verdadeiro avanço, até bem pouco inexistente. Incentivar outras formas de prevenção e solução de conflitos, além daquelas que já conhecemos, significa uma evolução positiva. A aprovação desse projeto dá ensejo a criação de um espaço menos conflituoso e mais harmônico entre o contribuinte e a Fazenda Nacional e, a depender do seu sucesso, extensivo às fazendas estaduais e municipais. O senador Efraim Filho (União-PB), relator da comissão temporária, destacou em audiência que essa iniciativa é tão importante quanto a reforma tributária, evidenciando que a litigiosidade gerada pelos problemas do processo administrativo é central no chamado Custo Brasil. B) Observância aos precedentes vinculantes dos tribunais superiores Em paralelo, o projeto de lei determina que a sentença arbitral deve respeitar os precedentes reiterados e vinculantes dos tribunais superiores, sob pena de nulidade. Estabelece que a arbitragem tributária deve ser decidida com base na legislação brasileira, devendo observar os precedentes vinculantes dos tribunais superiores, que assumem a natureza de normas jurídicas do ordenamento. Além disso, o PL prevê que será "nula a sentença arbitral se: (...) art. 29, inciso X - proferida em contrariedade a precedente qualificado de que trata o art. 927 da lei 13.105/15". Os precedentes vinculantes compõem o ordenamento jurídico com a mesma importância das demais normas do sistema. Portanto, a jurisprudência reiterada dos tribunais superiores tem significativa importância na conformação do sistema aplicável. É inevitável, portanto, que sua aplicabilidade nos julgamentos arbitrais seja estabelecida, sob pena de nulidade, conforme previsto pelo PL 2.486/22. Além disso, o projeto sugere a aplicação subsidiária da lei 9.307/96 à arbitragem tributária e aduaneira, o que pode ser visto como uma tentativa de aproximar modelos com pressupostos distintos. A arbitragem, como instituto geral, é um processo de julgamento privado que busca oferecer uma justiça adequada à administrada pelo Poder Judiciário, permitindo que partes capazes de contratar utilizem-na para resolver litígios sobre direitos patrimoniais disponíveis.  Expandir amplamente o campo arbitrável em matéria tributária e aduaneira é uma iniciativa ousada, desafiadora e controversa, especialmente ao considerar a arbitragem para a prevenção de controvérsias no contencioso administrativo. Nesses casos, mesmo que a prevenção não seja a essência da arbitragem, submete-se a constituição do crédito tributário a um terceiro fora da relação obrigacional. É sabido que a atribuição do tributo é uma atividade exclusiva da autoridade administrativa, mesmo que essa tarefa se reduza à mera homologação. A intervenção de terceiros na constituição do crédito tributário pode sugerir um avanço normativo inadequado em matéria reservada à lei complementar, levantando dúvidas sobre a constitucionalidade do projeto. Estas são apenas algumas impressões iniciais que anunciam um debate fervoroso pela frente. Conclusões O PL 2.486/22 representa um avanço significativo na arbitragem tributária ao permitir a aplicação desse método para resolver controvérsias em todas as fases do processo, tanto no contencioso administrativo quanto no judicial. Esta flexibilidade é um destaque em comparação a outras propostas, como o PL 4.257/19 e o PL 4468/20, que têm escopos mais restritos. Ao não limitar previamente as matérias tributárias passíveis de arbitragem e ao permitir que estas sejam estabelecidas por ato da Fazenda Pública, o PL 2.486/22 se destaca pela sua abordagem inclusiva. No entanto, a ausência de regras detalhadas sobre o procedimento arbitral representa uma lacuna que pode ser preenchida com a aplicação subsidiária da lei de arbitragem. A vedação de arbitragem para disputas envolvendo a constitucionalidade e a imposição de regimes especiais é uma limitação que reduz o potencial da arbitragem tributária. Embora o projeto estabeleça restrições, como a vedação à arbitragem em disputas que envolvam a constitucionalidade de normas jurídicas, essa limitação é aplicada apenas em tese, pois as matérias submetidas à arbitragem serão escolhidas previamente pela Fazenda Pública. Assim, a vedação à inconstitucionalidade não impede, de fato, a resolução de questões complexas e significativas por meio da arbitragem, oferecendo uma oportunidade para reduzir a litigiosidade e encontrar soluções eficazes no âmbito tributário. Um ponto de destaque do PL 2.486/22 é a exigência de respeito aos precedentes vinculantes dos tribunais superiores, garantindo que a arbitragem esteja alinhada com o ordenamento jurídico existente. Essa exigência é fundamental para assegurar a uniformidade e a previsibilidade nas decisões arbitrais, especialmente em um campo no qual a jurisprudência dos tribunais superiores tem papel importante. Um dos aspectos mais atraentes do projeto é o desconto incidente nas multas tributárias para os contribuintes que optarem pela arbitragem. Esse incentivo financeiro é significativo porque pode ser o fator decisivo para que muitas empresas e indivíduos considerem a arbitragem como uma alternativa viável e vantajosa ao litígio judicial tradicional. As multas tributárias, que podem ser extremamente onerosas, frequentemente desencorajam os contribuintes a contestarem débitos fiscais, mesmo quando acreditam ter argumentos sólidos. O custo elevado das penalidades, somado ao longo e incerto processo judicial, leva muitos a preferirem pagar as multas ou buscar acordos menos favoráveis com o Fisco.  Ao oferecer um desconto nas multas àqueles que optam pela arbitragem, o PL 2.486/22 não apenas alivia o peso financeiro sobre os contribuintes, mas também incentiva uma resolução mais ágil e eficiente dos conflitos. Esse desconto funciona como um poderoso incentivo porque reduz significativamente o risco financeiro envolvido na disputa tributária. Com um custo potencialmente menor, os contribuintes podem se sentir mais encorajados a buscar a arbitragem como um meio de defesa de seus direitos, especialmente em casos nos quais há complexidade técnica ou necessidade de interpretação mais especializada da legislação tributária. Em resumo, o PL 2.486/22 avança na direção de uma arbitragem tributária mais ampla e adaptada à realidade dos conflitos tributários, embora algumas áreas ainda necessitem de regulamentação mais detalhada. A combinação de uma abordagem inclusiva com a observância dos precedentes judiciais estabelece uma base sólida para o desenvolvimento futuro da arbitragem tributária no Brasil onde a segurança jurídica tem papel fundamental para garantir a previsibilidade e a estabilidade das relações.
A lei 9.307/96 e o próprio instituto jurídico da arbitragem no Brasil se encontram permanentemente em risco. Que ninguém mais se iluda1. Assim anunciou um dos idealizadores da Lei de Arbitragem brasileira, Petronio R. Muniz, em "A Operação Arbiter", livro que narra a árdua trajetória legislativa que levou o Brasil a ter uma das leis arbitrais mais modernas do mundo. A arbitragem tem se consolidado como um dos principais métodos de resolução de disputas no Brasil. No entanto, o instituto não está a salvo de interferências externas. Refiro-me especificamente sobre o Projeto de Lei (PL) n. 3293/2021 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 1.0502, que representam verdadeira ameaça ao sistema arbitral brasileiro, bem como aos precedentes judiciais relativos à violação do dever de revelação, objeto de pretensões anulatórias de sentença arbitral, o que será analisado à luz do recente entendimento formado, por maioria, na 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n. 2101901/SP3. O PL 3293/2021 visa introduzir novas regras para a atuação dos árbitros e, em tese, aprimorar o dever de revelação. Paralelamente, na ADPF 1.050, busca-se que o Supremo Tribunal Federal estabeleça critérios sobre o dever de revelação dos árbitros, conforme previsto no artigo 14 da lei 9.307/96 (Lei de Arbitragem). Essas medidas têm o potencial de alterar substancialmente a Lei de Arbitragem e, apesar de se apresentarem como "aprimoramentos", a nosso ver colocam em risco a autonomia do sistema arbitral ao desafiar os mecanismos legais intencionalmente flexíveis que promovem a confiança das partes no árbitro. A Lei de Arbitragem impõe poucas regras cogentes ao procedimento arbitral, garantindo a sua flexibilidade. Esses aspectos procedimentais concentram certo destaque na atuação do árbitro, que deve, "no desempenho de sua função", proceder com "imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição" (art. 13, § 6º da Lei de Arbitragem). O árbitro pode ser "qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes" (art. 13 da Lei de Arbitragem). Comumente, ele é nomeado de acordo com regras pré-estabelecidas - na cláusula compromissória ou compromisso arbitral. Essas regras, na prática, geralmente fazem referência a outras existentes, como as de uma câmara de arbitragem eleita pelas partes (instituição privada que tem como função auxiliar nas funções administrativas do procedimento). Uma vez nomeado, o árbitro deve ter a confiança das partes, atuando com imparcialidade e independência. Uma das formas de promover essa confiança é o "dever de revelar" fatos que possam levantar "dúvida justificada" quanto à imparcialidade ou independência (art. 14, § 1º da Lei de Arbitragem). Em outras palavras, o árbitro deve revelar fatos que, em seu conteúdo, suscitem "dúvida justificada", permitindo que as partes, em posse desses fatos, questionem o árbitro ou, em determinadas circunstâncias, o impugnem pela falta de imparcialidade ou independência, utilizando mecanismos adequados (como os comitês de impugnação), ou ainda, concordem com sua atuação apesar do fato revelado. O dever de revelação permite ao árbitro evitar a aparência de parcialidade, revelando fatos que poderiam conotar, em algum grau, a falta de imparcialidade aos olhos das partes. A revelação permite que as partes considerem as circunstâncias dos fatos revelados para a tomada de uma decisão mais informada sobre a aceitação da nomeação, destacando-se também os fatos que, apesar de não relevados, são conhecimento público e notório, e que devem ser objeto de questionamento na primeira oportunidade das partes de se manifestar sobre a aceitação da nomeação. O PL 3293/2021, entre outras questionáveis alterações, sugere a substituição do termo "dúvida justificada" por "dúvida mínima" do § 1º do artigo 14 da Lei de Arbitragem. A modificação, em teoria, amplia os fatos a serem revelados que poderiam suscitar questionamentos sobre a independência e imparcialidade do árbitro. No entanto, o termo "dúvida mínima" não elimina a subjetividade inerente à extensão daquilo que deveria ser revelado e, indiretamente, amplia as razões que as partes poderiam usar para fundamentar pedidos de anulação da sentença arbitral por possível violação do dever de revelação, mesmo que tal fato não tenha comprometido a imparcialidade e independência do árbitro. Para corroborar com o risco advindo da proposta de alteração legislativa, o Ministro Humberto Martins, em voto vencido proferido no mencionado Recurso Especial n. 2.101.901/SP4, fez referência à PL 3293/2021 que propõe nova redação ao § 1º do artigo 14 da Lei de Arbitragem, para fundamentar o seu entendimento de que não caberia uma avaliação subjetiva a respeito da relevância e do impacto da omissão na imparcialidade para a aferição da ocorrência de violação ao dever de revelação do árbitro, cabendo ao juiz da ação anulatória, definir, tão somente, se os fatos são relevantes, ao ponto da omissão impactar, pela perspectiva das partes, na aceitação do árbitro, a justificar a pretensão anulatória mesmo que o fato omitido não comprometesse, concretamente, a imparcialidade ou a independência do árbitro. Ao contrário e brilhantemente destacado pela Ministra Nancy Andrigui em seu voto vencedor, também proferido no julgamento do Recurso Especial n. 2101901/SP, "anular uma sentença arbitral por requerimento da parte perdedora, sob a alegação de que houve ofensa ao princípio da confiança, com base em fatos que eram do conhecimento público e notório desde a indicação do referido árbitro, no meu modo de ver, respeitosamente, descredibilizaria todo o sistema de arbitragem nacional"5. Não parece haver dúvidas de que o termo "justificada" carrega consigo a necessidade de uma base factual para a dúvida. Por outro lado, "dúvida mínima" amplia essa definição para incluir qualquer dúvida, mesmo que seja apenas uma incerteza trivial, como as hipóteses especulativas reiteradamente usadas por advogados para questionar a alegada imparcialidade dos árbitros. A alteração para "mínima" altera as expectativas envolvidas, pois qualquer incerteza, por menor que seja, passa a ser relevante. Do ponto de vista lexicográfico, "mínima" é uma escolha que reduz o limiar para o que pode ser considerado uma dúvida relevante. A ADPF 1.050, por sua vez, requer que, à luz da Constituição Federal, o STF "declare quais são os critérios/standards constitucionais do exercício do dever de revelação pelos árbitros, previsto no artigo 14, da LArb". Com isso, busca-se uniformizar - por via legal - os parâmetros ao dever de revelação, com o objetivo de evitar o julgamento parcial de disputas e impedir controvérsias judiciais relativas ao tema da violação da imparcialidade ou independência. Ambas as medidas têm a utópica finalidade de reduzir a margem interpretativa intencionalmente presente no § 1º do artigo 14 da Lei de Arbitragem. No entanto, ao contrário do que se propõem, elas podem gerar efeitos adversos aos que se desejava evitar. Não se discute a importância da imparcialidade do árbitro. O que se discute é se o enrijecimento dos parâmetros do dever de revelação por via legislativa e/ou judicial tem como resultado a garantia da imparcialidade do árbitro e, por extensão, o aprimoramento da segurança jurídica. Por um lado, os parâmetros buscam "sistematizar" tudo aquilo que deve ser revelado. Por outro, a revelação de fatos que não possuem relevância à arbitragem pode ser instrumentalizada para tentativas de anulação de sentenças arbitrais. A não revelação de fato que gere "dúvida justificada" não implica, imediatamente, na anulação da sentença arbitral. E esse conceito é fundamental. Findo o processo e proferida a sentença, as hipóteses de anulação estão previstas no artigo 32 da Lei de Arbitragem. No que diz respeito à nossa discussão, são as hipóteses dos incisos II e VIII do artigo 32: caso a sentença tenha sido proferida por quem não podia ser árbitro, ou se desrespeitados os princípios da imparcialidade ou independência. O árbitro tem o dever de revelar quaisquer fatos que possam suscitar dúvidas justificáveis quanto à sua imparcialidade ou independência. Com isso, as partes podem realizar suas próprias análises e decidir se concordam da nomeação. Caso tenham dúvida quanto à imparcialidade e independência, a parte poderá impugnar a nomeação. Ainda que o fato não revelado gere dúvidas justificadas quanto à imparcialidade ou independência do árbitro, a não revelação não deve implicar na imediata anulação da sentença. Não existe uma relação direta, um critério objetivo de causa efeito. A anulação somente é possível se, no conteúdo do fato não revelado, houver violação concreta às regras de imparcialidade e/ou independência.. Em lição conhecida, Arnold Wald já indicava as consequências da ampliação das exigências: "sujeitar-se-á o árbitro a verdadeira e constante "caça às bruxas", impondo-lhe o ônus  com o qual, numa perspectiva realista, dificilmente conseguirá arcar, e permitindo que qualquer das partes disso se aproveite, no futuro, para, se for de seu interesse, questionar a sentença arbitral utilizando-se deste fundamento6"; já Carlos Alberto Carmona bem destaca que "o desenvolvimento da prática da arbitragem no Brasil provocou as diversas entidades que lidam com a arbitragem a procurar alguns parâmetros mais ou menos concretos para orientar os árbitros neste difícil mister que é a dosagem das informações que devem dar aos contendentes. Informar pouco pode gerar dúvida sobre a imparcialidade; informar demais pode estimular impugnações frívolas"7. Logo, à medida que se exigem maiores deveres de revelação do árbitro, aumentam também as possibilidades de arguição de nulidade da sentença com base em fatos que não comprometem a imparcialidade. A simples não revelação desses fatos poderia, por si só, ocasionar a nulidade. E uma total insegurança jurídica. A esquizofrenia conceitual que vem sendo adotada na prática promove um receio aos árbitros e uma paranoia às partes, especialmente advogados, de que absolutamente tudo, inclusive o trivial e o circunstancial, deva ser revelado, sob o risco da parte "perdedora" anular a sentença arbitral pela simples razão do fato "não ter sido revelado", independentemente do seu conteúdo ou do momento em que a parte toma conhecimento deste fato, especialmente se público e notório, o que, nos termos do voto do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, no já mencionado Recurso Especial n. 2.101.901/SP, configuraria uma verdadeira "nulidade de algibeira", ou seja, as partes não poderiam "guardar uma nulidade de algibeira para depois que perdem a questão na arbitragem, ir ao Judiciário para discutir uma suposta nulidade que não se verificou"8. Esse risco atinge não apenas o prestígio de muitos árbitros que trabalham na área, mas também promove uma escalada de revelações que em nada colaboram com a construção do ideal de confiança, gerando