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O contraditório na Produção Antecipada de Provas: a interpretação do art. 382, §4º, do CPC conforme a Constituição

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Atualizado às 08:21

1. O problema da literalidade do art. 382, §4º, do CPC 

A produção antecipada de provas foi introduzida pelo CPC de 2015 em substituição à antiga ação cautelar de provas (CPC/1973, arts. 846 a 850). Regulada pelos arts. 381 a 383 do CPC de 2015, o instituto se tornou procedimento probatório típico e amplo, cuja finalidade é, para além de assegurar a produção da prova nas situações de urgência, permitir a prévia avaliação da viabilidade de futura demanda e garantir o exercício de  pretensões que dependam da pré-constituição de prova.

Embora a sua criação tenha acompanhado a principiologia do CPC em seu espírito amplamente garantista, em que foi dado especial destaque às normas fundamentais do processo, curiosamente o legislador impôs vedação à realização de impugnações na produção antecipada de provas. Assim, no §4º do art. 382 do CPC,1 o texto afirma que: "(...) não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário".

O dispositivo, em princípio, parece não comportar dúvidas de interpretação. A literalidade indica que no procedimento em questão não caberá defesa ou recurso, salvo contra a decisão que indeferir totalmente o pedido do requerente. Tal entendimento encontra ressonância na jurisprudência, especialmente no que toca aos recursos. Não são poucas as vezes que estes deixam de ser conhecidos quando não enquadrados na aludida hipótese excepcional.2

A recorrência da inadmissão de recursos baseada na literalidade do §4º do art. 382 do CPC3 nos faz enxergar um claro problema: a aplicação acrítica da vedação cria clara assimetria processual entre as partes na produção antecipada de provas, uma vez que coloca a parte requerida em clara desvantagem.

Mas como o CPC, que preza pela cooperação e igualdade entre as posições processuais, poderia adotar tal circunstância como regra? Essa dúvida pode ser respondida a partir das seguintes reflexões: será mesmo que a produção antecipada de provas afasta o contraditório da parte requerida? Ou, ainda, bastaria a literalidade do §4º do art. 382 para compreender o escopo da vedação disposta? A resposta para ambas as perguntas acima mostra-se negativa.

Embora a interpretação literal do art. 382, §4º, do CPC seja a mais comum, a verdade é que ela não encontra respaldo no ordenamento constitucional e na principiologia do CPC. A sua incompatibilidade se dá por duas razões evidentes.

A primeira, mais grave, é que a vedação irrestrita às impugnações no procedimento de produção antecipada de provas implicaria, em última análise, a inconstitucionalidade do §4º do art. 382 do CPC.4 Isso porque a interpretação literal do dispositivo incorre em evidente violação ao contraditório e à ampla defesa, consagrados em sede constitucional (art. 5º, LV, da CRFB). A segunda, reflexa da primeira, é que a literalidade entraria em conflito com o art. 7º do CPC,5 que expressa, em nível infraconstitucional, o princípio do contraditório e estabelece a paridade de tratamento entre as partes do processo.

Então, como deveria ser entendido o §4º do art. 382 do CPC à luz das garantias processuais? A resposta se encontra na natureza da produção antecipada de provas e nas suas finalidades. 

2. Compreendendo o art. 382, §4º, do CPC: necessária interpretação sistemática com o objetivo da produção antecipada de provas

Como adiantado, a produção antecipada de provas instituída pelo CPC de 2015 é um procedimento preparatório, cuja finalidade é multifacetária. Por meio dela, pode-se se assegurar o futuro exercício da pretensão em juízo, quando, por motivo concreto, periga-se de não ser possível produzir determinada prova na pendência da ação principal. Serve também para evitar a propositura de ações infundadas, de modo que também adota caráter dissuasório.6

Nessa direção, o art. 381 do CPC admite a produção antecipada de provas quando: (i) houver fundado receio de se tornar impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação principal; ou (ii) a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar autocomposição entre as partes; ou (iii) o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento da ação.

 Além do enquadramento em ao menos uma das hipóteses acima, o CPC igualmente estabelece, como requisito da petição inicial, a necessária descrição precisa dos fatos sobre os quais a prova deverá recair. Portanto, o requerente deverá indicar a relevância e necessidade da prova,7 sob pena de rejeição.

Dentro desses limites, a prova deverá ser produzida com a participação dos interessados, que serão citados para participar do procedimento, salvo se inexistir caráter contencioso (CPC, art. 382, §1º). O procedimento servirá exclusivamente para elaborar a prova. Com efeito, por expressa vedação legal, não pode o juiz se manifestar sobre seu conteúdo a fim de, alguma forma, valorar o resultado da prova (CPC, art. 382, §2º).

É exatamente no §2º do art. 382 que se encontra a pista sobre o significado e extensão do §4º do art. 382 do CPC. Uma vez que a produção antecipada de provas tem finalidade específica, sendo incabível a valoração da prova produzida neste procedimento, o objetivo da limitação estabelecida no § 4º foi simplesmente impedir que as partes eventualmente antecipassem discussão de mérito da demanda principal no bojo desse procedimento preparatório.