mais questionamentos, mais demora e, por vezes, redundam na renúncia do árbitro. Essa soma de mal-entendidos (ou pressupostos de má-intenções) em relação ao instituto da revelação promove o desprestígio da prática arbitral e um acúmulo de ações anulatórias no Judiciário sem fundamento (e que, ao final, visam somente reverter um resultado "ruim"). A Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentou um parecer extremamente pertinente nos autos da ADPF 1.051, concluindo pela irrazoabilidade de exigir a revelação de fatos que não apresentam qualquer risco à parcialidade do árbitro: "[...] em situações concretas, é possível que determinados dados não sejam indicativos de risco real de parcialidade, e por isso, não se haveria de exigir que fossem compartilhados com as partes. É análise possível de ser feita a posteriori pelo juiz de eventual ação anulatória, que não mitiga o dever de revelação do árbitro"9. No requerimento de ingresso como amicus curiae na ADPF 1.051, o Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr), em irretocável manifestação, igualmente ressaltou que "questões referentes ao dever de revelação e à parcialidade e suspeição de árbitros vêm sendo e devem ser decididas nos casos concretos" e que a "constitucionalidade do dispositivo objeto da ação em questão é certa e não deveria sequer ser objeto de debate, uma vez que a disciplina legal das causas de impedimento e suspeição de árbitros e do dever de revelação é adequada e consonante com os ordenamentos e práticas mais avançados do mundo"10. Em sede de ação anulatória, os tribunais frequentemente abordam a revelação do árbitro como um dever absoluto, o que pode levar à anulação da sentença arbitral pela posterior constatação de um fato, independentemente de sua relevância ou impacto na disputa. Não se pode admitir que a não revelação de determinado fato seja causa de anulação da sentença arbitral e, nesse viés, o recente entendimento formado no Recurso Especial n. 2101901/SP, que afastou a pretensão anulatória da sentença arbitral pela omissão de fatos que não possuíam o condão de impactar a imparcialidade do árbitro, evidencia uma vez mais o papel fundamental que o Superior Tribunal de Justiça tem desempenhado para salvaguardar o sistema arbitral, interpretando os dispositivos legais de modo a preservar a segurança jurídica e prestigiar a prática nacional. Nesse âmbito, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, no mencionado Recurso Especial n. 2.101.901/SP, apontou em seu voto que a extensão interpretativa do dever de revelação poderia vir a comprometer a rigidez do sistema arbitral que tem se consolidado ao longos dos anos e, notadamente, ressaltou a essencial função que tem se revelado ao Superior Tribunal de Justiça como "verdadeiro guardião do sistema arbitral no país, garantindo que as sentenças arbitrais sejam cumpridas devidamente; dado que os índices de rejeição de sentenças arbitrais no STJ é ínfimo, como deveria ser, em prol da segurança jurídica"11. Portanto, o anúncio profético de Petronio R. Muniz foi mais uma vez provado real. O Projeto de Lei n. 3293/2021 e a ADPF n. 1.050 que alteram a Lei de Arbitragem não apenas colocam em risco o instituto jurídico da arbitragem no Brasil, como também expõem o miasma que contamina o legislador em projetos tipicamente abrasileirados. A proposta ignora a auto-regulação do sistema arbitral, que, por meio de práticas e normas estabelecidas pelas próprias partes e instituições arbitrais, tem se mostrado mais eficaz na correção de imperfeições do sistema, tampouco considera as relevantíssimas discussões que vem sendo travadas nas Cortes Superiores do país sobre o dever de revelação, como se verifica no julgamento do Recurso Especial n. 2101901/SP. A imposição de regras rígidas e a interferência estatal excessiva podem desvirtuar a natureza privada da arbitragem. Que as ameaças ao instituto jurídico da arbitragem no Brasil se mantenham apenas como ameaças!  Referências CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. Um comentário à Lei nº 9.307/96. São Paulo: Atlas, 4ª Edição, 2023. MUNIZ, Petronio R. G. Operação Arbiter. A História da Lei nº 9.307/96. Sobre a Arbitragem Comercial no Brasil. Brasília: ITN, 2005. WALD, A. A Ética e a Imparcialidade na Arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v. 10, n. 39, p. 1, out.-dez. 2013. __________ 1 MUNIZ, Petronio R. G. Operação Arbiter. A História da Lei nº 9.307/96. Sobre a Arbitragem Comercial no Brasil. Brasília: ITN, 2005, p. 135. 2 Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 1.050. Relatoria do Ministro Alexandre de Morais. 3 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 2.101.901/SP. Relatoria da Ministra Nancy Andrigui. Julgado em 18/06/2024, pela 3ª Turma, que, por maioria, negou provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Ministra Relatora. Vencidos os Ministros Humberto Martins e Moura Ribeiro. Os Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Marco Aurélio Bellizze votaram com a Ministra Relatora para não anular a sentença arbitral objeto da anulatória cujo fundamento arguido era, justamente, a violação do dever de revelação do árbitro. 4 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 2.101.901/SP. Relatoria da Ministra Nancy Andrigui. 3ª Turma. Julgado em 18/06/2024. Voto proferido oralmente pelo Ministro Humberto Martins, conforme disponível aqui, na minutagem: 1:24:50 ao 1:25:40. 5 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 2.101.901/SP. Relatoria da Ministra Nancy Andrigui. 3ª Turma. Julgado em 18/06/2024. Voto proferido oralmente pelo Ministro Humberto Martins, conforme disponível aqui, na minutagem: 1:42:16 ao 1:42:45. 6 WALD, A. A Ética e a Imparcialidade na Arbitragem. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v. 10, n. 39, p. 1, out.-dez. 2013, p. 34. 7 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. Um comentário à Lei nº 9.307/96. São Paulo: Atlas, 4ª Edição, 2023, p. 260. 8 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 2.101.901/SP. Relatoria da Ministra Nancy Andrigui. 3ª Turma. Julgado em 18/06/2024. Voto proferido oralmente pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, conforme disponível aqui, na minutagem: 1:44:56 ao 1:45:10. 9 Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 1.050. Relatoria do Ministro Alexandre de Morais. ID n. 85. Manifestação da PGR (91368/2023), p. 19. 10 Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 1.050. Relatoria do Ministro Alexandre de Morais. ID n. 29. Pedido de ingresso como amicus curiae (39252/2023), pp. 27-28. 11 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 2.101.901/SP. Relatoria da Ministra Nancy Andrigui. 3ª Turma. Julgado em 18/06/2024. Voto proferido oralmente pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, conforme disponível aqui, na minutagem: 1:46:05 ao 1:47:00.
O 'hot-tubbing', também conhecido como testemunho simultâneo de peritos ou conferência de peritos, é uma técnica interessante no procedimento arbitral que visa aumentar a eficiência e a eficácia da apresentação de provas periciais.1 Originária dos países de sistema Common Law, essa prática tem ganhado reconhecimento e aplicação em arbitragens internacionais, sobretudo nas disputas complexas envolvendo questões técnicas ou científicas. Hot-tubbing é um método pelo qual os peritos de ambas as partes em uma arbitragem são ouvidos juntos, na presença do tribunal arbitral e das partes, para discutir suas evidências e pontos de vista. De fato, o hot-tubbing é melhor classificado como um método de prova, em vez de um meio de prova. Isso porque ele não constitui uma prova em si, mas sim uma técnica utilizada durante processos arbitrais para examinar e comparar os materiais apresentados por peritos ou especialistas de ambas as partes. Diferentemente do formato tradicional em que cada perito é ouvido separadamente, o hot-tubbing permite uma interação direta e espontânea entre os peritos, facilitando a identificação de áreas de acordo e desacordo, e esclarecendo pontos técnicos complexos e permitindo que o tribunal arbitral faça perguntas diretamente aos peritos de forma mais eficaz. A crescente popularidade da conferência de peritos decorre dos inúmeros benefícios que traz para os procedimentos e sua contribuição para a revelação da verdade de forma mais eficiente.2 Tal método de produção de prova apresenta vantagens em relação ao procedimento tradicional de apresentação de provas periciais. Primeiramente, promove uma discussão mais dinâmica e focada, auxiliando o tribunal a compreender melhor as questões técnicas em disputa. Além disso, ao permitir que os peritos interajam diretamente, reduz-se o risco de mal-entendidos ou interpretações equivocadas das evidências apresentadas. Essa prática pode levar a uma economia significativa de tempo e custos, já que facilita a identificação rápida das questões centrais e minimiza a necessidade de repetidas rodadas de manifestações. Por outro lado, embora o uso de hot-tubbing tenha o potencial de reduzir a duração de uma audiência, e, portanto, seu custo, não se pode desconsiderar que exigirá de cada parte mais tempo de preparação com sessões prévias de treinamento para uma melhor apresentação no momento da audiência propriamente dito. Esse método também pode ajudar a evitar potenciais problemas de imparcialidade e enviesamento cognitivo, incluindo a supervalorização de peritos indicados pelo tribunal.3 Isto porque quando um perito é indicado exclusivamente pelo tribunal, existe o risco real e natural de que sua opinião seja vista como mais autoritativa simplesmente por causa de sua indicação. Ao permitir que os peritos de ambas as partes sejam ouvidos e questionados conjuntamente, o hot-tubbing promove uma atmosfera de equilíbrio, na qual as opiniões de todos os peritos são consideradas lado a lado. No entanto, a implementação do hot-tubbing em procedimentos arbitrais não está isenta de desafios. A eficácia dessa técnica depende, em grande medida, da habilidade e experiência dos árbitros em conduzir a discussão de maneira equilibrada, assegurando que todos os pontos de vista sejam adequadamente considerados. Além disso, pode haver preocupações relacionadas à pressão exercida sobre os peritos, especialmente em casos de elevada complexidade técnica ou quando há desequilíbrios significativos de poder entre as partes. Para superar esses desafios e maximizar os benefícios do hot-tubbing, algumas considerações práticas são essenciais. É crucial que o tribunal arbitral estabeleça regras claras para o procedimento, incluindo o escopo das questões a serem discutidas e os limites da interação entre os peritos. Isso deve ser estabelecido por meio de ordem arbitral depois de ouvidas as partes previamente. A preparação adequada dos peritos e a escolha de especialistas com habilidades de comunicação são igualmente importantes para garantir que a discussão seja produtiva e focada. A adoção de práticas cuidadosas de planejamento e execução, bem como da habilidade dos árbitros em gerenciar efetivamente a discussão também pode influenciar no melhor aproveitamento do método. Além disso, o uso de tecnologias de informação e comunicação pode facilitar a organização e a condução dessas sessões.4 Mas há mais: Questões econômicas e temas envolvendo engenharia, contabilidade, ou outras ciências exatas, em teoria, não deveriam gerar grandes discordâncias, já que se baseiam em princípios e cálculos objetivos. Contudo, na prática, observa-se frequentemente que as partes envolvidas em disputas ou análises apresentam pareceres técnicos com conclusões diametralmente opostas. Isso se deve, em grande parte, à interpretação dos dados, à escolha de metodologias específicas e à aplicação de pressupostos variáveis, que podem levar a resultados substancialmente diferentes. Esta realidade ressalta a complexidade inerente à aplicação de conhecimentos técnicos em contextos disputados. Mesmo dentro de campos aparentemente objetivos, como as ciências exatas, a seleção de modelos econômicos, métodos de avaliação de engenharia ou critérios contábeis específicos pode ser influenciada por juízos de valor ou interesses das partes. Além disso, a complexidade dos temas abordados e a especialização necessária para compreendê-los podem criar barreiras adicionais ao consenso. A consequência disso é um aumento no raio de dúvida e na ampliação de debates, especialmente em contextos ou arbitrais, onde cada parte procura fundamentar seu ponto de vista com o apoio de especialistas. Durante a audiência, seguindo as diretrizes estabelecidas pelo tribunal arbitral, ou no termo de arbitragem ou do próprio regulamento de arbitragem os peritos têm a oportunidade de apresentar um resumo de sua metodologia, o alcance de seu trabalho e as conclusões alcançadas. Essa apresentação, quando feita, geralmente toma o lugar do interrogatório direto e normalmente é seguida por um modelo de cross-examanination conduzido pelo advogado da parte adversa. Após isso, pode ocorrer um re-interrogatório e, se aplicável, perguntas por parte dos árbitros. Além disso, os peritos são ouvidos e questionados simultaneamente, de acordo com um protocolo específico de conferência determinado pelo tribunal arbitral, é justamente esse momento que ocorre o chamado hot-tubbing:Como se pode perceber, a prática foi desenvolvida como meio para a coleta de provas periciais, para preencher a lacuna entre as visões, por vezes, polarizadas sobre os pareceres de peritos. Esse debate qualificado de especialistas envolve uma discussão em mesa com os peritos e o tribunal arbitral, onde pontos controvertidos são colocados em pauta e cada perito nomeado pela parte responde à questão e confronta o outro perito. A dinâmica permite que os árbitros questionem cada perito sobre o que o outro afirmou. Alternar entre eles permite que o tribunal arbitral entenda melhor a posição de cada perito. Essa abordagem promove um ambiente onde os peritos podem, de forma direta, expressar seus pontos de vista sobre as opiniões apresentadas pelos colegas. Tal interação facilita não apenas a troca de perspectivas, mas também capacita o corpo arbitral a discernir, com precisão, as áreas onde existem divergências reais e substanciais entre os especialistas. A natureza interativa da conferência de peritos encoraja cada especialista a ultrapassar as respostas pré-estabelecidas e partilhar as suas perspectivas técnicas de modo mais espontâneo. Este processo promove um diálogo interessante e mais dinâmico entre os peritos, permitindo-lhes esclarecer ao tribunal arbitral os fundamentos de suas discordâncias. Tal abordagem não só esclarece as questões para o tribunal, como também pode fomentar um consenso entre os peritos sobre pontos anteriormente controvertidos. O método de hot-tubbing possibilita que especialistas das mesmas áreas sejam apresentados e ouvidos conjuntamente, permitindo que ocupem a mesma posição de depoentes simultaneamente. O tribunal analisa as informações e os dados permitindo uma comparação simultânea das respectivas declarações dos peritos, o que pode resultar em audiências mais curtas e eficientes. O uso de hot-tubbing em um ambiente virtual também é possível seguindo a mesma dinâmica e ordem daquela que é praticamente em sessões presenciais. No entanto, há quem diga que em processos arbitrais, os tribunais podem enfrentar problemáticas adicionais ao tentar avaliar a credibilidade e o peso relativo das opiniões de peritos que estão em desacordo, especialmente quando a interação direta e a resposta imediata entre os peritos são minimizadas devido à falta de proximidade física. A transição para o ambiente virtual, apesar de amplamente adotada em várias etapas do processo arbitral, introduz uma nova dinâmica na avaliação das provas e dados apresentados. A adaptação à ausência de interações face a face entre os peritos e as partes envolvidas pode representar um desafio inicial, mas é um obstáculo superável.5 Embora muitos protocolos tenham sido agora elaborados sobre o tema das audiências virtuais6, com relação ao hot-tubbing, é recomendável adotar algumas práticas:As considerações acima significam que os advogados precisarão ser mais proativos para garantir que as provas apresentadas sejam claras e apresentadas adequadamente. Além disso, alguns peritos têm uma personalidade mais dominante que outros, de modo que o(s) outro(s) perito(s) falha(m) em ser eficaz(es) na apresentação de suas opiniões. Há também preocupações de que o hot-tubbing possa criar um ambiente que leva os peritos a se entrincheirarem em suas posições quando o perito pode temer perder credibilidade diante dos clientes, do perito oposto ou do tribunal.7 Enfim, a prática de hot-tubbing representa uma evolução na forma como as provas periciais são apresentadas e avaliadas em procedimentos arbitrais. À medida que continuar a ganhando aceitação, é provável que sua aplicação seja refinada, expandida e regulada de modo mais claro, contribuindo para o desenvolvimento e aplicação desse método na arbitragem. __________ 1 A expressão é uma metáfora, o "hot-tubbing" sugere a imagem de peritos relaxando juntos em uma banheira de hidromassagem, numa atmosfera mais colaborativa e menos confrontacional, embora, na prática, o processo seja rigorosamente estruturado e focado na elucidação de fatos e dados técnicos. 2 Cf. Disponível aqui. 3 Cf. COSTA. Eduardo Fonseca. Levando a imparcialidade a sério. Salvador: Juspodium, 2018. 4 Cf. Disponível aqui. 5 Cf. Disponível aqui. 6 Cf. Disponível aqui. 7 Cf. Disponível aqui.