Nessa direção, a melhor interpretação do §4º do artigo 382 do CPC é entender que o dispositivo não veda por completo a apresentação de recurso ou defesa na produção antecipada de provas, salvo na situação de indeferimento do pedido. A bem da verdade, a sua ratio é exclusivamente impedir que a discussão do procedimento recaia sobre o conteúdo da prova, já que inútil e desnecessária, diante do impedimento do próprio magistrado em valorá-la.

A partir disso, é possível perceber que o §4º do artigo 382 do CPC não impede impugnações em que se discutam as circunstâncias relativas à própria admissibilidade da produção antecipada de prova. Significa dizer que a parte requerida pode discutir outros elementos, como a adequação do pedido às hipóteses do artigo 381 do CPC,8 a precisão dos fatos descritos, a necessidade da produção da prova (CPC, art. 382, caput), a ilicitude da prova requerida, a incompetência do juízo, entre outras questões.9

3. Defesa e recursos cabíveis na produção antecipada

A partir da correta interpretação do §4º do art. 382 do CPC, as impugnações na produção antecipada de provas, limitadas às questões do procedimento, se dão por meios distintos.

Em sede de primeiro grau, não parece haver controvérsia. Após a citação, o interessado, caso não concorde com a realização da prova, poderá apresentar defesa mediante petição endereçada ao juiz.

Em segundo grau, porém, a situação aparenta ser um pouco mais controversa. Além da apelação (CPC, arts. 1.009 e ss), recurso próprio para atacar a sentença que indefere a produção antecipada de provas,10 a decisão que defere o requerimento, ante a sua natureza interlocutória, se mostra recorrível por meio de Agravo de Instrumento (CPC, arts. 1.015 e ss). O fundamento da admissibilidade do Agravo de Instrumento, contudo, variará a depender do conteúdo da decisão a ser impugnada, da hipótese do art. 381 em que foi enquadrada e da natureza da prova a ser produzida.

Nessa direção, por exemplo, será cabível o agravo fundado no inciso I do art. 1015 do CPC se a produção antecipada de provas for deferida com base no inciso I do art. 381, uma vez que tal hipótese contempla os requisitos da tutela provisória. De outro lado, será admissível o recurso se se tratar de pedido de exibição de documento e coisa, mas sob o fundamento do inciso VI do art. 1.015 do CPC.11

Além dessas, não se deve perder de vista a aplicação da tese da "taxatividade mitigada" estabelecida pelo Eg. STJ em razão do julgamento dos Recursos Especiais Repetitivos nºs. 1.696.396 e 1.704.520. A produção antecipada de provas é típico local para a sua incidência, uma vez que a sentença proferida na produção antecipada de provas possui conteúdo meramente homologatório, ou seja, limita-se a certificar o encerramento do procedimento.12 Logo, eventual Apelação que busque enfrentar a admissibilidade da produção antecipada de provas tende a ter sua finalidade esvaziada, uma vez que aquela prova cuja produção antecipada não deveria ter sido permitida já terá, nesse momento, sido produzida.

Foi com base nesses dois fundamentos que o TJ/SP recentemente se posicionou a respeito sobre a interpretação do §4º do art. 382 do CPC. Na oportunidade, validou o entendimento acima ao reconhecer a admissibilidade de recurso - especificamente do Agravo de Instrumento - em sede de produção antecipada de provas.13

4. Conclusão

Uma vez claro o objetivo da produção antecipada de provas, é possível compreender que a vedação do §4º do art. 382 do CPC se limita às defesas e recursos que busquem discutir a valoração da prova, o que se mostra muito mais adequado à principiologia do CPC e às normas constitucionais. Tal interpretação garante à parte requerida e demais interessados o pleno exercício do contraditório e ampla defesa, além de resguardar a isonomia processual.

É certo, noutro sentido, que a interpretação literal do art. 382, §4º, do CPC, para além dos problemas narrados, traz a incorreta percepção de que apenas o magistrado poderia definir se o requerimento pode ser admitido ou não, sem qualquer controle sobre a sua atividade. Em outras palavras, a literalidade acabaria por transformá-lo em única instância, visto que os interessados não poderiam enfrentar uma produção antecipada de prova descabida.

Assim, a interpretação art. 382, §4º, do CPC apresentada não só é adequada ao ordenamento jurídico. Ela também confere as partes a possibilidade de impugnar, quando for o caso, o uso indevido da produção antecipada de provas, para além das hipóteses contempladas na legislação processual.

____________

1 Art. 382, §4º. do CPC. "Neste procedimento, não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário".

2 Exemplificativamente: "Agravo de instrumento - Produção antecipada de provas - Decisão que deferiu a produção das provas requeridas pelo autor - Recurso incabível - Incidência do art. 382, §4º, do CPC - Não se admite recurso em sede de produção antecipada de provas, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada - Recurso não conhecido" (TJSP, AI 2136477-64.2021.8.26.0000, 11ª CDPriv. Rel. Des. Marco Fábio Morsello, j. 22.7.2021).