A arbitragem especializada em direito marítimo, portuário e aduaneiro assume papel de crescente relevância no cenário nacional, em especial, pelo grau de tecnicidade das controvérsias e pelo seu vulto econômico. Há tempos, estou dentre aqueles que afirma inexistir qualquer concorrência entre as portas do Poder Judiciário e da Arbitragem, em um sistema de jurisdição multiportas em que cabe à parte optar pelo método de solução que lhe for mais conveniente, estando ambos com capacidade de entregar uma solução à altura de sua expectativa1. Nesse cenário, assume elevada importância analisar os efeitos da decisão do Tribunal Marítimo no processo arbitral. O Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, é órgão autônomo da Administração Federal, auxiliar do Poder Judiciário2, competente para jugar os acidentes e os fatos da navegação, sediado na Capital do Rio de Janeiro. É formado por Magistrados especialistas em Direito Marítimo, Direito Internacional, Armação e Navegação, mas também por Capitães de Longo Curso, de Mar e Guerra e de Fragata do Corpo de Engenheiros da Marinha, que são responsáveis por afirmar a natureza e a extensão dos acidentes ou fatos da navegação, indicando a causa determinante de cada um deles e, se o caso, impor sanções de caráter meramente administrativo. A prova produzida no âmbito do Tribunal Marítimo está sob o crivo do contraditório, tendo a Corte o dever de imparcialidade. O Tribunal Marítimo julga os fatos e acidentes da navegação, em processo contencioso, com aplicação de normas técnicas e jurídicas compatíveis à solução do conflito e aplicabilidade subsidiária dos códigos de processo, e adota o mesmo procedimento de qualquer outro tribunal3. Dois pontos merecem destaque quando o tema é estudar os efeitos da decisão do Tribunal Marítimo, quais sejam: a autonomia do Tribunal Marítimo; a composição plural da Corte. Quanto ao primeiro ponto - autonomia -, a ausência de vinculação no ato de julgar com qualquer órgão da administração, somado ao dever de imparcialidade, faz com que as decisões pronunciadas pela Corte Marítima sejam consideradas isentas e independentes, fundadas em critérios eminentemente técnicos, próprios da especialidade da matéria sob a sua competência. Já no que tange ao segundo ponto - composição plural -, as variadas visões de cada um dos julgadores, especialistas em área específica da navegação, com larga experiência, permite que todos os pontos necessários ao melhor julgamento estejam colocados à mesa quando do debate, produzindo um acórdão representativo da melhor técnica para a solução da controvérsia. A Arbitragem constitui, sem dúvida, um microssistema próprio do exercício da jurisdição, fundado na autonomia da vontade das partes e na confiança na pessoa do Árbitro, pilares que lhe são essenciais enquanto instituto privado de solução de controvérsias. Mas, penso eu, não está isolada dentro do sistema de jurisdição. Na arbitragem de direito, é dever do Árbitro julgar conforme a legislação convencionada pelas partes na convenção de Arbitragem. No recorte necessário ao espaço limitado deste texto, convém anotar que estaremos a tratar da hipótese em que foi convencionado pelas partes a arbitragem de direito, com opção pelo direito brasileiro. A primeira controvérsia, nesse processo de interação entre Tribunal Marítimo e Tribunal Arbitral, diz com a necessidade de se implementar a suspensão da arbitragem até o julgamento do mesmo fato pelo Tribunal Marítimo, bem como a existência ou não de limitação temporal. Sobre esse ponto, relevante para a nossa análise, o disposto no artigo 19, da lei 2180/544 5 porquanto exige a juntada da decisão definitiva do Tribunal Marítimo quando, em juízo, sem qualquer distinção quanto ao judicial ou arbitral, estiver em discussão matéria de competência daquela Corte. A regra é clara! A juntada da decisão do Tribunal Marítimo é exigência legal quando, em juízo, arbitral ou judicial, houver controvérsia sobre matéria de sua competência. Porém, permanecem as seguintes dúvidas: o momento da juntada da decisão definitiva;  o prazo de suspensão do processo arbitral para a juntada da decisão definitiva que venha a ser proferido pelo Tribunal Marítimo. A aplicação das disposições Código de Processo Civil ao processo arbitral, questão assaz controvertida, merece, ao meu sentir, a devida superação, a partir da necessidade prática da solução de questões internas, exigidas para o regular andamento do processo arbitral, ao menos com a utilização, pelos Árbitros, da razão jurídica que inspira seus artigos, como razão de decidir. Nesse caso, reputo como necessária a aplicação da regra ou da razão jurídica da regra do artigo 313, inciso VII, do Código de Processo Civil6, implementando-se a suspensão do processo arbitral até a decisão da Corte do Mar. Como visto, o artigo 19, da lei 2180/54, menciona a juntada no processo, judicial ou arbitral, da decisão definitiva do Tribunal Marítimo, sempre que a questão controvertida couber nas suas atribuições técnicas. Por outro lado, regra ou a razão jurídica da regra do artigo 313, inciso VII, do Código de Processo Civil, apenas afirma a necessidade de suspensão do processo quando a questão envolver a competência do Tribunal Marítimo, sem qualquer delimitação temporal. É verdade que, sobre o ponto da limitação temporal, o julgamento no Tribunal Marítimo configura verdadeira prejudicialidade externa, o que faria, em princípio, atrair o prazo e a consequência previstos na regra ou na razão jurídica da regra do artigo 313, inciso V, alínea "b", §§ 4º e 5º, todos do Código de Processo Civil7. O risco de decisões conflitantes, dentro de um mesmo sistema de direito, a partir do julgamento de uma ação fundada no mesmo fato, no Tribunal Arbitral e ao mesmo tempo no Tribunal Marítimo, é evidente. Veja-se, a propósito, que não seria razoável, mas possível sem a suspensão, que um Tribunal Arbitral decida pela existência de responsabilidade e o Tribunal Marítimo decida pela sua ausência. Ainda que os juízos, arbitral e marítimo, definam a responsabilidade pelo evento para consequências diferentes, não se pode ignorar que a premissa, responsabilidade pelo mesmo fato, é essencial para ambos. Não se pode desconsiderar, ainda, o fato de que o artigo 19, da lei 2180/54, estabelece em seu texto "a juntada definitiva da sua decisão", a indicar que o processo arbitral deverá permanecer suspenso até a conclusão do processo no Tribunal Marítimo, independentemente da limitação temporal de 01 (um) ano prevista no Código de Processo Civil. A possibilidade de que o processo arbitral prossiga e, se o caso, até antes da sua sentença, implemente-se a suspensão para juntada da decisão definitiva do Tribunal Marítimo, atendendo ao texto legal, não é a melhor solução. Isso porque a decisão da Corte Marítima é de extrema importância para o próprio curso da instrução do processo, trazendo evidente prejuízo às partes caso somente venha a ser juntada ao final da instrução, até antes da sentença, sem mencionar o prejuízo para a economia processual, caso alguma prova tenha de ser refeita a partir da conclusão trazida aos autos pelo julgado do Tribunal Marítimo. Além disso, é medida de todo consentânea com a segurança jurídica, a suspensão do processo arbitral antes do início da fase de instrução, visando cumprir o ideal do melhor julgamento de mérito possível, constituindo dever do Árbitro produzir uma decisão justa e exequível. Uma outra questão geradora de controvérsia nessa interação entre Tribunal Marítimo e Tribunal Arbitral é a que diz respeito à eficácia da decisão pronunciada pela Corte do Mar. A questão está disciplinada na atual redação do artigo 18, da lei 2180/54, que lhe foi conferida pela lei 9578/978. Na atual redação do artigo 18 da lei 2.180/54, não se pode afastar a ideia de que as conclusões estabelecidas pelo Tribunal Marítimo em seus acórdãos são suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário em toda a sua extensão, mesmo que, quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação, tenham valor probatório, presumindo-se certas por força de lei. A mesma conclusão haverá de ser prestigiada no processo arbitral em que o Árbitro exerce jurisdição, sendo Juiz de fato e de direito. O Acórdão do Tribunal Marítimo não possui o valor probatório de uma prova comum. Há uma valoração prévia estabelecida pelo legislador. Há uma presunção de certeza estabelecida na lei. Nessa trilha, a presunção legal de certeza estabelecida no artigo 18, da lei 2.180/54, impõe ao Painel Arbitral esforço argumentativo excepcional, fundado em critério técnico equivalente ao posto no Acórdão da Corte do Mar, capaz de afastar a conclusão do texto legal expresso que afirma "se presumem certas". E esse esforço argumentativo que se exige do Árbitro não é o esforço comumente utilizado para afastar a tese das partes ou mesmo um singelo parecer técnico produzido pelos assistentes técnicos ou perito do juízo. Para além da presunção legal estabelecida em favor da decisão do Tribunal Marítimo, é preciso, a partir do conhecimento sobre a formação e funcionamento da Corte, admitir que o Acórdão por ela produzido, pronunciado por um colegiado plural de especialistas na matéria, somente poderá ser afastado, no reexame do seu mérito, com critério técnico equivalente, sendo excepcional essa hipótese. O Acórdão do Tribunal Marítimo não é parecer técnico. A juntada do Acórdão definitivo do Tribunal Marítimo no processo arbitral entrega ao Árbitro a cognição ampla, sendo-lhe lícito a análise tanto dos seus aspectos formais, quanto do próprio mérito da conclusão, observada, todavia, a valoração prévia da prova estabelecida pelo legislador. Nunca é demais repetir, como já afirmei em outro ponto deste artigo, que a conclusão do Tribunal Marítimo posta em seu Acórdão não é singelo parecer técnico, porquanto decorre da lei a sua presunção de certeza, impondo ao julgador, quanto ao mérito, esforço argumentativo excepcional para o seu afastamento, no que somente reputo preenchido esse esforço com prova técnica equivalente àquela que nasce da composição plural da Corte do Mar. Um ponto a merecer a nossa consideração é o de que, na Arbitragem, os Árbitros, escolhidos pelas partes, são - ou deveriam ser - especialistas na matéria em julgamento e, portanto, com conhecimento pleno para decidir a controvérsia sem a necessidade de qualquer decisão do Tribunal Marítimo. No entanto, se o ponto colocado é verdadeiro, no caso, há imposição legal para a juntada da decisão definitiva do Tribunal Marítimo em qualquer juízo, repito, sem distinção pelo legislador quanto ao judicial ou arbitral, tendo o seu acórdão, por força de lei, presunção de certeza quando a matéria for de sua competência. Ademais, para além da imposição legal, convenhamos, mesmo para juristas experientes ou profissionais do setor, é sobremaneira complexo definir se uma arribada de embarcação foi justificada ou se um determinado evento constitui avaria grossa, não se podendo desconsiderar a expertise de Magistrados que diariamente julgam esses temas, a partir de um colegiado de composição plural, que lhes permite um olhar panorâmico da controvérsia em julgamento. Poder-se-ia, ainda, objetar as conclusões do texto com o argumento de que a celeridade do julgamento é essencial ao processo arbitral e, portanto, seria descabido falar em suspensão para aguardar decisão de outro Tribunal. Sem dúvida, a celeridade é essencial na Arbitragem. Porém, ao processo arbitral impõe-se conviver em harmonia com um sistema de jurisdição único, fundado em multiportas, no qual a segurança jurídica decorrente do respeito à lei é valor constitucional para todas elas. Permitir que o processo arbitral vinculado ao direito brasileiro desconsidere o texto da legislação em vigor, a partir da pura e simples busca da celeridade, é criar uma verdadeira jurisdição extraterrestre, um direito alienígena, capaz de colocar a decisão arbitral sobre o mérito da controvérsia em uma linha de produção, na busca pela agilidade a qualquer custo. Nesse exato momento, arbitralistas devem estar a imaginar que o pensamento exposto é fruto da convicção de alguém que, por integrar o Poder Judiciário, possui opinião adernada em relação a Arbitragem. Digo-lhes que se enganam! Sou um verdadeiro fã da Arbitragem enquanto método adequado de solução de conflitos. Apenas não a enxergo como isolada dentro de um sistema de jurisdição fundado no respeito à lei e tendo a segurança jurídica como valor constitucional. Para longe de estabelecer proposições definitivas, o propósito do texto, de conteúdo polêmico para a Arbitragem, reconheço, é tão somente convidar os operadores do direito a um, conhecer a composição e o funcionamento do Tribunal Marítimo, para dois, propor reflexões sobre os efeitos das suas decisões no processo arbitral, contribuindo para julgamentos de mérito consentâneos com as melhores técnicas da navegação, dentro da busca pelo ideal da segurança jurídica. ________________ 1 Em 27 de novembro de 2023, o Tribunal de Justiça de São Paulo criou um núcleo especializado para julgamento da competência marítimo, portuário e aduaneiro em todo o território do Estado, o Núcleo de Justiça 4.0 - Direito Marítimo. 2 Na leitura da função de auxiliar do Poder Judiciário do Tribunal Marítimo haverá de se compreender a sua função como auxiliar de qualquer tribunal que exerça jurisdição, inclusive o formado na Arbitragem. 3 Direito Marítimo. Estudos em homenagem aos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães. Marcelo David Gonçalves, O Tribunal Marítimo e a Eficácia dos seus Acórdãos, p. 353. 4 Artigo 19- Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada a sua decisão definitiva.  5 Observe-se que a regra do artigo 19, da Lei 2180/54, não faz qualquer ressalva quanto ao tipo de juízo, estatal ou arbitral, sendo verdade que, quando da sua edição, em que pese ser possível reconhecer a existência da Arbitragem, inexistia a atual Lei de Arbitragem. 6 Artigo 313- Suspende-se o processo: (...) VII- quando se discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos da navegação de competência do Tribunal Marítimo.   7 Artigo 313- Suspende-se o processo: V - quando a sentença de mérito: a) depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente; b) tiver de ser proferida somente após a verificação de determinado fato ou a produção de certa prova, requisitada a outro juízo; § 4º O prazo de suspensão do processo nunca poderá exceder 1 (um) ano nas hipóteses do inciso V e 6 (seis) meses naquela prevista no inciso II. § 5º O juiz determinará o prosseguimento do processo assim que esgotados os prazos previstos no § 4º. 8 Artigo 18- As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo, porém, suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.
Com o crescimento do comércio internacional, especialmente a partir do final da segunda guerra mundial, a importância da segurança e da previsibilidade dos negócios entabulados entre as partes contratantes, sujeitos, cada um, a diferente jurisdição e ordenamento jurídico, assim como a importância de um sistema de solução de litígios capaz de produzir resultados consistentes, coerentes e na velocidade da necessidade daquelas partes, deu azo à discussão sobre um sistema normativo uniforme e transnacional que pudesse atender àquelas demandas. Na busca de uniformidade e previsibilidade para a redução dos custos de transação, convivem com a criação de leis uniformes reguladoras da atividade do comércio internacional, dos quais são exemplos os Inconterms, as Regras e Usos Uniformes de Créditos Documentários, as Regras Uniformes para Garantia de Contratos, todos promovidos pela Câmara Internacional de Comércio (CIC), a Lei-Modelo de Arbitragem da UNCITRAL, a Convenção Internacional sobre Compra e Venda Internacional (Viena, 1980), os princípios dos Contratos Internacionais (UNIDROIT) e a Convenção Interamericana sobre o Direito Aplicável aos Contratos Internacionais (Cidip V - Cidade do México, 1994). É neste mesmo ambiente que surge igualmente, como alternativa às propostas de leis uniformes propostas em convenções ou tratados, o reconhecimento da existência de um sistema normativo a-nacional, ou seja, não proveniente dos Estados, mas criado espontaneamente a partir dos usos e costumes mercantis, como um "importante fator de estabilização de relações econômicas privadas entre particulares, capaz de se estruturar a partir de princípios e regras próprios, instituições não estatais de aplicação de tais normas e formas de sanção reputacional"1. Este sistema normativo passou a ser designado como Nova Lex Mercatoria (em referência e distinção à sua versão medieval) a partir do artigo seminal do Bertold Goldman2, professor da Universidade de Paris II (Pan-theón-Assaz) que divide com Schmitthoff3 a responsabilidade de trazer para o tema à luz. Sem pretender esgotar o tema é possível assinalar que a NLM tem sido descrita de diversas maneiras pelos seus defensores: como "um conjunto de princípios gerais e regras consuetudinárias espontaneamente referidos ou elaborados no âmbito do comércio internacional, sem referência a um sistema jurídico nacional específico", um "regime para o comércio internacional, espontaneamente e progressivamente produzido pela societas mercatorum", "um único corpo jurídico autónomo criado pela comunidade empresarial internacional", "um sistema jurídico híbrido que encontra as suas fontes tanto no direito nacional ou internacional como na região vagamente definida de princípios gerais... chamado de 'Direito Transnacional'" - mas também como "[o] fenômeno de regras uniformes que atendem a necessidades uniformes de negócios internacionais e cooperação econômica", ou como consistindo em "todo o direito resultante de ou sob a influência de fontes transnacionais de direito e regulamentar atos ou eventos que transcendem as fronteiras nacionais"4. Já seus detratores insistirão em dizer que a NLM não passa de uma alegoria para ora referir-se a usos e costumes normatizados pelas leis nacionais ora para referir-se a cláusulas contratuais inseridas em contratos padrões adotados no comércio internacional5. De toda forma, independentemente de existir como efetivo sistema jurídico autônomo de direito comercial transnacional, a nova lex mercatoria existe como um conceito de forte ressonância e poderoso capital simbólico capaz de provocar intensas discussões acadêmicas até os dias de hoje6. Contratos Padrão e Arbitragem na construção da Nova Lex Mercatoria Na construção da NLM os contratos padrão, ou contratos formulários, criados por associações internacionais de comerciantes, na busca da padronização desses contratos de forma a reduzir os custos de transação entre outras são fontes inafastáveis daquele instituto. Aliás essa é a tese central do trabalho de Goldman que afirma: Mas, para nos mantermos fiéis aos nossos tempos, recordaremos que a London Corn Trade Association, criada em 1877 e refundada em 1886, propôs, entre outras coisas, "produzir a introdução no comércio de cereais da uniformidade nas transações, encorajar a adopção de práticas baseadas em princípios justos e equitativos, e isto mais particularmente para contratos, fretamentos, conhecimentos de embarque e apólices de seguro; estabelecer, provocar, incentivar a divulgação e adoção de fórmulas-padrão de contratos, dos demais documentos mencionados e em geral de todos aqueles utilizados no comércio de grãos". Este programa foi plenamente concretizado, uma vez que a London Corn Trade Association estabeleceu e colocou à disposição dos comerciantes de cereais várias dezenas de contratos-tipo, cuja distribuição e aplicação são consideráveis: são de facto utilizados em muitas vendas internacionais, independentemente de qualquer participação de empresas inglesas, ou mesmo de membros da Associação. Desde então, os contratos-tipo tornaram-se amplamente utilizados noutras áreas do comércio internacional: encontram-se, em particular, no comércio de produtos agrícolas, florestais, mineiros, petrolíferos, siderúrgicos, têxteis e de bens de capital. Contratos modelo ICC, FIDIC, GAFTA e FOSFA, a cláusula de force majure e de hardship da ICC são alguns exemplos7. A adoção dos contratos padrão uniformizam os usos e práticas e, no caso de disputas entre as partes, ainda remetem a solução do conflito para os tribunais arbitrais especializados, normalmente constituídos sob os regulamentos das mesmas instituições internacionais que produziram aqueles contratos, reforçando a vinculação das partes àqueles usos e práticas por conta das decisões arbitrais que serão proferidas. Assim, na identificação dos usos e práticas mercantis e na sua aplicação na solução de conflitos oriundos de contratos comerciais internacionais as sentenças arbitrais internacionais podem ser vistas como geradoras (ou confirmadoras) das regras que constituem a nova lex mercatoria8. Em que pese a construção esboçada rapidamente nos parágrafos acima, a leitura dos contratos padrão de compra e venda internacional de commodities, indica que raramente a lex mercatoria como tal é eleita como lei aplicável aos contratos. Assim, uma primeira análise indica que a lex mercatoria, aparentemente, é menos uma escolha das partes como lei aplicável aos contratos em si, mas, isto sim, muito mais uma fonte subsidiária para a qualificação das obrigações estre as partes, vale dizer, muito mais uma questão para análise dos árbitros quando da apreciação da natureza do conflito entre as partes, funcionando, assim, muito mais como um mecanismo de governança ex post para resolver disputas contratuais com o objetivo de manter e restaurar a ordem do comércio internacional. Por outro lado, dada as características das arbitragens desenvolvidas nos seios das associações internacionais especializadas, as decisões podem se limitar às práticas específicas do respectivo setor, criando, assim, um instituto multifacetado, não uniforme em termos de sua aplicação, refutando a ideia de lex mercatoria como um sistema jurídico próprio e geral, vale dizer, basicamente refutando a existência mesmo desse instituto, criando um paradoxo que muitas gerações de internacionalistas ainda terão de enfrentar. __________ 1 COSTA, João Augusto Fontoura. A autonomia da nova lex mercatoria e a estabilização de relações comerciais internacionais. Revista do Instituto do Direito Brasileiro. (2013),4783-4810. 2(6) 2 GOLDMAN, Berthold, Frontiéres du droit et lex mercatoria. Revista de arbitragem e mediação, (2009), 211-230, 22 3 SCHMITTHOFF, Clive. American and European Commercial Law. Journal of Legislation, (1979), 44-57, 6(44). 4 HATZIMIHAIL, Nikitas E. The many lives-and faces-of lex mercatoria: History as genealogy in international business law. Law and Contemporary Problems, (2008), 169-190, 71(3) 5 HUCK, Hermes Marcelo. Lex Mercatoria - Horizonte e Fronteira do Comércio Internacional, Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, (1992), 213-235, 87 (cf. págs. 230 e segs.) 6 TOTH, Orsolya. The Lex Mercatoria in Theory and Practice. Oxford. Oxford University Press, (2017) 7 AYOGLU, Tolga. Some Reflections on the Sources of Lex Mercatoria, in International Commercial Arbitration and the New Lex Mercatoria (2014), 27-36 8 Sobre a arbitragem no mercado internacional de commodities cf., entre outros, FAVACHO, F. G. S. C. Aspectos Internacionais do Direito do Agronegócio. São Paulo: Lumem Juris, 2020, v.1. p.276.
Segundo a pesquisa "Arbitragem em Números"1 liderada pela arbitralista Selma Maria Ferreira Lemes, em 2022 houve 36 novas arbitragens envolvendo a Administração Pública Direta e Indireta, o que representa aproximadamente 11% do total de arbitragens entrantes naquele ano. Esse alvissareiro dado revela um amadurecimento da arbitragem em relação à Administração Pública no Brasil, visto que até a reforma da Lei Brasileira de Arbitragem n.º 9.307/1996 ("LBA") em 2015, havia entendimentos, ainda que minoritários, que questionavam o uso da arbitragem por entes públicos. Fato é que atualmente a Administração Pública ocupa grande lugar de destaque quando o assunto é arbitragem. Em outra pesquisa, realizada pela subscritora deste artigo, nos principais portais eletrônicos que divulgam informações sobre os casos envolvendo entes públicos2 foi constatada a existência de aproximadamente 40 procedimentos arbitrais envolvendo a União, Autarquias Federais e o Estado de São Paulo. Chama a atenção também os elevadíssimos valores em disputa, em que os casos atingem discussões sobre cifras milionárias e até mesmo bilionárias, como são as arbitragens no setor de Telecomunicações. Com todo esse holofote nos procedimentos arbitrais envolvendo a Administração Pública, não se pode deixar de destacar outra peculiaridade envolvendo esse setor. Trata-se do critério de escolha dos árbitros A escolha do árbitro é um dos atos mais importantes de todo o procedimento arbitral, seja pela indicação de um profissional verdadeiramente conhecedor da matéria objeto do litígio, seja pela necessidade de ter atenção redobrada para evitar possíveis nulidades referentes a impedimento - tão comuns atualmente na comunidade arbitral. Nas arbitragens envolvendo a Administração Público existe um incômodo por parte do ente público com integrantes do tribunal arbitral que já tenham, porventura, atuado contra o Estado ou emitido opiniões contrárias aos interesses do Poder Público3. Essa preocupação, inclusive, foi externalizada no Decreto n.º 64.356/2019, que dispõe sobre o uso da arbitragem que a Administração Pública do Estado de São Paulo seja parte. Segundo dispõe o art. 11, inciso II, o árbitro que exerce a advocacia, deve informar sobre a existência de demanda por ele patrocinada (ou por escritório do qual seja associado), contra a Administração Pública, bem como a existência de demanda por ele patrocinada ou por escritório do qual seja associado, na qual se discuta tema correlato àquele submetido ao respectivo procedimento arbitral. Por isso, não é de se espantar que nos procedimentos arbitrais em curso em que são partes a União, Autarquias Federais e o Estado de São Paulo exista uma nítida predileção, parte da Administração Pública, pela indicação de profissionais cujo currículo tenha alguma atuação em órgãos públicos. Neste sentido, vale a pena ressaltar que dos 37 casos analisados, 14 árbitros também exercem, ou já exerceram, o cargo de Procuradores do Estado, sobretudo do Estado do Rio de Janeiro. Ademais, a pesquisa também constatou que os entes públicos já indicaram, 4 árbitros que já atuaram como magistrados do Poder Judiciário. O perfil dos árbitros indicados pela Administração Pública pode revelar que existe uma expectativa de que, por terem os profissionais uma atuação pretérita, eles possam ter um entendimento mais favorável ao quanto é defendido pelo ente público no processo arbitral.  Além disso, a pesquisa permitiu apurar um traço comum no perfil dos árbitros indicados tanto pela parte privada, como pelo ente público. Trata-se de um favoritismo pela indicação de profissionais que sejam acadêmicos e lecionam. Dos casos analisados, 29 árbitros são professores universitários reconhecidos em suas respectivas cátedras. Outro dado comum é que a maioria dos árbitros atua como advogado com reconhecida capacidade no mercado. Também foi detectado pela pesquisa que os Tribunais Arbitrais são predominantemente formados por profissionais homens e apenas 15 são mulheres. Da totalidade dos casos, somente 6 procedimentos arbitrais tem como presidente do tribunal uma mulher. Isto é, a diversidade de gênero, infelizmente ainda não é uma realidade dentre os tribunais arbitrais. Observa-se, ainda, que a experiência prática em procedimentos arbitrais envolvendo a Administração Pública tem demonstrado a fase de escolha dos árbitros tende a ser mais demorada quando comparado com procedimentos envolvendo apenas partes privadas. Isso porque, o ente público tende a apresentar longos questionamentos adicionais sobre os árbitros indicados e as objeções feitas aos árbitros indicados pelos entes privados também têm se revelado mais frequentes4. Feitos estes apontamentos, espera-se que no futuro o perfil dos árbitros atuantes nos casos envolvendo entes públicos possa ser mais diverso e inclusivo, o que certamente enriquecerá a tomada de decisões. __________ 1 Disponível aqui, acesso em 15 de outubro de 2023. 2 Núcleo Especializado em Arbitragem da Advocacia-Geral da União - NEA. Agência Nacional de Transportes Terrestres -ANTT. Equipe de Arbitragem da Procuradoria-Geral Federal (ENARB/PDG). Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, SP. 3 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e administração pública. Primeiras reflexões sobre arbitragem envolvendo a Administração Pública. Revista Brasileira de Arbitragem, São Paulo, v. 13, nº 51, jul.-set., 2016. 4 Neste sentido: "O escrutínio sobre o nome em eventual impugnação deve ser especialmente rígido, para salvaguardar a tão prezada legitimidade do procedimento, quando envolve ente estatal. Isso não significa, contudo, que qualquer impugnação pelo ente público deve ser deferida. Há de se atentar, ainda, par aos possíveis problemas da nomeação de advogado público, se estiver vinculado a ente estatal que pode ter conflito semelhante[4]. Arbitragem com Entes Públicos: Questões Controvertidas. Arbitragem e Administração Pública: Temas Polêmicos. Joaquim de Paiva Muniz; Marcelo José Magalhaes Bonizzi e Olavo A. V. Alves Ferreira (coord.) - Ribeirão Preto, SP, Migalhas, 2018, p. 163).
Considerações iniciais O presente artigo possui como único propósito a reflexão sobre esse tema que há muito se revela controvertido na jurisprudência e na academia, a exigir um olhar, longe de definitivo, mas capaz de apresentar uma contribuição ao debate. Para fins de delimitação do tema, impõe-se o recorte de que estaremos a tratar do contrato de transporte marítimo de carga, porém, considerações de cunho geral, podem ser aplicadas a outras formas de contratação que envolvam o tema. De início, afirmo que não constitui novidade, no mundo do comércio globalizado, a relevância do contrato de transporte marítimo de carga e, por consequência, do necessário contrato de seguro. Atualmente, não fossem esses dois contratos, não seria exagerado afirmar que o mundo estaria diferente. É nesse cenário que o tema da transmissão dos efeitos da cláusula de arbitragem à seguradora sub-rogada ganha relevância. A sub-rogação e o seguro A Sub-rogação está definida nos artigos 346 e seguintes do Código Civil1. O termo sub-rogação advém do latim subrogatio, designando substituição de uma coisa por outra com os mesmos ônus e atributos, caso em que se tem sub-rogação real, ou substituição de uma pessoa por outra, que terá os mesmos direitos e ações daquela, hipótese em que se configura a sub-rogação pessoal2. A sub-rogação opera uma verdadeira substituição no polo ativo da obrigação, mantendo a seguradora sub-rogada a mesma posição jurídica do seu segurado. É, pois, a mesma obrigação, porém com outra parte agora no polo ativo. Cabe o destaque quanto ao caráter derivado da sub-rogação, porquanto ela somente existe a partir de uma anterior relação jurídica, não tendo existência autônoma, de modo que o direito da seguradora sub-rogada somente existe a partir de um primitivo contrato de transporte celebrado pelo seu segurado, este devidamente garantido pela seguradora que, ao efetuar o pagamento da indenização, se sub-roga na posição daquele primeiro. Nos termos dos artigos 349 e 786, ambos do Código Civil3, a sub-rogação opera a transferência, para a seguradora, dos direitos e ações que competiam ao segurado, no que àquela recebe um pote de situações jurídicas que previamente eram de titularidade do seu garantido. Não recebe nem mais, nem menos. Um bom e típico "prato feito". Afirmo que, ao meu sentir, a transferência de que tratam os artigos 349 e 786, do Código Civil, não possui apenas natureza material, mas também processual, basta, para essa conclusão, observar que os dispositivos legais poderiam simplesmente se limitar a indicar a transferência dos direitos, mas, foram além, indicando a transferência também das ações que competiam ao segurado. Em avanço, relativamente ao contrato de seguro, sua definição está no artigo 757, do Código Civil4. O contrato de seguro é aquele pelo qual uma das partes (segurador) se obriga para com outra (segurado), mediante o pagamento de um prêmio, a garantir-lhe interesse legítimo relativo a pessoa ou coisa e a indenizá-la de prejuízo decorrente de riscos futuros, previstos no contrato5. Sobre o contrato de seguro, no que interessa ao tema, cabe dar destaque ao já indicado artigo 757, do Código