3 Exemplificativamente: "Agravo de instrumento. Pedido de produção antecipada de provas. Deferimento. Hipótese que não se enquadra no rol taxativo do artigo 1015 do Código de Processo Civil. Decisão que, ademais, é irrecorrível, por determinação expressa do artigo 382, §4º, do mesmo código. Recurso não conhecido". (TJSP, AI 2122016-29.2017.8.26.0000, 32ª CDPriv, Rel. Des. Ruy Coppola, j. 27.7.2017).

4 Nesse sentido, v. JUNIOR, Zulmar Duarte de Oliveira. Comentários ao Código de Processo Civil. 4ª edição. Rio de Janeiro: Forense. 2021, p. 599. V. tb. THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. 57 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 936.

5 Art. 7º do CPC. "É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório".

6 JUNIOR, Zulmar Duarte de Oliveira. Comentários ao Código de Processo Civil. 4ª edição. Rio de Janeiro: Forense. 2021, pp. 598-599.

7 Art. 382 do CPC. "Na petição, o requerente apresentará as razões que justificam a necessidade de antecipação da prova e mencionará com precisão os fatos sobre os quais a prova há de recair". (...)

8 "A melhor interpretação da vedação, no que exclui a possibilidade de defesa ou recurso, é no sentido de evitar que na produção antecipada de provas se tenha discussão sobre potencial demanda a ser proposta. Porém, tal não impede a discussão do interessado da presença dos requisitos que autorizam a produção antecipada de provas (art. 381), bem como sobre os limites a serem observados na realização da prova em perspectiva". (JUNIOR, Zulmar Duarte de Oliveira. Ibidem.)

9 "(...) Adequado entender-se que o § 4º do art. 382 do CPC ("Neste procedimento, não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário") seja interpretado como indicação da impossibilidade de discussão de questões relativas ao mérito do pedido formulado pelo autor. Não seria razoável impedir o réu, ocorra o que ocorrer, de discutir questões processuais (como as atinentes à composição da relação processual, tal como se tem nestes autos), ou mesmo aquelas relacionadas ao próprio cabimento do pedido, à luz da situação concreta". (TJSP, AI 2053709-81.2021.8.26.0000, 1ª CRDE, Rel. Des. Cesar Ciampolini, j. 19.5.2021).

10  Por exemplo: "PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS Exibição de documentos Indeferimento da petição inicial Interesse jurídico presente para o processamento do pedido Hipótese em que a apelação deve ser conhecida, "ex vi" do disposto no art. 382, § 4º, do CPC - Precedentes deste Tribunal e do STJ Decisão reformada Recurso provido". (TJSP, Ap. Cív. 1106558-72.2020.8.26.0100, 32ª CDPriv., Rel. Des. Caio Marcelo Mendes de Oliveira, j. 8.6.2021).

11 Art. 1.015 do CPC: "Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre:" I - tutelas provisórias; VI - exibição ou posse de documento ou coisa;"

12 Nessa direção, "Produção antecipada de provas - Homologação - Apelação da autora - Sentença que homologou as provas apresentadas pela ré, condenou a autora a arcar com as custas e as despesas processuais e não fixou honorários advocatícios - Pretensão de condenação da ré no ônus da sucumbência, incluindo os honorários advocatícios - cabimento parcial - A sentença de ação antecipada de provas tem caráter meramente homologatório, não havendo pronunciamento do juiz sobre a ocorrência ou não dos fatos e suas respectivas consequências jurídicas - Imposição de sucumbência indevida na hipótese, a qualquer das partes - Sentença reformada nessa parte somente para afastar a condenação da autora ao pagamento das custas e das despesas processuais. Recurso parcialmente provido". (TJSP, Ap. Cív. 1034205-19.2016.8.26.0506, 25ª CDPriv. Rel. Des. Rodolfo Cesar Milano, j. 27.5.2021).

13 Confiram-se os destaques: "(...) O recurso comporta acolhimento. Em primeiro lugar, embora o tema da decisão agravada não conste expressamente do rol do art. 1.015 do CPC, a questão também pode ser objeto de agravo de instrumento, uma vez que o C. STJ, por sua Corte Especial, no julgamento dos recursos especiais repetitivos nº 1.696.396-MT e 1.704.520-MT, decidiu, em acórdão de relatoria da Min. Nancy Andrighi, pela mitigação da taxatividade daquele rol na hipótese de ser verificada a urgência no tratamento da matéria posta em discussão, a ponto de a não interposição do agravo de instrumento tornar inútil o julgamento da questão em sede de apelação (...) o caso dos autos, a questão mostra-se relevante e urgente para que seja analisada neste momento processual, já que o ora agravante se insurge contra o cabimento do próprio procedimento de produção antecipada de prova para o fim almejado pela agravada, e o não processamento do agravo de instrumento impossibilitará a discussão, que, além de dizer respeito à natureza da causa cujos requisitos para o prosseguimento devem estar atendidos, não poderá ser postergada à apelação, diante da vedação recursal estabelecida no art. 382, § 4°, do CPC (...)" (TJSP, AgInt 2129470-21.2021.8.26.0000/50000, 17ª CDPriv., Rel. p/ Acórdão Des. Paulo Pastore Filho, j. 28.7.2021).