Civil, pois a seguradora se responsabiliza por riscos predeterminados, vale dizer, os riscos que lhe eram conhecidos quando da contratação do seguro ou que, ao menos, lhe eram possíveis de serem conhecidos. É dever da seguradora analisar previamente a relação jurídica a ser segurada, inclusive porque a precificação do seguro está diretamente ligada com o risco assumido pela seguradora quando da contratação. A seguradora é responsável apenas por riscos conhecidos ou potencialmente possíveis de lhe serem conhecidos no ato da contratação do seguro. Por essa razão, de relevo as regras dos artigos 766 e 786, §2º, ambos do Código Civil6, reveladoras de uma exigência de boa-fé do segurado, que não poderá de qualquer forma agravar o risco da contratação, diminuindo ou extinguindo direitos da seguradora, sob pena de ineficácia do ato, bem como não poderá valer-se de omissão dolosa de informação capaz de influir no preço ou aceitação do seguro, aqui sob pena de perder o direito à indenização. Por fim, ainda sobre o contrato de seguro, aproveita-se a seguradora dos atos praticados pelo segurado, como, por exemplo, a interrupção do prazo de prescrição, de modo que não lhe é lícito fazer uma verdadeira segmentação dos atos do segurado dos quais se aproveitará, salvo aqueles que impliquem em diminuição ou extinção de direitos do segurador sub-rogado. Os atos do segurado, desde que não impliquem diminuição ou extinção de direitos, não estão dispostos em uma "prateleira de supermercado" para que a seguradora coloque em seu "carrinho" aqueles dos quais se aproveitará, segundo uma lógica própria de sua conveniência. A arbitragem A arbitragem está inserida no conceito de justiça multiportas, em que várias formas de solução adequada de conflitos estão colocadas à disposição da parte para a resolução da controvérsia. O próprio Código de Processo Civil a incentiva, elencando dentre os seus princípios fundamentais, os métodos adequados de solução de conflitos, destacando, dentre eles, a arbitragem7. Nessa quadra, a arbitragem é método heterocompositivo de solução de conflitos em que, um terceiro, escolhido pelas partes, no mais puro exercício da autonomia da vontade, é o responsável pela decisão do processo arbitral e pela atribuição do direito ao seu vencedor. No processo arbitral, as partes, voluntariamente, outorgam a um terceiro o poder de decidir uma determinada contenda. Tal escolha é sempre inspirada pela confiança na idoneidade e na expertise dos árbitros. A arbitragem funda-se, portanto, na autonomia da vontade das partes, na sua capacidade de consentir em atribuir poderes a um terceiro para decidir uma controvérsia8. Nessa quadra, a convenção de arbitragem, cláusula ou compromisso, possui dois efeitos relevantes, o primeiro, de caráter positivo, o de sujeitar o litígio à arbitragem e, o segundo, de caráter negativo, a renúncia da justiça estatal. A escolha da arbitragem, portanto, como método adequado de solução de conflitos, impõe uma escolha também pela renúncia da jurisdição estatal. Nesse cenário, a arbitragem passa a ser regra e a justiça estatal a exceção, esta última somente autorizada a cooperar ou intervir nos casos expressos em lei9. Para o encaminhamento do raciocínio, merece destaque a regra do artigo 4º, §2º, da Lei de Arbitragem (LArb)10. O dispositivo estabelece verdadeira regra de proteção para a cláusula arbitral em contratos de adesão, exigindo contratação destacada ou que o procedimento arbitral se inicie por iniciativa do aderente. A transmissão dos efeitos da cláusula de arbitragem à seguradora sub-rogada  Após estas breves considerações a respeito da sub-rogação, do seguro e da arbitragem, é possível afirmar, sob minha ótica, que, como regra, a cláusula de arbitragem posta em contrato de transporte marítimo de carga se transmite à seguradora sub-rogada.  Vejamos.  O contrato de transporte, evidenciado pelo Conhecimento de Embarque, não é contrato de adesão11.  Sob esse prisma, importante considerar o fato de que, no estágio atual da tecnologia, no regime das grandes contratações, não há contratos redigidos do "zero", no que suas cláusulas, comumente, estão previamente definidas em documento digital, sem que isso, todavia, queira significar ausência de negociação.  Ainda sobre esse ponto, é preciso também reconhecer que negociação não ocorre apenas com as partes presencialmente sentadas à mesa de reunião, mas por várias outras formas, até mesmo informais, como e-mails, conversas por aplicativo de mensagens ou telefone e tantas outras que a tecnologia atual nos oferece.  Destaco também o fato de que o contrato de transporte de carga, assim como o seu correlato contrato de seguro, estão ambos inseridos em uma típica relação empresarial de lucro, a atrair o microssistema da liberdade econômica, previsto nos artigos 421, caput, e 421-A, incisos I a III, ambos do Código Civil12.  É a própria lei que está a estabelecer uma preconcepção de paridade e simetria na relação contratual, impondo ao pretenso hipossuficiente o ônus de indicar os elementos concretos que justifiquem o afastamento da presunção.  Não há ingênuos, incautos ou hipossuficientes, como regra, nessas relações contratuais a envolver os contratantes de transporte marítimo de carga e de seguro.  Tais premissas permitem afastar a incidência da regra de proteção de que trata o artigo 4º, §2º, da LArb, pois este expressamente exige um contrato típico de adesão, definição que pode ser extraída do Código de Defesa e Proteção do Consumidor13 e não se pode perder de vista que a sua razão de existir está diretamente ligada à hipossuficiência de uma das partes na relação contratual.   Também convém afirmar que o estabelecimento, em contrato, de cláusula de arbitragem, está muito longe de representar diminuição ou extinção de direitos pelo segurado, porquanto representa uma legítima opção das partes, por um método adequado de solução de conflitos, com previsão legal, de caráter jurisdicional e com todas as garantias constitucionais do devido processo legal aplicáveis ao processo estatal14.  O argumento de que a opção pela arbitragem em foro estrangeiro infirmaria a conclusão não se sustenta, pois que até mesmo no processo estatal é lícito às partes renunciar a jurisdição nacional, optando pelo foro internacional15.  Seguindo, há dois pontos, que penso interligados, e que merecem nossa consideração, a saber: o conhecimento prévio da seguradora quanto à existência da cláusula de arbitragem e a transmissão dos efeitos da anuência efetivada pelo segurado quanto a esse método adequando de solução de conflitos.  Sobre o primeiro, é inegável que a seguradora tem, ou poderia ter, conhecimento prévio sobre a existência da cláusula de arbitragem no contrato do seu segurado, e tal conclusão decorre do seu dever, enquanto segurador, de analisar previamente os riscos do contrato, inclusive, para a precificação do seguro.  Portanto, ou bem a seguradora analisou o contrato do pretenso segurado e aceitou garanti-lo por inteiro, ou, não tendo cumprido como seu dever de análise prévia do risco, o aceitou de forma tácita com as bases constantes do instrumento.  Sobre o segundo ponto, transmissão dos efeitos da opção do segurado pela arbitragem, reconheço ser mais complexo, a partir da exigência de que a opção pela arbitragem pressupõe manifestação expressa da parte.  De largada, digo que a questão se resolve pela possibilidade de se atribuir eficácia em face da seguradora da opção implementada pelo seu segurado.  O segurado, ao celebrar um contrato com previsão de cláusula de arbitragem, realizou, fruto da autonomia da sua vontade, uma inequívoca opção no sentido de que futuros litígios serão resolvidos na seara arbitral, renunciando à jurisdição estatal para as controvérsias derivadas daquela relação contratual.  É justamente essa a posição jurídica recebida pela seguradora, do seu segurado, quando na condição de sub-rogada. A opção pela arbitragem foi legitimamente efetivada pelo segurado que a transmitiu para a seguradora, devendo esta última respeita-la por ocasião da ação em regresso.  No exercício do direito de regresso, decorrente da sub-rogação, a seguradora é o segurado, sendo que este lhe transmitiu a sua posição jurídica, com os direitos e ações que lhe são inerentes, nem mais, nem menos.  A opção pela arbitragem está dentre as transmissões do segurado.  Conclusões  Nesse cenário, é possível sintetizar os argumentos nas seguintes conclusões:  i - A sub-rogação opera uma verdadeira substituição no polo ativo da obrigação, mantendo a seguradora sub-rogada a mesma posição jurídica do seu segurado; ii - A sub-rogação possui caráter derivado, porquanto ela somente existe a partir de uma anterior relação jurídica, não tendo existência autônoma, de modo que o direito da seguradora sub-rogada somente existe a partir de um primitivo contrato celebrado pelo seu segurado; iii - A sub-rogação opera a transferência, para a seguradora, dos direitos e ações que competiam ao segurado, no que àquela recebe um pote de situações jurídicas que previamente eram de titularidade do seu garantido; iv - A seguradora se responsabiliza por riscos predeterminados, vale dizer, os riscos que lhe eram conhecidos quando da contratação do seguro ou que, ao menos, lhe eram possíveis de serem conhecidos a partir de uma análise prévia da relação jurídica segurada; v - A escolha da arbitragem como método adequado de solução de conflitos, impõe uma escolha também pela renúncia da jurisdição estatal; vi - O contrato de transporte de carga, assim como o seu correlato contrato de seguro, estão ambos inseridos em uma típica relação empresarial de lucro, a atrair o microssistema da liberdade econômica, previsto nos artigos 421, caput, e 421-A, incisos I a III, ambos do Código Civil; vii - O artigo 4º, §2º, da LArb, possui a sua razão de existir ligada a uma possível hipossuficiência das partes em relação contratual estabelecida a partir de um contrato de típico de adesão; viii - A aceitação pela arbitragem não representa diminuição ou extinção de direitos pelo segurado, tratando-se de método adequado de solução de conflitos, de caráter jurisdicional, com a garantia de observância dos princípios constitucionais do devido processo legal; ix - No exercício do direito de regresso, decorrente da sub-rogação, a seguradora é o segurado, sendo que este lhe transmitiu a sua posição jurídica, com os direitos e ações que lhe são inerentes, nem mais, nem menos. A opção pela arbitragem está dentre as transmissões do segurado à seguradora. __________ 1 Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor: I - do credor que paga a dívida do devedor comum; II - do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipotecário, bem como do terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel; III - do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte. 2 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, v. II. São Paulo. 2007. Editora Saraiva. p. 256. 3 Art. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores. Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano. 4 Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados. 5 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, v. III. São Paulo. 2007. Editora Saraiva. p. 516. 6 Art. 766. Se o segurado, por si ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido. Art. 786. §2º É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo. 7 Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei. 8 LAMAS. Natalia Mizrahi. Introdução e Princípios Aplicáveis à Arbitragem. Curso de Arbitragem. São Paulo. 2018. Editora Revista dos Tribunais. p. 28. 9 Confira-se, a título de exemplo de cooperação, o disposto nos artigos 22-A e 22-B da LArb. 10 § 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula. 11 Confira-se a respeito o teor do v. Acórdão, no REsp. 1.988.894/SP, 4ª turma, STJ, Relatora Ministra Isabel Gallotti. 12 Art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. Art. 421-A.  Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.  13 CDC. Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo. 14 Art. 21. § 2º Serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento. 15 Art. 25. Não compete à autoridade judiciária brasileira o processamento e o julgamento da ação quando houver cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro em contrato internacional, arguida pelo réu na contestação.
Aferir a arbitrabilidade objetiva consiste em saber se a matéria objeto do litígio pode ser resolvida por arbitragem. O critério fundamental é o que está previsto na fórmula contida na segunda parte do caput do art. 1º da Lei nº 9.307, de 1996, e no seu §1º: as partes podem submeter a arbitragem conflitos relativos a "direitos patrimoniais disponíveis". Identificar quais são esses "direitos patrimoniais disponíveis" é um dos maiores desafios enfrentados no contexto das arbitragens envolvendo a administração pública. Afirma-se com frequência que o contrato administrativo seria um contrato sujeito a um regime especial, de direito público, exorbitante do direito privado, caracterizado pela existência de prerrogativas públicas. Nesses contratos, "atos de império" seriam praticados pela administração pública com prerrogativas e privilégios de autoridade, e impostos unilateral e coercitivamente ao particular. Esses atos, por serem indisponíveis, seriam inarbitráveis, ficando a arbitrabilidade restrita tão somente aos seus efeitos patrimoniais. Ocorre que, para proferir uma decisão a respeito das consequências patrimoniais de um ato administrativo, o tribunal arbitral precisa analisar, ainda que incidentalmente, a sua legalidade. Nessa linha de raciocínio, o entendimento firmado pelos árbitros acerca das questões prejudiciais inarbitráveis não forma coisa julgada. Isso significa que a parte derrotada na arbitragem poderia propor ação judicial com vistas a discutir, como principal, a questão inarbitrável incidentalmente decidida, gerando séria insegurança jurídica. Para que a arbitragem se apresente como um meio de resolução de controvérsias que forneça uma prestação jurisdicional efetiva é preciso extrair da expressão "direitos patrimoniais disponíveis" um significado que garanta ao jurisdicionado a obtenção de uma decisão não apenas célere e técnica, mas que também seja segura. A solução para tanto pode ser encontrada no direito administrativo contemporâneo, que reconhece na consensualidade um relevante instrumento para o atendimento do interesse público. Não é condizente com o arcabouço legislativo atual, e tampouco necessário para que se garanta a adequada consecução do interesse público, entendimento no sentido de que a administração pública deve agir sempre em posição de superioridade em relação ao particular, impondo condutas por meio de atos administrativos unilaterais, "de império". A administração pública pode atuar, no atendimento do interesse público, dispondo de direitos e assumindo obrigações. Haverá disponibilidade sempre que a administração pública puder optar por assumir obrigações perante o contratado, em prol do atendimento de um interesse público concreto. Assim, a forma e eventuais limites ao exercício de determinadas prerrogativas da administração pública poderão ser contratualizadas, para viabilizar o atingimento do interesse público. Tratando-se de obrigações contratuais, serão revestidas, ainda que indiretamente, de patrimonialidade, havendo, assim, arbitrabilidade. Ainda, o tribunal arbitral possui jurisdição para analisar a legalidade de um ato administrativo praticado em decorrência de um inadimplemento contratual, ainda que esse ato administrativo consista no exercício de numa prerrogativa da administração pública. A própria lei 14.133, de 2021, a nova Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos, reforça esse entendimento, ao declarar, em seu art. 151, que são arbitráveis as questões relacionadas ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes. Por outro lado, algumas prerrogativas são exercidas em decorrência de questões externas ao contrato que poderão demandar, a depender do caso, para atendimento do interesse público, a sua modificação ou extinção. Qualquer prerrogativa da administração pública que verse sobre um interesse público futuro e intangível, como é o caso da prerrogativa de modificar unilateralmente ou de rescindir unilateralmente o contrato por motivo de interesse público, não será revestida de qualquer disponibilidade. Isso ocorre porque a administração pública não está autorizada a negociar sobre prerrogativa que se destina à garantia de um interesse público que apenas se revelará em decorrência de circunstâncias futuras, desconhecidas das partes contratantes. Assim, são arbitráveis os conflitos relativos a adimplementos e inadimplementos contratuais, ainda que relacionados às cláusulas regulamentares do contrato administrativo ou ao exercício de determinadas prerrogativas da administração pública, como é o caso da fiscalização, aplicação de sanções pelo inadimplemento do contrato, intervenção na prestação do serviço e, em algumas situações, da extinção unilateral do contrato. Não são arbitráveis, entretanto, os conflitos relativos ao exercício de prerrogativas da administração pública que, embora incidam sobre a relação contratual, são motivadas por circunstâncias externas ao contrato, como é o caso da prerrogativa de modificar unilateralmente ou de rescindir unilateralmente o contrato por motivo de interesse público. De qualquer forma, não há dúvidas de que, à luz do direito administrativo contemporâneo, é possível a utilização da arbitragem, de forma segura pelas partes, em atendimento ao princípio da eficiência que rege a atuação administrativa, nos termos da Constituição Federal. __________ *Esse artigo foi elaborado a partir da tese de doutoramento defendida em 21 de setembro de 2023 e expressa opinião acadêmica da autora.
Após assim ser indagada via caixinha de mensagens do Storie "É possível usucapião e adjudicação na via arbitral?", famosa profissional da área registral com milhares de seguidores, assim respondeu no 27º ano de vigência da lei de arbitragem: "Não é possível (...) não existe previsão legal para esse tipo de situação (...) parem de querer achar jeitinhos que não estão previstos em lei". Tal fato trouxe luz quanto à necessidade do instituto da arbitragem ser efetivamente conhecido pelos advogados, tabeliães, registradores, magistrados e todos os demais operadores do Direito. A arbitragem ainda é restrita a poucos, fruto do seu não suficientemente explicado altíssimo custo em território nacional. Ainda é apresentada, quando é apresentada, como matéria eletiva nas graduações de Direito, e o exame de ordem não a contempla satisfatoriamente. O país permanece, assim, tendo o acesso à justiça, de forma massiva, sendo realizado pela porta do Poder Judiciário. As portas da negociação, da conciliação, da mediação, do disput board e da arbitragem, vêm objetivamente sendo negligenciadas. A arbitragem, apesar de crescimento contínuo e consolidado, estando o Brasil em segundo no ranking mundial do uso de arbitragem em 2020, com 150 casos (dados da Corte Internacional de Arbitragem), está muito longe de ser conhecida pela população e pelos advogados, e mais longe ainda de estar acessível e democratizada, via redução dos valores constantes das tabelas de custas das câmaras arbitrais existentes no país. Não, a arbitragem não é "gourmet". Não, a arbitragem não é "essencialmente elitizada". Não, a arbitragem não é "apenas adequada para específicos litígios de alto valor e complexidade".  A arbitragem, segundo a lei vigente, aplica-se a direitos patrimoniais disponíveis e ponto. E, a lei tem a todos como destinatário e deve sim beneficiar a todos que possam pagar por uma jurisdição privada com inúmeras virtudes. Ao se elitizar, na prática, o instituo, se coloca esse meio adequado de solução de conflitos em crise, pois a vinda longa e a oxigenação de todo instituto, se dá com a sua disseminação, com o seu estudo e com a sua prática. De início, frise-se que, a equiparação da decisão arbitral à sentença judicial foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal na SE 5.206, Inf. STF 71, de 12/05/1997. No mesmo sentido, Leonardo de Faria Beraldo, em "A eficácia das decisões do árbitro perante o registro de imóveis. Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 58, jul./set. 2018", já assim pontuava: "O art. 221, IV, da LRP diz que se admite o registro da carta de sentença. Dentro daquela ideia inicial de se ler o "velho" com os olhares do "novo", entendemos que a expressão "carta de sentença" deverá englobar, também, a sentença arbitral". Apesar da lei de registros públicos não prever expressamente o ingresso da sentença arbitral como título registrável, o código de processo civil estabelece se tratar de título executivo judicial e a lei de arbitragem é precisa ao estabelecer que a sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário. Assim, o reconhecimento do acesso ao fólio real da sentença arbitral, desde que presente os demais requisitos legais e normativos para a qualificação positiva do título, é medida imperiosa. Não se apresenta legitima, desta forma, qualquer recusa do oficial do registro de imóveis de ingresso da sentença arbitral como título apto a registro pautando-se em ausência de previsão legal. A sentença arbitral proferida nos casos de adjudicação compulsória tem eficácia executiva plena perante os cartórios de registro de imóveis, devendo ser registrada na matrícula do imóvel. O procedimento arbitral pode ser, ainda, proposto também pelos herdeiros das partes envolvidas, os quais herdam os direitos e deveres inseridos nos contratos que contém cláusulas compromissórias. Nesse sentido, decidiu a 1ª VRP de SP, no dia 03/02/2023 (Proc. nº 1144150-82.2022.8.26.0100): Ementa: "Assunto Dúvida - Registro de Imóveis - Suscitante: 9º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo - Negativa em se proceder ao registro de carta de sentença arbitral expedida pelo Tribunal Internacional de Justiça Arbitral do Brasil - TRIAB no procedimento de adjudicação compulsória de autos n.0001309-50-2022.7.26.2009, referente ao imóvel da matrícula n. 292.938 daquela serventia (prenotação n.740.779)". Fundamentação: "a carta de sentença arbitral figura como título hábil a registro, notadamente porque a sentença arbitral produz os mesmos efeitos daquela proferida pelo Poder Judiciário (...) Essa foi a conclusão do Conselho Nacional de Justiça no Pedido de Providências de autos n.0004727-02.2018.2.00.0000 (...) Ocorre que a carta de sentença, seja judicial ou arbitral, deve trazer todas as peças processuais necessárias à correta interpretação do contexto do feito (...) No caso concreto, entretanto, não há qualquer documento que demonstre que Maria Aparecida Ferreira de Barros representa todos os espólios envolvidos, o que é essencial para a verificação da sua legitimidade (...) Sem prova documental de que o compromisso arbitral foi firmado pelo legítimo representante dos espólios de todos os proprietários tabulares, os efeitos da sentença arbitral apresentada não podem ser estendidos a eles, o que impede acesso do título ao fólio real". Do mesmo modo, assim concluiu o CNJ (Proc. nº 0004727-02.2018.2.00.0000 - PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS - Plenário - Decisão: 26/08/2019): "Cuida-se de consulta instaurada pelo CONSELHO NORTE E NORDESTE DE ENTIDADES DE MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM - CONNEMA (...) O requerente questiona se "Afigura-se tecnicamente correto considerar e interpretar o termo 'cartas de sentença' contido no art. 221 da Lei Federal nº 6.015/73 no sentido de contemplar tanto a carta de sentença judicial, quanto a proveniente de sentença/processo arbitral, já que os efeitos desta são plenamente equiparados aos daquela, inclusive garantindo o acesso aos registros públicos, dentre estes o imobiliário? ". (...) ART. 221 - SOMENTE SÃO ADMITIDOS REGISTRO:  IV - CARTAS DE SENTENÇA, FORMAIS DE PARTILHA, CERTIDÕES E MANDADOS EXTRAÍDOS DE AUTOS DE PROCESSO. (...) as decisões de um árbitro possuem a mesma eficácia que as decisões proferidas pelo Poder Judiciário (...) art. 18 da Lei Federal n. 9.307/96 (Lei de Arbitragem), o árbitro é o juiz de fato e de direito (...) Ainda, o art. 31 (...) a sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário (...) O Novo CPC, inclusive, em seus art. 515, estabelece que a sentença arbitral deve ser considerada como título executivo judicial (...) A propósito, confira enunciado publicado pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF) e aprovados na I Jornada Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios: Enunciado 9 - A sentença arbitral é hábil para inscrição, arquivamento, anotação, averbação ou registro em órgãos de registros públicos, independentemente de manifestação do Poder Judiciário (...) Portanto, a expressão "carta de sentença" contida no art. 221, IV, da Lei n. 6.015/73, deve ser interpretada no sentido de contemplar tanto a carta de sentença arbitral como sentença judicial". Exatamente na mesma linha, anos depois, assim também decidiu CNJ (Proc. nº 0008630-40.2021.2.00.0000 - Decisão - 27/09/2022): "Consulta - CÂMARA IBEROAMERICANA DE ARBITRAGEM E MEDIAÇÃO EMPRESARIAL (CIAAM) (...) Questionamento (...) "- possibilidade de a carta extraída de processo arbitral constituir carta de sentença conforme previsto no Art 221, IV, da Lei nº 6.015/73 (...) - desnecessidade de carta de sentença, devendo o TABELIÃO, REGISTRO DE IMÓVEIS efetivar a sentença arbitral, sem exigência de promoção de cumprimento de sentença perante o Poder Judiciário ou qualquer manifestação prévia do Poder Judiciário (...) a dúvida acerca do alcance da expressão "carta de sentença" foi solvida em ocasião anterior, pela Corregedoria Nacional de Justiça, nos autos do PP n. 0004727- 02.2018.2.00.0000 (...) impediente de que registradores inscrevam cartas de sentença arbitrais". Caminhando no mesmo sentido, seguiu o Instituto de Registro Imobiliário do Brasil no XLV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, ocorrido em 2020, via Boletim do IRIB em Revista nº 362 sob o título "Arbitragem, Mediação e Conciliação no Registro de Imóveis", de autoria da Oficial do Registro de Imóveis de Taubaté/SP, Paola de Castro Ribeiro Macedo. Os Tribunais de Santa Catarina, Goiás, Paraná e Minas Gerais, possuem julgados favoráveis à adjudicação compulsória na via arbitral: "APELAÇÃO CÍVEL AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE UM TERRENO. CLÁUSULA DE MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM CONTRATUALMENTE ESTABELECIDA ENTRE AS PARTES. SENTENÇA QUE EXTINGUIU O PROCESSO, SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, COM FUNDAMENTO NO ART. 267, VII. INSURGÊNCIA DO AUTOR. (...) SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. Nos termos do artigo 8º, parágrafo único, da Lei de Arbitragem, a alegação de nulidade da cláusula arbitral, bem como, do contrato que a contém, deve ser submetida, em primeiro lugar, à decisão arbitral, sendo inviável a pretensão da parte de ver declarada a nulidade da convenção de arbitragem antes de sua instituição". (TJ-SC - AC: 20090354003 SC 2009.035400-3 (Acórdão), Relator: Sérgio Izidoro Heil, Data de Julgamento: 17/07/2013, Quinta Câmara de Direito Civil Julgado) "APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. CONTRATO DE GAVETA. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL LIVREMENTE PACTUADA. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DA JUSTIÇA COMUM RECONHECIDA DE OFÍCIO. CASSAÇÃO DA SENTENÇA. DECLARAÇÃO DE NULIDADE DOS ATOS DECISÓRIOS". (TJ-GO - Apelação (CPC): 00588550920178090051, Relator: GUILHERME GUTEMBERG ISAC PINTO, Data de Julgamento: 28/03/2019, 5ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 28/03/2019) "APELAÇÃO. AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA DE BENS. SENTENÇA DE EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. RECURSO DOS REQUERENTES. PRELIMINAR. 1. NULIDADE DA SENTENÇA POR AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO. REJEITADA. EXTRAI-SE DA DECISÃO A RATIO DECIDENDI QUE JUSTIFICOU A EXTINÇÃO DO FEITO. MÉRITO. 2. PLEITO DE OUTORGA DEFINITIVA DE ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA. REJEIÇÃO. EXISTÊNCIA DE CLÁUSULA DE ARBITRAGEM. PRINCÍPIO DA KOMPETENZ-KOMPETENZ (COMPETÊNCIA-COMPETÊNCIA)".  (TJPR - 12ª C.Cível - 0018204-90.2014.8.16.0031 - Guarapuava - Rel.: JUIZ DE DIREITO SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU LUCIANO CAMPOS DE ALBUQUERQUE - J. 10.11.2021) "AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA ARBITRAL. HIPOSSUFICIÊNCIA. INOCORRÊNCIA. EXTINÇÃO DO FEITO. (...) Em contrato de compra e venda firmado entre particulares, não há presunção de hipossuficiência de um dos contratantes em relação ao outro". (TJ-MG - AC: 50062288420168130525, Relator: Des.(a) Estevão Lucchesi, Data de Julgamento: 12/04/2018, 14ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 13/04/2018) Do mesmo modo, plenamente possível o reconhecimento da usucapião por meio de sentença arbitral. Alguns resistem fundando-se no argumento de que o reconhecimento da aquisição da propriedade pela usucapião se caracteriza por uma legitimidade passiva difusa, indeterminada, restando presente uma sujeição passiva universal, o que fundamenta a expedição de editais tanto pela via judicial quanto pela via extrajudicial. Ademais, por se tratar de aquisição originária de direito real, não há negócio jurídico subjacente, e só poderia ser arbitrado aquilo que pode ser contratado. Data vênia, direitos reais constituem espécies de direitos patrimoniais disponíveis, não havendo qualquer óbice para o reconhecimento da aquisição originária destes pela via arbitral. Ademais, convenção de arbitragem não se confunde com exigência de negócio jurídico subjacente que constitua uma das hipóteses prevista no artigo 167, I, da LRP. Além disso, o árbitro, juiz de fato e de direito, possui plena aptidão e competência para apreciar as provas e concluir se a posse alegada é mansa, pacífica, ininterrupta e com animus domini, assim como para verificar se estão presentes os demais requisitos exigidos pelas modalidades especiais de usucapião previstas. Desta forma, decidiu o TJ-PB, através de decisão de 07/05/2020 (Proc. nº 0852364-06.2018.8.15.2001) "Ação de Suscitação de Dúvida - Demanda interposta pela titular tabeliã do 1º Tabelionato de Notas e Registro de Imóveis da Comarca de João Pessoa. (...) Saber se a sentença arbitral que julgou ação de usucapião seria, ou não, dotada de capacidade registral junto àquele Cartório de Registro de Imóveis.   Trata-se de uma Sentença Arbitral, expedida pelo Núcleo de Mediação e Arbitragem da Paraíba (...) objetivando que a parte requerente Raquel Pessoa Donato, por meio de usucapião tenha o domínio do imóvel (...) a presente dúvida já se encontra sanada diante do Pedido de Providências, processo administrativo nº 0004727-02.2018.2.00.0000, que tramitou junto ao Conselho Nacional de Justiça (...) a decisão em referência esclareceu o alcance da expressão carta de sentença contida no artigo 221, IV da Lei 6.015/73, operando-se, pois, a perda superveniente do objeto da presente dúvida, notadamente com a expedição do Ofício Circular a todas as serventias extrajudiciais para conhecimento e cumprimento da decisão". Similarmente, decisão de 25/04/2023, fruto de consulta administrativa (Proc. nº 0000497- 03.2023.2.00.0820, emanada da Corregedoria-Geral de Justiça do TJ/RN: "Cinge-se a discussão acerca de requerimento de registro de carta de sentença arbitral apresentada pelo recorrente junto ao Cartório Único da Comarca de Martins. A mencionada Carta (Num. 2668762, fls. 22/25), expedida pela Câmara de Mediação e Arbitragem do Rio Grande do Norte, conferiu ao Recorrente a aquisição de propriedade de imóvel usucapiendo, de modo que foi solicitada sua respectiva abertura de matrícula e posterior registro. (...) é possível concluir que a carta de sentença arbitral expedida em decorrência de procedimento de usucapião que tramitou pela via da arbitragem pode ser registrada, da mesma forma que se procede o registro da carta de sentença oriunda de uma ação judicial. (...) Ante o exposto, conheço e dou provimento ao presente recurso para reconhecer expressamente a possibilidade de registro da carta de sentença arbitral em processos de usucapião e determinar que o Oficial de Registro de Imóveis do Cartório Único de Martins proceda a abertura de matrícula e o registro do referido documento como solicitado pelo recorrente, sem nenhuma exigência adicional, reformando integralmente a decisão proferida às fls.164/165 do processo PJe nº 0800005-14.2023.820.5122". Desta forma, por todo visto, ainda carece a formação da cultura do estudo e uso da arbitragem como ferramenta adequada para solução de litígios de forma especializada, célere e segura, visando à entrega de um serviço útil e eficiente às partes litigantes. Ainda assim, o instituto vem sendo protegido e exaltado pelo CNJ e pelas Corregedorias e pelos Tribunais Estaduais. Há muito caminho a ser desbravado pela frente, principalmente na área imobiliária, tão afeta e na vanguarda da desjudicialização e da prática extrajudicial.
terça-feira, 26 de setembro de 2023

27 anos da Lei de Arbitragem

A lei de arbitragem completa 27 anos e temos muito a comemorar, já que o balanço é deveras positivo, com um grande crescimento da sua aplicação, além da evolução da doutrina. O crescimento da adoção da arbitragem é relatado anualmente pela pesquisa coordenada anualmente pela Professora Selma Lemes em parceira com o Canal Arbitragem, certo de que a última concluída em 2023, referente ao ano de 2022 relata, dentre outros pontos, que destacamos: i) "Em 2005, havia apenas 21 processos arbitrais, que tinham em jogo R$ 247 mil. Uma década depois, em 2015, eram contabilizados 222 novos casos, somando R$ 10,7 bilhões. Já em 2021 e 2022 foram registrados 658 novos procedimentos, em um total de R$ 95 bilhões"1; ii)  "Somente as agências reguladoras são parte em 22 casos, que, juntos, têm mais de R$ 500 bilhões em jogo, segundo dados da Advocacia-Geral da União (AGU)"2, além das arbitragens que temos a União como parte e os demais entes federativos; iii) "se considerarmos exclusivamente o universo das arbitragens em que a Administração Pública Direta e Indireta foi parte conclui-se que houve um aumento de 33% no setor em 2022 (27 casos em 2021 para 36 em 2022)"3; iv) "O ano de 2022 manteve o que se verificou em 2021, demonstrando que as impugnações de árbitros representam percentual pequeno (menos de 5%) diante do número de arbitragens processadas (1116). Ademais se falarmos de impugnações aceitas esse percentual representou menos de 1% (0,99%)"4. A conclusão da Professora Selma Lemes: "São números expressivos. Mostram que a arbitragem está consolidada e incorporada nos contratos"5. A evolução na prática é permanente nas Câmaras com alterações nos seus regulamentos, buscando aprimoramento constante, além do aumento das listas referenciais de árbitros, com ingresso de novos profissionais. Este crescimento encontra respaldo nas decisões judiciais. A jurisdição arbitral é prestigiada pela interpretação do Superior Tribunal de Justiça, tanto que Ministros da Corte da Cidadania destacam o crescente papel da arbitragem como mecanismo de solução de conflitos6, adotando sua natureza jurisdicional7 e prestigiando o princípio da competência-competência8, dentre outros temas. Os diversos Tribunais de Justiça, da mesma forma, prestigiam muito a arbitragem, principalmente a sua natureza jurisdicional9 e o princípio da competência-competência10. Houve a aplicação das diretrizes da IBA pelo Tribunal de Justiça de SP11. Também no âmbito acadêmico o crescimento é impressionante. Há uma quantidade enorme de livros recém-lançados sobre arbitragem, o que não se via até o ano de 2018. Os programas de mestrado e doutorado têm aumentado muito o número de dissertações, teses e artigos jurídicos sobre o tema. Os eventos que discutem arbitragem têm recebido uma audiência cada vez maior, e discutem todos os aspectos centrais da arbitragem, sem nunca se furtar a autocrítica e reflexão, imprescindíveis para constante evolução. Além destes eventos presenciais o Canal Arbitragem, uma plataforma de conhecimento 100% aberta e gratuita, oferece hoje conteúdo de alta qualidade em 3 idiomas, e à partir do Brasil intensifica as trocas da comunidade arbitral internacional. Uma série de programas, alguns deles até com a opinião das partes que contratam a arbitragem, democratizando o acesso ao conhecimento, integrando especialistas que abordam questões jurídicas de mérito que são relevantíssimas, viabilizando, outrossim, eventos presenciais de altíssimo nível. A beleza da arbitragem segue na autonomia da vontade das partes e na autorregulação, certo de que esta profusão de debates e discussões são a prova de um mercado sofisticado e especializado. Enfim, demonstrada a evolução, resta homenagear e agradecer o trabalho inicial e permanente de Carlos Alberto Carmona, Selma Lemes, Pedro Batista Martins e José Emílio Nunes Pinto, dentre tantos outros que lutaram e lutam para a evolução da arbitragem no Brasil. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Pesquisa:  Arbitragem em números. Selma Lemes. 2023 (no prelo). 4 Pesquisa:  Arbitragem em números. Selma Lemes. 2023 (no prelo). 5 Disponível aqui.  6 Conforme notícia intitulada "A jurisdição arbitral prestigiada pela interpretação do STJ", extraída do site do Superior Tribunal de Justiça, disponível aqui, acesso em 08/06/2021. 7 Trata-se da posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, STJ, 2.ª Seção, CC n.º 113.260/SP, Min. João Otávio de Noronha, j. 08.09.2010, DJ 07.04.2011. No mesmo sentido vide: "PROCESSO CIVIL. ARBITRAGEM. NATUREZA JURISDICIONAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA FRENTE A JUÍZO ESTATAL. POSSIBILIDADE. MEDIDA CAUTELAR DE ARROLAMENTO. COMPETÊNCIA. JUÍZO ARBITRAL. 1. A atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem tem natureza jurisdicional, sendo possível a existência de conflito de competência entre juízo estatal e câmara arbitral. 2. O direito processual deve, na máxima medida possível, estar a serviço do direito material, como um instrumento para a realização daquele. Não se pode, assim, interpretar uma regra processual de modo a gerar uma situação de impasse, subtraindo da parte meios de se insurgir contra uma situação que repute injusta. 3. A medida cautelar de arrolamento possui, entre os seus requisitos, a demonstração do direito aos bens e dos fatos em que se funda o receio de extravio ou de dissipação destes, os quais não demandam cognição apenas sobre o risco de redução patrimonial do devedor, mas também um juízo de valor ligado ao mérito da controvérsia principal, circunstância que, aliada ao fortalecimento da arbitragem que vem sendo levado a efeito desde a promulgação da Lei nº 9.307/96, exige que se preserve a autoridade do árbitro como juiz de fato e de direito, evitando-se, ainda, a prolação de decisões conflitantes. 4. Conflito conhecido para declarar a competência do Tribuna Arbitral", (STJ - CC: 111230 DF 2010/0058736-6, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 08/05/2013, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 03/04/2014). Recentemente, reiterou o STJ este entendimento: "AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. INCIDENTE MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. JUÍZO ARBITRAL E JUÍZO ESTATAL. ARBITRAGEM. NATUREZA JURISDICIONAL. MEIOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITO. DEVER DO ESTADO. PRINCÍPIO DA COMPETÊNCIA-COMPETÊNCIA. PRECEDÊNCIA DO JUÍZO ARBITRAL EM RELAÇÃO À JURISDIÇÃO ESTATAL. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. 1. Segundo a regra da Kompetenz-Kompetenz, o próprio árbitro é quem decide, com prioridade ao juiz togado, a respeito de sua competência para avaliar a existência, validade ou eficácia do contrato que contém a cláusula compromissória, nos termos dos arts. 8º, parágrafo único, e 20 da Lei nº 9.307/1996. 2. O caráter jurisdicional da arbitragem, decorrente da regra Kompetenz-Kompetenz, prevista no artigo 8º da lei de regência, impede a busca da jurisdição estatal quando já iniciado o procedimento arbitral, operando-se o efeito negativo da arbitragem previsto no art. 485, VII, do NCPC. 3. Na hipótese dos autos as informações prestadas pelo Juízo Arbitral dão conta de que, além de se pronunciar sobre a sua própria competência com a efetiva verificação da cláusula compromissória existente no contrato celebrado entre as partes, foi comprovada a alteração de sua denominação social com a juntada do documento respectivo. 4. Agravo interno não provido" (STJ - AgInt nos EDcl no AgInt no CC: 170233 SP 2019/0386014-7, Relator: Ministro MOURA RIBEIRO, Data de Julgamento: 14/10/2020, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 19/10/2020). O Tribunal Constitucional de Portugal adota a tese da natureza jurisdicional da arbitragem, vide Acórdãos nºs 230/86, 52/92, 506/96, 181/2007, 42/2014. 8 STJ - CC: 139519 RJ 2015/0076635-2, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 11/10/2017, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 10/11/2017. No mesmo diapasão: "1. A controvérsia instaurada no recurso especial, retido na origem, consiste justamente em saber se há cláusula de convenção de arbitragem, circunstância que, caso reconhecida, tem o condão de derrogar, a princípio, a própria jurisdição estatal, de modo a tonar inócua toda a atividade que venha a ser desenvolvida no processo. 1.1. A simples constatação de previsão de convenção de arbitragem - objeto de discussão no recurso especial - enseja o reconhecimento da competência do Juízo arbitral, que, com precedência ao Poder Judiciário, deve decidir, nos termos do parágrafo único da Lei de Arbitragem (Lei n. 9.307/96), de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória. Precedentes...       1.3 Ressai evidenciado, assim, a necessidade de se exaurir, com precedência de qualquer outra questão, a discussão acerca da existência de convenção de arbitragem, a considerar que a verificação desta, como assinalado, tem o condão de tornar inútil, a princípio, a atuação jurisdicional do Estado." (AgRg no AREsp n. 371.993/RJ, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 14.10.2014). "Pedido de decisão liminar em conflito de competência relativo a ação declaratória de nulidade da participação da União Federal em procedimento arbitral e o respectivo procedimento, que trata de indenização decorrente da Operação "Lava-Jato". Alegação de que a União, na qualidade de acionista controladora, não vincula-se à cláusula compromissória do Estatuto da Petrobrás. Questão que poderá ser apreciada apenas após decisão do Tribunal Arbitral que ainda não foi instituído. Princípio Kompetenz-kompetenz. Impossibilidade de definição do conflito de competência", STJ, CC 151.130, j. 07.05.2018, monocrática. Igualmente no STJ: HDE 120/EX, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, CORTE ESPECIAL, julgado em 18/12/2018, DJe 12/03/2019; AgInt no AREsp 425955/MG, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/02/2019, DJe 01/03/2019; REsp 1678667/RJ, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 06/11/2018, DJe 12/11/2018; CC 150830/PA, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 10/10/2018, DJe 16/10/2018; Rcl 36459/DF, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/09/2018, DJe 05/10/2018; AgInt no CC 156133/BA, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/08/2018, DJe 21/09/2018 (Vide Informativo de Jurisprudência N. 622). 9 TJ-GO - APL: 00082351920178090006, Relator: ORLOFF NEVES ROCHA, Data de Julgamento: 02/05/2018, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 02/05/2018; TJ-ES - APL: 00130471420168080024, Relator: ÁLVARO MANOEL ROSINDO BOURGUIGNON, Data de Julgamento: 02/10/2018, SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 06/12/2018; TJ-MG - AC: 10223150104873001 Divinópolis, Relator: Arnaldo Maciel, Data de Julgamento: 12/09/2017, Câmaras Cíveis / 18ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 15/09/2017. TJ-SP - AI: 21383951120188260000 SP 2138395-11.2018.8.26.0000, Relator: Ricardo Negrão, Data de Julgamento: 25/02/2019, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 27/02/2019. Igualmente vide: TJSP, 14ª Cam Dir Priv, AI 2219052-76.2014.8.26.0000, j. 15.04.2015, unânime; e TJSP, 2ª Cam Res Dir Emp, AI 2223333-36.2018.8.26.0000, j. 30.11.2018, unânime. 10 TJSP, 2ª Cam Res Dir Emp, AI 2112321-56.2014.8.26.0000 , j. 05.12.2014, unânime. TJMG, 21ª CC, Apel 5089571-50.2021.8.13.0024, j. 11.09.2023, unânime; TJMG, 21ª CC, Apel 5171400-53.2021.8.13.0024, j. 11.09.2023; TJSP, 2ª Câm Res Dir Emp, Apel 1007937-03.2022.8.26.0510, j. 23.05.2023, unânime;TJMG, 21ª CC, Apel 5161239-81.2021.8.13.0024, j. 04.05.2023, unânime; TJDFT, 7ª T. Cível, Apel 0704280-87.2022.8.07.0015, j. 27.04.2023, unânime; TJMG, 21ª CC, Apel 5161255-35.2021.8.13.0024, j. 20.04.2023, unânime; TJRJ, 6ª Câm Dir Priv, Apel 0194609- 43.2021.8.19.0001, j. 23.03.2023, unânime;TJRJ, 11ª CC, Apel 0043025-97.2020.8.19.0021, j. 31.01.2023, unânime; TJMG, 21ª CC, Apel 5171441-20.2021.8.13.0024, j. 25.11.2022, unânime; TJMG, 21ª CC, Apel 5095656-52.2021.8.13.0024, j. 17.08.2022, unânime; TJSP, 2ª Câm Res Dir Emp, AI 2214340-96.2021.8.26.0000, j. 10.05.2022, unânime;TJSP, 1ª Câm Res Dir Emp, AI 2218234-80.2021.8.26.0000, j. 31.01.2021, unânime; TJSP, 1ª Câm Res Dir Emp, Apel 1000316-60.2021.8.26.0260, j. 19.08.2021, unânime; TJSP, 2ª Câm Res Dir Emp, Apel 1054404-85.2017.8.26.0002, j. 03.02.2020, unânime; TJSP, 2ª Câm Res Dir Emp, Apel 1012360-45.2017.8.26.0004, j. 31.01.2020, unânime; TJES, 3ªCC, AI 0013950-80.2019.8.08.0012, j. 03.03.2020, unânime;TJDFT, 3ª T., Apel 0736145-15.2018.8.07.0001, j. 25.09.2019, unânime; JRJ, 8ª CC, AI 0047488-53.2017.8.19.0000, j. 30.01.2018, unânime; TJSP, 2ª Cam Res Dir Emp, AgR 2069258-15.2013.8.26.0000, j. 25.08.2015, unânime . 11 Ap. 1076161.2017 e Ap. 1116375-63.2020.
É quase um sacrilégio viajar para a Tailândia e não comprar uma camisa de 1 dólar com os dizeres "same same but different". Ninguém sabe muito o que isso significa e há sérias dúvidas sobre a expressão ter realmente relação com o país asiático. Nada disso importa, porém, para o turista que, feliz, compra o seu nostálgico souvenir em um caótico mercado local. Seja qual for a origem e o real significado, essa expressão cai como uma luva para uma comparação entre as arbitragens de investimento e as arbitragens comerciais com o Poder Público (estas aqui chamadas de "arbitragens contratuais"). Embora sejam soluções formalmente distintas para um conflito entre investidor e Estado, as semelhanças que existem entre ambas fornecem uma importante fonte para debates e reflexões. Arbitragens de investimento x Arbitragem contratual As distinções e semelhanças entre os dois foros de solução de conflitos já foram abordadas em ótimo artigo de Boni Soares e Fernando Filgueras1. Em rápido resumo, pode-se dizer que a arbitragem de investimento decorre de um tratado celebrado entre dois ou mais Estados, no qual os signatários concordam em conferir a investidores estrangeiros proteções substantivas de Direito Internacional. Com base no que dispuser o tratado aplicável, o investidor que optar por investir fora de seu país de origem poderá fazer jus, por exemplo, a um "tratamento justo e equitativo" (cujo elemento central é a proteção de expectativas legítimas) e à "proteção contra expropriação (direta ou indireta)", que são as proteções mais comuns e relevantes. Já arbitragens "contratuais" contra o Poder Público possuem fundamento em um contrato, que é o fator principal de proteção para o investidor, independentemente de sua nacionalidade. Além disso, utilizando a prática brasileira como base, o direito local também integra a legislação aplicável à disputa. Logo, trata-se de searas totalmente distintas, correto? Nem tanto, como ilustram casos recentes da indústria do petróleo. O caso Lone Pine v Canadá Nessa disputa, uma empresa de petróleo instaurou contra o Canadá uma arbitragem fundada no antigo NAFTA, com o intuito de obter compensação financeira pela moratória legal, imposta pela província de Quebec, contra a utilização da controversa técnica do fraturamento hidráulico2. O resultado direto dessa moratória foi o cancelamento de licenças de exploração de petróleo que haviam sido previamente conferidas pela província canadense, fato que, na visão do investidor, configurou expropriação indireta e violação de suas expectativas legítimas3. Existe uma disputa idêntica envolvendo a ANP. No caso Petra - blocos de São Francisco, a empresa instaurou contra a Agência uma arbitragem doméstica baseada no contrato de concessão de óleo e gás, que foi afetado por moratória imposta pelos órgãos ambientais de Minas Gerais, também contra a técnica do fraturamento hidráulico4. De maneira bastante semelhante ao caso Lone Pine, a concessionária também baseou seus pedidos, entre outros fundamentos, na tese de "expropriação regulatória" (figura idêntica à expropriação "indireta" de Direito Internacional) e na violação ao princípio da confiança legítima (figura idêntica à proteção internacional à legítima expectativa do investidor). Se são várias as semelhanças fáticas e jurídicas, existe uma distinção digna de nota. Para arbitragens de investimento, pouco importa o poder constituído ou o ente federativo que praticou o ato discutido no procedimento: por regras de atribuição próprias do Direito Internacional, todo ato estatal é diretamente imputável à entidade nacional. Já para arbitragens contratuais, que são norteadas pela aplicação do contrato e do direito local, a análise da matriz de risco e a identificação do ente realmente responsável pelo dano são aspectos essenciais. Em suma, enquanto no caso Lone Pine pouco importava se a província Quebec fora o ente responsável pela moratória, no caso Petra v ANP o ponto controvertido é exatamente discutir se o comportamento do Estado de Minas Gerais pode ser imputado à Agência. "O caso Eco Oro v Colombia Outra disputa, decorrente do tratado de investimento celebrado entre Canadá e Colômbia, demonstra a aproximação entre arbitragens de investimento e arbitragens contratuais. No caso Eco Oro, a empresa de mineração vinha realizando operações em uma área parcialmente inserida nos páramos (um ecossistema dotado de especial sensibilidade ambiental), até que uma sucessão de atos estatais (legislativos, administrativos e judiciais) resultou na imposição de uma zona de exclusão ambiental e na consequente suspensão das atividades5. Semelhante ao caso Lone Pine, a proteção contra expropriação indireta e a preservação das expectativas legítimas do investidor representam o principal aspecto jurídico da disputa. Tema semelhante já foi tratado em diversos casos da ANP. Nos casos Newfield e Dommo, a cessação das operações decorreu do indeferimento de licenças ambientais, mas o pano de fundo envolvia o recrudescimento da posição do IBAMA quanto à viabilidade de atividades exploratórias em regiões ambientalmente sensíveis. Já nos casos Petra/Bayar e Petra/Bayar/Copel/Tucuman, os contratos foram suspensos por decisões judiciais que tiveram o declarado objetivo de evitar danos ao meio ambiente6. À exceção do caso Dommo, que segue em andamento, as sentenças arbitrais dos três outros casos foram no sentido de que não seria viável imputar à ANP a responsabilidade por atos de outro órgão (IBAMA) ou Poder (Justiça Federal), à luz da matriz de risco contratual. Já no caso Eco Oro, que discute as consequências de atos praticados por diversos órgãos e níveis federativos, esse aspecto subjetivo não é relevante. Mas e aí? A aproximação entre arbitragens de investimento e arbitragens contratuais parece óbvia, como demonstram os casos narrados acima. E o que isso traz de relevante? De um lado, a análise comparativa entre os institutos deve ser cautelosa. Principalmente no plano material, existe uma distinção bastante relevante entre os parâmetros decisórios de uma arbitragem de investimento, que é uma operação jurídica de Direito Internacional, e de uma arbitragem contratual, cujo foco é o contrato e a legislação nacional. Ainda assim, estudar arbitragens de investimentos traz duas importantes contribuições para a prática brasileira. Primeiro, a semelhança entre situações tratadas em casos nacionais e internacionais demonstra que os problemas de nossa terra brasilis não são tão peculiares assim e também se manifestam em países desenvolvidos. Segundo, o estudo de institutos bem desenvolvidos na prática de investimento, como é o caso do princípio da deferência[7], pode auxiliar na atividade interpretativa em arbitragens contratuais. De outro lado, a prática da arbitragem contratual com a Administração Pública, que é relativamente nova, pode se beneficiar do amadurecimento institucional que o sistema de arbitragens de investimento já adquiriu após décadas de utilização. Atualmente, este tipo de solução de disputa pautado em tratados está sob forte crítica, centrada principalmente na necessidade de conferir maior legitimidade, transparência e accountability ao instituto e a seus operadores, como bem notado no artigo de Boni e Filgueras. Medidas de aprimoramento para arbitragens de investimento, portanto, podem ser transpostas para as arbitragens contratuais da Administração. Mas esse tema fica para um novo artigo. Que provalmente não vai ser tão igual, nem tão diferente. __________ 1 Artigo "A cortina de fumaça em meio à arbitragem investidor-Estado no Brasil" . 2 O artigo "The legal status of fracking worldwide: an environmental law and human rights perspective", de Héctor Herrera, possui um bom apanhado da discussão internacional sobre o tema. 3 Os documentos do caso podem ser consultados no site. 4 A Ata de Missão está disponível no site. 5 Vide documentos disponíves aqui. 6 Os documentos dos casos também podem ser consultados no site da ENARB/PGF. 7 Conferir a tese de mestrado "Controle da administração pública pela via arbitral", de Evandro Pereira Caldas.
terça-feira, 25 de julho de 2023

Arbitragem em larga escala

A ventilação da possibilidade de solução de conflitos pela via arbitral sempre trouxe consigo a ponderação de aspectos positivos e negativos desta alternativa ao juízo estatal. Dentre os argumentos dos entusiastas, as defesas a respeito (i) da potencial maior especialidade dos julgadores, (ii) da estimada maior celeridade da solução e (iii) da flexibilidade do procedimento ao interesse das partes sempre foram frisadas. No campo das ressalvas, questionamentos quanto (i) ao aspecto vinculante e imperativo do compromisso em si (por vezes desafiado pela maneira que formalizado e, por tantas outras, em decorrência de interpretações e precedentes minoritários mas, ainda assim, existentes), (ii) à lisura e confiabilidade dos procedimentos e/ou câmaras (ora por mero desconhecimento ou desdém, ora como sintoma da multiplicação de opções, nem todas com a mesma bagagem e rodagem no campo arbitral) e, finalmente, (iii) ao custo envolvido (algumas vezes incompatível para demandas de menor porte). Mas, se a ressalva do custo, ainda que passível de relativização pelo nível dos profissionais envolvidos e dos serviços ofertados, durante muito tempo fez eco entre operadores do Direito e partes, ela também - de tanto que repetida - fez surgir um novo "produto" dentro das câmaras arbitrais. Adotados com os filtros pertinentes (relacionados a características das demandas, como complexidade e matéria), surgiram os procedimentos (quando não a própria câmara) totalmente digitais, com regulamento e procedimentos enxutos a favor da eficiência econômica, sem prejuízo da necessária cautela e do zelo com o resultado entregue. E, assim, foi possível acomodar um leque ainda mais amplo de perfis de demandas, especialmente para permitir acesso às vantagens dos procedimentos arbitrais para partes outrora afastadas por questões financeiras. Nestes foros, é comum haver limitações sobre os desdobramentos processuais admitidos (como tipos de provas), maior concentração de matérias tratadas (cobranças, demandas imobiliárias, litígios com fornecedores), adoção de árbitro único, e aplicação de valor fixo por caso (contemplando registro, taxa administrativa e honorários de árbitro). Como resultado, tem-se uma legítima expectativa pelo desfecho breve dos casos, confirmada por dados objetivos disponibilizados. O know-how desenvolvido e o resultado alcançado, possivelmente, refletem o cenário judicial do país: grande volume de demandas e aplicação de tecnologia abundante (ainda que nem sempre operacional) nos diversos sistemas de processos digitais existentes. A partir disso, houve migração do viés tecnológico (notadamente mais bem explorado pelo setor privado) para câmaras, com o propósito específico de redução de custos e melhora da experiência do usuário. E, assim, vêm se consolidando câmaras e procedimentos capazes de absorver alto número de procedimentos (com diversos fluxos automatizados), entregando resultados céleres e qualitativos, por um custo muitas vezes menor do que aquele que seria aplicado na soma das instâncias e desdobramentos inerentes ao processo judicial. Tal movimentação, diferente do que inicialmente temido, não desmereceu ou desvalorizou a arbitragem como um todo; pelo contrário, tornou-a mais abrangente e acessível, além de representativa numérica e socialmente. Afinal, quanto mais setores permeados, maior sua relevância e desenvolvimento na cena jurídica nacional. E, por que não, considerar no futuro breve a possibilidade de trazer mais destaque para o Brasil internacionalmente, tornando-se um "produto" para exportação e de referência. Neste sentido, parece convir à comunidade jurídica um olhar crítico construtivo a esse movimento, de forma a fortalecer a atuação destas câmaras - respeitados os diferentes possíveis perfis -, na medida em que se pode enxergar um benefício social inerente na acessibilidade, sempre que preservada a qualidade. Afinal, a escala tende a promover a aceleração do aprendizado e desenvolvimento, e experiências e tecnologias poderão ser aprimoradas e compartilhadas, resultando no ainda maior amadurecimento e evolução de todo o sistema arbitral (fornecedores, prestadores, fluxos) em prol do bem comum.
Há algum tempo habita minha reflexão, quando penso em produção antecipada da prova na Arbitragem, a questão sobre as suas hipóteses desvinculadas da urgência e a viabilidade da criação do chamado "Árbitro da Prova", o que o Acórdão do REsp. 2.023.615 somente reforçou, com uma solução em favor da Arbitragem. Aqui, desde logo, cabe o destaque no sentido de ser minha visão que, independentemente da situação fática posta, havendo convenção de arbitragem, a solução deve, sempre que possível, ser buscada dentro da Arbitragem. A opção pela Arbitragem é fruto da livre manifestação das partes e, portanto, há de ser prestigiada. "Arbitragem é arbitragem, e isso justifica seja ela 'objeto de um tratamento autônomo', verdadeiro sistema, com características próprias, a distinguir este método de solução de litígios"1. Estabelecida essa premissa, é sabido que a convenção de arbitragem (cláusula/compromisso), enquanto instrumento de manifestação do consentimento das partes para arbitrar, impõe a derrogação da jurisdição estatal. Em síntese apertada, a convenção de arbitragem tem um duplo caráter: como acordo de vontades, vincula as partes no que se refere a litígios atuais ou futuros, obrigando-as reciprocamente à submissão ao juízo arbitral; como pacto processual, seus objetivos são de derrogar a jurisdição estatal, submetendo as partes à jurisdição dos árbitros2. Portanto, é esse efeito negativo da convenção de arbitragem que merece realce, na medida em que, se as partes, no livre exercício da manifestação de vontade, no exercício da sua autonomia privada, fazem a opção pela Arbitragem, estarão automaticamente renunciando à jurisdição estatal, salvo naqueles casos expressamente previstos em lei de cooperação ou intervenção.3 Essa é uma opção irretratável e obrigatória4. A jurisdição estatal, repise-se, somente estará autorizada a atuar nas hipóteses expressamente previstas em lei5, sob pena de violação da convenção de arbitragem. A jurisdição arbitral passa a ser regra e a jurisdição estatal exceção. Aliás, a própria ratio do princípio da competência-competência6, reforça a ideia de primazia da jurisdição arbitral sobre a estatal nas hipóteses em que as partes convencionaram validamente sujeitar conflitos presentes ou futuros à Arbitragem. Adiante, para efeito desta breve reflexão, iremos superar qualquer discussão sobre a aplicabilidade ou não das normas do Código de Processo Civil ao processo arbitral, ainda que, ao meu sentir, a aplicação subsidiária, superado o necessário teste de compatibilidade com a Arbitragem, é plenamente possível. Ainda que assim não seja, ao menos a ratio da norma processual civil me parece plenamente aplicável para solução de problemas concretos da Arbitragem. Cabe mencionar, também, a possibilidade de as partes ajustarem, em comum acordo, a expressa aplicação das normas do Código de Processo Civil. Dito isso, o Código de Processo Civil, em seu Artigo 381 e incisos7, inaugurou o que se convencionou chamar de exercício do direito autônomo à prova. Assim, a produção antecipada da prova, preparatória ou incidental, significa implementar um determinado meio probatório em momento anterior àquele em que costumeiramente se implementaria, não mais apenas fundada no risco de perecimento (urgência), mas, também, para fins de autocomposição ou outro meio de solução de conflito ou, ainda, para evitar ou justificar o ajuizamento de ação. Na lição do Ministro Marco Aurélio Bellizze, reconhece-se, assim, à parte o direito material à prova, cuja tutela pode se referir tanto ao modo de produção de determinada prova (produção antecipada de prova, prova emprestada e a prova "fora da terra"), como ao meio de prova propriamente concebido (ata notarial, depoimento pessoal, confissão, exibição de documentos ou coisa, documentos, testemunhas, perícia e inspeção judicial). ... Nesse contexto, reconhecida a existência de um direito material à prova, autônomo em si - que não se confunde com os fatos que ela se destina a demonstrar (objeto da prova), tampouco com as consequências jurídicas daí advindas, podendo (ou não) subsidiar outra pretensão - a lei adjetiva civil estabelece instrumentos processuais para o seu exercício, que pode se dar incidentalmente, no bojo de um processo já instaurado entre as partes, ou por meio de uma ação autônoma (ação probatória lato sensu)8. Nesse ponto, convém ressaltar que o litígio de que trata o Artigo 1º, da Lei de Arbitragem9, reside no conflito de interesses a respeito da própria prova, validado pela existência de um direito material autônomo à sua produção, constituindo-se em causa de pedir da ação probatória lato sensu. Veja-se, assim, que, se esse conflito relacionado com a prova que se pretende produzir antecipadamente, estiver, direta ou indiretamente, ligado à uma relação jurídica sujeita à convenção de arbitragem, será nessa seara privada que a controvérsia haverá de ser dirimida. Não é por outra razão que a disposição do Artigo 382, §4º, do Código de Processo Civil10, deve comportar interpretação tendente a vedar apenas a defesa ou recurso que estejam relacionados com aspectos da valoração da prova em si, porquanto há vedação expressa ao Magistrado de, no âmbito restrito da produção autônoma da prova, realizar qualquer juízo de valor nesse sentido11. Na produção antecipada da prova o Magistrado apenas zela pela regularidade formal da sua produção, mas não a valora. Na esteira de precedente do Superior Tribunal de Justiça12, não se pode admitir, portanto, interpretação que elimine o contraditório por inteiro, mas apenas e tão somente em relação às matérias impertinentes ao procedimento (valoração do conteúdo da prova), excluindo-se da restrição legal, questões controvertidas relacionadas com o objeto da ação e do seu procedimento (regularidade formal da produção antecipada da prova). Aqui, nesse ponto, cabe a indagação: Por que não um "Árbitro da Prova"? Para começar a responder a indagação, primeiramente, convém lembrar que as partes que celebram uma convenção de arbitragem, podem ou não, conduzir o procedimento administrado por uma instituição arbitral, respeitando o seu regulamento, sendo fato que a arbitragem ad hoc, atualmente, é exceção e, mesmo nessa hipótese, nada impede que as partes façam a opção legítima pela observância de um regulamento específico. Nesse passo, a adesão a um determinado regulamento de instituição arbitral possui o efeito imediato de fazê-lo de observância obrigatória para toda e qualquer controvérsia relacionada com a convenção de arbitragem. Caminhando, para as hipóteses de produção antecipada da prova fundadas na urgência, em que há o risco do seu perecimento, o sistema já apresenta solução, seja no "Árbitro de Urgência" previsto na maioria dos regulamentos das instituições arbitrais, seja, na ausência de sua previsão, pelo mecanismo de cooperação com a jurisdição estatal expressamente previsto na Lei de Arbitragem. Em qualquer dos casos, "Árbitro de Urgência" ou cooperação da jurisdição estatal, a solução permanece no âmbito da Arbitragem, eis que, na segunda hipótese, será sempre lícito ao Árbitro rever a decisão do Juiz estatal, tendo esse mecanismo natureza evidentemente excepcional. Todavia, para os demais casos, fins de autocomposição ou outro meio de solução de conflito ou, ainda, para evitar ou justificar o ajuizamento de ação, o Recurso Especial 2.023.615 determinou uma solução em favor da Arbitragem, no que penso ser viável ir mais além e buscar na figura do "Árbitro da Prova", não apenas uma solução em favor da Arbitragem, mas uma solução em prol da consolidação da Arbitragem como método completo e adequado de solução de conflitos, fruto da opção legítima das partes. O "Árbitro da Prova" seria um Árbitro previsto no regulamento da instituição arbitral com a função exclusiva de conduzir o procedimento da produção antecipada da prova, sem a necessidade da formação de um Tribunal Arbitral para esse fim, o que, nesse último caso, seria a única solução viável para manutenção da resolução do conflito sobre a prova no âmbito da Arbitragem, sem implicar em denegação do acesso à justiça13. Inclusive, esse mesmo "Árbitro da Prova" poderia - deveria - conduzir também a produção antecipada da prova fundada na urgência, dado que gerir a produção da prova é tarefa cuja especialização conduz sempre a melhores resultados, evitando nulidades futuras ou mesmo provas mal produzidas, com impacto no resultado do mérito de um futuro e eventual procedimento arbitral. Nos moldes do que já ocorre com o procedimento conduzido pelo Juiz estatal, diante da vedação expressa do Artigo 382, §2º, do Código de Processo Civil, repetimos que o "Árbitro da Prova" não exerceria qualquer valoração sobre o conteúdo da prova produzida, limitando-se a fazer a gestão da sua produção. Penso ser importante afirmar que, mesmo não fazendo qualquer valoração sobre o conteúdo da prova produzida, porém já conhecedor dos fatos da demanda, ainda que parcialmente, o "Árbitro da Prova" que a colheu de forma antecipada, não deve participar de eventual Tribunal Arbitral que venha a ser formado no futuro, sendo prudente preservar a equidistância e a independência que, "aos olhos das partes", poderia estar comprometida com a repetição. Um outro aspecto que conspira em favor do "Árbitro da Prova" é o fato de que a prova produzida de modo antecipado, com todas as formalidades que lhe são inerentes, não demanda a repetição em eventual e futuro procedimento arbitral, relevando o destaque que se utilizará na Arbitragem prova colhida por árbitro especializado e acostumado com as peculiaridades do processo arbitral, o que não aconteceria se essa mesma prova fosse colhida pelo Juiz estatal. Aliás, penso, inclusive, que, se a prova antecipada viesse a se produzir no âmbito da justiça estatal, ainda que com todas as formalidades que lhe são inerentes, não se poderia desconsiderar a hipótese plausível de a parte pretender a sua repetição no âmbito do procedimento arbitral que viesse a ser instaurado, justamente em razão de haver diferença significativa entre o modo de colheita da prova conduzido pelo Juiz, forjado na justiça estatal, e pelo Árbitro, forjado na justiça privada. São formas de atuar diversas. Afirmo, ainda, que a solução do "Árbitro da Prova", para além da bem-vinda redução de custos para as partes, que não estariam obrigadas com a constituição do Tribunal Arbitral, quem sabe desnecessário, viabiliza por parte das Instituições Arbitrais a criação de uma solução integrada com a produção antecipada da prova e, se for o caso, a possibilidade do início de uma mediação a partir do que descortinado na prova produzida. Nesse sentido, mecanismos facilitadores do acesso à justiça e que permitem uma resolução rápida do litígio mostram-se absolutamente necessários. Há indícios de que a arbitragem contempla melhores mecanismos para induzir as partes à um acordo. Destacam-se, a aproximação das partes fruto de uma convenção de arbitragem, o permanente diálogo e a possibilidade de uma participação mais ativa do árbitro para buscar o escopo conciliatório14. Aqui, voltamos com a ideia de uma solução completa e integrada, inteiramente edificada no âmbito da Arbitragem. O "Árbitro da Prova" não está a demandar qualquer alteração legislativa, exige apenas das Instituições Arbitrais uma ação imediata para implementar a modificação de seus regulamentos para a criação dessa figura, bem como para regulamentar o procedimento da produção da prova de modo antecipado. A criação da figura do "Árbitro da Prova", como meio de viabilização da produção antecipada da prova na seara da Arbitragem, reforça a sua legitimidade como meio completo e adequado de solução de conflitos, ao garantir que a prova antecipada seja produzida por um Árbitro designado para esse fim, sem a necessidade da formação imediata de um Tribunal Arbitral ou, pior, produzida por um Juiz estatal não acostumado com as variabilidades do processo arbitral.   A Arbitragem deve solucionar em casa seus problemas. __________ 1 MARIANI, Rômulo Greff. Precedentes na arbitragem, Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 84. 2 CARMONA. Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei 9307/96. São Paulo: Atlas, 2009, p. 79. 3 Confira a respeito do tema cooperação/intervenção, meu artigo publicado na Coluna Migalhas Marítimas (Violação do dever de revelação como causa da anulação da decisão arbitral - Migalhas). 4 STJ. Recurso Especial 1.331.100/BA, 4ª Turma, Relatora Ministra Isabel Gallotti, 2016. 5 A título de exemplo, os Artigos 22-A e 22-B, da Lei de Arbitragem. (Art. 22-A.  Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência. Parágrafo único.  Cessa a eficácia da medida cautelar ou de urgência se a parte interessada não requerer a instituição da arbitragem no prazo de 30 (trinta) dias, contado da data de efetivação da respectiva decisão. Art. 22-B.  Instituída a arbitragem, caberá aos árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário).   6 Art. 8º ... Parágrafo único. Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória. Art. 20. A parte que pretender arguir questões relativas à competência, suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem. 7 A produção antecipada da prova será admitida nos casos em que: I - haja fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação; II - a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito; III - o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação. 8 STJ. Recurso Especial 2.023.615/SP, 3ª Turma, Relatora Ministro Marco Aurélio Bellizze, 2023. 9 Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.  10 Art. 382. §4º Neste procedimento, não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário.  11 Art. 382. § 2º O juiz não se pronunciará sobre a ocorrência ou a inocorrência do fato, nem sobre as respectivas consequências jurídicas.  12 STJ. Recurso Especial 2.037.088/SP. 3ª Turma, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze. Março de 2023. 13 CF. Art. 5º XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. 14 GABRIEL, Anderson de Paiva. MOOG, Maria Eduarda. A Arbitragem como Mecanismo Indutor à Resolução Consensual de Litígios: uma breve análise sob a ótica racional e emocional do processo. Arbitragem. Atualidades e Tendências. Coordenadores Olavo Augusto Viana Alves Ferreira e Paulo Henrique dos Santos Lucon. Ribeirão Preto: Editora Migalhas, 2019, pag. 37;40.